stdClass Object ( [id] => 18493 [title] => «Olhar o mundo com os olhos dos pobres» [alias] => veja-o-mundo-atraves-dos-olhos-dos-pobres [introtext] =>Dentro do Dossiê que a Famiglia Cristiana dedicou aos 10 anos de pontificado do Papa Bergoglio, uma entrevista a Luigino Bruni
por Francesco Anfossi
Original italiano publicado no site Famiglia Cristiana em 13/03/2023
«Francisco permanecerá na história da Igreja por muitas coisas, também permanecerá pela economia, por seu compromisso e amor por esta dimensão essencial da vida. E para nós, economistas, esta é realmente uma notícia maravilhosa». Luigino Bruni é um dos principais estudiosos do Terceiro Setor. Especialista em economia e ética, há anos que ele analisa questões bíblicas através dos olhos de um economista. Consultor do Vaticano, ele é colaborador do Papa para o projeto "A Economia de Francisco", a rede de jovens de todo o mundo que investiga questões sociais importantes para o Pontífice.
[fulltext] =>«Vi que Francisco tem muito interesse pela economia. É a sua paixão pela vida das pessoas que torna a economia tão prezada e urgente para ele, a ponto de colocá-la no centro de seu pontificado". Ele não tem uma simpatia natural pelo mundo corporativo também porque, confidenciou-me um dia, tinha fortes recordações, em criança, de seu pai saindo de casa com sua pasta para ir ao escritório e voltando tarde demais à noite. Em Francisco, é forte este sentimento de uma economia que tende a estar "longe de casa", porque, ao contrário de sua etimologia, a sua "lei" (nomos) não é facilmente amiga da "casa" (oikos). Mas aquele que, como ele, ama a "casa" dos humanos não pode deixar de cuidar de sua "lei". E assim ele lida com ela: para entendê-la, para mudá-la, para que a casa possa ser mais humana e fraterna».
Falar do pensamento econômico de Francisco significa começar com os pobres.
«Sim, porque a pobreza não é uma das muitas dimensões ou palavras do Evangelho; é o ponto de vista do cristão sobre o mundo, é o lugar onde nos colocamos, o lugar onde armamos nossa tenda e a nossa torre de vigia (Isaías), e dali observamos e julgamos as pobrezas e as riquezas da Terra. Esta tomada de posição, por Bergoglio, foi feita quando escolheu o seu nome, pela primeira vez para um papa, porque ter o nome de Francisco não foi fácil para a Igreja, para a Christianitas, onde a pobreza era anunciada, mas nem sempre vivida nas práticas econômicas e nos estilos de vida. O Papa Francisco começou seu magistério sobre a pobreza com o seu nome; esse nome foi a sua primeira homilia sobre a pobreza».
Em quais documentos encontramos um estudo aprofundado de seu pensamento econômico?
«Na verdade, não há um documento onde o encontramos em sua totalidade, porque o Papa Francisco é um homem de diálogo, a sua teologia cresce e muda com a história, com os encontros, com os acontecimentos. Ele não teria dito muitas coisas importantes sobre a economia sem a pandemia, sem a guerra na Ucrânia, sem as suas muitas viagens, se não se tivesse encontrado muitas vezes com os jovens economistas. Portanto, para reconstruir seu pensamento econômico é preciso procurar em Laudato si' e em Evangelii gaudium, mas também, e sobretudo, em suas homilias, suas orações, suas frases fora do texto, seus discursos aos muitos empresários e economistas que encontrou. Mesmo para os papas muitas vezes se aplica a regra que se aplica a grandes autores,: as palavras mais importantes são aquelas ditas enquanto falavam de outra coisa».
Seu magistério econômico se situa entre os dois extremos do liberalismo e do marxismo?
«Eu não diria isso. O liberalismo e o marxismo são categorias do século XX. O Papa Francisco, também nisso, é um homem 'liminar', habitante das fronteiras, das zonas de transição. Ele é filho do século XX, mas com as suas escolhas e palavras já se move no mundo pós-moderno, no mundo pós-ideológico. Talvez o princípio mais importante do seu pensamento tenha sido formulado no Evangelii gaudium: a realidade é superior à ideia e ainda mais à ideologia. O seu pensamento econômico não é marxista (ele não acredita que a violência ou a luta de classes seja a parteira da história, por exemplo) nem, seguramente, liberalista. Ele criticou muito o capitalismo e a finança, mas também disse boas palavras sobre empresas e empresários, veja-se o seu discurso de setembro de 2022 na Confindustria. Ele é muito crítico, disse-me ele pessoalmente, das grandes finanças que devoram a economia real; sobre isso ele é muito rigoroso e gostaria que a finança voltasse à sua tarefa de serviço do trabalho e da economia. Ele é um Papa pós-ideológico, por isso ele é criticado pela direita e pela esquerda».
Várias vezes o Papa falou da "riqueza descarada" de poucos privilegiados. Qual é o caminho indicado para superar estas desigualdades?
«Ele fala muito sobre trabalho, que ainda continua sendo o principal mecanismo de redistribuição da riqueza, especialmente quando o trabalho é digno e bem remunerado. Mas ele não é tão ingênuo a ponto de pensar que sem uma política forte, nacional e internacional, que intervenha de forma mais decisiva no mecanismo de criação e acumulação de riqueza e, portanto, no poder ("o pacto fiscal é o coração do pacto social", repetiu ele à Confindustria), nem muito nem o suficiente pode ser alcançado. Ele também é crítico da meritocracia porque é a nova legitimação ética da desigualdade: hoje, a acumulação de riqueza nas mãos de poucos cresce também graças à legitimação ideológica da meritocracia que, interpretando o talento como mérito (e não como um dom) liberalizou a desigualdade».
Segundo o economista Zamagni, Francisco acredita que o modelo ainda dominante da economia capitalista de mercado não é mais adequado para atingir os três objetivos fundamentais: a sustentabilidade ambiental; a abolição das desigualdades e a centralidade da pessoa humana. É assim? Acrescentaria algo mais?
