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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Messaggero di Sant'Antonio em 02/10/2024
A felicidade é a grande promessa da nova economia de mercado. Ontem prometia-nos bem-estar, hoje a felicidade. Promete-nos de muitas maneiras, mais recentemente com a inteligência artificial que, finalmente, fazendo melhor do que nós tudo o que não gostamos e coisas novas que ainda não fazemos, nos dará a felicidade perfeita. Uma felicidade que tem a ver com ter, com conforto, com liberdade de escolha, com crescimento, com o "mais", e muitas vezes aborda a diversão e o prazer. Algumas dessas felicidades comerciais também são boas, gostamos delas e talvez até nos façam algum bem.
[fulltext] =>Mas depois destas felicidades e destes prazeres, há outra coisa, diferente e muito mais importante. É a alegria de viver. Redescobri-a este verão, quando acompanhei a minha mãe e a minha tia durante alguns dias na praia. Os pequenos-almoços/cafés da manhã lentos na sua companhia, as caminhadas breves, os poucos momentos na praia, o espanto perante uma rosa florida fora de época, especialmente as suas palavras, fizeram-me redescobrir a alegria de viver. Todos nós a conhecemos, ou pelo menos conhecíamos, as gerações passadas conheciam-na, e era o verdadeiro consolo dos pobres nas grandes angústias da vida.
Não está ligada ao "mais", mas ao "menos", mais ao pequeno do que ao grande, não tem nada a ver com conforto, muito menos com riqueza. É essa alegria que de repente se acende, sem a ter procurado ou esperado. Vem, acontece, simplesmente. Quando olhamos para o mar, uma criança, uma gaivota que se alinha perfeitamente com as outras na linha do horizonte depois das rochas e a minha mãe diz: "Como é que conseguem? Elas não sabem medir as distâncias!"
Acende-se enquanto durante o jantar no pequeno hotel de reformados, em setembro, chega um organista, canta canções antigas, e toda a gente se junta para cantar, bater palmas, e alguém sugere um passo de dança. Uma alegria de viver que nasce apenas da vida, apenas por estar vivo, que não precisa de nada além da vida. E depois vamos dormir felizes de estar no mundo, com a alegria de quem sabe, espera, levantar-se amanhã só para continuar a vida. Aquela alegria que entra nos lares de idosos que ficaram sozinhos, mas que sabem pôr a mesa com o mesmo cuidado de quando os almoços estavam cheios de gente e de vida; e enquanto comem, sozinhos, aquela refeição bem preparada, surge nos seus corações uma doçura diferente, que tem algo da boa nostalgia de ontem e ainda assim é toda presente e futuro.
A Providência colocou este recurso entre aqueles essenciais para viver. No entanto, escondeu-o nas pequenas coisas, muito pequenas, quase invisíveis se corrermos demasiado. E talvez por isso os pobres e os puros de coração sejam capazes de compreendê-lo, talvez só eles. Faz parte da paisagem daquele Reino dos céus onde habitam todos os pobres e puros de coração, por vezes sem o saberem. Às vezes vem depois de grandes dores, depressões, lutos, e a sua chegada é a sentinela que anuncia que o amanhecer está chegando. Como na última cena da Cabiria de Fellini, onde aquele sorriso final é o fim das suas noites desesperadas. É graça, só graça, todo dom. Podemos comprar alguma felicidade: a alegria de viver não, é pura gratuidade, e é a mais bela. Às vezes vem durante uma oração diferente, e floresce de lágrimas de dor que se transformam em lágrimas de alegria. Vem muitas vezes, quase todos os dias. Somos nós que devemos aprender a reconhecê-la, a abrir espaço para ela, a deixá-la entrar na adega do coração. E lá para celebrar, bater palmas e, se pudermos, até insinuar um passo de dança.
Crédito da Foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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stdClass Object ( [id] => 19792 [title] => A liberdade da devoção [alias] => liberdade-de-devocao [introtext] =>A piedade popular representava um imenso exercício coletivo de subversão, especialmente das mulheres. Foi, a seu modo, um maravilhoso hino à vida, foi a resposta popular a ideias teológicas erradas.
por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 10/06/2024
«À frente de todos está Deus, senhor do céu. Isso todos sabemos. Depois vem o Príncipe Torlonia, senhor da terra. Depois vêm os guardas do príncipe. Depois vêm os cães dos guardas do príncipe. Depois, nada. Depois, ainda nada. Depois, ainda nada. Depois vêm os campónios (It. ‘cafoni’). E pode dizer-se que acabou». Essa é uma frase famosa da Introdução de Fontamara, de Ignazio Silone, um dos mais belos e importantes romances da Itália do século XX. «Cafone» é uma palavra que Silone usou com um significado diferente do comum. Era o nome dos camponeses da planície de Fucino e, em geral, um nome com o qual o escritor indicava os oprimidos e esquecidos da terra. Uma palavra de dor, certamente, mas nunca usada por Silone com um sentido pejorativo, de modo a despertar vergonha. E, no entanto, a dor ainda hoje é motivo de vergonha, especialmente para os pobres. A minha família conheceu a pobreza e também os meus avós a conheceram, e o seu eco vivo chegou até mim. Desse eco nascem as minhas palavras sobre a pobreza, sobre a economia, sobre a teologia.
[fulltext] =>A teologia católica dos séculos passados (a da Contrarreforma) não ajudou os pobres. O Evangelhoajudava-os, às vezes até mesmo a Igreja. Mas quem realmente ajudava os pobres era a piedade popular: aquelas estátuas de Nossa Senhora e dos santos, que para os pobres, sobretudo para as mulheres, eram os únicos companheiros do infortúnio (santos mártires, virgens dolorosas...) a quem podiam recorrer na certeza de serem verdadeiramente compreendidos. Mas a teologia não os ajudou, apenas piorou suas vidas. A ideia não-evangélica de um Deus que apreciava o sofrimento humano em vista do paraíso, de um Deus-Pai que queria até mesmo a crucificação de seu filho para nos salvar (nos salvar de quê?). Em vez disso, os pobres fizeram tudo o que podiam para tirar os seus filhos das cruzes e, assim, nasceu em seus corações outro Deus, o Deus da piedade. A piedade popular foi um imenso exercício coletivo de subversão, especialmente das mulheres. Foi, a seu modo, um maravilhoso hino à vida, foi a resposta popular às ideias teológicas erradas. A piedade popular - a das peregrinações, das procissões, das orações latinas... - foi a Contrarreforma popular; foi a resposta, revolucionária e mansa das mulheres, à religião dos teólogos e seu deus imaginado.
