stdClass Object ( [id] => 19935 [title] => Peppone, a ignorância dos pobres e o nosso lápis contra a vergonha [alias] => peppone-a-ignorancia-dos-pobres-e-o-nosso-lapis-contra-a-vergonha [introtext] =>Economia Narrativa / 10 - A estranheza dos humildes em relação aos códigos das classes cultas (e da Igreja) produziram uma desorientação que ainda hoje está presente.
por Luigino Bruni
Original italiano publicado emu Avvenire em 15/12/2024
«Continuamos, impávidos, a fazer história como se os homens que nos precederam, todos eles, tivessem vivido apenas para nos produzir; como se as flores deste ano pudessem pretender que as primaveras passadas, todas as primaveras passadas, não tivessem tido flores próprias, mas apenas se sucediam humildemente, com o propósito soberbo de preparar, com as suas flores de trânsito e de provação, as flores deste ano, as nossas flores. Não se consegue olhar com respeito quem nos precedeu pensando que, talvez, tenham atingido uma vida perfeita, mais perfeita do que a nossa. A história da piedade está em condições de nos ensinar tamanha modéstia… O homem, na sua relação com Deus, pode alcançar a sua realização mais perfeita sem que antes toda a humanidade tenha de ter progredido para que o possa alcançar».
Don Giuseppe de Luca, Introduzione all’archivio per la storia della pietà, p. XLVII
No confronto entre o presidente da câmara/prefeito e Don Camillo, Guareschi mostra a distância entre a linguagem dos instruídos e a do povo. E o caminho para a eliminar.
A palavra está na origem da civilização. O homo sapiens, animal capaz de palavra, pôde fazer coisas extraordinárias porque – talvez há 100.000 ou 150.000 anos – começou a falar. A linguagem facilitou e aperfeiçoou a comunicação dentro e entre os grupos humanos, portanto, a cooperação. No princípio, portanto, era a palavra. Depois de muito tempo, a palavra oral tornou-se também palavra escrita e, com ela, nasceram os escribas, os especialistas e os mestres da palavra, e quem sabia traduzir as palavras em sinais deteve um grande poder. A maioria das pessoas continuava a falar, mas apenas uma pequena parte sabia também escrever. Entre a palavra oral e a escrita, entre os falantes e os escribas, veio a criar-se um fosso, um conflito. Assim, os escribas criaram as ortografias, as gramáticas, as sintaxes e os mestres da palavra definiram qual o modo correto de escrever e de falar. A palavra escrita nascera da oral, mas foi a escrita a dominar a palavra oral. Don Camillo, por vocação e missão, estava do lado dos escribas, não do povo ignorante. Peppone, pelo contrário, era homem da palavra falada, do dialeto. Este contraste emerge com grande força de um dos mais belos contos de ‘Pequeno Mundo’: O edital.
[fulltext] =>Peppone, depois de um ‘incidente’, tinha preparado um edital para afixar na povoação. Don Camillo toma conhecimento do rascunho; lê-o e vê que está cheio de erros: “Ainda ontem à noite, uma vil mão anónima escreveu um insulto ofensivo no nosso jornal de parede. … Se não parar, vai ter de se arrepender quando já for irreparável. A paciência tem limites. O secretário da Secção, Giuseppe Bottazzi”. De volta à casa paroquial, Don Camillo comenta-o com Jesus: “Não é uma obra-prima?”. “Cada um exprime-se como pode”, respondeu Jesus. “Não é legítimo pretender que alguém que fez apenas o terceiro ano se preocupe com nuances linguísticas” (Pequeno Mundo. Don Camillo, 1948, p. 12). Neste diálogo sobre o edital de Peppone concentram-se temas que ainda estão no centro da justiça, da escola, da dor dos pobres. Os pobres – todos os pobres da terra –, aqueles a quem Silone chamava “campónios”, têm em comum um profundo e generalizado sentido de inferioridade que resulta da incompetência na língua oficial, sobretudo na língua escrita. Na minha região de Ascoli, como em quase todas as regiões italianas, o povo falava em dialeto. Quase todos, mas sobretudo os camponeses, os operários, os mais pobres. Com os meus avós eu falava apenas em dialeto e ainda o falo em sonho. Vi e li o primeiro livro na escola porque os livros estavam nas casas dos poucos senhores, não nas do povo, como a minha. Naquele ‘pequeno’ mundo era suficiente o dialeto, não faltava nada. Mas ainda me lembro perfeitamente das emoções dos meus avós e tios (e tias) quando, num raro encontro com um ‘senhor’, tinham de deixar a língua materna e tentar falar em italiano.
Perdiam imediatamente toda a sua eloquência, envergonhavam-se porque aquela incompetência na língua italiana tornava-se incompetência no pensamento, nas relações, na dignidade, uma incompetência que era apelidada de ignorância pelos instruídos: ‘somos ignorantes’, ‘somos campónios’ tornavam-se as palavras para descrever aquela sua indigência. Quando os meus avós falavam em dialeto, não se sentiam ignorantes. Não sabiam a história dos babilónios, não conheciam as obras de Foscolo ou de Leopardi, nem a álgebra; mas sabiam muito bem outras coisas e sentiam-se orgulhosos disso; sentiam-se, sobretudo, orgulhosos do conhecimento da sua profissão, dos animais, das plantas, das pessoas, da terra e da natureza. Quando, depois, entravam na igreja, sentiam-se duplamente ignorantes; não só não compreendiam muito bem o italiano como não compreendiam nada do latim. Por isso, não compreendiam a religião dos teólogos e, para eles, ficavam apenas os santos, Nossa Senhora, Jesus crucificado. Aquela língua esotérica afastava o povo ainda mais do que o púlpito e o altar já o faziam, e separava o sagrado do profano, os sagrados dos profanos. A religião, nesta perspectiva, ia aumentando o fosso que separava os pobres dos escribas, quem ‘falava e basta’ de quem ‘falava e escrevia’. Foi a chegada das línguas escritas a inventar o palavrão ‘analfabeto’ porque, no mundo da palavra, ninguém era analfabeto. Os camponeses e os pobres eram mestres na sua língua, sentiam-se em casa entre as suas – poucas, mas vivas – palavras; eram analfabetos apenas na língua dos escribas – ainda é possível, em certas regiões, assistir a récitas, em dialeto, de velhas e velhos camponeses, ou a diálogos nos bares e em suas casas, com um domínio e riqueza lexical extraordinárias. Quando a escolaridade se tornou universal e obrigatória, a vergonha linguística dos pobres, no início, não diminuiu, mas aumentou. Porque estudar até ao segundo ou ao quinto ano não dava competências suficientes na nova língua, ao mesmo tempo que aumentava a perceção da própria carência. Na Constituição e na Democracia há também este sofrimento específico dos pobres, dos migrantes do Sul, dos ‘campónios’, que viveram uma forte desorientação linguística que se tornava, imediatamente, desorientação de autoestima e de dignidade. Hoje, podemos ainda intuir algo daquela longínqua dor e desorientação se conseguirmos entrar no coração dos imigrantes de primeira geração e dos seus filhos. Com muita frequência, ainda renasce neles a antiga vergonha que, por vezes, é amplificada por quem – pessoas e instituições –, à sua volta, se comporta como Don Camillo se queria comportar com Peppone.
Continuando o diálogo com o Crucificado, Don Camillo confessa o seu pecado: Peppone – diz-lhe Jesus – fala de um insulto que alguém escreveu no seu jornal de parede. Quando tu, ontem, foste à tabacaria, não passaste, por acaso, diante daquele jornal de parede? Procura recordar-te”. “Efetivamente, passei”, admitiu francamente Don Camillo. “E quando te foste embora – replicou Cristo – viste se estava escrito algo de estranho?” E Don Camillo: “Pensando bem, quando me fui embora parece-me, ter visto que, numa folha, estava rabiscado qualquer coisa a lápis vermelho”. Encurralado, está prestes a interromper o diálogo-interrogatório: “Perdão; parece que há alguém na casa paroquial” (p. 14). Mas Jesus detém-no: “Don Camillo!... E então?” “’Então, sim’, balbuciou Don Camillo, ‘… não resisti e escrevi ‘Peppone burro’…” E Jesus: “Peppone foi tratado por burro por ti ontem à noite e amanhã também será tratado por burro por toda a terra… e tudo por tua culpa. Parece-te bem?” (p. 15). Don Camillo comentou: “De acordo: mas, para fins políticos gerais…”. E Cristo: “Não me interessam os fins políticos gerais, mas os fins da caridade cristã; dar ao povo motivo para zombar de um homem pelo facto desse homem ter chegado apenas ao terceiro ano é uma grande porcaria e tu és a sua causa, Don Camillo”. Sim, Don Camillo, Jesus tem mesmo razão: é mesmo uma grande porcaria!
Estas páginas tornam grande Pequeno mundo e o seu autor. Aquela Itália e boa parte do mundo encontravam-se nas condições de Peppone. Neste conto, é ele a vítima com que Guareschi nos pede para ter empatia, para entrar nas suas entranhas – para ‘illuiarci’, diria Dante, isto é, mergulhar nele. Guareschi estava, socialmente, do lado de Don Camillo. Era um escritor, filho de uma professora, pertencia à restritíssima elite burguesa que dominava a língua e a cultura. Mas, pelo daimon artístico que habitava nele e pela sua origem popular que sempre cultivou durante toda a vida, foi capaz de ressuscitar naquele seu personagem. Entrou na alma de muitos homens e muitíssimas mulheres do seu tempo e lá encontrou aquela dor especial que nasce da vergonha da palavra. E conseguiu ressuscitar consigo Don Camillo. Ei-lo no fim do conto: “Senhor; que posso fazer?”, disse Don Camillo. “Quem comete o pecado, faça a penitência. Arranja-te” (p. 15). Don Camillo voltou à casa paroquial e aconteceu algo de inédito: no seu Pequeno Mundo entra Nossa Senhora. “Dirigiu-se à imagem de Nossa Senhora: ‘Senhora, peço-vos, ajudai-me’. ‘É um assunto de estrita competência do meu Filho’, sussurrou Nossa Senhora. ‘Não me posso meter nisso’. ‘Dá-lhe uma palavrinha’, ‘Vou tentar’ respondeu” (p. 15). Se pensarmos na intercessão dos santos e de Nossa Senhora com as categorias da teologia da Contrarreforma, não a compreendemos e fugimos dela. Mas se a pensarmos com o coração, a mente, as lágrimas e a dor do povo e dos pobres, então podemos compreender que o que a religião chama ‘intercessão’ é, na realidade, um encontro de palavras boas, quase sempre ditas em dialeto. São orações, salmos, choros diferentes, esperança de último recurso.
Eis a resposta: de repente Peppone chega à igreja: “Ouça… Há cá na terra um patife, um grande velhaco, um Judas Iscariotes com dente venenoso que, sempre que aparece no nosso registo um papel com a minha assinatura de secretário, se diverte a escrever por cima ‘Peppone burro’” (p. 16). Peppone dirige a Don Camillo um pedido de ajuda, lindíssimo e humaníssimo: “Como não quero fazer figura de burro, poderia dar uma olhadela no rascunho do edital antes de Barchini (o tipógrafo) imprimir o manifesto?” (p. 17). Peppone entregou o edital a Don Camillo que “pegou no lápis e corrigiu, com cuidado, o rascunho”. “Quanto lhe devo?”. “Nada”, responde Don Camillo. E Peppone: “Mandar-lhe-ei ovos”. A reciprocidade diferente dos honestos, feita de poucas palavras e de muitos gestos silenciosos.
De volta à casa paroquial, Don Camillo foi saudar Jesus, que lhe pergunta: “Como correu?”. “Foi um pouco durinho, mas correu bem. Peppone não suspeitava, nem de longe, que tinha sido eu, ontem à noite”. “Pelo contrário; sabe-o muitíssimo bem”, retorquiu Cristo. “Sempre tu e de todas as doze vezes. Ele até te viu um par de noites” (p. 18). Peppone tinha-o visto, mas ficou escondido porque realmente se sentia um burro e envergonhava-se. Este é um profundo sofrimento dos pobres, que já nem sequer conseguimos compreender. E, assim, diferentemente de Don Camillo, nós não nos convertemos e não corrigimos com o lápis os rascunhos dos pobres.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 01/12/2024
«Recordo um pôr-do-sol, percorrendo, de automóvel, as estradas da Calábria. Não estávamos certos do nosso itinerário e foi, para nós grande alívio, encontrar um velho pastor. Entrou para o carro com alguma desconfiança porque, agora, da janelinha donde sempre olhava, tinha perdido de vista o campanário de Marcellinara. Por ter desaparecido aquele campanário, o pobre velho estava completamente desorientado. Voltámos atrás, rapidamente: e sempre com a cabeça de fora da janelinha, perscrutando o horizonte, para ver reaparecer o campanário de Marcellinara».
Ernesto De Martino, La fine del mondo, 2002
Depois de Silone e Levi, começam alguns artigos sobre o ‘Pequeno Mundo’ de Guareschi, um outro grande olhar sobre o mundo popular de ontem e sobre a sua alma.
Pequeno Mundo. É o mundo descrito por Guareschi, a “fatia de planície que se situa entre o Pó e os Apeninos” (Pequeno Mundo. Don Camillo, 1948, p. xi). Um mundo muito pequeno, demasiado pequeno para nós, mas, com certeza, um mundo que ainda nos fascina, nos apela, nos interroga num tempo em que o mundo se tornou grande, muito grande, certamente demasiado grande para nele estarmos bem sem sofrer a angústia do ‘desorientado’. A desorientação é a grande característica antropológica e espiritual do terceiro milénio – globalizámos o mundo, derrubámos todos os campanários e estamos a desorientar-nos. Don Camillo e Peppone têm muitos defeitos, algumas virtudes, mas não estão desorientados: vivem sob o mesmo campanário simbólico.