«Em Assis, aos jovens da EdF, ele falou de quatro sustentabilidades que o capitalismo como tal não garante: além das bem conhecidas ambientais e sociais, Francisco falou da insustentabilidade relacional (a solidão e a crise das comunidades) e da insustentabilidade espiritual do capitalismo, que se está revelando tão decisiva quanto a ambiental. Em algumas décadas, pelo menos no Ocidente, destruímos capitais espirituais acumulados ao longo de milênios. Sem um trabalho forte - das religiões e daqueles que acreditam na espiritualidade como um bem civil essencial - para a reconstituição do capital espiritual, a depressão será a nova pandemia de massa, mas sem vacinas: para estas futuras pandemias só os cuidados preventivos surtem efeito».
Outro dos pilares de seu pensamento econômico, em linha com a doutrina social da Igreja desde os tempos da Rerum Novarum e da Laborem Exercens, é o tema do trabalho. Em particular, o trabalho para os jovens. Entre outras coisas, Francisco escreveu que a pobreza «inibe o espírito de iniciativa de muitos, impedindo-os de encontrar um trabalho». Não só isso, mas a pobreza «anestesia o sentido de responsabilidade induzindo a preferência pela delegação e busca de favoritismos» e «reduz o espaço de responsabilidade induzindo a preferência pela delegação e busca de favoritismo»
«A pobreza na igreja são muitas coisas. É uma bem-aventurança, mas é também uma maldição. Prefiro usar outras palavras para a pobreza má (indigência, miséria...) por amor a Francisco e ao evangelho". No entanto, a pobreza má, que se alia com outros males (ignorância, violência...) também torna difícil trabalhar, procurar e encontrar empregos dignos, porque querer e poder trabalhar já é uma forma de riqueza. É por isso que existe muita superficialidade e ideologia por trás do debate sobre os rendimentos da população: "vamos mandá-los trabalhar", dizem as pessoas, como se a pobreza má não fosse, quase sempre, falta de capacidade (capabilities, diria A. Sen) de querer e poder trabalhar. E é a partir daqui que devemos recomeçar, com processos que duram muitos anos, por vezes gerações».
Naturalmente, um dos frutos de seu pensamento econômico é "A Economia de Francisco". Como surgiu este movimento?
«Sim, a EdF é um dos processos ativados pelo Papa Francisco, que, mais uma vez, não 'ocupou espaços' para deixá-lo aos jovens. Nasceu da necessidade de fazer algo mais para uma mudança do capitalismo, e da atenção e do amor de Francisco pelos jovens. Em 2018, este desejo se tornou uma realidade que se concretizou numa carta de "apelo ao compromisso" do Papa Francisco (de 1 de maio de 2019) a partir da qual começou este "movimento" que hoje vive e cresce em todo o mundo. A conversão ecológica é necessária, mas não suficiente: há também a necessidade de uma conversão da justiça, da inclusão dos pobres, da redução das desigualdades. A conversão é principalmente uma questão ética, diz respeito ao coração das pessoas, e depois toma muitas formas. A urgência da conversão ambiental é inegável, só é necessário não esquecer as outras conversões enquanto os pobres continuam morrendo, na terra e no mar».
João Paulo II visitou duas vezes a fábrica da Ferrari. Será que Francisco faria isso?
«Eu não sei. Da maneira como o conhecemos, não creio que ele se sentiria particularmente à vontade entre os carros milionários. Mas Francisco nos acostumou a surpresas, com movimentos inesperados. Não devemos subestimar a dimensão popular de sua pessoa e de seu pensamento. Na Argentina, e em todo o mundo, a Ferrari também é um orgulho dos imigrantes italianos, é a alegria de se ver algo italiano bonito e bom em terra estrangeira. As raízes têm um grande peso, mesmo teológico, em Francisco, porque reconhece um valor para o sentido popular do povo. As pessoas amam o esporte/desporto: se amamos as pessoas não devemos esquecer isso, e as críticas ao capitalismo não devem tornar-se ideologia global: Francisco conhece bem tudo isso e assim, creio, ele não falaria mal da "Ferrari"».
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por Luigino Bruni
publicado no site Prima Pagina online em 31/12/2022
Bento XVI nos deixou no último dia do ano. Um dia especial, marcante, como foi sua vida. O Papa Bento XVI e o homem, o professor, o padre Joseph Ratzinger viveram lado a lado, em quase dez anos de pontificado. Em geral, a avaliação moral de uma existência não é dada pela média de todos os momentos de uma vida, nem pela soma; quase sempre, especialmente na vida de mulheres e homens com uma tarefa a realizar, o significado de toda a existência depende de poucos atos. Às vezes de um único ato decisivo: aquele que revela o nosso destino.
[fulltext] =>A atividade pastoral e teológica de Joseph Ratzinger não foi fácil.
Homem do concílio, ele foi seu intérprete e protagonista, mas depois teve que atravessar a maior crise da Igreja desde a Idade Média: a pós-modernidade e assim o fim da Christianitas (que nem mesmo o concílio tinha compreendido). A crise, os medos, as incertezas e as ambivalências de BXVI foram os da sua Igreja. Uma Igreja que ele amou mais do que a si próprio, e aquele extraordinário ato de renúncia (muito parecido com o de Celestino V), fez do seu pontificado algo grandioso.Um gesto decisivo é o resultado de uma vida inteira, nunca um ato isolado.
Porque com aquele gesto, sem saber, ele trouxe a Igreja à pós-modernidade: como raramente acontece na história, teme-se com a razão alguma coisa durante uma vida inteira, depois um gesto faz a carne fazer o que o logos não sabia fazer. Aquelas demissões puseram fim à visão sacral do papado, trouxeram-no de volta à sua dimensão evangélica de serviço e, assim, mudou a história dos futuros papas.E voltando Joseph Ratzinger depois do Papa Bento XVI, ele nos disse, sem o dizer, que todo o homem é maior do que o seu destino. Assim morreu como nasceu: José, Adão, filho da terra, como todos. Não é fácil deixar a terra com o nome com o qual chegámos, levando como dote todos os outros nomes do caminho.