As pessoas pobres não sabiam ler os livros de orações, nem tinham dinheiro para comprá-los. E assim, por um xeque-mate da Providência, que está sempre do lado dos pobres, a gente do povo, principalmente as mulheres, foi protegida pelo seu analfabetismo. A piedade popular era um grande lugar de liberdade feminina, em um mundo que continuava sendo para elas uma experiência de servidão. Na igreja, elas fingiam responder às jaculatórias dos padres, em latim, mas de suas bocas saíam, sussurradas, palavras diferentes. E, acima de tudo, elas choravam. Rezavam com as lágrimas, com os beijos e com as mãos: maravilhosas orações silenciosas, mãos deformadas e gastas que, no entanto, sabiam fazer carícias maravilhosas e beijar as estátuas dos santos, de Nossa Senhora, dos anjos e dos meninos. Carícias e beijos, que em casa essas mulheres nunca recebiam de ninguém, na igreja elas os davam incessantemente a Cristo e aos santos, e eles realmente nos salvaram. A fé católica ainda está viva, embora muito doente, graças a essas mulheres que a humanizaram com a sua piedade, que a salvaram com a sua transgressão: «Na vida cristã, a piedade não coincide tanto com a ascética nem com a mística, nem mesmo com a devoção ou com as devoções: coincide com a "Caridade", que é o Arquivo do amor de Deus» (Pe. Giuseppe de Luca).
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 10/06/2024
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stdClass Object ( [id] => 19798 [title] => Se a liderança entrar na escola [alias] => se-a-lideranca-entrar-na-escola [introtext] =>Se as escolas começarem a distinguir os alunos em líderes e seguidores, estarão minando um dos pilares da educação: a redução das desigualdades naturais e sociais na sala de aula para criar a cidadania comum essencial a qualquer pacto social.
por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 04/05/2024
Liderança tornou-se uma palavra sagrada na nova religião do capitalismo. Ela é invocada em toda a parte. Até mesmo os círculos eclesiais - onde se encontram cursos sobre a liderança de Jesus, São Bento e até mesmo São Francisco - estão fascinados por ela. Apesar do fato de que o fundador do cristianismo disse: «Não vos chameis mestres (ou seja, líderes), pois um só é o vosso Mestre»" (Mt 23:10), e depois construiu todo o humanismo cristão em torno do conceito de seguimento, que é exatamente o oposto da liderança. E, no entanto, embora os adjetivos se multipliquem (inclusivo, bondoso, comunitário...), o substantivo, liderança, nunca é questionado.
[fulltext] =>As razões para o surgimento desse novo dogma são muitas, mas na raiz há uma nova e grande fragilidade relacional e emocional dos trabalhadores e gerentes, em um mundo que desaprendeu a trabalhar em conjunto. Assim, por um lado, criticamos o patriarcado e todo o humanismo desse mundo hierárquico e, por outro, criamos uma cultura de liderança que, em muitos aspectos, é mais patriarcal do que o patriarcado (é impressionante como o movimento feminista ainda não percebeu o quanto o machismo está embutido na ideia de liderança).
Um fenômeno recente e preocupante, portanto, que indica a direção que esse novo humanismo empresarial está tomando, tem a ver com o mundo das escolas. Fiquei impressionado com as histórias de duas colegas sobre as conversas que tiveram com os professores de seus filhos e filhas. Esses professores repetiram, com palavras semelhantes, o mesmo conceito:«A sua filha, o seu filho, tem todas as características para se tornar um/a líder na classe, mas não temos a certeza se vai conseguir porque há outras e outros com quem compete: é preciso ajudá-la/o em casa para fortalecer as suas capacidades de liderança».
Eu achava que esses argumentos se limitavam ao ambiente universitário, mas, em vez disso, as conversas relatadas se referem ao ensino secuundário e médio, onde a mentalidade corporativa está entrando com força (talvez em breve chegue também às escolas primárias). A infeliz mudança no nome do Ministério da Educação (que também se tornou "do mérito") já havia sinalizado uma mudança na cultura educacional do país (Itália), porque a meritocracia e a liderança são dois lados da mesma moeda: o líder é diferente do antigo «gerente» ou «chefe de escritório», também porque ele merece o seguimento de seus «funcionários», que se tornaram «followers (seguidores)» ("atenção à linguagem das redes sociais sobre este assunto").
Mas se as escolas começarem a distinguir e dividir os alunos em líderes e seguidores, elas minam em seus alicerces um dos pilares da educação de crianças e jovens: a redução das desigualdades naturais e sociais na sala de aula para criar a cidadania comum essencial a qualquer pacto social. Na escola, os jovens devem aprender a ser companheiros de todos, pois a fraternidade civil começa na sala de aula. Já existem mecanismos para diferenciar os "méritos" escolares, que são chamados de julgamentos e notas, e todos na sala de aula sabem quem são os melhores colegas e aqueles que são menos bons ou que são melhores em outras matérias. Se, por outro lado, a essas inevitáveis desigualdades de talentos e oportunidades começarmos a acrescentar as capacidades de liderança que apenas alguns teriam, as desigualdades crescerão cada vez mais até destruir a convivência civil.
O aspecto mais nocivo dessa ideologia-religião empresarial é a sua apresentação como inofensiva e, portanto, aceita sem reações negativas por professores e famílias. É necessária toda a atenção de todos sobre o que está acontecendo no mundo escolar.
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por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 04/05/2024
Liderança tornou-se uma palavra sagrada na nova religião do capitalismo. Ela é invocada em toda a parte. Até mesmo os círculos eclesiais - onde se encontram cursos sobre a liderança de Jesus, São Bento e até mesmo São Francisco - estão fascinados por ela. Apesar do fato de que o fundador do cristianismo disse: «Não vos chameis mestres (ou seja, líderes), pois um só é o vosso Mestre»" (Mt 23:10), e depois construiu todo o humanismo cristão em torno do conceito de seguimento, que é exatamente o oposto da liderança. E, no entanto, embora os adjetivos se multipliquem (inclusivo, bondoso, comunitário...), o substantivo, liderança, nunca é questionado.
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por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 06/04/2024
A economia antiga acreditava que a riqueza estava ligada à posse de capital. Palácios, minas e, principalmente, ouro eram considerados a verdadeira riqueza das famílias, cidades ou Estados. Portanto, a política econômica tinha apenas uma direção: aumentar o ouro nos cofres e fazer de tudo para retirá-lo o mínimo possível. Depois, em meados do século XVIII, a escola francesa da «Fisiocracia» fez uma mudança radical, dizendo-nos que a riqueza mais importante era outra: o fluxo anual de ganho gerado pelo capital. E nasceu o conceito de PIB, o produto interno bruto, que só se tornou operacional com o início do século XX e com o desenvolvimento de técnicas de contabilidade nacional.
[fulltext] =>Com o surgimento da economia moderna, começamos a medir fluxos, não mais estoques/sotcks ou capital. Sabíamos que os fluxos, que os ganhos, surgiam dos capitais de vários tipos - financeiros, humanos, sociais... - mas eles permaneciam em segundo plano na teoria econômica e, portanto, na mensuração. E assim, dia após dia, os capitais que não eram mais vistos pela teoria econômica e pela política começou a se deteriorar. Nós os consumimos, até porque no início do desenvolvimento econômico capitalista eles eram muito abundantes (especialmente o capital ambiental e comunitário) e, portanto, o seu estoque/stock parecia ser quase infinito. Só no final do segundo milênio começamos a ter consciência de que esses capitais estavam realmente se esgotando.