[fulltext] =>Pequeno Mundo nasceu em finais de 1946 e, durante uma vintena de anos, mais de trezentos episódios divertiram o mundo – na edição de 1953 de ‘Pequeno Mundo. Don Camillo e o seu rebanho’, Rizzoli indicava 27 países onde Don Camillo tinha sido traduzido. É o próprio Guareschi que nos relata aquele nascimento providencial: “Porque é que, por vezes, te reduzes ao ultimíssimo minuto? Nunca me arrependi, na minha vida, de ter guardado para amanhã o que podia fazer hoje… Recordo-me; era véspera do Natal de 1946. Por causa das festas, precisava de acabar o trabalho antes do que o habitual… Nessa altura, além de compilar o ‘Candido’, escrevia contos para o ‘Oggi’: já era noite e ainda não tinha escrito a peça que faltava para completar a última página do meu jornal… “É preciso fechar o Candido imediatamente!” disse-me o tipógrafo. Então tirei um pedaço do ‘Oggi’, mandei recompor com caracteres maiores e coloquei-o dentro do Candido. … Se eu, dando ouvidos aos ‘funcionários’ tivesse preparado o meu trabalho a tempo, Don Camillo, Peppone e outras coisas de Pequeno Mundo teriam nascido e morrido na véspera do Natal de 1946… Pelo contrário, assim a brincar, a brincar, há duas horas que o entreguei (no ultimíssimo momento e entre o desgosto dos ‘funcionários’) o 200º episódio de Pequeno Mundo” (Don Camillo e o seu rebanho, 1953, pp. xii-xiii).
Giovanni Guareschi (1908-1968) é um dos poucos clássicos de literatura popular – e o adjetivo ‘popular’ amplifica o substantivo. Em Itália, a sua vida e a sua obra foram muito atribuladas. Nasceu em Fontanelle (Parma), uma região da Bassa. Filho de uma professora e de um comerciante de bicicletas: “Quando era rapaz, sentava-me amiudamente na margem do grande rio e dizia: ‘quem sabe se, quando for grande, conseguirei passar para a outra margem!’. … Agora, tenho quarenta e cinco anos e vou frequentemente, como outrora, sentar-me na margem do grande rio e, enquanto mastigo uma folha de erva, penso: ‘está-se bem aqui, nesta margem’” (Don Camillo e o seu rebanho, 1953, p. xiv).
Começou cedo a trabalhar como cartunista e repórter. Em 1942 foi preso por ter dito palavras ofensivas contra o fascismo e Mussolini. A 9 de setembro de 1943 foi feito prisioneiro pelos alemães e internado em diversos campos de concentração na Alemanha e na Polónia, até setembro de 1945. Descreve assim aquela experiência determinante: “Encontrei-me enredado nesta guerra, no princípio, na qualidade de italiano aliado dos alemães e, no fim, na qualidade de italiano prisioneiro dos alemães. Os anglo-americanos, em 1943, bombardearam-me a casa e, em 1945, vieram libertar-me da prisão… Pelo que me diz respeito, esta é a história toda. Uma história banalíssima, em que tive o peso de uma casca de avelã num oceano tempestuoso, da qual saí sem fitas e sem medalhas, mas vitorioso porque, apesar de tudo e de todos, consegui passar através deste cataclismo sem odiar ninguém. Mais: consegui encontrar um amigo precioso: eu próprio” (Diário clandestino, 1949, p. ix). Palavras de uma imensa intensidade e profundidade, que não esperaríamos do autor de Peppone e Don Camillo, porque não o lemos com atenção e porque, não conhecendo a Bíblia, pensamos que os discursos profundíssimos e o humor não possam estar juntos.
No pós-guerra, a sua crítica pública continuou, mas apenas contra o comunismo, como é amplamente (e demasiado) conhecido. Na realidade, Guareschi era um crítico radical e severíssimo em relação a tudo o que lhe parecia fingido, falso, ideológico, conformista, hipócrita e oportunista. De facto, foi muito criticado por Togliatti (o “trinariciuto” [NdT: o “três narinas”]), mas foi um liberal e um democrata cristão que o condenaram. Em 1950, foi condenado, por ultraje, a oito meses de prisão (não cumpridos, por não ter antecedentes criminais) por causa de uma caricatura de Il Candido, onde tinha criticado o uso mercantil que Luigi Einaudi, então Chefe de Estado, tinha feito do seu cargo institucional para promover o seu vinho – ‘Nebbiolo, o vinho do Presidente’. Ainda mais conhecida é a queixa de Alcide de Gasperi por ter publicado, em 1954, duas cartas (que depois se revelaram falsas) em que Gasperi, em 1944, pedia aos Aliados o bombardeamento de Roma. Passou 409 dias na prisão de Parma e não quis recorrer – “Aceito a condenação como aceitaria um murro na cara”, disse. Nunca recuperou desta experiência devastadora. Aumentou o seu isolamento. Em 1957 deixou direção de Il Candido e, em 1961, teve um primeiro enfarte; o segundo, em 1968, foi fatal.
A sua vida não foi uma vida de sucesso, apesar do enorme sucesso internacional das suas obras. Pelo contrário, foi uma existência repleta de críticas maldosas e injustas, marginalização, depreciação das suas obras, reduzidas a historietas risíveis, e ele rebaixado a cartunista.
Guareschi nunca se deu ares de escritor. Não frequentava os ambientes literários que interessavam, não ganhou o Nobel (embora, em 1965, alguém o tenha tentado nomear): “Eu, no meu vocabulário, terei cerca de duzentas palavras… Por isso, nada de literatura ou outra coisa do género” (Don Camillo, p. ix). No entanto, basta ler as suas histórias para perceber que se trata de um grande escritor. É-o porque apresenta (pelo menos) três talentos que estão juntos apenas nos escritores grandes e enormíssimos.
O primeiro é a capacidade de saber captar a alma profunda de um tempo e de um lugar. Revelou-nos a Bassa (pelo menos) como Levi a Lucânia e Silone a Marsica. Mas, mais do que Silone e Levi, Guareschi está verdadeiramente por dentro dos seus relatos. Está por dentro de muitas palavras e gestos de Don Camillo, mas também de Peppone, da Senhora Cristina ou do Crucificado: “Os personagens principais são três: o padre Don Camillo, o comunista Peppone e Cristo Crucificado. Pois bem, aqui é preciso explicar: se os padres se sentem ofendidos por causa de Don Camillo, são perfeitamente livres para me partir um círio na cabeça, se os comunistas se sentem ofendidos por causa de Peppone, são perfeitamente livres para me partir uma tranca nas costas. Mas se alguém se sente ofendido por causa dos discursos de Cristo, não há nada a fazer. Porque quem fala nas minhas histórias não é Cristo, mas o meu Cristo: isto é, a voz da minha consciência. São minhas coisas pessoais, meus assuntos internos” (Don Camillo, pp. xxxvi-xxxvii).
O segundo talento é o dom (porque não é virtude, nenhum talento é virtude) de não ficar presos na jaula de aço do seu próprio temperamento, das suas próprias ideologias, convicções e fés, das quais não se libertam os escritores médios e pequenos. Guareschi, até ao segundo antes de escrever as suas histórias e a partir do segundo depois de as ter escrito, não era capaz de pensar as palavras dos seus personagens. Sobretudo nalgumas histórias, as palavras de Peppone, de Don Camillo e de Jesus são maiores, muito maiores do que as palavras de Guareschi: “Eu não tenho nada mais a dizer sobre Pequeno Mundo. Ninguém pode pretender de um pobre cavalheiro que ele, depois de ter escrito um livro, também o deva compreender” (Don Camillo da Bassa, Introdução).
E chegamos, assim, diretamente ao terceiro talento, o que diz respeito à relação entre o escritor e as suas criaturas. Guareschi pertence aos poucos escritores que não são marionetistas dos seus personagens: “Agora não é que me dê ares do criador: não estou a dizer que as criei. Eu dei-lhes uma voz. Quem os criou foi a Bassa. Eu encontrei-os, tomei-os debaixo do braço e fi-los andar para cima e para baixo pelo alfabeto” (Don Camillo e o seu rebanho, p. xiv). No princípio de Pequeno Mundo foi Giovannino a levar, de braço dado, os seus protagonistas; depois, foram Peppone e Don Camillo a levar, de braço dado, a Guareschi em histórias, emoções, palavras que Giovannino não sabia nem imaginava naquela antevéspera de 1946. Guareschi não teria batizado o filho de Peppone com o nome de ‘Lenine’; Don Camillo, sim (Don Camillo, p. 7); Guareschi não teria corrigido o italiano do discurso de Peppone, Don Camillo, sim (p. 17); Guareschi não se teria arrependido de ter escrito ‘Peppone burro’, Don Camillo, sim (p. 12). Toda a grande obra é, para os seus leitores, catarse e metanóia; para o seu autor é, quase sempre, também ressurreição.
Entre as palavras que, provavelmente, Guareschi não queria escrever – e, no entanto, escreveu – está a mensagem principal e talvez a mais bela do livro: Don Camillo e Peppone discutem sempre, até brigam, são diferentes em tudo, mas… nas inundações do grande rio vão juntos ao longo da margem para salvar a aldeia – como veremos. Que é exatamente o que falta, hoje, à nossa política e sociedade. E também nos emocionamos quando lemos de Guareschi: “E, no fim de 1951, quando o grande rio galgou as margens e inundou os alegres campos da Bassa e de leitores estrangeiros me chegaram pacotes de cobertores e roupa ‘para as gentes de Don Camillo e Peppone’, então emocionei-me”(Don Camillo e o seu rebanho, p. xiv).
Por todas estas razões, decidi comentar Don Camillo de Guareschi. Mas a razão mais profunda é outra. Fui seduzido pelos diálogos entre Don Camillo e Jesus. Peppone aparece, quase sempre, com os seus camaradas e a sua família. Don Camillo está sozinho. O seu único companheiro é Cristo, com quem sabe falar, dialogar. Aquele mundo pequeníssimo tornava-se infinito naqueles encontros cara a cara, simplesmente maravilhosos. Seremos capazes de voltar a falar com Jesus?
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Crítico anticonformista de tudo o que parece fingido, o escritor deu voz a personagens imortais. 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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 01/12/2024
«Recordo um pôr-do-sol, percorrendo, de automóvel, as estradas da Calábria. Não estávamos certos do nosso itinerário e foi, para nós grande alívio, encontrar um velho pastor. Entrou para o carro com alguma desconfiança porque, agora, da janelinha donde sempre olhava, tinha perdido de vista o campanário de Marcellinara. Por ter desaparecido aquele campanário, o pobre velho estava completamente desorientado. Voltámos atrás, rapidamente: e sempre com a cabeça de fora da janelinha, perscrutando o horizonte, para ver reaparecer o campanário de Marcellinara».
Ernesto De Martino, La fine del mondo, 2002
Depois de Silone e Levi, começam alguns artigos sobre o ‘Pequeno Mundo’ de Guareschi, um outro grande olhar sobre o mundo popular de ontem e sobre a sua alma.
Pequeno Mundo. É o mundo descrito por Guareschi, a “fatia de planície que se situa entre o Pó e os Apeninos” (Pequeno Mundo. Don Camillo, 1948, p. xi). Um mundo muito pequeno, demasiado pequeno para nós, mas, com certeza, um mundo que ainda nos fascina, nos apela, nos interroga num tempo em que o mundo se tornou grande, muito grande, certamente demasiado grande para nele estarmos bem sem sofrer a angústia do ‘desorientado’. A desorientação é a grande característica antropológica e espiritual do terceiro milénio – globalizámos o mundo, derrubámos todos os campanários e estamos a desorientar-nos. Don Camillo e Peppone têm muitos defeitos, algumas virtudes, mas não estão desorientados: vivem sob o mesmo campanário simbólico.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 24/11/2024
“Vivia em Boscaccio, na Bassa, com o meu pai, a minha mãe e os meus onze irmãos. A minha mãe entregava-me, todas as manhãs, um cesto com pão, um saco com maçãs ou com castanhas doces, o meu pai punha-nos em fila na eira e obrigava-nos a dizer, em voz alta, o Pater Noster: depois, íamos com Deus e voltávamos ao pôr-do-sol. Os nossos campos não tinham fim e poderíamos correr um dia inteiro sem sair deles.”
Giovannino Guareschi, Mondo piccoloO encontro de Levi com as crianças revela-nos uma alma do escritor e uma dimensão essencial de qualquer civilização: a amizade entre adultos e crianças.
As meninas e os meninos são o maior património da humanidade. Não só porque são a primeira fonte de alegria das mulheres e das famílias ou porque são o sinal de que Deus não os esqueceu nem só porque são a única possibilidade de um bom futuro. As crianças são património do universo pelo seu mero estar no mundo. Em cada menino que nasce, renova-se a aliança de Eloim, volta a brilhar o arco-íris de Noé na terra que já não é a mesma após o nascimento de cada menino ou de cada menina, que pode ser o messias, o goel, o redentor da dor e das injustiças. O primeiro sinal – e o decisivo – de que uma civilização começou o seu declínio é a ausência de crianças das nossas cidades. O índice de natalidade vale mil vezes mais do que o PIB, porque podemos reduzir o PIB (talvez anulando a produção de armas e de jogos de azar) e viver bem ou melhor; mas, quando das nossas casas desaparecem as crianças, apenas podemos chorar ou rezar. Ao longo da via crucis, Jesus exprimiu, para as mulheres de Jerusalém, a sua profecia de desgraça com estas palavras tremendas: «Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram» (Lucas 23, 29). Uma bem-aventurança ao contrário – a ressurreição é também a realização da profecia do menino: o Emanuel de Isaías.
[fulltext] =>As crianças são coprotagonistas do Cristo parou em Eboli. Encontramo-las ao lado das figuras míticas dos 'monachicchi’, que aparecem frequentemente no mundo mágico descrito por Carlo Levi. Os “monachicchi” eram os espíritos da Lucânia, as almas das crianças que morreram sem batismo, que continuavam a habitar no meio das pessoas. Seres traquinas, simpáticos, não maus. Não fazem mal, são apenas traquinas e inocentes. Grandes amigos das crianças, com os quais passam muitas horas a correr e a apanharem-se uns aos outros: “Os monachicchi são seres pequeníssimos, alegres, leves: correm velozes de um lado para o outro e o seu maior prazer é pregar todas as espécies de partidas aos cristãos. Fazem cócegas nos pés dos homens adormecidos, puxam os lençóis da cama, atiram areia aos olhos, derramam copos cheios de vinho, … fazem coalhar o leite, beliscam, puxam os cabelos, picam e assobiam como mosquitos” (P. 136). Os monachicchi correm sempre, como todas as crianças.