Obrigado Papa Bento, obrigado Joseph Ratzinger: obrigado pelo imenso amor pela Igreja, obrigado por ter conseguido sair de cena como um homem verdadeiramente humilde. Obrigado pela Cáritas in Veritate, talvez a encíclica papal com as mais belas e boas palavras sobre a economia. E obrigado por ter protegido o evangelho, por ter protegido uma voz.Bom voo pai, bom voo irmão.
Foto: Vatican News
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por Luigino Bruni
publicado no site Prima Pagina online em 31/12/2022
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por Luigino Bruni
publicado no Osservatore Romano de 30/09/2022
«O tempo é superior ao espaço». Portanto, ativar processos, não ocupar espaços. Com este princípio antropológico e teológico, o Papa Francisco inaugurou seu pontificado com a Evangelii gaudium. A Economy of Francesco (EoF, como os jovens a chamam) é um dos processos que foi ativado por ele. Os jovens são tão só processo: para eles, por vocação natural, o tempo é superior ao espaço. Eles só têm o tempo e o futuro como seu capital. Assim, cada vez que se confia em um jovem, é ativado um processo, e cada vez que se confia em um grupo de jovens é gerado um processo coletivo com resultados imprevisíveis: «Martin Luther King gostava de dizer: "se me dissessem que amanhã seria o fim do mundo, eu plantaria uma árvore": nós somos essa árvore que foi plantada, uma árvore que cresce enquanto cai uma floresta». Com estas palavras os jovens acolheram Francisco na terra de Francisco, em Assis, no dia 24 de setembro de 2022.
[fulltext] =>Um processo desencadeado em maio de 2019, por uma carta de convocação assinada pelo Papa, chamando os jovens para Assis de 26 a 28 de março de 2020. Foram milhares os que responderam àquele convite, o que para muitos foi uma autêntica vocação. Depois chegou a covid, o mundo inteiro parou, e em 27 de março, em vez de estar em Assis, o Papa estava sozinho, em oração, em uma praça de São Pedro vazia.
Aquele mal comum global gerou um bem comum global: a Economia de Francisco. Os jovens não pararam, e enquanto o mundo paralisava com medo, os jovens começaram a se encontrar online. Criaram uma plataforma, centenas de reuniões via zoom, escolas ( EoF School), até mesmo uma Academia com 18 bolsistas/bolseiros. Eles acreditaram, e esperaram, que aquela grande dor pudesse transformar um evento perdido em um verdadeiro e autêntico processo de inovação.
A covid durou dois anos e mais, entretanto uma guerra eclodiu, mas aqueles jovens, chamados um a um pelo nome, não pararam: eles continuaram a acreditar, a esperar, a amar.
Por trás do abraço infinito dos jovens com o Papa em Assis havia a covid, a dor pelos muitos avós e amigos perdidos durante a pandemia, o sofrimento pela guerra na Ucrânia e em muitos outros países do mundo, a grave crise ambiental que piora a cada dia; mas havia também as suas esperanças, a sua fé, o seu ágape, o seu desejo pelo futuro e, portanto, por um presente diferente: «Não somos futuro, um futuro que nunca mais chega: nós somos o presente», disseram ainda ao Papa. Os jovens são uma maneira diferente de pensar e interpretar o presente: com otimismo, positividade, gratuitidade, generosidade, esperança.
Entre as muitas mensagens vindas de Assis, eu gostaria de destacar três.
Primeiro de tudo Assis, São Francisco, Santa Clara. Assis tem tudo a ver com uma mensagem, nós sabemos disso. É uma cidade cujo único nome contém todo um humanismo, contém a terra e o céu. O impacto de Francisco sobre os jovens foi enorme. Era impressionante vê-los, nos longos espaços do programa reservado aos "tu-a-tu com Francisco" nos lugares históricos e carismáticos (Spoliazione, Rivotorto, San Damiano...), em diálogo com aquele jovem que viveu há oitocentos anos e, no entanto, um amigo deles tão contemporâneo.
Assis não deixa ninguém incólume, especialmente os jovens. Aquele «Vai Francisco e repara a minha casa que está em ruínas», muitos a sentiram como dirigida hoje a eles. Eles sentiram o encanto daquele jovem que nasceu rico e se tornou pobre porque estava encantado por uma riqueza maior. Eles sentiram uma nova estima pela pobreza evangélica como caminho de liberdade e de felicidade.
Os jovens têm uma assonância natural com o carisma franciscano, porque nasceu de um jovem e porque todo o jovem sente o fascínio de uma vida livre de bens materiais para buscar bens maiores e duradouros. O encontro com Francisco os marcou, comoveu, levou à ação, aquela sua pobreza diferente os encantou. E isto só poderia acontecer em Assis.
Uma segunda mensagem diz respeito aos jovens. Nos últimos anos, eles mudaram profundamente. A grande crise ambiental para eles não é sentida como é para os adultos. Para os jovens, cuidar da terra é uma questão de vida ou morte. E por isso querem mudar a economia, que consideram como a principal responsável pela profanação do planeta. Nós os vimos com a geração Greta, nós os vimos novamente em Assis. Estes jovens se encontram porque se sentem chamados a um compromisso de mudança em âmbitos específicos da vida, neste caso, na economia e na ecologia.
Estamos em um novo Maio de 68: estes jovens também são críticos em relação a seus pais e querem mudar o mundo. Um Maio de 68, porém, menos ideológico e menos violento, com a Igreja que já não é o inimigo a combater porque o Papa é seu líder (foi extraordinário ver a força simbólica da pessoa de Francisco, uma figura de "bom pastor" que os jovens precisam muito em tempos de "mercenários" e de falsos profetas).
Devemos refletir ao pensar nas novas Jornadas Mundiais da Juventude: os jovens querem cantar e festejar, claro: mas hoje eles querem o compromisso de mudar o mundo nos lugares onde os desafios do nosso tempo estão concentrados.