O primeiro capital do qual (quase) todos nós vemos a grave deterioração é o do meio ambiente. A terra, usada como um recurso a ser extraído sem reciprocidade, está levantando o seu grito, que é ouvido por uma menina (Greta) e um velho ( Francisco), mas muito menos pelo mundo da economia e da política. O mercado, baseado na vantagem mútua, não incluiu nessa mutualidade de vantagens também a vantagem da terra, dos animais e das outras espécies nos cálculos de custos e benefícios, e a reciprocidade intra-humana cresceu às custas da vida não humana, uma escolha antiética e também míope e estúpida sob muitos pontos de vista.
O capital natural, entretanto, não é o único capital em extinção. Outro "estoque/stock" que o capitalismo está consumindo é o civil e espiritual, composto de virtudes civis e da capacidade de estar no mundo. As empresas foram as primeiras a perceber isso, com base na sua vocação para especular - de specula, o lugar onde nos posicionamos para ver mais longe -. Os jovens trabalhadores chegam às empresas cada vez menos equipados com esse capital ético composto de resiliência emocional, capacidade de gerenciar conflitos, de cooperar, porque todas essascompetências foram gerenciadas dentro de códigos éticos e narrativos que quase se esgotaram no século XX. Daí, por um lado, o desconforto dos jovens trabalhadores em se encaixarem em nossas organizações produtivas - do qual o grave fenômeno das «grandes demissões» de milhões de trabalhadores após a Covid é um sinal - e, por outro, a preocupante proliferação de uma floresta de consultores (coaches, conselheiros, psicólogos do trabalho, gerentes de bem-estar, etc.) que deveriam criar internamente aquelas virtudes e capacidades dos trabalhadores que não vêm mais de fora (família, igrejas, comunidade...).
O que fazer? Primeiramente, conversar mais sobre o assunto. Em seguida, começar a medir o capital, não apenas o PIB, que aumenta com as guerras, os jogos de azar e o mal-estar das pessoas. Dar início a uma época de novos medidores de «conta de capital» para monitorar a saúde do que resta do clima e das virtudes civis, da ética pública, do patrimônio moral e espiritual que gerou os milagres econômicos e civis do século XX.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 06/04/2024
A economia antiga acreditava que a riqueza estava ligada à posse de capital. Palácios, minas e, principalmente, ouro eram considerados a verdadeira riqueza das famílias, cidades ou Estados. Portanto, a política econômica tinha apenas uma direção: aumentar o ouro nos cofres e fazer de tudo para retirá-lo o mínimo possível. Depois, em meados do século XVIII, a escola francesa da «Fisiocracia» fez uma mudança radical, dizendo-nos que a riqueza mais importante era outra: o fluxo anual de ganho gerado pelo capital. E nasceu o conceito de PIB, o produto interno bruto, que só se tornou operacional com o início do século XX e com o desenvolvimento de técnicas de contabilidade nacional.
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por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 06/03/2024
Os protestos dos agricultores com os seus tratores podem nos dizer muitas coisas, mas nem todas são sempre enfatizadas pelo debate público. Subestimámos a dimensão conflituosa da transição ecológica. Mesmo em relação ao planeta e à Terra, os muitos danos que causámos no último século não desaparecem por si sós. Eles exigem muito trabalho, seriedade, comprometimento, custos e, às vezes, geram novos conflitos.Vislumbram-se novas «lutas de classe», diferentes das de ontem, mas não menos importantes e preocupantes. A terra sempre foi subvalorizada pela economia e pela política. Desde que a economia moderna, entre os séculos XVII e XVIII, começou a considerar-se uma ciência, ela nunca pensou que o mundo vegetal ou o biológico pudessem oferecer ferramentas e categorias para pensar sobre as interações econômicas. Depois, no final do século XIX, a terra saiu completamente de cena, gerando um eclipse da terra na ciência econômica que durou até alguns anos atrás, quando a explosão da crise ambiental global fez com que ela terminasse traumaticamente. Assim, criámos uma teoria e prática econômicas que são incapazes de ver a Terra e as suas necessidades, e a deteriorámos.
[fulltext] =>A negligência geral da economia e da política com relação à terra, portanto, tem raízes antigas e profundas. A Igreja Católica, por outro lado, demonstrou grande cuidado com a terra e os agricultores nos séculos passados. Bento XIII, Vincenzo Maria Orsini (1649-1730), de Gravina de Puglia, foi chamado de "o agricultor de Deus" por causa de seu trabalho incansável na promoção dos chamados «montes frumentários», verdadeiros bancos de cereais onde a “moeda” era o trigo: os empréstimos eram contraídos em trigo, que depois eram reembolsados em trigo. Em 1861, só no sul da Itália e nas ilhas havia mais de mil "montes frumentários" (mais de trezentos só na Sardenha), fundados primeiro pelos frades capuchinhos e depois por muitos bispos. Um verdadeiro patrimônio civil e econômico, também perdido devido às escolhas erradas do novo governo unitário. Naqueles séculos difíceis da Contrarreforma, a Igreja foi capaz de entender onde estavam as necessidades reais da população rural e realizou obras inovadoras.