As corridas contínuas das crianças são a característica que todos os países do mundo têm em comum. Se têm de ir da casa até à loja, não caminham: correm. Nos países onde as crianças são muitas, muitíssimas, a corrida contínua das crianças enche o panorama, torna-se o ambiente em que se desenrolam todos os acontecimentos dos adultos. Quando cheguei, pela primeira vez, a África, o que mais me sensibilizou não foi a pobreza, mas os rios de crianças que correm velozes e juntos ao longo das ruas, muitos para irem à escola – uma das belas faces da pobreza é a pressa das crianças para chegar cedo à escola. Um maravilhoso ícone do desejo de vida e de futuro que ainda existe naqueles países e que nós, europeus, perdemos – quando Corneille, um meu amigo congolês, me veio visitar depois de algum tempo a circular pela cidade me disse, triste: ‘mas, onde estão as crianças?’. Enquanto as crianças correrem livres e selvagens pelas ruas, enquanto correr pelo menos uma, ainda se pode esperar, porque aquela corrida alimenta os sonhos grandes. O número das crianças é sempre um indicador de coisas determinantes. Medem a pobreza e a miséria, ontem e, infelizmente, ainda hoje; mas indicam muitas outras coisas bonitas. O verdadeiro sinal que dirá se e quando, na Europa, começará uma primavera civil, serão as nuvens de crianças que correrão de novo na companhia dos… monachicchi.
As crianças de Gagliano são também habituais frequentadoras da casa de Carlo: “Se não tinha a companhia dos senhores, tinha a das crianças. Havia muitíssimas, de todas as idades, e costumavam bater à minha porta a qualquer hora do dia. Ao princípio, o que as atraía era Barone [o seu cão], este ser infantil e maravilhoso. Depois, a minha pintura tinha-os impressionado e não paravam de se espantar com as imagens que apareciam, como por encanto, na tela, e que eram precisamente as casas, as colinas e os rostos dos camponeses”. Levi refere-se àquelas crianças com uma palavra lindíssima – ‘amigos’: “Tinham-se tornado minhas amigas: entravam livremente em casa, posavam para os meus quadros, orgulhosas por se verem pintadas… Havia sempre uma vintena e todas consideravam máxima honra levar-me o estojo, o cavalete, a tela: Discutiam e lutavam por esta honra” (p. 192). Portanto, tinham-se tornado suas amigas…
Um dos espetáculos espirituais mais bonitos da terra é a amizade entre os adultos e as crianças. Hoje, habituámo-nos a falar quase unicamente dos perigos, dos riscos e dos abusos nas relações entre adultos e crianças e, infelizmente, temos de o fazer. Mas não deveríamos esquecer que o mundo vive e renasce em cada dia, graças à amizade entre as professoras e os seus meninos e meninas, entre pais e filhos e filhas, entre treinadores e os seus alunos e alunas, entre educadores e os frequentadores dos oratórios, das paróquias, dos acampamentos, das viagens de autocarro … A vida, a civilização e a fé transmitem-se nestas relações assimétricas, embora maravilhosas e necessárias. Apesar de Aristóteles e muitos filósofos negarem que pudesse haver amizade entre adultos e crianças – pela demasiada assimetria –, estou, no entanto, convencido de que existe entre eles algo de muito semelhante ao que chamamos amizade, porque pode existir uma verdadeira reciprocidade, o verdadeiro ingrediente essencial de qualquer amizade. O primeiro mestre desta amizade, especial e delicadíssima, foi Jesus, que também nos deu a sua amizade com as crianças. Existem nos evangelhos demasiadas palavras maravilhosas sobre crianças para não pensar que Jesus fosse verdadeiramente amigo das crianças (porque frequentava as casas onde tinha aprendido a conhecer e a amar mulheres e crianças), vivia com elas uma misteriosa reciprocidade. Caso contrário, não teria podido dizer: “Em verdade vos digo: Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu” (Mateus 18, 3). E acrescentava: “Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu” (18, 10). Os seus anjos no Céu … isto é, os primos dos monachicchi.
No evangelho há uma teologia e uma pedagogia da infância que ainda esperam ser levadas a sério. Sobre as crianças, a mensagem de Jesus é verdadeiramente forte e revolucionária: as crianças são mestras na fé, são para elas que os adultos devem olhar para se converterem. E talvez, sobre a terra, não haja nada mais bonito do que uma criança com fé. Após quase dois mil anos desta pedagogia evangélica, no plano civil, as sociedades fizeram muitos progressos no reconhecimento e respeito para com as crianças, mas é no plano económico e comercial onde estamos a progredir pouco – e cada vez menos –, onde estamos a perder algumas conquistas do século passado. Deixamo-las mais expostas, sozinhas, ao império da publicidade, aos comerciantes com lucro fácil, às técnicas de marketing, hoje cada vez mais invasivas através dos smartphones que se tornaram o seu ambiente natural – estou convencido de que teremos de pedir rapidamente – e com muita veemência – uma moratória sobre a utilização das crianças na publicidade.
No Cristo, há também um episódio particularmente comovente com um deles: “Um rapaz de oito ou dez anos, Giovanni Fanelli … era o que mais se tinha entusiasmado com a pintura … Estava muitíssimo atento a tudo o que eu fazia: via-me a preparar a tela com a imprimação, esticá-la na moldura: estas operações, porque eu as fazia, pareciam-lhe tão essenciais à arte como o facto de pintar”. Depois, descreve-o; “Era uma criança tímida, corava facilmente; não teria ousado, por muito que o desejasse fazer, mostrar-me as suas obras. Avisado pelos outros, eu vi-as. Não eram as habituais pinturas infantis, nem imitações. Eram coisas informes, manchas de cor não privadas de encanto”. Depois, conclui: “Não sei se Giovanni Fanelli se tornou ou pudesse vir a tornar-se um pintor: mas é certo que nunca vi em ninguém a sua confiança numa revelação que devia vir só por si, do trabalho; a sua crença na repetição da técnica como numa fórmula mágica infalível ou como se se tratasse de um trabalho da terra que, lavrada e semeada, traz o seu fruto” (pp. 192-193). Não me parece – pelo menos, de acordo com a minha primeira pesquisa improvisada – que Giovanni Fanelli se tenha tornado um pintor; mas, qualquer trabalho que tenha feito em adulto, aquela experiência em casa de Carlo mudou-o parta sempre. Uma experiência artística verdadeira, sobretudo aos oito ou dez anos, imprime uma marca na alma, muda a perceção do mundo, dá um outro ponto de vista sobre a vida. Acrescenta uma quarta dimensão ao olhar, aumenta o espaço da imaginação e da criatividade – uma sociedade menos pan-mercantil do que a nossa, ao lado ou em vez da alternância ‘escola-trabalho’, teria inventado a alternância ‘escola-arte’, talvez bem mais essencial para crescer.
Por fim, Levi dá-nos outras palavras sobre a amizade com aquelas crianças camponesas: “Estes rapazes, … eram vivazes, inteligentes e tristes. Quase todos estavam vestidos com trapos mal remendados, com os velhos casacos dos irmãos mais velhos, com mangas muito grandes, arregaçadas nos pulsos: descalços ou com grandes sapatos rotos de homem… Todos vivos com uma vida precoce, que depois se desvaneceria com o passar dos anos na monótona prisão do tempo. Móveis e silenciosos, via-os aparecer à minha volta por todos os lados, cheios de lealdade mútua e de desejos não expressos… Eram meus amigos, mas cheios de pudor, timidez e desconfiança, habituados naturalmente ao silêncio e a esconder o seu pensamento; mergulhados naquele misterioso e fugaz mundo animal em que viviam, como pequenas cabras, rápidas e fugazes” (pp. 193-194).
Eram seus amigos, desembaraçados e fugazes, mas … com algumas características típicas das crianças amigas dos adultos, ontem e talvez ainda hoje: pudor, timidez, silêncio, tristeza e até desconfiança. Parece-me revê-los agora, naqueles encontros lindíssimos de Gagliano, talvez porque foram também os meus em criança. Na minha terra, fui amado e formado pela minha família, pela escola, pela paróquia; mas não menos por alguns amigos e amigas ‘adultos’ que, alegremente, se deixaram roubar a ‘arte de viver’.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 24/11/2024
“Vivia em Boscaccio, na Bassa, com o meu pai, a minha mãe e os meus onze irmãos. A minha mãe entregava-me, todas as manhãs, um cesto com pão, um saco com maçãs ou com castanhas doces, o meu pai punha-nos em fila na eira e obrigava-nos a dizer, em voz alta, o Pater Noster: depois, íamos com Deus e voltávamos ao pôr-do-sol. Os nossos campos não tinham fim e poderíamos correr um dia inteiro sem sair deles.”
Giovannino Guareschi, Mondo piccoloO encontro de Levi com as crianças revela-nos uma alma do escritor e uma dimensão essencial de qualquer civilização: a amizade entre adultos e crianças.
As meninas e os meninos são o maior património da humanidade. Não só porque são a primeira fonte de alegria das mulheres e das famílias ou porque são o sinal de que Deus não os esqueceu nem só porque são a única possibilidade de um bom futuro. As crianças são património do universo pelo seu mero estar no mundo. Em cada menino que nasce, renova-se a aliança de Eloim, volta a brilhar o arco-íris de Noé na terra que já não é a mesma após o nascimento de cada menino ou de cada menina, que pode ser o messias, o goel, o redentor da dor e das injustiças. O primeiro sinal – e o decisivo – de que uma civilização começou o seu declínio é a ausência de crianças das nossas cidades. O índice de natalidade vale mil vezes mais do que o PIB, porque podemos reduzir o PIB (talvez anulando a produção de armas e de jogos de azar) e viver bem ou melhor; mas, quando das nossas casas desaparecem as crianças, apenas podemos chorar ou rezar. Ao longo da via crucis, Jesus exprimiu, para as mulheres de Jerusalém, a sua profecia de desgraça com estas palavras tremendas: «Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram» (Lucas 23, 29). Uma bem-aventurança ao contrário – a ressurreição é também a realização da profecia do menino: o Emanuel de Isaías.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 17/11/2024
“Vão dizer-me: não concluo. Eu respondo: a inteligência não conclui nada: vê. Vê-se.”
Don Giuseppe De Luca, Intorno al ManzoniA democracia é uma destruição de presentes-obrigações para criar as condições para presentes-gratuidade. Aqueles que não existem no Cristo de Levi.
Os escritores – sobretudo os maiores –, primeiro, veem os seus personagens, as cenas, as paisagens, os diálogos, os espaços vazios; depois, escrevem-nos. Não se pode narrar se não se vê primeiro. Também nisto, o escritor se assemelha ao profeta bíblico que, antes de ouvir a palavra, vê-a: “Palavra que Isaías viu” (Is 2, 1), “Palavra que Amós viu” (Am 1,1). “E chega a véspera do Natal… Os camponeses e as mulheres circulavam, levando presentes às casas dos senhores; aqui é um costume antigo que os pobres homenageiem os ricos e levem presentes, que são recebidos como algo devido, com suficiência e não retribuídos” (Cristo parou em Eboli, p. 181).
[fulltext] =>Aqui, Carlo Levi mostra-nos uma prática do presentear diferente das teorias do presentear que algumas décadas antes tinham sido elaboradas pelo antropólogo Marcel Mauss e pelos seus colegas. Enquanto aqueles estudiosos nos explicavam que o circuito dos presentes tem uma estrutura ternária feita de dar-aceitar-retribuir, Levi, por outro dado, falava-nos de um presente que era apenas obrigação: munus – diziam os romanos – ou regalo, que deriva de rei (rex, regis), isto é, as ofertas obrigatórias ao rei, aos senhores, aos superiores, à divindade. Na sociedade da Itália camponesa, descrita por Levi, os presentes-ofertas dos pobres não conheciam a reciprocidade: deviam ser feitos aos senhores e basta. O dar-aceitar-retribuir reduzia-se apenas ao dar; é verdade que, por vezes, os senhores não aceitavam os presentes, mas não para não serem obrigados a retribuir aos pobres (esta obrigação nunca existia); se não aceitavam era apenas porque não eram adequados e agradáveis: e isso era uma verdadeira desgraça. A obrigação dos camponeses era uma obrigação unilateral, sem retorno. O mundo pré-moderno não sabia o que era o presente-gratuidade: conhecia apenas os presentes, as obrigações, mas o dom gratuito não estava entre os instrumentos do homem e muito menos da mulher antiga. Levi sente o dever de violar aquela antiga liturgia que, como homem moderno e liberal, via apenas como legado feudal: “Também eu tive que receber, naquele dia, garrafas de azeite, de vinho, ovos e cestos de figos secos e os dadores admiravam-se de eu os não aceitar como um dízimo obrigatório, mas que me esquivasse a isso e, em troca, dessealgum presente, como podia. Que estranho senhor era eu, então, se não queria para mim a tradicional inversão da fábula dos reis Magos e se podia entrar na minha casa de mãos vazias?” (pp. 181-182). É bonita a referência ‘à inversão’ da tradição (‘fábula’) dos Magos: aqueles senhores do evangelho de Mateus levavam presentes para uma mãe e um menino pobres, enquanto os senhores cristãos de Gagliano recebiam os presentes-ofertas dos pobres e das mulheres. As minhas avós, a minha mãe, o meu pai, não conheceram os presentes. Por vezes, comiam um pouco de frutos secos no Natal e na Epifania; mas os presentes como nós hoje os entendemos (gratuitos e livres) quase nunca existiam, nem pelos aniversários nem por outra coisa qualquer. Os presentes eram (quase) sempre vividos como destino, sem a experiência da liberdade. Em vez disso, havia as ofertas necessárias aos santos, nas missas, as regalias dos poderosos em momentos especiais para fortalecer as hierarquias.
Estas antigas práticas de presente-sem-gratuidade estavam entrelaçadas com uma ideia religiosa de sacrifício, que cresceu durante a Contrarreforma católica: os camponeses, as mulheres, os pobres, deviam sacrificar-se pela família, pela Igreja, por Deus; mas, pela outra parte, não havia ninguém que tivesse de se sacrificar por eles. Também o sacrifício a Deus era visto como um presente (regalo), como oferta a fazer ao mais poderoso dos poderosos, presentes que não libertaram os pobres e os ligaram ainda mais ao seu triste destino. Apesar de – sabemo-lo – os seres humanos serem maiores que o seu destino e dos mundos do só-obrigação, sempre floriram também os dons – e continuam a florir.