Finalmente, a espiritualidade e a oração. Durante aqueles três dias não houve liturgias, orações coletivas ou missas. Mas quando, no final de seu discurso altamente apreciado, o Papa Francisco recitou uma oração criou-se uma atmosfera sagrada de paraíso. Aquela oração e a própria palavra «Deus» caíram em um espaço vazio e produziram algo imenso. Para nos dizer que os jovens são grandes buscadores de espiritualidade, Deus ainda os interessa muito; no entanto, eles precisam de novas narrativas, de novos códigos simbólicos, de novos espaços liberados para poder escutar uma «suave voz de silêncio» (profeta Elias).
Esta voz suave se tornou canção (incluindo a linda canção de Guccini sobre a «sentinela»), uma canção que não vai parar porque é imparável.
Boa viagem, jovens!
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por Luigino Bruni
Eu gosto muito do presépio nos dias entre a Imaculada Conceição e a véspera de Natal. São os dias em que o berço está vazio, os dias da espera. Esse vazio fala, chama. É o ícone do povo que esperava pelo Messias, da humanidade que ainda e sempre espera por uma salvação que deve vir, de nós que todos os anos estamos diante daquele berço vazio e rezamos: vem Jesus, volta de verdade, porque deves voltar agora, hoje, dentro da minha casa.
[fulltext] =>A gruta é linda com os animais, antigos amigos do homem e presença dos profetas (Isaías), com uma mãe, um pai, esperando por um filho. Como tantas mulheres, como tantas famílias. Uma gruta sem o menino que nos convida a desejar aquele menino, a sonhar com ele, a chamá-lo. Que é hoje, mais do que ontem, símbolo da nossa sociedade, que retirou Jesus do presépio, que retirou Jesus da nossa vida. E ao invés disso, olhando para aquela gruta, podemos pensar que aquele berço vazio é apenas o tempo de espera: ele não está lá porque se foi embora, mas porque ainda não está lá, mas virá. Mas até à noite do dia 24 mantenhamos esta espera, não corramos rápido demais para a manhã do dia 25: peçamos-Lhe que volte, e assim a sua chegada nos surpreenderá, como se fosse a primeira vez, assim como surpreende as crianças. E, também desta vez, será Natal.
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por Luigino Bruni
Publicado em SOUQuaderni n. 23 de abril de 2021 em 23/04/2021
“Todos na Escritura morrem de sede, e o que é esta sede universal senão o próprio Deus sedento de si mesmo? Sempre pensei, desde que o aprendi, que morrer com este verso nos lábios seria um bom não morrer".
Léon Bloy, “Le symbolisme de l’Apparition”, 1880
A ambivalência de um grande símbolo
A Bíblia também pode ser contada como uma história sobre a água. A água é um de seus grandes símbolos. É seu alfa e ômega: a Bíblia abre com as águas do Gênesis e fecha, no último capítulo do Apocalipse, com um rio na cidade. E depois os rios Pisom, Tigre, Eufrates, Nilo, Jordão, depois Yaboq, Noé, Abraão, Ágar, Raquel, Moisés, Mara, a Batista, a mulher Samaritana, o Gólgota. Rios, poços, mulheres. A água e a vida, água é vida. Sempre e em qualquer lugar, especialmente naquelas regiões semiáridas do Oriente Médio.
[fulltext] =>Uma história que começa com o primeiro versículo do primeiro capítulo do primeiro livro da Bíblia, Gênesis: "O espírito de Deus pairava sobre as águas". Água, águas no plural, está entre as palavras mais recorrentes na criação do mundo - Deus separa as águas (as de baixo e as de cima do firmamento), depois as reúne nos mares para criar o seco, e finalmente ordena que as águas estejam "fervilhando" de peixes e vida. A água não é criada por Deus: ela é pré-existente. Deus-Elohim já a encontra no mundo, e a separa, a recolhe, a preenche, mas não a cria. Para o homem antigo, a água é tão antiga e pré-existente quanto o próprio Deus, que não pode prescindir da água para criar tudo o mais. A água é o elemento básico da vida, é o primeiro tijolo da cadeia dos seres vivos, é o ambiente onde ocorre a criação - hoje sabemos que provavelmente foi nas águas dos mares que se formaram as primeiras formas de vida.
Então a água é a grande protagonista da maravilhosa história de Noé e do Dilúvio, que o Gênesis tira do mito sumério de Gilgamesh. Aqui as águas não são boas, elas se tornam um instrumento que Deus usa para destruir os seres humanos que se tornaram maus. Mas apesar de nossa maldade, a vida continua, as águas recuam e a vida recomeça, com o sinal da primeira aliança entre Deus, Noé e os homens e animais salvos: o arco-íris, ainda uma questão de água.
Foi no vau noturno de um riacho, o Yaboq, onde ocorreu a luta entre Jacó/Jacob e o anjo de Deus (Gênesis 32), quando ele foi ferido no nervo ciático e abençoado, uma luta aquática onde Jacó/Jacob se tornou Israel, o nome de todo um povo.
E depois a água está no centro da libertação do Egito, a terra do grande rio, quando as águas do Mar Vermelho se abriram para permitir que Moisés e o povo hebreu deixassem o Egito em direção à terra prometida, a outro rio, o Jordão. E na passagem do grande rio da escravidão para o pequeno rio da liberdade, a seda e o milagre da água foram elementos e etapas essenciais (Massa e Meriba, as águas amargas de Mara). O exílio, a outra grande e tremenda experiência do povo (século VI a.C.), é contado com a imagem da água: ao longo dos rios da Babilônia, do Tigre e do Eufrates.
Os tremendos e mais temidos monstros do livro de Jó - o Leviatã e o Behemont (Jó, 40) - são monstros marinhos, habitantes das águas profundas. Aquele Leviatã que Thomas Hobbes tomará para dar o nome ao seu livro, imagem do poder político absoluto que permite, no entanto, a sociedade civil.