É impressionante que hoje este último conflito de agricultores tenha surgido entre as necessidades de uma terra ferida e aqueles que vivem dos frutos da mesma terra. Uma relação predatória com a terra que a deteriorou e empobreceu. Este empobrecimento dificultou a vida dos camponeses e agricultores que contribuíram apenas com uma pequena parte para os prejuízos, que se deveram principalmente à indústria e ao consumo em massa. Hoje, porém, são justamente os agricultores que cultivam essa terra doente que são chamados a mudar (por sua conta) as técnicas de produção para não continuar empobrecendo as terras esgotadas. E aqui está um conflito paradoxal entre as vítimas de ontem e os possíveis carrascos de amanhã, os guardiões da terra que sentem que estão sendo tratados como seus assassinos. E eles não vão tolerar isso. E nós os entendemos. Todos nós precisamos de encontrar juntos um novo relacionamento com a terra. Usámo-a para extrair os nossos recursos, sem entender que ela precisava da nossa reciprocidade. Não fomos guardiões, fomos predadores. Escutemos o grito dos agricultores e mudemos rapidamente o nosso estilo de vida.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
publicado no site Messaggero di Sant'Antonio em 06/03/2024
Os protestos dos agricultores com os seus tratores podem nos dizer muitas coisas, mas nem todas são sempre enfatizadas pelo debate público. Subestimámos a dimensão conflituosa da transição ecológica. Mesmo em relação ao planeta e à Terra, os muitos danos que causámos no último século não desaparecem por si sós. Eles exigem muito trabalho, seriedade, comprometimento, custos e, às vezes, geram novos conflitos.Vislumbram-se novas «lutas de classe», diferentes das de ontem, mas não menos importantes e preocupantes. A terra sempre foi subvalorizada pela economia e pela política. Desde que a economia moderna, entre os séculos XVII e XVIII, começou a considerar-se uma ciência, ela nunca pensou que o mundo vegetal ou o biológico pudessem oferecer ferramentas e categorias para pensar sobre as interações econômicas. Depois, no final do século XIX, a terra saiu completamente de cena, gerando um eclipse da terra na ciência econômica que durou até alguns anos atrás, quando a explosão da crise ambiental global fez com que ela terminasse traumaticamente. Assim, criámos uma teoria e prática econômicas que são incapazes de ver a Terra e as suas necessidades, e a deteriorámos.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Il Messaggero di Sant'Antonio em 03/12/2023
Qual é a ética econômica específica do cristianismo é uma questão antiga, já que é nos próprios evangelhos que encontramos o primeiro pluralismo. Na verdade, nunca foi fácil juntar o «ai dos ricos» de Lucas com a presença de pessoas ricas na comunidade de Jesus (Levi, José de Arimateia...), ou encontrar uma coerência entre a "parábola dos talentos" e a do "trabalhador da última hora" do evangelho de Mateus. O que é certo, porém, é a importante diferença entre a ética do Evangelho, que é essencialmente uma ética de ágape, e a ética das virtudes de origem grega e romana. Embora no decorrer da Idade Média a ética cristã tenha incorporado a ética das virtudes (ou vice-versa), fundando a estrutura civil e religiosa do cristianismo sobre as virtudes cardeais, é verdade, porém, que o humanismo subjacente ao mundo grego e romano não é nem o bíblico nem o evangélico, embora haja pontos de contato. A antiga ética das virtudes baseava-se na ideia de excelência (areté) em uma determinada esfera da vida (política, esporte/desporto etc.), uma excelência que pode ser alcançada por aqueles que praticam as virtudes com empenho e que gera como recompensa final a felicidade (eudaimonia), o objetivo final da vida, como ensinou Aristóteles.
[fulltext] =>O Evangelho tem outra ideia de excelência, e a sua felicidade (se quisermos chamá-la assim), além de ser muito diferente da grega, certamente não é o objetivo final do cristão. A excelência cristã é primar no amor-ágape, não nas virtudes. De fato, o contraste entre as virtudes e o ágape está precisamente no papel que os outros (seres humanos e criação) têm em função de si próprios. O limite da ética grega reside em centrar-se no indivíduo que procura melhorar o seu próprio caráter, tendendo para a perfeição moral. O Evangelho muda a perspectiva e diz: «Não pensar em si mesmo, pensar nos outros, descentralizar-se, e encontrar-se melhor sem se ter pensado nisso». Ele não propõe um processo ético de formação do caráter do indivíduol; é uma ética de comunhão, de reciprocidade, em que o "novo mandamento" é dirigido aos cristãos na segunda pessoa do plural: "amai-vos uns aos outros...". Se olharmos para os primeiros apóstolos, incluindo Paulo, encontraremos pecadores, traidores, impulsivos, temerosos, frágeis, de coração duro, em busca de poder, certamente não virtuosos. O que fez com que eles se tornassem mestres e testemunhas da fé foi a sua capacidade de amar, de se arrepender, de recomeçar sempre e de acreditar mais no amor de Deus do que em suas próprias virtudes. Sem mencionar o Antigo Testamento, onde os pais da fé são assassinos (Moisés e Davi/David), mentirosos (Jacó/Jacob) e assim por diante.
Tudo isto deve levar-nos a repensar até mesmo a ideia cristã e católica de santidade ou beatificação e os respetivos processos. Para identificar testemunhas da fé, deveríamos olhar não para as virtudes heroicas, mas para as "bem-aventuranças heroicas" que expressam valores muito, muito diferentes. Sem mencionar os milagres como prova de santidade, requisitos introduzidos na era moderna e da Contrarreforma, e que têm pouco a ver com o humanismo do Evangelho. Tive os melhores mestres da fé em pessoas com muitas imperfeições, defeitos, vícios, pecados, que, no entanto, eram capazes de amar, que nunca deixaram de seguir os passos de uma Voz, coxeando como Jacó/Jacob. A imperfeição deles foi a fenda espiritual pela qual um sopro do Espírito pôde penetrar, mudando a minha vida, não a tornando perfeita, mas apenas mais amada, colocando dentro de mim o desejo de tentar mudar a economia dos outros e dos mais pobres. A nossa felicidade pessoal, para o Evangelho, significa muito pouco.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Il Messaggero di Sant'Antonio em 03/12/2023
Qual é a ética econômica específica do cristianismo é uma questão antiga, já que é nos próprios evangelhos que encontramos o primeiro pluralismo. Na verdade, nunca foi fácil juntar o «ai dos ricos» de Lucas com a presença de pessoas ricas na comunidade de Jesus (Levi, José de Arimateia...), ou encontrar uma coerência entre a "parábola dos talentos" e a do "trabalhador da última hora" do evangelho de Mateus. O que é certo, porém, é a importante diferença entre a ética do Evangelho, que é essencialmente uma ética de ágape, e a ética das virtudes de origem grega e romana. Embora no decorrer da Idade Média a ética cristã tenha incorporado a ética das virtudes (ou vice-versa), fundando a estrutura civil e religiosa do cristianismo sobre as virtudes cardeais, é verdade, porém, que o humanismo subjacente ao mundo grego e romano não é nem o bíblico nem o evangélico, embora haja pontos de contato. A antiga ética das virtudes baseava-se na ideia de excelência (areté) em uma determinada esfera da vida (política, esporte/desporto etc.), uma excelência que pode ser alcançada por aqueles que praticam as virtudes com empenho e que gera como recompensa final a felicidade (eudaimonia), o objetivo final da vida, como ensinou Aristóteles.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Il Messaggero di Sant'Antonio em 09/11/2023
O atual Sínodo é uma das mais belas novidades do pontificado de Francisco, fruto da sua capacidade de captar os sinais dos tempos. A forma como foi preparado e como está se desenrolando é claramente uma bênção para a Igreja (e não apenas para a Igreja Católica). Há motivos para nos alegrarmos, e de muitos pontos de vista. Não menos importante, por causa da nova presença de leigos e de mulheres, que fazem desta assembleia eclesial algo verdadeiramente histórico. Permitam-me apenas fazer duas pequenas observações a esta bela página que está sendo escrita. Elas dizem respeito à natureza e às competências dos delegados. De fato, se percorrermos a lista de participantes, além da satisfação com a rica composição e a biodiversidade carismática, também ficaremos impressionados com a ausência de certos componentes. É sempre uma tarefa fácil olhar para uma realidade em busca do que está faltando, porque não há realidade humana em que algo não esteja sempre faltando. Portanto, este meu exercício deve ser considerado como tal, com todas as suas limitações.