O caminho da democracia foi uma destruição criadora de presentes para poder começar a fazer dádivas, porque o dom é o outro nome da liberdade, não é o registo dos servos e dos escravos. E sempre que, nas nossas relações sociais e religiosas, voltam os presentes-obrigação, estamos regredindo para o mundo feudal.
Estes dons sem gratuidade estão presentes também na figura de Don Trajella, o pároco de Gagliano. Don Giuseppe Trajella da Tricarico é um ‘vencido’ do ciclo do Cristo. O primeiro encontro entre Carlo Levi e o arcipreste compõe uma das aguarelas mais bonitas do romance: “era um velho pequeno e magro, com uns óculos de arame num nariz pontiagudo…. De todo o seu aspeto exalava um ar cansado de miséria mal suportada; como as ruínas de um casebre incendiado, negro e cheio de ervas daninhas”. Em jovem, fora professor de teologia no seminário de Nápoles e no de Melfi, escritor, autor de biografias de santos, escultor e pintor. Foi mandado para Gagliano “como castigo” e, na vila não era estimado, onde se dizia “que andava sempre bêbado”. Agora, não era mais do “que um pobre padre perseguido e amargurado, uma ovelha negra e doente numa alcateia de lobos”. A desgraça “tinha-o atingido, tinha-o separado de tudo e tinha-o atirado, como um destroço, para aquela praia distante e inóspita. Ele deixara-se cair a pique, gostando amargamente de tornar a sua própria miséria ainda maior. Nunca mais tinha tocado num livro ou num pincel… Trajella odiava o mundo, porque o mundo o perseguia” (pp. 42-43). Também por isso, Levi tinha, para com este velho padre desventurado, olhos de pietas: Vê-o na sua desgraça, olha-o; a seu modo redime-o e salva-o com os seus olhos bons. Um outro companheiro de desventura, de um confinamento diferente e semelhante, um outro derrotado pela vida e por aquele tempo infeliz. E Levi sabe estar bem nesta companhia incómoda, na ‘corte dos milagres’ do seu Cristo, de que Carlo não é rei, mas simplesmente um deles.
Don Trajella é o protagonista da emocionante missa da noite de Natal de 1935. Os fiéis estavam na igreja, mas “não havia qualquer vestígio de Don Trajella”. Depois de meia hora de espera, Don Luigino, o chefe dos fascistas locais, pensou que o padre estivesse outra vez bêbado: manda um rapaz a procurá-lo e, por fim, o padre chega. No fim da missa, depois do ite missa est, Don Trajella sobe ao púlpito para fazer o seu sermão e, depois de alguns minutos de meias palavras e desculpas, finalmente fala: “Irmãos caríssimos…, tinha preparado um sermão que era realmente – seja-me permitido dizê-lo com toda a humildade – lindo: tinha-o escrito, para o ler, porque não tenho grande memória. Meti-o no bolso. E, agora, infelizmente, não o encontro; perdi-o. E não me recordo de nada. Como fazer?” (p. 183). Don Luigino não acredita e não contém a sua ira: “É um escândalo, é uma profanação da casa de Deus. Fascistas, comigo!”. Mas enquanto o padre está de joelhos, prostrado, acontece algo de extraordinário: “Milagre, milagre! Jesus escutou-me!… Tinha perdido o meu sermão e fez-me encontrar algo melhor”. Sob o crucifixo de madeira apareceu um pedaço de papel com uma carta impressa de um sargento de Gagliano, proveniente da guerra da Abissínia. E aquela carta torna-se o seu novo sermão sobre a guerra e sobre a paz, sublinhando que “esta guerra não é uma guerra, mas uma ação de paz”. No entanto, enquanto Don Trajella pregava, Do Luigino e os seus fascistas tinham começado a cantar na igreja “Faccetta nera” e, depois, “Giovinezza”. Mas Trajella, indiferente à confusão, continua, decidido, o seu sermão, põe de parte a carta do sargento e conclui assim. “O divino infante nasceu justamente a esta hora para trazer esta palavra de paz. Pax in terra hominibus… Mas vós sois malvados, sois pecadores, nunca vindes à igreja, não fazeis as devoções, cantais canções de ódio, blasfemais, não batizais os vossos filhos, não vos confessais, não comungais… E, por isso, a paz não está convosco. Pax in terra hominibus: vós não sabeis latim. Que quer dizer Pax in terra hominibus? Quer dizer que hoje, véspera de Natal, devíeis trazer um cabrito como presente, segundo o costume, ao vosso pastor. No entanto, não o trouxestes porque sois descrentes; e porque não sois bonae voluntatis, não tendes a vontade boa; assim, não tendes a paz e a bênção do Senhor. Por isso, pensai bem, trazei o cabrito ao vosso pároco, pagai as rendas das suas terras que lhe deveis desde o ano passado, se quereis que Deus vos olhe com misericórdia, mantenha a sua mão sobre as vossas cabeças, inspire a paz nos vossos corações, se quereis que a paz volte ao mundo e acabe a guerra” (p. 183). Um ‘cordeiro’ diferente que trará uma outra paz; outras ‘dívidas’ pagas por outros devedores.
Don Luigino, naquela mesma noite denunciou Don Trajella ao presidente do município e rapidamente foi transferido. Durante aquela mesma noite, Giulia, a sua empregada, revelou a Carlo os feitiços muito poderosos, “que podem deixar doente e morrer – Apenas se podem dizer no Natal, em enormíssimo segredo e com juramento de não o repetir a mais ninguém… Em todos os outros dias é pecado mortal” (p. 187). Também eu recordo bem Pierina, uma senhora idosa da minha terra, amiga de família, que só na noite de Natal podia revelar as fórmulas secretas para tirar a inveja (através de um ritual com azeite); nunca as aprendi; era demasiado pequeno para um juramento, mas aquele mundo mágico-religioso encantava-me e deixou-me como presente a sensação de mistério que flui na vida.
A economia, a miséria e a exploração dos camponeses são o horizonte do Cristo; por vezes, são o seu conteúdo: “Os camponeses eram pagos com salários de fome. Recordo, no dia da minha chegada, em plena colheita, as longas filas de mulheres, que subiam com um saco de trigo na cabeça, como condenadas do inferno, sob um sol feroz… O melhor e mais humano pensador desta terra, Giustino Fortunato, gostava de se autointitular ‘o político do nada’. Pensava em quantas vezes ao dia costumava ouvir esta contínua palavra, em todas as conversas dos camponeses. – Ninte – como dizem em Gagliano: ‘Que comeste?’ – Nada –. ‘Que esperas?’ – nada –. ‘Que se pode fazer?’ – Nada –. E no gesto da negação os olhos erguem-se para o céu” (p. 169). Um outro niilismo, diferente do dos filósofos. A escola pública e gratuita, os cuidados de saúde universais, o trabalho para todos, os professores de apoio foram e são os instrumentos e os lugares onde procurámos superar aquele ‘nada’. Hoje, outros ‘nada’ estão a ocupar as almas e os corações da nossa gente, de demasiados jovens. Um nada de paz, de esperança, de comunidade, de relações, de encontros, de Deus.
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No “Cristo parou em Eboli”, uma viagem na miséria camponesa que reflete sobre a autêntica aspiração do humano
por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 17/11/2024
“Vão dizer-me: não concluo. Eu respondo: a inteligência não conclui nada: vê. Vê-se.”
Don Giuseppe De Luca, Intorno al ManzoniA democracia é uma destruição de presentes-obrigações para criar as condições para presentes-gratuidade. Aqueles que não existem no Cristo de Levi.
Os escritores – sobretudo os maiores –, primeiro, veem os seus personagens, as cenas, as paisagens, os diálogos, os espaços vazios; depois, escrevem-nos. Não se pode narrar se não se vê primeiro. Também nisto, o escritor se assemelha ao profeta bíblico que, antes de ouvir a palavra, vê-a: “Palavra que Isaías viu” (Is 2, 1), “Palavra que Amós viu” (Am 1,1). “E chega a véspera do Natal… Os camponeses e as mulheres circulavam, levando presentes às casas dos senhores; aqui é um costume antigo que os pobres homenageiem os ricos e levem presentes, que são recebidos como algo devido, com suficiência e não retribuídos” (Cristo parou em Eboli, p. 181).
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 10/11/2024
“Quero agradecer por ter uma irmã.”
Mariangela Gualtieri, Ringraziare desidero
Dois episódios do Cristo de Carlo Levi – o encontro com a sua irmã e o menino salvo por N. Senhora de Viggiano – introduzem-nos num mundo que ainda tem muito para nos dizer.
O Cristo parou em Eboli é, antes de mais, um livro rico de episódios escritos com uma prosa lindíssima, capazes de nos dar excertos de uma humanidade tão bela quanto já perdida. Na primeira parte do romance, encontramos a visita de Luisa a Carlo Levi, seu irmão. Ela era uma célebre neuropsiquiatra infantil, conhecida pelos seus estudos pioneiros sobre a educação sexual das crianças. Luisa era quatro anos mais velha do que Carlo (tinha nascido em 1898), e o irmão dá-nos uma belíssima descrição sua em páginas entre as mais intensas do romance. À sua chegada, vê-a descer do automóvel do ‘taxista’ de Gagliano: “Os seus gestos claros, o seu vestido simples, o tom franco da sua voz, o sorriso aberto eram os que eu bem conhecia, que sempre lhe conheci: mas depois dos longuíssimos meses de solidão… a sua chegada era a de uma embaixadora de um outro Estado num país estrangeiro” (p. 78). É graças ao relato que Luisa faz ao seu irmão da sua chegada de comboio a Matera que temos, talvez, as páginas mais conhecidas do Cristo: “Havia uma infinidade de crianças… Vi crianças sentadas à porta das casas, as moscas que lhe pousavam nos olhos, e estes estavam imóveis… Mas a maioria deles tinha as barrigas inchadas, enormes, e rostos amarelos, sofrendo de malária” (p. 82). Uma descrição terrível que contrasta – e desta vez o contraste é bom – com a maravilhosa Matera de hoje, que se tornou uma das mais bonitas cidades europeias. A Itália também foi capaz destas metamorfoses civis que, no entanto, nunca nos devem fazer esquecer que a Basilicata e o Sul não são apenas o brilho de Matera.
[fulltext] =>O relato da chegada de Luisa a Gaggliano está cheio de emoções, sobretudo quando Carlo descreve como a cidade acolheu e viu aquela visita de sua irmã: “Até agora, eu era, para eles, alguém caído do céu: faltava-me alguma coisa: estava sozinho. Terem descoberto que também eu tinha laços de sangue sobre esta terra parecia que colmatasse alegremente, aos seus olhos, uma lacuna. Ver-me com uma irmã despertou um dos seus sentimentos mais profundos… Quando, ao entardecer, passeávamos pela única rua da cidade, minha irmã e eu, de braço dado, os camponeses olhavam-nos das portas, com alegria. As mulheres saudavam-nos e cobriam-nos de bênçãos: - Abençoado o ventre que vos trouxe… - Abençoados os seios que vos amamentaram! - … Uma esposa é uma coisa boa; mas uma irmã é muito mais! - Irmão com irmã, coração com coração” (p. 84-85). Palavras que recordam as das mulheres de Jerusalém, à passagem de Jesus (Lc 11, 27).
O mundo grego conhecia mais palavras para dizer o que nós hoje chamamos ‘amor’. Philadelphia e storgé eram utilizados para exprimir a forma especial de amor que é típica das relações familiares. Paulo, na Carta aos Romanos (12, 10) usa a rara palavra philostorgos – composta de philos (amigo) e storgé (afeição) – para dizer: “Amai-vos uns aos outros com afeto fraterno”. O amor entre irmãos e irmãs é uma das mais fortes e profundas formas de amor, diferente do amor conjugal e do amor para com os (e dos) pais. É feito de poucas palavras e de muita substância silenciosa, de liberdade, de brigas que, frequentemente, se recompõem um minuto após terem surgido. Por isso, o amor entre irmãs é também diferente do amor entre irmãos, mas o amor entre um irmão e uma irmã é também diferente, e talvez o mais delicado e mais bonito. Vive de graça, de doçura, de longuíssimos abraços, de beleza, de muita comoção. Porque, diferentemente dos abraços entre homens e mulheres, o afeto entre uma irmã e um irmão tem uma ternura típica e uma cumplicidade unida à delicadeza, ao respeito, à confidência, ao pudor. Certas grandes dores íntimas, nós, homens, dizemo-las mais facilmente – e, por vezes, apenas – a uma irmã. Não é um amor escolhido como é o da amizade (a philia); as irmãs (e os irmãos) estão connosco, encontramo-las dentro de casa antes de nós ou chegam depois, mas esta não-escolha, em vez de diminuir o afeto e a liberdade, aumentam-nos, é fermento de muitas outras liberdades procuradas e conquistadas. O dom de ter uma irmã muda e cresce juntamente connosco, os anos revelam-no, mostram todos os tesouros escondidos desde crianças. Poucas tristezas são maiores do que as sentidas por uma irmã gravemente doente, ou humilhada e ofendida, e a morte precoce de uma irmã é, porventura, juntamente com a tristeza pela morte dos filhos, a maior dor sobre a terra. Hoje, em tempo de famílias frágeis e breves e de demasiadas solidões, o amor das irmãs permanece uma âncora para as nossas felicidades. Fraternidade é uma palavra lindíssima, mas por si só não é suficiente para exprimir a emoção sentida pelas mulheres ao ver Carlo e Luisa de braço dado. Precisaríamos de uma palavra diferente, ‘irmão e irmã’ juntos, a fraternidade e a sororidade; uma palavra que não existe, mas que nunca deveríamos deixar de procurar e, quem sabe, um dia encontrar.