E poderíamos continuar a diante passando pelo banho de Btsabé que levou David ao pecado mais covarde da Bíblia, as muitas secas (de Abraão a Rute) que pontuam a história da salvação, os muitos poços em torno dos quais se realizam muitos diálogos entre homens e mulheres na Bíblia (desde a de Jacó/Jacob até ao da samaritana), que na tradução se trata do mesmo poço. O Novo Testamento está imerso na água. Do batismo de João que abre o Evangelho de Marcos, ao batismo de Jesus, ao Mar de Tiberíades, onde acontecem os chamamentos/chamados dos apóstolos, muitos dos quais eram pescadores, trabalhadores da água, acontecem. No Evangelho de João, começa a vida pública de Jesus com o milagre da água transformada em vinho, e o "eu tenho sede" ressoou entre as poucas palavras no Gólgota, quando "água e sangue" saíram do lado do homem crucificado.
Os Salmos são continuamente molhados com água, que mata a sede, dos homens e da corça. O canto da corça sedenta, metáfora da busca de Deus, está entre os mais belos hinos poéticos da Escritura.
Como a corça anseia pelas correntes de água, assim a minha alma anseia por Ti, ó Deus. “A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo:quando virei e verei a face de Deus? As lágrimas são o meu pão de dia e de noite, enquanto como
sempre me dizem: "Onde está o teu Deus" (Salmos 42:2-5). A metáfora da corça sedenta que, depois de longas caminhadas, chega a um riacho seco e ressequido é muito forte e rica, é habitual na literatura espiritual, inspirou um dos mais sublimes e elevados cânticos espirituais da história da espiritualidade (o de S. João da Cruz). Quem tiver alguma vez ouvido a brama de um cervo sedento – ou por estes lados, na Itália, de um corço ou de um gamo - sabe que é um som grito perturbador, um lamento doloroso desolador difícil de esquecer. Um som que terá deve ter atingido o homem antigo do Oriente Médio, mais capaz do que nós, de em ler e decifrar os lamentos da criação. Aquele salmista, talvez exilado ao norte, na região onde nasce o Jordão, longe de Jerusalém e do seu templo, tomou o grito animal mais excruciante que tinha ouvido e fez dele o canto da sua alma, ansiosa por um Deus da juventude que já não existia mais. A Bíblia está cheia de palavras emprestadas da natureza e dos animais para tentar dizer o que as emoções humanas não conseguem: a queima de um arbusto, a nuvem que repousa sobre uma montanha, o fogo no Monte Carmelo, a brisa suave, a chuva.Não é fácil usar a imagem da sede para descrever o relacionamento com Deus. Uma certa literatura religiosa dissolve a metáfora ao equiparar a fé à água que sacia a sede. A sede seria o movimento ascendente do homem, a questão antropológica à qual Deus responde com a oferta da fé. Nesta perspectiva, não haveria nada religioso na experiência da sede, que seria apenas a premissa da fé, a antecâmara da vida religiosa que começaria quando, logo que se chega à nascente, se bebe - a sede termina no encontro com a água. Para muitos, isto é o que é a fé, e nas Escrituras há peças de apoio para tal interpretação da água e das sedes (Jo 4,13-14).
Mas cada salmo é muitas coisas ao mesmo tempo, é uma estratificação de significados e diferentes experiências de fé e humanidade. Sobre esta sede, o salmo também nos sugere algo diferente. A sede não é apenas uma preparação para a experiência religiosa, ela já é a fé, já é o relacionamento com Deus. O tempo da sede é o tempo da fé. Neste salmo, Deus é mencionado 22 vezes. Um cântico de desespero pela ausência de Deus, é um dos salmos mais habitados por Deus em todo o Saltério. O deserto na Bíblia é um lugar de encontro com Deus. A terra prometida não é o único lugar onde Deus habita, nem mesmo o templo. Moisés não entrou na terra prometida para nos dizer que também o deserto e a sua sede podem ser a tenda do encontro com Deus, talvez o mais puro e verdadeiro. A sua morte fora de Canaã é também uma forma de eternizar a promessa e o seu desejo.
O salmo, então, nos adverte contra um erro típico do homem e da mulher de fé, o de identificar a fé somente com a água. Este é um erro muito comum, daqueles que pensam e vivem a fé como um acampamento estável em um oásis rico em água, que sendo encontrada ao fim de um primeiro caminho nunca mais se abandona. Aqui a corça descansa, serena e saciada, naquele novo jardim do qual ela não se afasta para novas andanças. Esta é a visão da fé como consumo de bens espirituais, como conforto, como plena satisfação do consumidor religioso, que esquece a sequela e o arameu errante. O Salmo nos lembra que a sede é a condição originária da vida espiritual adulta, porque mesmo que encontremos alguma nascente ao longo do caminho, é necessário levantar imediatamente a tenda, retomar o caminho sem demora, e logo refazer a mesma experiência da sede-fé. Que a crise da fé não é aridez, mas sim o fim da sede. Enquanto cuidarmos da sede de Deus e de vida, estaremos caminhando no único caminho bom, melhor ainda se for na companhia dos pobres e dos sedentos e famintos. A fé bíblica é gritar a Deus no tempo infinito da seca, pois nenhuma experiência do divino pode satisfazer o nosso desejo de paraíso. Não há água nesta terra capaz de saciar a sede de Deus, e se nos sentirmos religiosamente saciados, é muito provável que estejamos bebendo a água dos ídolos, que também é uma máquina de venda automática de bebidas refrescantes. É interessante, então, observar um detalhe: embora o texto hebraico fale de um cervo ('aiàl), a tradição sempre viu uma corça neste salmo. Talvez porque somente as mães realmente conhecem os gritos lançados por certas ausências, e somente elas aprenderam verdadeiramente a paradoxal beatitude da sede.