[fulltext] =>A Igreja, e não apenas a Igreja Católica, está no meio de um grande processo de mudança, um dos maiores e mais radicais da sua história, que pode ser comparado ao que se seguiu ao colapso do Império Romano (século V), ou seja, a Igreja na época de Agostinho e Bento, quando um mundo secular entrou em colapso sem que outro tivesse nascido. Hoje, um mundo - a Christianitas - está desaparecendo, e não se vislumbra outro mundo para as igrejas. Estamos em um longo Sábado Santo. O Concílio Vaticano II foi um evento extraordinário, mas, como dizia Dossetti, um problema daquela assembleia providencial foi conceber-se ainda dentro da época da Christianitas, ou seja, não ter entendido coletivamente que uma história estava chegando ao fim, embora as igrejas ainda estivessem cheias. Essas igrejas cheias eram uma "maldição da abundância", porque essa riqueza impediu que os padres conciliares percebessem o vazio que se escondia sob as cinzas.
Com o século XXI, não podemos mais pensar na Igreja, na fé e na religião como fazíamos no século XX. A Igreja, em alguns países, ainda tem uma vitalidade própria e as igrejas não estão completamente vazias, mas devemos ter muito cuidado para que esse «meio-vazio» (e não o vazio total) não desempenhe o papel que as igrejas cheias desempenharam durante os anos do Concílio. E para entender os sinais dos tempos em um mundo com templos quase vazios, não é suficiente ter teólogos, bispos, freiras, padres, pessoas consagradas, que são a maioria dos delegados. Precisamos de empresários, trabalhadores, professores, assistentes sociais, cientistas, artistas, poetas, que são aqueles que estão vivendo essa grande noite escura da vida cristã a partir de uma visão «de fora» da Igreja institucional. Essas figuras são as principais sentinelas do amanhecer que poderia chegar. E precisamos, acima de tudo, de jovens de verdade, com menos de 30 anos, que são, ao que me parece, os outros grandes ausentes do Sínodo. Porque em toda grande expectativa está escondida a expectativa de uma criança, do habitante do mundo que está nascendo. Os profetas bíblicos eram todos jovens quando iniciaram a sua vocação, de Samuel a Jeremias.
Este que está acontecendo é o «Sínodo do já», a assembleia que fotografa a Igreja hoje; não é o «Sínodo do ainda não», um ainda não que, na vida do espírito, é sempre essencial, mas especialmente um mundo está acabando e ainda não vemos outro. Quando há necessidade dos olhos da sentinela, de quem fica nas muralhas e fala do que está fora para os que estão dentro, e do que está dentro para os que estão fora. Mulheres e homens do limiar. É no limiar, nos lugares liminares, que a ressurreição já está ocorrendo.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Il Messaggero di Sant'Antonio em 01/10/2023
Há um aspecto da nossa sociedade capitalista que ainda não foi suficientemente discutido pelos economistas e filósofos. Refiro-me à absolutização da categoria de consumidor. Uma das grandes inovações introduzidas no século XX pelo capitalismo no estilo norte-americano foi a soberania do consumidor. O consumo nos mercados, o consumir, foi visto como uma forma de liberdade dos modernos, criando novas oportunidades e novas igualdades: mesmo que eu seja um trabalhador, mesmo que eu não tenha estudado, mesmo que eu não seja de uma boa família, mesmo que eu não faça parte da elite, quando entro em uma loja com dinheiro, posso comprar o mesmo carro que os mais abastados. No momento da compra sinto-me igual aos chefes e aos ricos, não me sinto em segundo lugar. Essa primeira época de consumo em massa foi um passo importante para a democracia, primeiro no Ocidente e depois em todo o mundo (hoje esses fenômenos são especialmente importantes na África e na Ásia). O dinheiro nem tem cheiro de classe social: posso não saber falar de forma elegante e refinada, sou filho de camponeses, mas quando vou à sua loja, tem de me tratar com a mesma dignidade com que trata os mais abastados.
[fulltext] =>Hoje, o consumo está mudando de natureza, porque o mercado está mudando ( já mudou). A globalização, primeiro, e as redes sociais, depois (com as multinacionais com fins lucrativos que as gerenciam, não o esqueçamos), fizeram do paradigma do consumo o novo paradigma da democracia.
De fato, o consumo de mercado tem poucas regras claras e simples:
1. O consumidor é o único que pode decidir sobre suas preferências e gostos;
2. Se eu gosto de um bem ou serviço, eu compro-o, se não gosto, não o compro;
3. No mundo das coisas, uma vez que estamos dentro (com poder de compra ou com dívidas), somos todos iguais, não há hierarquias de qualquer tipo;
4. Nada me pode ser imposto, no mercado, sem o meu consentimento.O «like/gosto» das redes sociais foi retirado diretamente do mundo do consumo, onde só é válido o que o indivíduo gosta ou não gosta. Portanto, ninguém me pode impor, de fora ou do alto, escolhas e bens de que eu não goste, que eu não tenha decidido livremente comprar ou não comprar. Tanto é assim que um axioma da teoria econômica liberal (a chamada Public Choice) diz que o mercado não age por maioria (como na política), mas por unanimidade, visto que se baseia no contrato, cuja lógica exige o consentimento de todos os participantes na troca (Buchanan e Tallock).
Até onde pode ir este raciocínio? Se o consumidor se tornar o novo cidadão global, a questão é a seguinte:
1. Esses consumidores-cidadãos poderão aceitar fazer coisas de que não gostam?
2. Serão capazes de aceitar, por exemplo, leis das quais não gostam, sofrer as consequências mesmo quando não gostam delas?
3. Aceitarão a coerção da autoridade ou estamos formando novos cidadãos que só vão querer pagar as multas que quiserem, que só irão para a cadeia se concordarem?Até hoje (ou até ontem), as leis e as sanções eram decididas democraticamente, ou seja, pela maioria dos cidadãos e com garantias para as minorias, mas as leis em vigor não exigem o "gosto" de todos os cidadãos, muito menos daqueles que têm de as cumprir. A grande questão, então, é: a democracia sobreviverá ao pós-capitalismo consumista do século XXI?
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di Sant'Antonio em 07/09/2023
Um dia, enquanto procurava preguiçosamente por algo interessante nos canais de TV, me deparei com um programa sobre os grandes hotéis italianos. Um grupo de pessoas se hospedava nesses hotéis de luxo para, depois, fazer uma avaliação dos vários serviços oferecidos. O que me chamou a atenção foi a total ausência, neste programa, da dimensão da chamada «restrição orçamentária»: estes senhores-avaliadores pediam jantares, serviços diversos, sem nunca se preocuparem com o seu preço, como se vivessem num mundo em que o custo de um serviço ou de uma mercadoria não fosse um elemento importante na escolha. As famílias normais assistem a esses programas, depois se deparam com os anúncios de empréstimos fáceis, que têm (infelizmente) como protagonista uma cara simpática da nossa ficção e por isso não é difícil juntar as peças. Ou seja, pensar que aquela vida de férias em hotéis de luxo num mundo sem restrições orçamentais familiares se torna possível e fácil graças a empréstimos muito fáceis de pessoas simpáticas e instituições financeiras que só existem para a nossa felicidade.