Também são particularmente delicadas as páginas sobre uma outra mulher, Margherita, que cuidava das tarefas domésticas de Carlo: “Uma senhora idosa, com um rosto cheio de bondade”, que “era considerada uma das mulheres mais inteligentes e cultas da cidade” – as páginas mais bonitas do Cristo são as que têm mulheres como protagonistas. Margherita tinha estudado “até à quinta classe e recordava perfeitamente tudo o que tinha aprendido. Quando vinha ao meu quarto, repetia-me os poemas dos seus velhos tempos de escola: a Expedição de Sapri, a Morte da Hermengarda. Repetia-as parada no meio do quarto, em pé, com os braços imóveis e caídos ao longo do corpo, recitando-as como cantilenas” (p. 165). Naquele mundo, a inteligência era algo diferente do que se tornou depois. Dizia também respeito à bondade, porque nenhuma pessoa que não fosse boa podia ser chamada inteligente. Algo de parecido ao que a Bíblia chamava sabedoria. Também a escola era importante para a inteligência – embora não essencial – porque a escola era pouca e, por isso, preciosa como o ouro. No mundo camponês, poder ir à escola, sobretudo para as meninas, era sempre dia de festa, um oásis de beleza num quotidiano difícil, feito de sacrifício e de dor. Para os camponeses de ontem, as palavras que escutavam da professora nas salas de aula, que reuniam vários níveis, era o lugar das novidades verdadeiras: a história com os seus povos misteriosos, a geografia com as suas capitais do mundo. Hoje, descobriam os assírios, amanhã os babilónios, no dia seguinte Madrid: todos habitantes do seu mundo mágico. Mas, sobretudo, gostavam das poesias. Não as compreendiam, mas aprendiam-nas de cor, como se aprendiam as orações, porque eram bonitas como as imagens de Nossa Senhora e dos santos, cheias de cores e cobertas de ouro. Aquelas crianças sabiam que os anos da escola eram muito poucos – dois ou talvez cinco – e, por isso, não perdiam uma palavra da professora. Para ter uma noção do que era a palavra na Bíblia, temos de voltar, com a memória, às escolas das crianças pobres de ontem ou a uma sala de aula africana de hoje: cada palavra era penhor da terra prometida. Em Margherita, que recitava as poesias, revi as da minha mãe, também ela apenas com a quinta classe, que, em cada dia 10 de agosto, nos recitava (e ainda recita) de cor e com a mesma pose de menina, a poesia ‘São Lourenço’ a que, nos dias especiais, se acrescentava “Breus” e “O cavalinho Storna” – a sua querida professora Anna Filippini gostava muito de Pascoli.
Um dia, Margherita contou a Carlo, “entre lágrimas”, a história do seu terceiro menino: “Este filho era o mais bonito de todos… Um dia de inverno, Margherita, tinha-o confiado a uma comadre e vizinha, que o tinha levado consigo para o campo, enquanto ia apanhar lenha. À tarde, a vizinha regressou sozinha e desesperada. Tinha deixado a criança, que mal caminhava, por poucos minutos, enquanto recolhia, no caminho do bosque, uns ramos: mas, quando regressou, o menino já lá não estava. Correu por toda a parte e nem rasto da criança… Quatro dias depois, de manhã, Margherita que vagava sozinha e desconsolada pelo campo, encontrou na curva de um caminho, uma mulher grande e bonita, com o rosto negro. Era N. Senhora de Viggiano. Disse-lhe: - Margherita, não chores. O menino está vivo. Está lá em baixo, no bosque, numa toca de lobos. Vai para casa, arranja companhia e encontrá-lo-ás. Margherita correu e, depois, acompanhada pelos camponeses e pelos guardas, chegou ao local indicado por Nossa Senhora. Na toca dos lobos, no meio da neve, jazia o seu filho, dormindo tranquilamente, todo rosado e quentinho, no meio daquele frio. A mãe acordou-o e abraçou-o. Todos choravam, até os guardas. O menino contou que tinha vindo uma senhora com o rosto negro e que, durante quatro dias, o teve consigo e lhe tinha dado leite e ali, naquela toca, o tinha mantido quente” (pp. 165-1266). Depois, a criança viria a morrer alguns anos mais tarde, caindo de uma escada, mas o leite que tinha recebido de N. Senhora de Viggiano tornara-o especial para sempre. Hoje, nós, às mulheres ‘grandes e bonitas, com o rosto negro’ que encontramos ao longo dos nossos caminhos, fechamos as portas, rejeitamo-las, não acreditamos nas suas histórias de vida. Mas quem sabe quantos meninos, nas nossas ‘tocas de lobos’ continuam a ser ‘amamentados’ por ‘N. Senhora de Viggiano’ e não morrem?!.
No mundo descrito por Levi, as mulheres eram as primeiras administradoras do sagrado, sempre entrelaçado com o mágico. Era uma gestão partilhada entre muitas pessoas. No mundo protestante, o sagrado popular foi combatido; no católico institucional foi concentrado nos padres, num monopólio masculino. No mundo camponês católico, no entanto, permaneceu feminino, plural e popular – portanto, selvagem e indomável – e sobreviveu; entrelaçado com a magia, mas vivo. Naquele campo mestiço, a fé encontrou um terreno fértil, a humildade natural alimentou o húmus cristão. Se o cristianismo, depois desta noite escura, ainda tiver uma nova época, essa será anunciada por uma aurora popular, camponesa, feminina, espúria. Nem o cristianismo dos teólogos nem o cristianismo do templo serão o jardim onde a pedra ainda poderá rolar.
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As figuras de mulheres no grande romance que revelou o sul camponês mostram os segredos de relações afetivas e de memória religiosa
por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 10/11/2024
“Quero agradecer por ter uma irmã.”
Mariangela Gualtieri, Ringraziare desidero
Dois episódios do Cristo de Carlo Levi – o encontro com a sua irmã e o menino salvo por N. Senhora de Viggiano – introduzem-nos num mundo que ainda tem muito para nos dizer.
O Cristo parou em Eboli é, antes de mais, um livro rico de episódios escritos com uma prosa lindíssima, capazes de nos dar excertos de uma humanidade tão bela quanto já perdida. Na primeira parte do romance, encontramos a visita de Luisa a Carlo Levi, seu irmão. Ela era uma célebre neuropsiquiatra infantil, conhecida pelos seus estudos pioneiros sobre a educação sexual das crianças. Luisa era quatro anos mais velha do que Carlo (tinha nascido em 1898), e o irmão dá-nos uma belíssima descrição sua em páginas entre as mais intensas do romance. À sua chegada, vê-a descer do automóvel do ‘taxista’ de Gagliano: “Os seus gestos claros, o seu vestido simples, o tom franco da sua voz, o sorriso aberto eram os que eu bem conhecia, que sempre lhe conheci: mas depois dos longuíssimos meses de solidão… a sua chegada era a de uma embaixadora de um outro Estado num país estrangeiro” (p. 78). É graças ao relato que Luisa faz ao seu irmão da sua chegada de comboio a Matera que temos, talvez, as páginas mais conhecidas do Cristo: “Havia uma infinidade de crianças… Vi crianças sentadas à porta das casas, as moscas que lhe pousavam nos olhos, e estes estavam imóveis… Mas a maioria deles tinha as barrigas inchadas, enormes, e rostos amarelos, sofrendo de malária” (p. 82). Uma descrição terrível que contrasta – e desta vez o contraste é bom – com a maravilhosa Matera de hoje, que se tornou uma das mais bonitas cidades europeias. A Itália também foi capaz destas metamorfoses civis que, no entanto, nunca nos devem fazer esquecer que a Basilicata e o Sul não são apenas o brilho de Matera.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 03/11/2024
“Das experiências de confinamento de um outro antifascista, Levi, nasceu ‘Cristo parou em Eboli’, que quer ser e é a obra de um homem de letras, mas a quem todos nós devemos algo mais do que uma simples sugestão literária.”
Ernesto de Martino, A terra do remorso, 1961, p. 28
Com o Cristo parou em Eboli, Carlo Levi revela-nos a alma do povo de Lucânia e introduz-nos na sua religiosidade, talvez mais cristã do que Levi imaginava.
Cristo parou em Eboli é parte da consciência da segunda metade do século XX italiano e europeu. Carlo Levi e Ignazio Silone mostraram-nos uma alma popular da Itália do Sul, camponesa e pobre, muito mais complexa e rica do que a tinham descrito os primeiros historiadores modernos e iluministas, para quem aqueles camponeses italianos eram simplesmente ‘pagãos’, muito semelhantes – se não idênticos – aos habitantes pré-cristãos da Magna Grécia; como se o cristianismo nunca tivesse passado por aquelas terras rurais do Sul que, pela pouca ou inexistente cultura cristã, já tinham sido definidas pelos jesuítas do século XVII, como as ‘Índias de Itália’. Cristo não só não tinha parado apenas em Eboli como nunca tinha saído das muralhas aurelianas de Roma, dos seminários e dos tratados de teologia.
[fulltext] =>Cristo parou em Eboli está situado entre Grassano e Aliano (chamado Gagliano no libro), duas terras na Província de Matera. O tema religioso, nas suas relações com a magia, é um elemento essencial do romance: “No outro mundo dos camponeses, onde não se entra sem uma chave de magia” (Cristo parou em Eboli, Einaudi, 1947, p. 20). Neste verão, passei alguns dias naquelas duas terras, para respirar o seu espírito e ali, entre leituras e uma peregrinação a pé até N. Senhora de Viggiano, decidi escrever estes poucos artigos sobre o Cristo de Carlo Levi. A presença de Levi está ainda bem viva naquelas terras, revelando-nos a capacidade sublime que a literatura tem de mudar a história e a geografia dos lugares ao mesmo tempo que revela a sua alma profunda. O mundo muda em cada dia enquanto tentamos descrevê-lo.
O Cristo de Levi é muitas coisas. À primeira vista, é um romance autobiográfico, uma espécie de diário antropológico e social, escrito entre 1943 e 1944, em Florença, que descreve o período de confinamento em Lucânia (1935-1936) do antifascista Carlo Levi, pintor, médico, ativista político e escritor. O romance também é a denúncia da condição desumana dos habitantes e das crianças desnutridas e maláricas de Matera. Mas as suas páginas mais bonitas são outras. São as descrições dos sentimentos daquela pobre gente, dos seus muitos medos, das mesquinhezes morais de todos os fascismos e de todas as censuras, do sentido religioso e mágico de um mundo popular e camponês do qual sobrevive uma verdadeira e viva recordação. Mas o Cristo é, sobretudo, um livro escrito com uma prosa maravilhosa. Levi era um pintor e, também quando escreve, pinta; usa a caneta para desenhar paisagens e pequenos pormenores, rostos de homens, de mulheres, de crianças, de pobres.
‘Cristo’ não é apenas a primeira palavra de um dos títulos mais geniais da história da literatura; é também um dos protagonistas centrais do romance, protagonista na sua ausência: “Nós não somos cristãos – dizem eles – Cristo parou em Eboli. Cristão significa, na sua linguagem, homem… Nós não somos cristãos, não somos considerados homens, mas animais, animais de carga e até menos do que animais”. E, depois, especifica: “Mas a frase tem um sentido muito mais profundo que, como sempre, em modos simbólicos, é o literal. Cristo parou realmente em Eboli, onde a estrada e o comboio deixam a costa de Salermo e o mar para entrarem nas terras de Lucânia. Cristo nunca chegou aqui” (pp. 9-10).
Para Levi, Cristo e a sua fé diferente não se encontram naquelas terras, não desceram até ali; em vez deles, havia a magia, a feitiçaria, os monachicchi (os espíritos travessos das crianças que morreram sem batismo), os mortos: “Para o velho, os ossos, os mortos, os animais e os diabos eram coisas familiares, ligadas, como estão, aqui, para todos, à simples vida quotidiana – A terra é feita de ossos dos mortos – dizia-me na sua gíria obscura, borbulhando como uma água subterrânea que jorra de repente de entre as pedras” (p. 67). Também existiam alguns santos e a N. Senhora de Viggiano que, no entanto, tinham muito pouco ou nada de cristão para Levi: “N. Senhora de Viggiano era, aqui, a feroz, a impiedosa, a sombria deusa arcaica da terra” (p. 113).
A visão que Levi nos dá dos camponeses de Basilicata é semelhante – mas também diferente – da de Ernesto De Martino, surgida dos seus estudos etno-antropológicos de Lucânia e do Sul, realizados mais ou menos nos mesmos anos de Levi. Para De Martino, entre religião católica popular e magia realizou-se uma mútua contaminação, embora o elemento dominante permanecesse a magia, que era muito mais enraizada, popular, generalizada do que a fé cristã que chegava ao Sul vinda do exterior, do alto e falando uma língua incompreensível. Por isso, De Martino estava convencido que algum elemento mágico fosse intrínseco ao próprio catolicismo: “Do exorcismo extra canónico de feiticeiros e bruxas passa-se aos exorcismos do missal (bênção da água, do sal, da oração contra satanás e outros espíritos malignos no fim da missa, etc.), do pontifical, do ritual romano …, das medalhas de S. Bento e, sobretudo, dos exorcismos” (Sul e Magia, 1959, p.. 120). Para De Martino, laico e comunista, diversamente de Levi, algo de Cristo e do cristianismo tinha chegado para lá de Eboli, formando uma parte, talvez não a mais importante, da religião mestiça daquele povo. Ainda mais longe do que Levi se tinha lançado, naqueles mesmos anos, Don Giuseppe de Luca, entre os maiores intelectuais do século XX e historiador da piedade popular, que nos descreveu uma fé do povo católico certamente mestiça, mas também cristã, embora fosse um cristianismo diferente do dos catecismos (Introdução à história da piedade, 1951). Também para De Luca, a piedade do povo do Sul e camponês era uma mistura de cristianismo e de outras coisas. Cristianismo misturado, impuro, contaminado, mas sempre cristianismo, não menos verdadeiro do que o dos teólogos da Contrarreforma.
No mundo descrito por Levi, não muito diferente do dos meus avós, havia os espíritos, os santos, muitíssimos mortos; tudo estava envolvido por uma certa atmosfera espiritual mais negativa e assustadora do que positiva e tranquilizadora; uma presença sobrenatural constante, feita de elementos arcaicos, de muita magia e de algum enxerto cristão absorvido do antigo húmus animista. Não o podemos negar. A Europa cristã, a Christianitas medieval e pré-moderna foi, de facto, fruto, sobretudo, da imaginação dos teólogos e dos eclesiásticos que confundiam a fé das elites urbanas e das famílias aristocráticas com a de todo o povo cristão. Na realidade, nos campos, nas montanhas, os pobres e os analfabetos viveram numa espera do messias muito semelhante à do povo bíblico, que ainda continua. No entanto, apesar de tudo isto, Cristo passou para lá de Eboli, chegou junto daqueles povos camponeses e mágicos, que o encontraram verdadeiramente nas orações latinas reescritas no dialeto, nas imagens dos santos, banhadas pelas lágrimas, nas pregações dos missionários itinerantes e até mesmo naquela pregação bizarra de Don Trajella na véspera do Natal. O cristianismo não foi a massa da fé do nosso povo, mas um grão pequeníssimo do seu fermento a levedou e continua a levedar.