Neste salmo, a imagem da água também contém uma bela metáfora da evolução de uma vocação. Começa com uma primeira água, a do primeiro encontro da juventude. Continua depois ao longo da vida com a experiência da sede, quando vagueamos em busca daquela primeira água que não conseguimos mais encontrar, e enquanto vagueamos nossa garganta seca de água se enche do grito de Deus. Para terminar, talvez, com uma água diferente que encontraremos onde e quando não estávamos mais procurando - é muito bonito que uma das últimas palavras de Jesus que os Evangelhos relatam seja: "Tenho sede". Vivemos esta secura como uma experiência de imperfeição, de falta, às vezes de fracasso, e esquecemos a bem-aventurança da sede: "bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça", que têm fome e sede de mim. Lamentamos a água da nossa primeira juventude porque não entendemos que essa água foi principalmente destinada a inflamar a nossa sede para depois caminharmos pelo mundo como peregrinos sedentos. Até que, em um bendito dia, entendemos que é dentro dessa fome que se esconde e se encontra o sentido religioso da vida. Ali está a pobreza e a pureza que almejávamos no primeiro dia, e que confundimos com a água. E, naquele dia, sentimo-nos amigos solidários com todos os sedentos, os famintos de pão e de justiça, com todos os necessitados da terra, e nos tornamos finalmente pobres. Pois descobrimos que a fé não é posse, mas promessa.
O templo aquático de Ezequiel
Talvez a página mais bonita sobre a água seja aquela que nos foi dada pelo profeta Ezequiel: "Então ele me conduziu até a entrada do templo e vi que sob a soleira do templo havia água fluindo em direção ao leste [...]. A água descia sob o lado direito do templo, do lado sul do altar. E ele me fez sair pelo caminho da porta do norte, e me fez dar uma volta pelo caminho de fora, até à porta exterior, pelo caminho que dá para o oriente e eis que corriam as águas do lado direito".(Ezequiel 47:1-2). A água cresce ao vivo enquanto Ezequiel a observa espantado e um pouco assustado: "O homem avançou em direção ao leste e com um cordel na mão medindo mil côvados, então ele me fez atravessar aquela água: ela alcançava meu tornozelo. Ele mediu outros mil côvados, depois me conduziu através da água, e ela alcançava meu joelho. E ele mediu outros mil côvados, e depois passou por mim através da água, e ela chegou aos meus quadris. Ele mediu outros mil côvados: era um rio que eu não conseguia atravessar " (47:3-5). Estamos com ele no rio-corrente, sentimos a água subir de nosso tornozelo até aos quadris e mais além. Ezequiel está dentro de seu vau junto com um anjo. Desta vez, o homem e o anjo não lutam, não há lesão do nervo ciático. Somente a bênção de uma mensagem eterna sobre o espírito, sobre o templo e sobre a vida permanecem. A visão continua: "Quando me virei, vi que na margem do riacho havia muitas árvores de ambos os lados. Ele me disse: "Estas águas fluem em direção à região oriental, descem na Araba e entram no mar: fluem para o mar e curam suas águas. Todos os seres vivos que se movem para onde quer que a corrente chegue viverão, e lá os peixes serão abundantes, porque aonde essas águas chegam, elas curam, e onde a corrente chega, todos viverão" (47:7-9). O anjo mostra a Ezequiel a paisagem. Onde antes só havia deserto e aridez, cresceram muitas árvores, "cujas folhas não murcharão: seus frutos não cessarão, e a cada mês amadurecerão, porque suas águas fluem do santuário". Seus frutos servirão de alimento, e suas folhas de remédio" (47:12).
Água e espírito, água é espírito. A Bíblia é um imenso e infinito cântico à vida. Tudo nela expressa apenas e sempre a vida. Ela a expressa de muitas maneiras e com muitas imagens, mas nessa cultura a água canta de uma maneira diferente e muito forte. Aquele povo herdeiro das tendas móveis, têm em seu código genético a busca da água para poder viver. Durante milênios viram-na chegar em sua estação e dar de novo vida ao que parecia estar morto e teria morrido se não tivesse chegado. Viu o deserto florescer em mil cores após as chuvas primaveris, e naquelas ressurreições nasceram as mais belas orações, os salmos mais poéticos floresceram. Se quiséssemos entender algo desta visão do templo-nascente, teríamos que lê-la no deserto de Sur, ao lado de Agar, ou no deserto com Moisés e do povo murmurando por causa da sede; sentir a sede em nossa carne e depois fazer a experiência da água que vem e nos salva. A água é a irmã pobre do espírito: utile et humile et pretiosa et casta.
O grande quadro da água e da vida culmina com o homem e seu trabalho: "Em suas margens haverá pescadores; de Engaddi a En-Eglàim haverá uma extensão de redes" (47:10). Sem homens e mulheres trabalhadores, o milagre das águas não está completo. No auge da água encontramos o homem, e por fim o trabalho.
Este é o humanismo bíblico, este é o cântico de Adão, que como o ápice de uma manifestação cósmica de Deus coloca trabalhadores, pescadores que espalham suas redes. Outros pescadores, alguns séculos mais tarde, levarão a água do espírito sobre toda a terra, quando, chamados enquanto trabalhavam, reconheceram nessa voz, a voz da vida porque, trabalhando, tinham permanecido ligados à mesma fonte. A templo-nascente, imerso nas águas que geram um rio que inunda, fertiliza e vivifica o mundo, está entre as páginas mais belas de toda a Bíblia e entre as páginas mais proféticas de Ezequiel. Justo porque expressa o passado e o futuro juntos: bereshit e eskaton. Em Ezequiel esta água contém uma das mais poderosas mensagens religiosas, teológicas e sociais do humanismo bíblico. O templo é, e pode ser, uma nascente jorrante de água que dá vida se essa água não permanecer fechada e egoisticamente guardada dentro do templo. Somente se partir dali para inundar o mundo. A água do templo não é destinada ao consumo interno do templo. Aquela água não é produzida para as necessidades da pureza do culto religioso. Não: aquela água nasce dentro, mas flui para fora. É uma água laica, civil, secular. O Ezequiel, o sacerdote de Jerusalém, acredita que o templo é o lugar da presença da glória de YHWH na terra. Mas o profeta Ezequiel sabe e diz que essa presença não está lá para ser consumida no culto, pelos seus fiéis, pois é gerada para ser dada aos que estão fora do templo.