[fulltext] =>É pena que a realidade e os dados sobre o nosso país (Itália) sejam muito diferentes. Junto com o boom das férias de luxo das classes média e baixa, cresce também o recurso à usura, aos jogos de azar e, assim, crescem as pobrezas associadas a esses sonhos irresponsáveis promovidos pelo sistema dos média/mídia fora de controle. A primeira regra de qualquer economia (que significa - não o esqueçamos - "gestão doméstica") é o equilíbrio entre entradas e saídas. Uma boa economia começa com as entradas e ajusta as saídas com base naquelas. O humanismo consumista de nosso tempo, cada vez mais semelhante a uma religião, inverte esta ordem. Começa com os desejos dos bens e das atividades, portanto, com as despesas, e depois indica-nos os meios para obter as entradas, sem nos dizer, irresponsavelmente, que as entradas a débito são apenas outras saídas diferidas no tempo. Assim, cobrem-se saídas com outras saídas, em mecanismos ingênuos que levam, não raras vezes, a crises econômicas de famílias inteiras.
Todo o nosso mundo pós-capitalista se baseia numa errada gestão dos desejos. Uma adolescência perpétua e sem limites, construída sobre o princípio do prazer (Sigmund Freud), sem nunca chegar ao princípio da realidade, uma realidade que nos revelaria algo extremamente importante, talvez decisivo, para o futuro do nosso tempo. Da psicologia (Jacques Lacan) e, sobretudo, da vida, sabemos que a satisfação dos desejos não é a operação decisiva para as alegrias mais importantes e profundas da vida. Porque o nosso maior desejo é desejar um desejo que nos deseja, é um encontro de reciprocidade de desejos, que só acontece quando o nosso desejo encontra as pessoas, que, por sua vez, podem desejar e desejar-nos.
É por isso que o desejo religioso é a mãe de todos os desejos: desejar um Deus que nos deseja. E quando se deseja alguém que nos deseja, a felicidade não consiste na satisfação, mas em permanecer em uma insatisfação perpétua que aumenta a reciprocidade dos desejos – uma pessoa que satisfizesse esse desejo seria uma mercadoria, como sabemos. As pessoas que amamos mudam os nossos desejos, e nós mudamos os deles, e a vida torna-se um processo contínuo de descoberta. São os bens relacionais, não as mercadorias, que são a nossa terra prometida. O capitalismo sabe disso, não sabe vender bens relacionais e, portanto, faz de tudo para simulá-los, vendendo-nos bens que se assemelham a relações. Enquanto tivermos consciência deste 'bluff', ainda seremos livres: "Suplico-te, meu Deus, meu sonhador, continua a sonhar-me" (Jorge Luis Borges).
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por Luigino Bruni
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di Sant'Antonio em 06/07/2023
As crises ambientais, financeiras e militares deste início de milênio, tão graves que não podem ser ignoradas, correm o risco de nos fazer subestimar ou esquecer uma crise tripla da qual falamos muito pouco: a crise da fé, das grandes narrativas e da geração. Um mundo que não espera mais o paraíso, que esqueceu as narrativas coletivas e que não gera filhos, não encontra mais sentido suficiente para viver e, portanto, para trabalhar. As chamadas «grandes demissões» de milhões de trabalhadores, jovens e pessoas de meia-idade, que deixam os seus empregos sem ter outro, certamente têm muitos motivos, mas um deles está se tornando o dominante. É a falta de resposta a uma pergunta crucial: «Por que devo trabalhar, se não espero mais uma terra prometida (acima ou abaixo do céu), se não tenho ninguém que espere um presente e um futuro melhores com o meu trabalho?».
[fulltext] =>Nunca devemos esquecer que o mundo do trabalho nunca criou nem esgotou o significado do trabalho. O trabalho é uma parte importante do sentido da vida, mas não o esgota; precisamos de algo mais, além do trabalho, para viver bem, mesmo quando o trabalho é muito bom e nos realiza profundamente. Ontem, esse "algo mais" era a família, eram as ideologias, a religião, que davam ao trabalho o seu devido significado. Depois, a fábrica, os campos ou o escritório reforçavam esse sentido, mas ele nascia fora do trabalho. Trabalhava-se bem porque antes e depois do trabalho havia coisas e pessoas maiores do que o trabalho. O trabalho era e é grande, mas, para ser visto em sua verdadeira grandeza, deve ser visto de fora, de uma porta ou janela que se abre para o exterior do local de trabalho; porque sem esse espaço maior que prepara e acompanha o trabalho, a sala de trabalho é demasiado pequena, o teto da fábrica ou do escritório é demasiado baixo para que esse animal infinitamente doente que é o homo sapiens possa ficar lá bem sem asfixiar, e possa ficar lá por muito tempo.
A Constituição italiana baseia-se no trabalho, porque o trabalho era fundado noutra coisa, era fundado na vida. Se as mães e os pais constituintes não estivessem convencidos de que o trabalho era apenas uma parte da vida, que era aquela zona intermédia entre um antes e um depois, não teriam escrito aquele artigo 1º, porque fundar a Constituição sobre o trabalho que não se baseia noutra coisa, teria sido a maior heresia ética. Também porque nesse algo, antes e depois do trabalho, existem as crianças que não trabalham porque não têm de trabalhar, os idosos que não trabalham mais, aqueles que não puderam trabalhar ou nunca trabalharão porque a vida os impede de fazê-lo. Fundar a democracia no trabalho só é bom se nos lembrarmos de que a palavra trabalho está em segundo lugar, não em primeiro.
O trabalho enobrece o homem, é verdade. Trabalhar nos torna melhores e aumenta a dignidade da vida e do dinheiro de que precisamos para viver, porque o salário se torna uma expressão daquela reciprocidade civil que é o cimento bom da sociedade. Mas se quisermos ter uma relação justa com o trabalho, devemos nos lembrar de que, em primeiro lugar, é o homem e a mulher que enobrecem o trabalho com a sua presença, com as suas mãos e a sua inteligência. Porque se uma atividade, que poderia ser realizada por uma máquina, é realizada por uma pessoa humana livre, essa pessoa confere maior dignidade a esse ato - a uma palestra universitária, a uma consulta médica, a uma obra de arte - e, portanto, cada vez que expulsamos trabalhadores e introduzimos máquinas, estamos reduzindo a dignidade desse local de trabalho. É o nosso trabalho que aumenta a dignidade da Terra.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di Sant'Antonio em 04/06/2023
A renúncia do senador Carlo Cottarelli por, entre outras coisas, não considerar o seu partido suficientemente forte no apoio à meritocracia, mais uma vez chamou a atenção para o significado e a ideologia do mérito em nosso tempo. Mérito sempre foi uma palavra ambígua, porque está profundamente ligada ao fascínio que o mérito exerce sobre todos nós. Todos nós gostaríamos de merecer os nossos sucessos (menos, porém, merecer os nossos fracassos), ninguém gosta de pensar que a boa carreira que teve é resultado apenas da sorte e de recomendações.