A religião cristã parou em Eboli – ou muito antes –, mas Cristo não: Ele desceu até à Basilicata e à Sicília; misturou-se e cobriu-se com muitas outras coisas para poder penetrar mais docemente na vida daquela gente e lá permaneceu. Por isso, aquele povo camponês mágico encontrou verdadeiramente Cristo, um Cristo popular, em dialeto, criança, revestido com roupas tradicionais e folclóricas; mas Cristo estava ali, em Gagliano, nos amores e, sobretudo, «nas dores dos pobres, dos homens e, sobretudo, das mulheres, para quem os abraços e os beijos nas imagens dos santos e de Nossa Senhora eram os poucos momentos de ternura e de beleza num mundo que, para eles, era quase sempre de servidão. Mulheres analfabetas, um pouco cristãs e um pouco bruxas, todas lindíssimas, algumas magistralmente descritas também no Cristo de Levi; mulheres do povo, com a mesma fé dos pastores do presépio, da mulher sirofenícia e da mulher hemorrágica, de Madalena, de Marta, de Maria. Fés teologicamente imperfeitas, populares, feitas de lágrimas, de carne e de corpos, mas verdadeiras.
Carlo Levi não viu esta pietas cristã em Lucânia. Não a viu porque não a procurou. Não lhe interessava. Para isso, temos de ler De Luca. Mas Levi encontrou algo, e não menos interessante. A pérola do Cristo de Levi é o olhar do seu autor. Um olhar bom e nunca crítico sobre a vida dos camponeses que tinha encontrado. Apesar de ser filho de um outro mundo (o da ciência) e parte de um outro universo religioso (era laico e de família hebraica rica de Turim), Levi não exprime juízos de valor sobre a condição moral dos seus protagonistas: regista as suas paixões, os seus gestos, as suas fés, as suas grandes dores desesperadas, mas nunca os julga. Não julga a sua empregada, Giulia, que tinha tido 17 filhos de outros tantos homens, nem os exorcismos das outras ‘bruxas’, nem sequer Don Trajella, pároco confinado em Gagliano, bêbado e avarento. Na verdade, aqui e ali, até exprime palavras positivas sobre estes métodos mágicos de ‘gestão’ das doenças e do mal-estar da vida, revelando até um certo cepticismo nas relações da ciência positivista do seu tempo que tratava todo o conhecimento popular como superstição a eliminar: “A razão e a ciência podem assumir o mesmo carácter mágico da vulgar magia… Por isso, eu respeitava o abracadabra, honrava a sua antiguidade e a sua obscura, misteriosa simplicidade, e preferia ser seu aliado a ser seu inimigo”. Também porque, acrescentava Levi: “A maior parte das receitas bastaria para curar os enfermos se, sem serem aviadas, fossem dependuradas do pescoço com um cordel, como abracadabra” (p. 215). Portanto, respeito e honra; certamente não se entra no mundo camponês ‘sem uma chave de magia’; mas também não se entra no seu mistério sem ‘os respeitar e os honrar’ – ontem e hoje.
Levi escreveu páginas sobre camponeses que ainda nos comovem, porque os honrou e respeitou, porque deixou a sua confortável condição burguesa e desceu para debaixo da mesa do homem rico, na companhia de Lázaro. E, dali, de baixo, viu outros horizontes. Neste exercício ético e espiritual, o seu estatuto de confinado ajudou-o, aquela sua pobreza política e civil deu-lhe uma autêntica fraternidade com a pobreza natural dos camponeses. E, deste encontro entre pessoas diferentes, tornadas iguais pela desventura, nasceu a obra-prima.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 03/11/2024
“Das experiências de confinamento de um outro antifascista, Levi, nasceu ‘Cristo parou em Eboli’, que quer ser e é a obra de um homem de letras, mas a quem todos nós devemos algo mais do que uma simples sugestão literária.”
Ernesto de Martino, A terra do remorso, 1961, p. 28
Com o Cristo parou em Eboli, Carlo Levi revela-nos a alma do povo de Lucânia e introduz-nos na sua religiosidade, talvez mais cristã do que Levi imaginava.
Cristo parou em Eboli é parte da consciência da segunda metade do século XX italiano e europeu. Carlo Levi e Ignazio Silone mostraram-nos uma alma popular da Itália do Sul, camponesa e pobre, muito mais complexa e rica do que a tinham descrito os primeiros historiadores modernos e iluministas, para quem aqueles camponeses italianos eram simplesmente ‘pagãos’, muito semelhantes – se não idênticos – aos habitantes pré-cristãos da Magna Grécia; como se o cristianismo nunca tivesse passado por aquelas terras rurais do Sul que, pela pouca ou inexistente cultura cristã, já tinham sido definidas pelos jesuítas do século XVII, como as ‘Índias de Itália’. Cristo não só não tinha parado apenas em Eboli como nunca tinha saído das muralhas aurelianas de Roma, dos seminários e dos tratados de teologia.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 27/10/2024
“São verdadeiramente preciosos os dons que a vida nos faz; preciosos e estranhos, responde Marta. Quem quer gozá-los, quem se afadiga para os gozar e quem se angustia de manhã à noite para os gozar, de facto não os goza, mas queima-os e incinera-os rapidamente. Dons estranhos. Pelo contrário, quem os esquece e se esquece de si próprio e se consagra, perdida e verdadeiramente, a alguém ou a alguma coisa, recebe mil vezes mais o que dá e, no fim da vida, aqueles dons recebidos da natureza ainda estão florescentes nele, como grandes rosas de maio.”
Ignazio Silone, Vinho e Pão, 1937, p. 18
A aventura de um pobre cristão, de Ignazio Silone, é uma profunda reflexão sobre a natureza do poder e uma meditação sobre a fé como espera do Reino que não pode tardar.
Quem percorre, com atenção, os livros de Ignazio Silone e conhece a sua biografia, não pode deixar de reconhecer algo – por vezes muito – do seu autor em Berardo Viola (Fontamara), Pietro Spina (A semente sob a neve), Don Paolo Spada (Vinho e Pão), Luca Sabatini (O segredo de Luca) e, por fim, o papa Celestino V (A aventura de um pobre cristão). Porque, “se um escritor se coloca totalmente na obra (e que outra coisa poderia colocar?) a sua obra não pode deixar de constituir um único livro” (I. Silone, A aventura de um pobre cristão, Oscar Mondadori, ed. 2017, p. 6).
[fulltext] =>De facto, que outra coisa pode um escritor meter nas suas obras senão ‘todo ele próprio? Na realidade, um escritor, sobretudo se for grande (e Silone é), quando cria os personagens dos seus romances, parte certamente ‘dele próprio’ mas, depois, chega a outro lugar, a um lugar desconhecido onde ‘ele próprio’ já não existe ou dele há muito pouco. Porque os escritores e as escritoras revelam bem aquela frase, misteriosa e bonita, de Jacques Lacan: “O amor consiste em dar o que não se tem” (Seminario VIII, 1960-1961). Começam com o que têm, com toda a sua alma, mas, depois, amam-nos verdadeiramente quando nos dão o que não têm, quando os seus personagens se tornam maiores e mais libres do que os seus autores já grandes e grandíssimos, e começam a viver numa terra do ainda não, desconhecida, principalmente, dos seus criadores. Também nisto a literatura é criação, é o inédito verdadeiro, é alargamento do horizonte humano para o povoar com outros seres vivos que enriquecem e melhoram as histórias existenciais dos seus autores e a história de todos. Escreve-se também para tentar habitar – sem nunca a preencher – a distância sideral entre a realidade e os nossos desejos, entre a terra e o paraíso. ‘Sai’ não é apenas o grito que cada autor sussurra às suas criaturas: é ele, é ela, o primeiro destinatário daquele grito, para tentar ressurgir nos seus personagens – porque o único verdadeiro desejo é ressurgir.
Pietro da Morrone, papa Celestino V, o protagonista de A aventura de um pobre cristão (1968), é o último episódio do ‘ciclo dos vencidos’ de Silone. É também o último livro de Silone, escrito como obra teatral que encerra a sua reflexão de quarenta anos sobre a justiça social, os campónios, os pobres, a utopia, o evangelho, o cristianismo e sobre o seu Reino que ainda está por vir e que talvez venha realmente. O ambiente do livro, o mais explicitamente religioso de Silone, são a montanhas de Abruzzo dos finais do século XIII, onde eremitas e pequenas comunidades de cenobitas viviam num clima escatológico e apocalíptico, um ambiente espiritual feito de franciscanismo e da profecia de Gioacchino da Fiore, na espera “de uma terceira era do género humano, a era do Espírito, sem Igreja, sem Estado, sem obrigações, numa sociedade igualitária, sóbria, humilde e benigna, confiada à caridade espontânea dos homens” (p. 23). De facto, naquela época, não poucos franciscanos (entre estes o mais célebre foi Pietro Olivi, também conhecido pelas suas ideias económicas) viram em Francisco o profeta da nova Era do Espírito, anunciada por Gioacchino, da espera não vã e iminente do advento do Reino. Angelo Clareno, personagem presente no texto de Silone, foi um franciscano condenado e preso porque aderiu às ideias de Gioacchino.
Também o Pietro da Morrone, de A aventura de um pobre cristão, é figura de um cristianismo profético, de Francisco e de Gioacchino da Fiore juntos, espiritual e messiânico, ao qual o último Silone confia as suas esperanças de uma Igreja e de um mundo diferentes. Descrevendo a tentativa fracassada e incerta de frei Pietro de reconciliar a Igreja institucional (o papado) com a carismática, Silone anuncia-nos a sua ideia de Igreja e de vida boa: “O mito do Reino nunca desapareceu da Itália meridional, esta terra de eleição da utopia” (p. 23). Não podemos compreender a Itália meridional sem levar muito a sério esta sua alma utópica e messiânica; o Sul é também a espera de um outro mundo, uma profecia incompleta de uma outra economia e de uma outra sociedade (Tommaso Campanella), a esperança ainda viva no cumprimento de uma promessa. O Sul, todos os Suis do mundo, juntamente com as suas terras marginais são, antes de mais, uma espera coletiva de um ainda não, uma procura do Reino que há de vir, que nenhuma promessa de bens e lucros poderá jamais saciar verdadeiramente – é nesta sede e fome que reside a salvação não vã do Sul.
O livro está repleto de reflexões autobiográficas de Silone, especialmente do acontecimento determinante da sua vida, a adesão juvenil ao Partido comunista de que fora fundador, em 1921, que, mais tarde, se torna desilusão e, por fim, saída – Silone escreveu os seus romances também para elaborar o luto pela morte do grande sonho da sua juventude. Um acontecimento existencial crucial que, com o passar dos anos, se torna também uma ‘teoria’ sobre as dinâmicas dos movimentos ideais e ideológicos, de que falará em diversos escritos (Saída de segurança) e entrevistas (A aventura de um homem livre), ainda de grande interesse. “Os fundadores são, habitualmente, águias, os seguidores, geralmente, são galinhas” (p. 65). E ainda em A aventura, sobre isto, escrevia: “A experiência demonstra que a grande comunidade gera espontaneamente aspirações de poder, vontade de sucessos e de triunfos, nunca totalmente satisfeita… à medida que uma comunidade cresce torna-se, portanto, fatal que ela se pareça com a sociedade que a rodeia [e que contestava]. E então? Onde vai ser abençoada a salvação do rebanho?”. Por estas dinâmicas, “também Gioacchino da Fiore se demite de chefe da sua ordem. Também S. Francisco. Uma grande comunidade exige compromissos que, não digo um santo, mas um simples homem honesto não pode aceitar” (p. 69).
Temas que se tornarão o foco central no livro quando, uma vez eleito papa, Frei Pietro – que se tornou Celestino V – experimentará na sua alma e pele as dificuldades em salvar a sua consciência juntamente com o exercício do poder. O conflito interior será resolvido com as suas famosas demissões e a (provável) dantesca ‘grande recusa’. Depois de ter abdicado, disse: “Aprendi à minha custa que não é fácil ser papa e permanecer um bom cristão… O exercício do comando escraviza, começando por aqueles que o exercem” (p. 130). De facto, o livro é também uma profunda e linda reflexão sobre a natureza do poder e sobre a sua lógica: “o maldito ‘com boa intenção’; Meus filhos, não o esqueçais: há apenas o bem, puro e simples; não há ‘com boa intenção’… Servir-se do poder? Que ilusão perniciosa. É o poder que se serve de nós. O poder é um cavalo difícil de montar: vai por onde deve ir; ou melhor: vai por onde pode ir ou por onde é natural que vá… A aspiração de comandar, a obsessão do poder é, a todos os níveis, uma forma de loucura. Devora a alma, derruba-a, torna-a falsa. Mesmo que se aspire ao poder ‘com boa intenção’, sobretudo se se aspira ao poder ‘com boa intenção’” (pp. 157-158). O poder é um senhor que escraviza sobretudo quem manda, mesmo quem o procurou ‘com boa intenção’; é um soberano implacável que se alimenta, primeiro, dos chefes que encantou e só indiretamente dos seus súbditos. Esta é a maldição de qualquer poder desejado e obtido que, por esta sua dimensão, roça verdadeiramente o demoníaco: “A tentação do poder é a mais diabólica que possa ser estendida ao homem, pois Satanás até ousou propô-la a Cristo” (p. 158). Muito bonitas e proféticas são as páginas sobre uma outra ‘grande recusa’ do Celestino V de Silone, a de abençoar as armas: “Com o sinal da Cruz e os nomes da Trindade, pode-se abençoar o pão, a sopa, o azeite, a água, o vinho; se se quiser, até os instrumentos de trabalho, o arado, a enxada do camponês, a plaina do carpinteiro e assim por diante; mas não as armas. Se tiverdes absoluta necessidade de um rito propiciatório, procurai um que o faça em nome de Satanás. Foi ele que inventou as armas” (p. 123).
