stdClass Object ( [id] => 18425 [title] => A filha mais bonita da gratuidade [alias] => a-filha-mais-bonita-da-gratuidade [introtext] =>Raízes de futuro / 11 – Dois mundos errados: o País dos brinquedos e a Ilha das abelhas trabalhadoras.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 13/11/2022
"A criança é uma artista, é uma apaixonada pela vida. E ai de quem murmurar com os apaixonados contra o objeto do seu amor, ai de quem mostrar os aspetos menos bonitos e mais cruéis"
Vincenzina Battistelli, La moderna letteratura per l’infanzia, 1925
Termina a reflexão sobre Pinóquio e termina esta série de artigos. Com uma revelação sobre o facto que não basta uma aldeia para criar uma criança: é preciso todo o universo. E com um grande discurso sobre o trabalho dos garotos e sobre a reciprocidade.
Um dos muitos dons exclusivos da infância e da meninice é uma relacionalidade mais vasta do que a nossa. Os meninos, as meninas, os garotos são capazes de dialogar com os insetos, com os pássaros e com as árvores. É como se no pacote com que chegam à terra estivessem também um olhar e um ouvido diferentes e mais profundos para ver coisas e compreender linguagens que, depois, desaparecem quando se tornam grandes. São, talvez, os sons a as palavras de Adão, antes de Caim, vozes e imagens daquela terra prometida que vislumbrámos quando pequenos e que, depois, esquecemos, mas que, nalgumas noites, ainda sonhamos – e o sonho agrada-nos muito. Está aqui a raiz da verdadeira reciprocidade entre adultos e crianças. Elas têm algo a menos do que nós, mas também algo a mais que, se conseguirmos reconhecer, nos protegem do paternalismo errado e cria um dos espetáculos mais bonitos sob o sol: a fraternidade genuína entre grandes e pequenos. Francisco de Assis foi capaz de sentir esta fraternidade com todas as criaturas vivas porque, por um amor louco ao Evangelho, tinha conseguido, por graça, voltar a ser criança. Os amigos de Francisco gostam muito de Pinóquio porque reveem nele algo do “bobo de Deus”, daquela liberdade que só as crianças (naturais ou evangélicas) possuem.
[fulltext] =>Pinóquio fala com melros e pirilampos, grilos e peixes. Entre as suas experiências determinantes de reciprocidade estão as que teve com o pombo que o transporta às costas por mil quilómetros e com o atum que o salva no mar. O cão mastim Alidoro, salvo por Pinóquio quando corria o risco de se afogar, revela-lhe um segredo precioso: «Neste mundo, tudo o que é feito é devolvido». A reciprocidade é a lei de ouro fundamental da vida e é um cão a revelar-lha e, depois, a vivê-la quando, de facto, Pinóquio estava para ser frito na frigideira do pescador verde (cap. XXVIII): será Alidoro a «abocá-lo» e a salvá-lo. Pinóquio diz-nos que não basta uma aldeia para criar uma criança: é preciso todo o universo.
A sociedade onde Pinóquio nasceu era muito diferente da nossa. As famílias e a Igreja formavam crianças e adolescentes para uma ideia do mundo muito precisa. As regras educativas eram claras e partilhadas e, assim, Collodi podia ser transgressor, colocando-se do lado de Pinóquio que desobedecia e fugia de casa. Pelo contrário, quando hoje olhamos para os meninos e as meninas, damo-nos logo conta de que uma das suas pobrezas consiste na impossibilidade de desobedecer pela falta de regras partilhadas e claras para desafiar. Esta é a primeira experiência de muitos professores. Porém, se também aqui, conseguirmos ir para além desta primeira dimensão, podemos descobrir algo mais.Depois de ter tentado, em vão, nadar até Geppetto no meio do mar, Pinóquio chega, a nado, à Ilha das Abelhas Trabalhadoras (cap. XXIV): «As ruas formigavam de pessoas que corriam de um lado para o outro, fazendo as suas coisas: todos trabalhavam, todos tinham alguma coisa para fazer. Não se via ninguém ocioso ou vagabundo nem a procurá-lo com a lanterna». Não é um país industrial: é um país industrioso. Portanto, não uma imagem do capitalismo nascente, mas a de uma sociedade frenética, sem tempo livre, de um país sem ócio. O uso da metáfora das abelhas era muito comum para indicar uma boa sociedade. A “Fábula das abelhas”, do moralista francês Fénelon, descrevia um mundo de onde «o ócio e a preguiça foram banidos» e «o mérito é o único caminho que leva às posições mais altas» (Les Abeilles, finais do séc. XVII). Lendo este capítulo, não transparece a simpatia de Collodi-Pinóquio por esta sociedade apenas de trabalho e sem tempo livre – talvez tivesse mais simpatia pela “fábula das abelhas” de Mandeville e do seu louvor ao vício. Mas a crítica de Collodi não é dirigida à sociedade dos adultos: ele preocupa-se com a sociedade das crianças.
Pinóquio, chegado àquela ilha, exclama: «Entendi – este país não é para mim!». Na verdade, é um lugar muito parecido com o país dos brinquedos: no país dos brinquedos não há escola («as férias de verão começam no primeiro dia de janeiro e terminam no último dia de dezembro»; capítulo XXX), só brincadeira; no das abelhas trabalhadoras não há tempo livre, só trabalho. Dois mundos diferentes e errados. Não é verdade que os garotos não queiram trabalhar. Querem apenas “trabalhar” de vez em quando, à sua maneira e no seu mundo.