[fulltext] =>Se observarmos como o mérito é usado, ontem e hoje, nas escolhas concretas da economia e da sociedade, perceberemos que ele quase nunca esteve do lado dos pobres, que muitas vezes foram descartados e depois culpados por serem considerados desmerecidos, convencendo-os, assim, de que não são apenas pobres, mas também culpados e amaldiçoados. Mérito deriva de merere, que significa ganhar, do qual também derivam [it.] mercede (recompensa) e [it.] meretrice (meretriz). Meritocracia é a ideologia do mérito que, como todas as ideologias, usa uma palavra de que gostamos e nos fascina, manipula-a e perverte-a. E assim, em nome da valorização dos merecedores e dos pobres, a ideologia meritocrática se tornou a legitimação ética da desigualdade.
Bastou mudar o nome e a desigualdade deixou de ser um mal e passou a ser um bem. Foram três as etapas: 1. considerar os talentos das pessoas como um mérito e não como um dom; 2. reduzir os muitos méritos das pessoas àqueles mais fáceis de serem medidos pelas empresas de consultoria (quem hoje vê os «méritos» da compaixão, da mansidão, da humildade?); 3. ler o talento como mérito leva a remunerar os méritos de forma diferente e, portanto, a aumentar as diferenças entre as pessoas.
O mal-entendido sobre o mérito já pode ser encontrado na Constituição Italiana, que afirma no Artigo 34º: «Os capazes e os merecedores, ainda que desprovidos de recursos, têm o direito de atingir os graus mais elevados de estudos». Não é coincidência que o governo italiano se tenha baseado nesse artigo para justificar a mudança do nome do Ministério "da Educação" para "da Educação e do Mérito", aproveitando a brecha deixada pela ambiguidade do Artigo 34º.
Os entusiastas do mérito dizem: «mérito não é apenas talento, é uma combinação de talento e comprometimento, portanto, o que é recompensado é o comprometimento pessoal». No entanto, esses meritocratas esquecem o elemento crucial: até mesmo o fato de ser capaz de se comprometer não é mérito, é, sobretudo, um dom. Chegar em casa depois da escola e ter tempo para fazer a lição de casa, em vez de ter de trabalhar, não é um mérito. Se formos honestos, temos de reconhecer que o que somos e nos tornamos é 90% dom e 10% mérito; a meritocracia, por outro lado, inverte essa percentagem e faz com que esses magros 10% sejam a pedra angular do edifício da justiça.
Como instituição, as escolas devem ser anti meritocráticas, ou seja, devem reduzir as assimetrias dos pontos de partida que nada têm a ver com o mérito dos nossos filhos. Um sistema social que recompensa aqueles que já são capazes não faz mais do que deixar para trás os menos capazes, que geralmente não o são por demérito, mas por causa das condições de vida. Don Milani, cujo centenário estamos comemorando este ano, sabia muito bem dessas coisas. Ele sabia que seus garotos em Barbiana não eram desmerecedores: eram apenas pobres; eles não eram culpados, eram apenas pobres. Que este centenário nos faça refletir sobre a ideologia do mérito que se está tornando a nova religião do nosso tempo, uma religião sem gratuidade e sem Deus.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / ArquivoMSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di Sant'Antonio em 04/06/2023
A renúncia do senador Carlo Cottarelli por, entre outras coisas, não considerar o seu partido suficientemente forte no apoio à meritocracia, mais uma vez chamou a atenção para o significado e a ideologia do mérito em nosso tempo. Mérito sempre foi uma palavra ambígua, porque está profundamente ligada ao fascínio que o mérito exerce sobre todos nós. Todos nós gostaríamos de merecer os nossos sucessos (menos, porém, merecer os nossos fracassos), ninguém gosta de pensar que a boa carreira que teve é resultado apenas da sorte e de recomendações.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di S. Antonio em 07/05/2023
«Por favor, como funciona esta máquina do estacionamento?», perguntou uma senhora idosa que estava tentando, como eu, pagar pelo estacionamento nas linhas azuis. Naquela cidade, a empresa que administra os estacionamentos municipais - ou seja, terrenos públicos, portanto, de todos - teve a boa ideia, hoje bastante difundida, de exigir que o cidadão digite os dados da placa/matrícula do carro na máquina. "Não me lembro", diz-me a senhora. Ela mostra onde está o seu carro, que fica longe para ela que tinha dificuldade para andar. Vou até lá, tiro uma foto da placa/matrícula e ajudo a pagar o bilhete.
[fulltext] =>No final, uma pergunta me veio à mente: «Por que é preciso digitar os dados da placa/matrícula?» A única resposta que me ocorre é para evitar que o usuário do estacionamento que pagou por duas horas e usou apenas uma possa dar a hora restante para outra pessoa. Uma amiga vigilante me disse que, talvez, também possa haver outro motivo: se por engano me multarem porque não viram o recibo no carro, com a placa/matrícula eu posso provar que paguei. Sinceramente, acho que o primeiro motivo é de longe o dominante, visto que em quase quarenta anos de condução nunca recebi multas quando paguei pelo estacionamento!
Portanto, a questão é simples: uma empresa com fins lucrativos deve maximizar os lucros e, se ela administra um bem público em nome do município, fá-lo com o objetivo de obter lucros. E, em vez disso, estou convencido de que as empresas públicas ou privadas que administram bens comuns e públicos deveriam ser empresas civis ou sem fins lucrativos, ou seja, que não têm como objetivo maximizar os lucros, mas administrar com eficiência um bem que é de todos. A introdução de um preço para administrar bens públicos pode servir para racionalizar a gestão (as coisas gratuitas quase sempre se tornam coisas de ninguém) e não necessariamente para fazer dinheiro.
Mas quais são os efeitos da introdução da placa de identificação? O primeiro já vimos: as pessoas não são todas iguais em seu "funcionamento", diria o grande economista Amartya Sen. Portanto, as intervenções públicas e administrativas têm efeitos diferentes em pessoas diferentes. E um bom critério para se seguir quando se quer inovar em bens públicos é observar os efeitos da inovação começando pelas categorias mais desfavorecidas: idosos, crianças, pessoas com deficiência.
Além disso, há o efeito específico da proibição da troca de recibos com outros cidadãos. Quando estudei em Londres, havia uma estação de metropolitano onde todos sabiam que era possível encontrar bilhetes com duração ainda válida, deixadas lá por aqueles que não os tinham usado para que jovens e pobres pudessem usá-los. Impedir essas (possíveis) trocas por alguns dólares a mais, além de ser civilmente estúpido, envia sinais sobre o tipo de cidade que se deseja construir: uma cidade onde os fortes e os ricos estão em melhor situação, e onde os frágeis e os descartados estão cada vez pior. Na origem da civilização bíblica está a instituição solidária da respiga. O belo livro de Rute está todo construído sobre ela: quando os ceifeiros iam cortar as searas, não passavam uma segunda vez, porque a segunda passagem era para os pobres, as viúvas, os estrangeiros. Os campos não pertenciam apenas aos proprietários, pois «toda a terra é de Deus».