"A fonte não é para mim", a bela expressão de Bernadette de Lourdes, é um lema profético universal na relação entre o templo e o espírito. A água vem para fertilizar a terra. Não é dada gratuitamente pelo Céu para lavar os escorredores do sangue dos sacrifícios sob o altar do templo. As religiões e comunidades espirituais podem continuar a gerar água viva e saciar a sede das pessoas se superarem, com castidade, a tentação perene de beber a água que delas provém. Ezequiel, que tem esta visão após o templo ter sido destruído por Nabucodonosor, intui que, para que pudesse ainda existir um novo templo após o exílio, a fé e o templo não poderiam permanecer como antes - toda grande crise muda a relação entre fé e culto. O ter aprendido, numa imensa dor, que seu Deus permaneceu verdadeiro mesmo se derrotado, que a fé era possível mesmo sem um lugar sagrado porque o lugar de Deus é a Terra inteira, tinha mudado a religião e o culto para sempre.
O templo com as grandes águas é então um grande legado espiritual de Ezequiel, uma mensagem que começa na terra do exílio da Babilônia e percorre toda a Escritura. Voltamos a encontrá-la, por exemplo, no livro de Sirácida (Eclesiástico), que retoma a imagem do templo-nascente de Ezequiel e a aplica à sabedoria: "Eu, como um canal que sai de um rio e como um aqueduto que entra em um jardim, disse: 'Vou regar meu jardim e regar meu canteiro de flores'. Mas eis que meu canal se tornou um rio, e meu rio se tornou um mar" (24:41-43). O templo é pequeno demais para conter a água da sabedoria.
O profeta Ezequiel retorna na conclusão do Apocalipse, o último livro da Bíblia, em outra imagem obra-prima, como culminação de mais de meio milênio de profecia que tinha escancarado o templo para fazê-lo convergir com o mundo inteiro: "E ele me mostrou um rio de água viva, cristalino, fluindo do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da praça da cidade, e em cada lado do rio, há uma árvore da vida que dá frutos doze vezes por ano, dando frutos todos os meses; as folhas da árvore são para curar as nações" (22:1-2).
Aqui a água não flui de debaixo do templo, mas do "trono de Deus e do Cordeiro". Na epifania final do espírito, o templo não existe mais. O templo desapareceu da paisagem da nova Jerusalém, como lemos alguns versos antes em outra passagem paradoxal e estupenda: "Nele não vi templo algum: o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, e o Cordeiro são seu templo". (Apocalipse 21:22). Como a Lei, o templo é um pedagogo, que um dia terá que desaparecer para abrir espaço para o encontro imediato com a água viva. Neste novo mundo, a árvore da vida não está mais no jardim do Éden, mas cresce no meio da praça da cidade. Uma frase maravilhosa. A praça será o novo nome do templo. Este é o grande cântico da laicidade bíblica: praça irmã, escritório irmão, fábrica irmã, trabalho irmão. Água irmã.
Crédito das fotos: Simona Sambati
Bibliografia:
- Bruni L., L’anima e la cetra, Qiqajon, 2021.
- Bruni L., L’esilio e la promessa, EDB, 2021.
A 23ª edição da revista científica do Centro de Estudos SOUQ da Casa da Caridade é inteiramente dedicada ao tema da água. Abaixo a contribuição de Luigino Bruni.
por Luigino Bruni
Publicado em SOUQuaderni n. 23 de abril de 2021 em 23/04/2021
“Todos na Escritura morrem de sede, e o que é esta sede universal senão o próprio Deus sedento de si mesmo? Sempre pensei, desde que o aprendi, que morrer com este verso nos lábios seria um bom não morrer".
Léon Bloy, “Le symbolisme de l’Apparition”, 1880
A ambivalência de um grande símbolo
A Bíblia também pode ser contada como uma história sobre a água. A água é um de seus grandes símbolos. É seu alfa e ômega: a Bíblia abre com as águas do Gênesis e fecha, no último capítulo do Apocalipse, com um rio na cidade. E depois os rios Pisom, Tigre, Eufrates, Nilo, Jordão, depois Yaboq, Noé, Abraão, Ágar, Raquel, Moisés, Mara, a Batista, a mulher Samaritana, o Gólgota. Rios, poços, mulheres. A água e a vida, água é vida. Sempre e em qualquer lugar, especialmente naquelas regiões semiáridas do Oriente Médio.
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por Luigino Bruni - trecho do livro "O capitalismo e o sagrado", editora Vita e Pensiero, novembro de 2019
Ao contrário do que pensavam Saint-Simon, Marx e Weber, o deus do capitalismo não é o capitalista, nem o lucro. Ou pelo menos não o é mais. A predestinação (da cultura calvinista) que durante pelo menos dois séculos foi uma experiência elitista, restrita a um grupo de empresários e banqueiros, ao longo do século XX, gradualmente se transformou em uma religião de massa, graças à mudança do centro ético do capitalismo da esfera da produção para aquela do consumo. Quem é "abençoado por Deus" não é mais o empresário, mas o consumidor, que é glorificado e invejado porque e se ele tem os recursos para consumir. Mais consumo, mais bênçãos. A figura sagrada dos empresários-construtores deixou, assim, espaço ao novo sacerdote-consumidor. É a soberania do consumidor a única soberania reconhecida pelos cidadãos-fiéis do monoculto consumista, que está minando seriamente a cidadania política.
[fulltext] =>Compreende-se, então que o primeiro ídolo, o chefe do panteão da idolatria capitalista, não é o empresário; e nem mesmo a mercadoria e o seu fetichismo (Marx), mas o consumidor.