Mas A aventura de um pobre cristão é, sobretudo, uma reflexão sobre a natureza da fé e sobre a possibilidade de fazer do Evangelho a magna carta para uma sociedade nova, para um Reino diferente, aqui e agora, e não apenas um texto sagrado de uma religião como tantas outras. Daí nasce a pergunta crucial: o Reino de Cristo pode tornar-se algo de histórico ou a vida nesta terra é apenas a sala de espera do paraíso? Uma dimensão essencial do espírito evangélico deste Reino dos céus esperado é, para Silone, a simplicidade. Num diálogo, estabelecido em Nápoles, entre o já Celestino V e alguns reitores e pregadores da corte, o novo papa diz: “Antes de mais, devo dizer-vos: ao pregar, se vos é possível, procurai ser simples… A verdadeira simplicidade é uma conquista muito difícil”. E conclui com uma frase de grande beleza: “Toda a existência de um cristão – pode-se dizer – tem exatamente este objetivo: tornar-se simples” (P. 100). Uma intuição que é, ao mesmo tempo, totalmente humana e totalmente bíblica. Na Bíblia há uma alma profunda – a dos profetas – que vê o desenvolvimento da fé como uma diminuição, uma redução para uma progressiva simplicidade e essencialidade, como exercício da arte de esculpir. O caminho do povo com o seu Deus diferente teve início nas encostas do Sinai onde ‘havia apenas uma voz’, uma voz nua que, depois, se tornou tabernáculo, depois arca, tenda, por fim Templo e palácio de Salomão. Os profetas continuaram a repetir, de várias formas e com muita força, que aquele crescimento e aumento não tinham sido bons porque Israel deveria encontrar a salvação na redução e no caminho de regresso do palácio à única voz, que acontece graças ao exílio de Babilónia: “Talvez, para poder ressurgir, a Igreja tenha primeiro que apodrecer totalmente” (p. 159).
Mas também o bom desenvolvimento da vida humana é um primeiro crescimento que vai da infância à idade adulta, seguida de uma segunda parte de progressiva e crescente diminuição em direção ao essencial, aquela que da vida adulta leva à sua conclusão, onde haverá ‘apenas uma voz’ que pronunciará apenas o nosso nome nu. O dote que levaremos será a mansidão que tivermos aprendido durante esta boa diminuição, para nos tornarmos pequenos a ponto de conseguirmos passar pelo buraco da agulha do anjo da morte.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 27/10/2024
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Ignazio Silone, Vinho e Pão, 1937, p. 18
A aventura de um pobre cristão, de Ignazio Silone, é uma profunda reflexão sobre a natureza do poder e uma meditação sobre a fé como espera do Reino que não pode tardar.
Quem percorre, com atenção, os livros de Ignazio Silone e conhece a sua biografia, não pode deixar de reconhecer algo – por vezes muito – do seu autor em Berardo Viola (Fontamara), Pietro Spina (A semente sob a neve), Don Paolo Spada (Vinho e Pão), Luca Sabatini (O segredo de Luca) e, por fim, o papa Celestino V (A aventura de um pobre cristão). Porque, “se um escritor se coloca totalmente na obra (e que outra coisa poderia colocar?) a sua obra não pode deixar de constituir um único livro” (I. Silone, A aventura de um pobre cristão, Oscar Mondadori, ed. 2017, p. 6).
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 20/10/2024
“No papel que laboriosamente redigi, a tua mãe assinava com uma cruz. Já sabia que era a assinatura normal dos analfabetos; mas, mesmo que assim não fosse, como poderia imaginar uma assinatura mais adequada à tua mãe? Uma pequena cruz. Uma assinatura mais pessoal que aquela? Recordo que, no ano seguinte, no exame da catequese, don Serafino me pediu para lhe explicar o sinal da cruz. “Ele recorda-nos a paixão de nosso Senhor – respondi-lhe – e é também o modo de assinar dos infelizes”.
Ignazio Silone, O segredo de Luca
A escala social de Fontamara dá-nos uma reflexão sobre a comédia humana, sobre os pobres e sobre o Cristianismo, que culmina na conclusão da história de Berardo que morre mártir para derrotar o seu destino.
“E Michele, pacientemente, lhe explicou a nossa ideia: - Acima de todos, está Deus, senhor do céu. Todos sabem isto. Depois, está o príncipe Torlonia, senhor da terra. Depois, estão os guardas do príncipe Torlonia. Depois, estão os cães dos guardas do príncipe Torlonia. Depois, nada. Depois, nada. Depois, ainda nada. Depois, estão os campónios. E acabou” (1947, p. 34). Talvez seja este o trecho mais conhecido de Fontamara de Ignazio Silone, porque é a síntese do seu espírito e possui uma extraordinária força lírica e ética.
[fulltext] =>Aquele Deus imaginado, um degrau acima dos Torlonia, acabava, contra sua vontade, por legitimar e sacralizar aquela hierarquia tremenda, pondo o seu escabelo em cima de uma pirâmide mais alta e errada do que a dos faraós, sem sequer poder dizer: ‘não em meu nome’. O cristianismo tinha chegado há dezanove séculos à terra, mas tinha parado em Eboli e Avezzano, sem chegar às montanhas, aos campos, aos pobres, aos campónios que não sabiam que o Deus de Jesus não estava na mesma escala que os Torlonia. Os campónios não conheciam o Deus diferente do evangelho, porque muito velado e escondido pelas teologias da Contrarreforma e pelo latinório dos padres. No entanto, por vezes encontraram-no, sobretudo no fundo das suas dores, onde, por detrás dos rostos de Nossa Senhora, dos anjos e dos santos, os tinham visitado, tocado e consolado – não só o Espírito, mas toda a Trindade é ‘pai dos pobres’ porque, se o não fosse, também o Deus cristão seria um dos muitos ídolos devoradores dos miseráveis.
A religião é um grande tema do romance. No primeiro capítulo, Michele Zompa conta um seu sonho a Marietta e ao ‘forasteiro’: “Vi o papa discutir com [Jesus] Crucificado. O Crucificado dizia: para festejar esta paz [Tratado de Latrão] seria bom distribuir a terra de Fucino pelos campónios que a cultivavam e também aos pobres campónios de Fontamara… E o papa respondia: - Senhor, o príncipe Torlonia não vai querer. E o príncipe é um bom cristão. O Crucificado dizia: - para festejar esta paz seria bom dispensar os campónios de pagar os impostos. E o papa respondia: - Senhor, o governo não vai querer. E os governantes também são bons cristãos… Então, o papa propôs: - Senhor, vamos ao local. Talvez seja possível fazer alguma coisa pelos campónios que não desagrade nem ao príncipe Torlonia, nem ao governo, nem aos ricos”. E lá foram ambos para Marsica e “o papa sentiu-se angustiado no fundo do seu coração; tirou da bolsa uma nuvem de piolhos e atirou-a para as casas dos pobres, dizendo: - tomai, ó filhos caríssimos, tomai e coçai-vos” (p. 31-32). O pároco proibiu Michele de contar o seu sonho. O mundo católico deveria começar rapidamente um caminho de purificação da memória porque, se é verdade que com os seus carismas sociais fez muito para aliviar a sorte das vítimas e dos pobres, também é verdade que, para não desagradar ‘nem ao príncipe, nem ao governo, nem aos ricos’, muitas vezes a igreja associou o rosto do seu Deus ao do poder e dos fortes, mesmo pedindo-lhes para ajudar os pobres. O Cristianismo, moribundo no Ocidente, ainda poderá esperar uma primavera se for capaz de inverter a escala de Silone e anunciar um Cristo que se encontra abaixo dos campónios e que dali subverte, todos os dias, os planos dos fortes e dos grandes – ‘Derrubou os poderosos dos tronos e exaltou os humildes’.
Na escala social de Silone há, no entanto, um pormenor essencial. Em todos os lugares e em todos os tempos, não se passa, regular e diretamente, dos ‘cães dos guardas’ aos ‘campónios’. Não: no meio estão três espaços vazios. Depois dos cães estão três folhas em branco – ‘Depois, nada. Depois, nada. Depois, ainda nada’ –. Na escala para cima, a seguir ao chão onde estão os campónios, faltam três degraus, há um buraco três vezes mais largo do que a distância que separa os guardas dos seus cães. Importante e profética é a referência aos cães que hoje, na hierarquia da nossa moral perversa, se encontram bem acima dos migrantes deportados pelo nosso governo para a Albânia. Com o passar das décadas, o espaço entre os cães e os campónios cresceu muito; as páginas vazias passaram de três para dez, cem; multiplicaram-se e continuam a multiplicar-se. Naquela Itália de Silone, onde ainda era viva e ativa a piedade popular, os campónios abitavam nas mesmas terras de todos; eram visíveis, encontravam-se pelo caminho, eram parte da mesma gente. Daquela troca de olhares – ainda horizontais – podiam nascer movimentos de libertação, juntamente com escritores, artistas e poetas capazes de dar voz ao ‘ainda não’ do seu tempo. Hoje, já não vemos os campónios, mandamo-los para fora, o capitalismo escondeu-os da vista e do coração; esquecemos e ridicularizámos a pietas cristã no espaço de uma geração. Os campónios da terra são cada vez mais condenados e não olham para nós e já não nos preocupam “nas nossas casas quentes” (Primo Levi) – onde estão, se existirem, os novos Silone e Levi, capazes de cantar a dor infinita dos campónios? Este triplo salto de página marca o grande abismo que separa quem está acima de quem está abaixo porque, sem aquele vazio, quem está abaixo não estaria verdadeiramente abaixo e quem está acima não estaria verdadeiramente acima. Então, aquele vazio entre os cães e os campónios mostra que o abismo é intransponível; que, para Silone, já desiludido também com o comunismo, a miséria e o poder são para sempre: circulam as elites, o carrocel das classes sociais gira, mas, entre os campónios e os Torlonia, o sulco permanece intransponível. Até quando? Ou então – para o dizer com as últimas palavras de Fontamara –: “Depois de muitas penas e muitos lutos, muitas lágrimas e muitas chagas, muito sangue, muito ódio, muitas injustiças e muitos desesperos: o que fazer?” (p. 250).
A epopeia de Fontamara atinge o seu auge dramático na triste e maravilhosa conclusão da história de Berardo Viola. Berardo é um jovem forte, generoso, bom, com um sentido apurado de justiça social; também por isso, é a esperança de redenção dos seus compatriotas. Neto do último salteador de Fontamara (assassinado pelos piemonteses), Silone no-lo apresenta assim: “Tinha olhos bons, tinha conservado, em adulto, os olhos que tinha em criança” (p. 89) que é talvez a palavra mais bonita que se possa dizer de um adulto, se é verdade que o bom esforço de viver está quase inteiramente em chegar ao fim com algo dos olhos com que viemos. Berardo tinha herdado do pai um pedaço de terra; tinha-o vendido para arranjar dinheiro para emigrar para a América, “mas, antes de embarcar, uma nova lei suspendeu toda a emigração”. Por isso, permaneceu em Fontamara, sem terra e “como um cão sem trela, que não sabe o que fazer da liberdade e gira desesperado à volta do bem perdido”. Mas – acrescenta Silone – “como pode um homem da terra resignar-se à perda da terra?” (p. 84). Porque “entre a terra e o agricultor há uma história dura e séria… É uma espécie de sacramento”. Depois, acrescenta palavras sobre a terra entre as mais bonitas da nossa literatura, que só um camponês ainda pode compreender: “Não basta comprá-la para que a terra seja tua. Torna-se tua com o passar dos anos, com o cansaço, com o suor, com as lágrimas, com os suspiros. Se tens terra, nas noites de mau tempo não consegues dormir, porque não sabes o que está a acontecer à tua terra” (p. 85). Em vão, Berardo implora ao comprador da sua terra, don Circostanza, que lha devolva. Finalmente, consegue obter um pedaço de terra na montanha, entre as rochas, no “distrito das serpentes”. Trabalha-a duramente – “Ou a montanha me mata ou eu mato a montanha” (p. 87) – e semeia milho. Mas houve uma grande inundação, “a montanha desmoronou” (p. 88) e “um enorme rio de água levou o campinho de Berardo” (p. 88). E Silone pergunta: “Pode-se vencer o destino?” (p. 89), um destino que é o coprotagonista do romance. E, para tentar novamente desafiar o destino, Berardo parte para Roma à procura de trabalho.
Entre uma agência de emprego e outra, “sete dias depois de estar em Roma, não lhe restavam mais do que quatro liras” (p. 216). Depois de três dias de jejum, Berardo e o seu amigo (a voz narradora) deixam de sair do quarto, ficaram parados por causa da fome, deitados sobre a cama. Até serem presos pelos fascistas, por engano, confundidos com arruaceiros subversivos. Tinham chegado para trabalhar, acabam numa prisão – ontem e hoje. Mas é naquela prisão errada que Berardo vive a sua ressurreição. Diz ser “o desconhecido de sempre”, um homem procurado acusado de espalhar “a imprensa clandestina”, de incitar “os trabalhadores à greve, os agricultores à desobediência” (p. 223) e, com uma mentira, diz ao comissário: “o desconhecido de sempre sou eu” (p. 231). Naquele cárcere, Berardo consegue vencer o seu destino. Com um ato de sacrifício vicário carrega uma culpa que não tem e consegue chegar até ao fim, sem se retratar, apesar das duras torturas. Berardo escapa ao destino impresso na sua vida, desde a história do seu avô, dando a vida por uma fidelidade misteriosa aos seus ideais de justiça. O seu martírio laico redime Fontamara no auge da sua derrota. E, no fim de um livro, onde o grande vencedor fora o próprio destino, diz-nos: somos maiores do que o nosso destino.
Embora Silone não nos explique porque é que Berardo, sendo inocente, se incriminou, não é difícil ver nele uma imagem de Cristo e da sua paixão: “E se morro? – Serei o primeiro campónio que não morre por si, mas pelos outros”. As suas últimas palavras: “Será algo de novo. Um exemplo novo. O princípio de algo totalmente novo” (p. 238). Aquele algo de novo no tempo amadurecerá em Silone, até florescer a sua última obra-prima, A aventura de um pobre cristão (1968).