Estamos privatizando os bens comuns, estamos eliminando as muitas formas antigas de respiga. Em breve teremos cidades habitadas por cada vez mais comerciantes e cada vez menos cidadãos, onde toda a colheita se esgota na primeira passagem. E talvez a senhora idosa não saia mais para fazer suas compras: serão trazidas por uma nova empresa que lucrará com essas entregas. A cidade ficará mais pobre e mais triste, e nós com ela.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di S. Antonio em 07/05/2023
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di S. Antonio em 06/04/2023
A gestão está se tornando a nova ideologia de nosso mundo global, particularmente aquela gestão ensinada nas escolas de administração e transmitida pelas grandes empresas globais de consultoria. No século XX, a crítica social voltou-se para a teoria econômica liberal, identificando os economistas teóricos como o grande inimigo a ser combatido a fim de construir uma sociedade finalmente justa e igualitária.
[fulltext] =>Enquanto os intelectuais, católicos ou socialistas, travavam esta guerra, nas faculdades de engenharia e escolas de administração, cresciam as técnicas e ferramentas de gestão que nas últimas décadas se transformaram progressivamente na «ideologia gerencialista» construída em torno dos três dogmas: do incentivo, da liderança e do mérito. Uma ideologia que está por toda a parte, inclusive nas comunidades cristãs e nas igrejas, onde se estão multiplicando os cursos de liderança para párocos e responsáveis de movimentos, onde não se pode mais realizar uma conferência ou capítulo geral sem coaches ou facilitadores profissionais do mundo empresarial, como se de repente tivéssemos esquecido aquela antiga sabedoria de como conduzir os encontros de comunidade e as assembleias.
Também o mundo europeu e os países de cultura católica, como a Itália, estão passando por uma rápida evolução e rápida mudança cultural. Nós católicos estávamos tão convencidos de que as leis da vida não seguiam as do mérito que o tínhamos relegado ao céu, onde era o critério para "merecer" o inferno ou o céu. O mundo protestante, por outro lado, em nome da salvação pela sola gratia (Lutero) ou pela predestinação (Calvino) tinha expulsado o mérito do céu e do inferno, e depois na terra inventou, alguns séculos mais tarde, a meritocracia (que nasce nos Estados Unidos). Os negócios estão exportando este humanismo protestante dos EUA (e do norte da Europa) para todo o mundo, e hoje o fazem sobretudo com a ideologia gerencialista, que também penetrou tão profundamente na Itália que o nome do Ministério da Educação foi mudado para «Educação e Mérito».
Assim, no lugar da antiga ética das virtudes sobre a qual tínhamos fundado a nossa civilização, a ideologia gerencialista e de consultoria global e total oferece um conjunto de princípios, boas práticas, elementos de psicologia, citações de clássicos da filosofia, sociologia e economia, algumas ideias de teoria dos jogos, muitos fluxogramas, maravilhosas apresentações em PowerPoint. E finalmente, consultores de todos os tipos e nomes transformam os princípios de gestão em ferramentas operacionais de gestão e de governança. A grande empresa se tornou assim o paradigma que todos devem seguir se quiserem fazer coisas boas e sérias. No século XX havia a democracia, portanto, a participação, que ofereceu o modelo a ser estendido a toda a vida civil. Mas enquanto a primeira transformação democrática desde o antigo regime ocorreu entre conflitos e grandes lutas sociais, a grande transformação ética e cultural que os negócios estão provocando no mundo está ocorrendo na (quase) indiferença geral. Não se trata de negar a importância dos valores e virtudes econômicas, o que seria insensato e errado. O problema é outro e não diz respeito nem à empresa nem à necessária gestão, muito menos aos empresários que são as primeiras vítimas desta nova era. Os problemas dizem respeito à ideologia gerencialista, que chega a todos os lugares porque, enganosamente, se apresenta secularmente como uma técnica e, portanto, como algo necessário e não ideológico. Talvez seja o momento de tomar consciência disso e falar mais sobre isso.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado no site Il Messaggero di S. Antonio em 06/04/2023
A gestão está se tornando a nova ideologia de nosso mundo global, particularmente aquela gestão ensinada nas escolas de administração e transmitida pelas grandes empresas globais de consultoria. No século XX, a crítica social voltou-se para a teoria econômica liberal, identificando os economistas teóricos como o grande inimigo a ser combatido a fim de construir uma sociedade finalmente justa e igualitária.
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por Luigino Bruni
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O cristianismo, ou seja, a civilização cristã, não nasceu somente do Evangelho. Foi o resultado de uma hibridação entre os Evangelhos, a Bíblia, a cultura greco-romana, as civilizações itálica e europeia, e depois as civilizações lombarda, nórdica, eslava, bizantina e árabe. A Europa cristã é o fruto deste cruzamento, muito mais rico e variado do que apenas a teologia ou a fé cristã. A piedade popular é um entrelaçamento de muitas fés e tradições; as procissões foram gradualmente tomando o lugar das procissões pagãs dedicadas aos deuses dos campos e da natureza. A grande maioria dos italianos e europeus pré-modernos não tinha a mínima ideia do que era a Trindade, da diferença entre Jesus e Deus Pai, da diferença entre Jesus, Nossa Senhora e os santos: eram todos divindades das quais, acreditavam, a vida dependia. Em suas festas, os antigos europeus e italianos continuavam a cantar as canções habituais atrás de baldaquinos que só tinham mudado a estátua carregada, e às vezes nem mesmo isso.
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Por isso, a Igreja, especialmente a Igreja Católica, não teve medo de tomar festivais pagãos e integrá-los na civilização cristã. Hoje deveríamos fazer uma operação semelhante e simétrica: pegar a parte ainda viva do cristianismo e inculturá-la em nosso tempo pós-cristão, que não entende mais as línguas da fé, mas que as compreenderia com uma operação cultural e narrativa adequada. Assim como os cristãos tomaram os templos pagãos e construíram novas igrejas sobre eles (em Siracusa ou Ascoli ainda podem ser vistos), hoje deveríamos tomar os pilares ainda vivos do cristianismo - especialmente os espirituais - e construir sobre eles novos edifícios espirituais que possam ser preenchidos pelas mulheres e homens de nosso tempo, que não entendem mais a linguagem teológica do século XX, mas que ainda têm sede e fome de Deus, de salvação, de Cristo. Uma operação difícil, mas essencial: caso contrário, a depressão será a pandemia dos próximos anos. Estamos seriamente atrasados. Dietrich Boenhoeffer tinha escrito isto em sua estupenda carta da prisão em 30 de abril de 1944, quando anunciou a necessidade de dar vida a um cristianismo pós-religioso. Atrasado, mas talvez ainda a tempo.
Créditos foto: © Giuliano Dinon / Arquivo MSA
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