Pensemos em um aspecto que pode parecer secundário: os descontos, que são o centro em torno do qual giram as liturgias coletivas, como as promoções de fim de estação, e agora, o novo culto chamado Black friday. Embora todos anos seja levantada a questão sobre a sua "veracidade", a verdade é que os descontos são e devem ser reais. São porque o desconto verdadeiro é um elemento essencial do culto. Os descontos devem ser reais, porque não há religião sem algum tipo de dom, graça e sacrifício. No entanto, existe uma diferença fundamental, que nos revela grande parte da sua natureza sagrada. Nas religiões tradicionais é o fiel que oferece os dons ao seu Deus, na idolatria capitalista é, ao invés, a empresa-deus que oferece 'dons' aos seus fiéis. Os papéis mudam porque oposto é o sentido do culto. De fato, na religião do consumo a divindade é o consumidor, que as empresas procuram fidelizar (outra palavra religiosa) com o seu sacrifício-desconto. Dom sem gratuidade - portanto, não religião, mas idolatria.
Assim sendo, se o deus da religião capitalista é o consumidor, quem é o super-homem ou o outro homem nietzschiano do capitalismo? Se aprofundarmos esta analogia poderíamos dizer que o super homem do capitalismo é aquele que consegue viver sem o consumo; chegando assim ao paradoxo de que quem sai do sistema, renunciando aos seus consumos e dogmas, é o super homem da religião capitalista, aquele, sobrehumanamente, capaz de viver em um mundo sem o seu deus. Algo do gênero foi intuído (talvez) por Benjamim quando escreveu uma frase enigmática: "A ideia do super-homem desloca o 'salto' apocalíptico, não na sua reversão, na expiação, na purificação, na penitência, mas sim em um fortalecimento aparentemente constante, que no último trecho é perturbador e descontínuo"1
1 - Benjamin Walter (1921), O capitalismo como religião, em La politica ed altri scritti, Mimesis, Milano, 2016.p. 53
Créditos: Foto de Виктория Бородинова da Pixabay
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Ao contrário do que pensavam Saint-Simon, Marx e Weber, o deus do capitalismo não é o capitalista, nem o lucro. Ou pelo menos não o é mais. A predestinação (da cultura calvinista) que durante pelo menos dois séculos foi uma experiência elitista, restrita a um grupo de empresários e banqueiros, ao longo do século XX, gradualmente se transformou em uma religião de massa, graças à mudança do centro ético do capitalismo da esfera da produção para aquela do consumo. Quem é "abençoado por Deus" não é mais o empresário, mas o consumidor, que é glorificado e invejado porque e se ele tem os recursos para consumir. Mais consumo, mais bênçãos. A figura sagrada dos empresários-construtores deixou, assim, espaço ao novo sacerdote-consumidor. É a soberania do consumidor a única soberania reconhecida pelos cidadãos-fiéis do monoculto consumista, que está minando seriamente a cidadania política.
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por Luigino Bruni
publicado no site Valori em 23/10/2019, no âmbito do dossiê "La bolla del capitalismo etico" (A bolha do capitalismo ético)
As declarações éticas e de valores feitas pelas grandes multinacionais devem ser sempre tomadas cum grano salis (com um pé atrás), visto que de um lado, devem dizer coisas que não estão muito longe da verdade (nem que seja, hoje, na era das mídias sociais, por motivo de reputação), do outro lado, faz parte do jogo de mercado prometer mais do que se consegue se manter com os comportamentos. No entanto, algo já é certo: o modo como entendemos as empresas e o mercado, nos últimos cem anos, está vivendo uma crise muito mais radical e profunda do que a financeira dos últimos anos.
[fulltext] =>Crise de 2007, um enfarte que o capitalismo esqueceu cedo demais
A crise financeira iniciada em 2007 foi uma espécie de enfarte do sistema, mas, uma vez feita a angioplastia e colocado o stent, o “paciente capitalismo”, com a ajuda de qualquer remédio, continuou com o mesmo estilo de vida anterior; por alguns meses, o medo o fez fazer um pouco de dieta e a parar de fumar, mas, aos poucos, voltaram os velhos hábitos como se nada tivesse acontecido. Desta vez, porém, o assunto é muito diferente: a crise ambiental que, nessa dimensão não tem precedentes na história humana, não apresenta apenas uma crise coronária, mas uma mudança radical nas condições de vida que exigem uma adaptação a algo completamente novo.
Os ensinamentos das Fridays for Future
Tudo isso, os especialistas já sabiam, há muito tempo, mas graças ao movimento “Fridays for Future” e também ao pensamento e ações do Papa Francisco (ver Laudato sii e o movimento que surgiu), nos últimos tempos, a consciência de que o brinquedo quebrou está se tornando extensa, popular e universal.
As empresas devem mudar a sua cultura, não por altruísmo, nem por amor ao bem comum, mas simplesmente se não quiserem falir. O único verdadeiro soberano do capitalismo é o consumidor com as suas preferências. Isso é um dogma da religião capitalista, mas também a sua grande fragilidade porque no final, se os consumidores mudam juntos de preferência, as empresas não podem fazer outra coisa senão mudar rapidamente os produtos.
Dos plásticos para novos produtos e estilos de vida
Já estamos vendo acontecer com o plástico: apenas alguns meses atrás poderíamos realizar conferências - talvez sobre ética e economia - com garrafas plásticas bem visíveis sobre a mesa. Hoje, já não é possível (falo por experiência própria) porque aquela garrafa à vista, mina qualquer discurso ético que esteja sendo falado na naquela mesma cátedra.
Tudo isso aconteceu em poucos meses (a primeira Fridays for Future global foi dia 15 de março desse ano). Em alguns meses, essa onda de mudanças épicas se estenderá a muitos outros produtos: dos carros aos voos aéreos.
A empresas estão intuindo tudo isso porque por vocação, como lembrava Jevons no final do século XIX, o empresário é um precursor das tendências do mercado.
E ainda tem mais: posso estar enganado, mas é muito provável que, tudo isso que está acontecendo sobre a frente ambiental, avance progressivamente e rapidamente até à frente social, e as empresas com governança não participativa e com estruturas proprietárias concentradas em poucos acionistas riquíssimos, serão punidas pelos consumidores, pelos jovens em particular, porque aquilo que aconteceu com a democracia - onde o poder político estava concentrado, por séculos, nas mãos de poucos e em poucas cabeças (homens, ricos e nobres), e que progressivamente se alargou até alcançar o sufrágio universal - vai se estender à economia.
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