Cristo está ressurgindo, ainda hoje, na Líbia, na Albânia, nos barcos, em Gaza, no Congo, no Sudão, no Líbano. Nós não o sabemos, não o vemos, não o reconhecemos porque o procuramos nos sepulcros vazios e não nos lugares dos crucificados. “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?” foi o primeiro grito do Ressuscitado.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 20/10/2024
“No papel que laboriosamente redigi, a tua mãe assinava com uma cruz. Já sabia que era a assinatura normal dos analfabetos; mas, mesmo que assim não fosse, como poderia imaginar uma assinatura mais adequada à tua mãe? Uma pequena cruz. Uma assinatura mais pessoal que aquela? Recordo que, no ano seguinte, no exame da catequese, don Serafino me pediu para lhe explicar o sinal da cruz. “Ele recorda-nos a paixão de nosso Senhor – respondi-lhe – e é também o modo de assinar dos infelizes”.
Ignazio Silone, O segredo de Luca
A escala social de Fontamara dá-nos uma reflexão sobre a comédia humana, sobre os pobres e sobre o Cristianismo, que culmina na conclusão da história de Berardo que morre mártir para derrotar o seu destino.
“E Michele, pacientemente, lhe explicou a nossa ideia: - Acima de todos, está Deus, senhor do céu. Todos sabem isto. Depois, está o príncipe Torlonia, senhor da terra. Depois, estão os guardas do príncipe Torlonia. Depois, estão os cães dos guardas do príncipe Torlonia. Depois, nada. Depois, nada. Depois, ainda nada. Depois, estão os campónios. E acabou” (1947, p. 34). Talvez seja este o trecho mais conhecido de Fontamara de Ignazio Silone, porque é a síntese do seu espírito e possui uma extraordinária força lírica e ética.
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 13/10/2024
«Por ordem do Governador são proibidas todas as argumentações»
Ignazio Silone, Fontamara, p. 89Com Fontamara começa uma nova série através de algumas obras-primas da literatura, à procura de novas palavras para a economia e para o nosso tempo difícil.
Se nos bastasse a realidade, não teríamos necessidade da literatura. Somos infinitos – os romances encurtam a distância entre nós e a eternidade; somos desejo – os escritores aumentam as coisas desejáveis porque sonhar com os olhos fechados é demasiado pouco. A alegria alimenta-se também dos mundos criados pela literatura, a nossa justiça cresce enquanto nos indignamos ao ler um romance; aprendemos a pietas dos pais e dos amigos, mas também das fábulas e dos contos dos escritores. Não teríamos sido capazes de imaginar a terra prometida da democracia, da liberdade e dos direitos se não a tivéssemos encontrado nos mitos e nos romances, vislumbrada numa poesia. Conhecemos Deus porque a Bíblia no-lo ensinou através de histórias e as palavras humanas guardaram uma outra Palavra. Todas as fés acabarão no triste dia em que deixarmos de escrever histórias e de as contar.
[fulltext] =>“Ignazio Silone tem hoje a sua maturidade coroada e soberanamente fixada em obras de arte que são, ao mesmo tempo, o seu ‘cântico das criaturas’ e a sua visão apocalíptica da nova espiritualidade democrática… Pensamos fazer algo muito oportuno, oferecendo aqui, em apêndice ao nosso semanário, o seu primeiro romance que deu ao mundo internacional a sensação forte do sofrimento do povo italiano no regime fascista” (7 de março de 1945). Assim escrevia Ernesto Buonaiuti, fazendo a introdução da publicação dos primeiros capítulos de Fontamara, no primeiro número do seu semanário “Il Risveglio”. Buonaiuti, o grande e estimado professor de história do cristianismo em La Sapienza de Roma, está entre os doze académicos que não prestaram juramento pelo regime fascista, sacerdote excomungado pela igreja católica pelas suas teses modernistas – estamos ainda à espera da sua reabilitação, talvez em tempo do Jubileu.
Fontamara foi escrito por Ignazio Silone (pseudónimo de Secondino Tranquilli) nos primeiros meses de 1930, durante o seu exílio na Suíça. Primeiramente, foi publicado em alemão (Zurique, Oprecth & Helbing, abril de 1933, tradução de Nettie Sutro) a que se seguiu uma primeira edição em língua italiana (Zurique-Paris, novembro de 1933), reimpressa em Londres em 1943 (J. Cape, datada de 1933). A primeira edição, em Itália, chegou apenas em 1947, graças ao pequeno editor romano ‘Faro’ e, por fim, em 1949 com Mondadori. O seu sucesso internacional foi notável, mas, para ser editado em Itália, foi preciso esperar pela queda do fascismo.
Em 1930, Silone encontrava-se, há dois anos, na Suíça, entre Zurique e Davos, devido ao seu compromisso clandestino com o partido comunista que tinha ajudado a fundar no congresso de Livorno, em 1921. Ainda na sua estadia na Suíça, começaram as suas divergências com Togliatti, pelas suas posições anti estalinistas, a que se seguirá a sua expulsão do partido, em 1931. No sanatório, para tratar uma doença respiratória (aparentemente tuberculose), deprimido, angustiado pela situação do seu irmão Romolo, o único da família que, em 1915, se tinha salvo com ele dos escombros do terramoto de Pescina, que tinha sido preso pelo regime fascista, torturado e, depois, assassinado em 1932. Silone dedica Fontamara ao seu irmão e a Gabriela Seidenfeld, a sua companheira, conhecida em 1920, e de quem se estava separando sentimentalmente.
Portanto, Fontamara é um destilar de anos terríveis, o fruto de uma metamorfose muito dolorosa. Uma profundíssima crise existencial que gerou a obra-prima. Fontamara não é apenas um romance que revelou à Itália e ao mundo a alma profunda do mundo camponês meridional e também não é apenas um clássico do antifascismo. Fontamara é, sobretudo, uma obra-prima literária, um romance maravilhoso, uma das obras que talvez só a grande dor pode gerar. Silone – dirá mais tarde – encontrou a sua salvação na literatura, superou aquela noite negríssima tornando-se escritor – e que escritor! Há muitos modos para tentar se salvar dos buracos negros da vida; a literatura e a arte estão entre os mais poderosos e comuns, porque se sai do buraco aprendendo a voar.
Porém, para o compreender e aproveitá-lo, é preciso desenvolver alguns exercícios ético-espirituais essenciais. O primeiro é o mais difícil – talvez impossível – mas verdadeiramente necessário: tentar esquecer os nossos confortos, o culto dos bens, os ofícios e os incentivos, e dirigir-se, com a alma, ao mundo de Fontamara: “Primeiro vinha a sementeira; depois, a sulfatagem; depois, a colheita, a vindima. E depois? Recomeçar do princípio. A sementeira, a capina, a poda, a sulfatagem, a colheita, a vindima. Sempre a mesma canção, o mesmo refrão. Sempre. Os anos passavam, os anos acumulavam-se, os jovens tornavam-se velhos, os velhos morriam e semeava-se, sachava-se, sulfatava-se, colhia-se, vindimava-se. E depois? Novamente do princípio. Todos os anos como no anterior. Em cada estação, como na estação precedente. Cada geração, como na geração anterior” (1951, p. 9). É o reino de Sísifo, mas, diferentemente do Sísifo de A. Camus, o Sísifo de Silone não está feliz: “A quem olha Fontamara de longe, do Feudo de Fucino, a povoação … parece uma aldeia como tantas outras; mas, para quem aí nasce e cresce é o cosmos. Toda a história universal se desenrola ali: nascimentos, mortes, amores, ódios, invejas, lutas, desesperos” (p. 8). Na primeira edição de “Il Risveglio”, no fim deste parágrafo, Silone tinha acrescentado: “Ali, o espetáculo da vida é mais descarnado, mais visível e compreensível e nada de essencial aí falta”, uma frase que, depois, desaparece nas edições seguintes.
O segundo exercício da imaginação espiritual diz respeito ao mundo camponês. O de Silone, como o de Carlo Levi (que veremos), é um mundo que também eu conheci, roçando-o graças à relação com os meus avós, lavradores da terra de Ascoli. É muito provável – se não certo – que a minha geração seja a última herdeira moral de milénios de história camponesa, feita de cristianismo, de magia, de muitíssimas crianças vivas e mortas, de muito amor popular e de muitíssima dor de todos, sobretudo das mulheres. Aquele mundo, sempre igual nos seus traços essenciais, foi o mundo da minha infância. Era ainda menino, mas também eu vi o Sísifo camponês, pouco mito e todo carne. É parte essencial da minha alma, onde o guardo zelosamente. Fontamara é a minha aldeia.
Aquele era um mundo italiano, mas onde se falavam outras línguas: “´Não passe pela cabeça de ninguém que os fontamarenses falem o italiano… Para nós, a língua italiana é uma língua estrangeira, uma língua morta” (p. 15). Quando recordo ou sonho com os meus avós, para tentar entrar em sintonia com o seu coração, tenho de me sintonizar com o dialeto, porque só naquela língua podiam e podem dizer-me as palavras corretas e perfeitas, contar as histórias mais bonitas com uma eloquência e riqueza que se torna imediatamente falta de jeito e desconforto logo que temos de passar ao italiano (a italianização dos camponeses foi também violência): «No entanto, mesmo que a língua seja emprestada, o modo de contar – parece-me – é nosso. É uma arte fundamental. É a mesma aprendida em criança. Sentado na soleira da porta ou à lareira, nas longas noites de serão” (p. 16). Talvez também o meu amor pelas palavras tenha nascido ao ouvir as histórias das minhas tias ou as longuíssimas da ‘velha Catarina’ que ficava connosco, os irmãozinhos, nas longas noites de inverno. Esta série de artigos, que hoje começa, é, portanto, um contributo para a conservação da memória de um mundo que conheci e que está a acabar, juntamente com as suas histórias: quem sabe se os nossos filhos ainda serão capazes de compreender e de se comover com Silone e Levi?
Por fim, o terceiro exercício é semântico e diz respeito à palavra-chave de Fontamara: cafone (campónios). Entre parêntesis, Silone escreve: “(“Sei bem que o nome de ‘cafone’, na língua atual do meu país, tanto do campo como da cidade, é agora um termo ofensivo e de zombaria: mas utilizo-o neste livro na certeza de que, quando no meu país a dor deixar de ser vergonha, passará a ser um nome de respeito, e talvez até de honra)” (p. 10).
Entra-se em Fontamara se conseguimos alcançar agora o lugar de amanhã onde ‘a dor já não é vergonha’; Montemos aí a tenda e, com Silone, usemos o nome campónio como ‘nome de respeito e de honra’, E, assim, recusemos todas as ideologias meritocráticas que estão afastando esse lugar de amanhã, introduzindo todo os dias novos argumentos para convencer que o pobre deve envergonhar-se da sua pobreza porque é culpado da própria desventura e, enquanto nos convence desta mentira, o capitalismo livra-se de qualquer responsabilidade.
Fontamara não é um ‘burgo’, uma palavra entrada nos recônditos do nosso tempo banal que perdeu o contacto com a alma dos lugares verdadeiros. Em Fontamara “os camponeses não cantam … e muito menos (e compreende-se) indo para o trabalho. Em vez de cantar, blasfemam de boa vontade. Para exprimir uma grande emoção, alegria, raiva e até mesmo a devoção religiosa, blasfemam. Mas mesmo quando blasfemam, não têm muita imaginação e descarregam sempre em dois ou três santos que conhecem, amaldiçoam-nos sempre com os mesmos palavrões grosseiros" (p. 14). Não se entra no mundo dos pobres se se tem medo das blasfémias e das maldições porque são, frequentemente, palavras de amor paradoxais.
Em Fontamara, a economia é uma nota constante, declinada como terra, trabalho, obsessão do ‘pagar’, miséria, impostos, o poder. A injustiça social, central no romance, é também – e sobretudo – uma injustiça económica, a do latifúndio e do ‘empresário’, apoiado pelas instituições, pelos pequenos proprietários e pelo clero (Don Abbacchio). E chega até à morte de Berardo, nas páginas talvez mais intensas do romance.
Fontamara é uma história de resgate social falhado, de libertação não conseguida. Os campónios burlados pelo desvio do regato para levar água ao empresário continuam pobres e burlados, do princípio ao fim do romance. Fontamara parece uma eterna Sexta-Feira Santa, com alguns vislumbres de sábado, sem domingo. É nisto que se assemelha a muitos outros grandes romances, onde Fantine vende os seus dentes e morre sem ressuscitar, ou à Bíblia onde o êxodo e o exílio continuam para além do Mar Vermelho e depois do édito de Ciro, porque o arameu errante nunca deixou de vaguear. A única ressurreição que salva é a que começa no Gólgota. E, assim, quanto mais Silone nos conduz aos abismos da dor dos campónios, mais vislumbramos aí uma estranha beleza e uma luz luminosa – não conseguiremos aliviar os muitos ‘campónios’ das suas misérias enquanto não apreendermos a apreciar a beleza escondida na pobreza e a olhar os pobres com honra e respeito.
Por fim, o terceiro exercício é semântico e diz respeito à palavra-chave de Fontamara; campónio. Silone escreve, entre parêntesis: ”(Sei bem que o nome campónio, na linguagem corrente da minha região, quer do campo quer da cidade, é ainda um termo ofensivo e de zombaria; mas eu adoto-o neste livro na certeza de que, quando na minha região, a dor já não for mais vergonha, se tornará um nome de respeito, talvez até mesmo de honra)” (p. 10).
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por Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 13/10/2024
«Por ordem do Governador são proibidas todas as argumentações»
Ignazio Silone, Fontamara, p. 89Com Fontamara começa uma nova série através de algumas obras-primas da literatura, à procura de novas palavras para a economia e para o nosso tempo difícil.
Se nos bastasse a realidade, não teríamos necessidade da literatura. Somos infinitos – os romances encurtam a distância entre nós e a eternidade; somos desejo – os escritores aumentam as coisas desejáveis porque sonhar com os olhos fechados é demasiado pouco. A alegria alimenta-se também dos mundos criados pela literatura, a nossa justiça cresce enquanto nos indignamos ao ler um romance; aprendemos a pietas dos pais e dos amigos, mas também das fábulas e dos contos dos escritores. Não teríamos sido capazes de imaginar a terra prometida da democracia, da liberdade e dos direitos se não a tivéssemos encontrado nos mitos e nos romances, vislumbrada numa poesia. Conhecemos Deus porque a Bíblia no-lo ensinou através de histórias e as palavras humanas guardaram uma outra Palavra. Todas as fés acabarão no triste dia em que deixarmos de escrever histórias e de as contar.
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