«Que queres ser quando fores grande?» - perguntou o meu amigo professor Matteo a um aluno do quinto ano. «Descansar», respondeu-lhe. Os nossos garotos estão sobrecarregados com “trabalho”: escola, trabalhos de casa, ginástica, música, dança, piscina, catequese…Uma gestão de tempo que deixa pouquíssimo espaço ao doce fazer nada que é essencial para as crianças. É nestes tempos livres, feito de longas horas passadas a brincar, a falar com um brinquedo ou um gato (um tempo que hoje deve ser libertado também dos smarthpones), que se desenvolve a fantasia, que crescem a criatividade e o desejo de coisas diferentes. É o terreno baldio onde as crianças podem e devem andar à rédea solta. Formei-me com a matemática e com as poesias, mas algumas das coisas mais importantes aprendi-as nas corridas intermináveis pelos campos, nos longos verãos passados a construir diques e a dar mergulhos nos riachos, a construir cabanas nas árvores. Longas horas sem pais, mães, professores, educadores – e, no meu lindíssimo “país dos brinquedos”, cresci. Nós, adultos, podemos viver (mal) também sem shabbat: os garotos, não; morrem na alma, sem um sétimo dia diferente.
Pinóquio tem fome (tem sempre fome): «Só lhe restavam dois modos para poder alimentar-se: ou pedir um pouco de trabalho ou pedir, como esmola, um tostão ou um bocado de pão». Mas «envergonhava-se de pedir esmola», porque Geppetto tinha-lhe ensinado que «só têm direito a pedir esmola os velhos e os enfermos… Todos os outros têm a obrigação de trabalhar». É bem evidente que este mundo não é o preferido por Collodi – é preciso estar muito atentos para identificar onde se encontra o pensamento do autor: quase nunca está nas morais explícitas dos seus personagens. De facto, no jornal Il fanfulla, Collodi escrevia: «Em Florença, a mendicidade pública é severamente proibida. E está certo. Nos países civilizados não se pede esmola. Nos países altamente civilizados não só não se pede como não existe. E é, precisamente, graças a esta proibição severíssima que em todas as ruas de Florença se encontra sempre um mendigo» (1874)..
A marionete encontra o primeiro transeunte: «Um homem todo suado e ofegante que puxava sozinho, com enorme esforço, dois carrinhos carregados de carvão. Pinóquio aproximou-se dele e, baixando os olhos com vergonha, disse baixinho: Por caridade poderia dar-me um tostão, pois estou morto de fome? – Não só um – respondeu o carvoeiro; eu dou-te quatro, contanto que me ajudes a puxar os dois carrinhos de carvão até casa. – Fico espantado! - respondeu a marionete quase ofendida -; fique a saber que eu nunca fui burro de carga». Pinóquio pede, baixinho, “a caridade” e o homem oferece-lhe um contrato. Pinóquio não aceita. Depois, encontra um pedreiro: «Anda comigo levar a cal e, em vez de um tostão, dar-te-ei cinco». Aqui, os tostões já são cinco, mas Pinóquio não aceita os contratos dos homens e põe-se a pedir esmola. Nem sequer agora segue as recomendações do pai e do mundo dos crescidos, transgride: «Em menos de meia hora, passaram outras vinte pessoas, e a todas elas Pinóquio pediu uma esmolinha, mas todas lhe responderam: — Não tens vergonha?... aprende a ganhar o pão!».
Pinóquio prefere a esmola ao trabalho, prefere a vergonha ao contrato. O direito dos garotos à alimentação e aos bens não nasce de uma relação do ut des (NdT: Toma lá, dá cá). Não: O nosso dever de os alimentar nasce apenas e unicamente da sua condição de crianças. O seu pão não deve ser merecido. A renúncia ao contrato de Pinóquio e dos garotos indica-nos, portanto, um horizonte do humano mais alargado que o do mérito e do comércio: valemos mais, muito mais. E nisto, as crianças assemelham-se muito a Deus e Deus a elas.
Pinóquio, no fim da sua estadia na ilha, acabará por fazer um trabalho: «Por fim, passou uma boa mulherzinha que levava dois jarros de água. – Permita, boa senhora, que eu beba um gole de água do seu jarro? – pediu Pinóquio, que estava com a garganta ardendo de tanta sede. – Bebe, meu menino!». O diálogo com esta mulher começa com um dom. Uma mulher – que, depois, se revelará ser a sua fadinha – responde, ao primeiro pedido de um copo de água de Pinóquio, com um “sim” incondicional: não pede que ele ganhe a água; dá-lha.
Com os garotos, a reciprocidade boa é apenas a ativada pelo dom, é a filha bonita da gratuidade. Pinóquio continua: «Eu matei a sede! Se pudesse matar a fome… A boa mulher, ao escutar essas palavras, convidou: – Se me ajudares a levar um destes jarros para casa, dar-te-ei um bom pedaço de pão. Pinóquio olhou para o jarro e não respondeu nem sim, nem não». Aqui, o discurso da mulher assemelha-se aos diálogos anteriores com os homens. E, novamente, Pinóquio não aceita. Mas eis uma reviravolta: «E, com o pão, eu te darei um belo prato de couve-flor temperada com azeite e vinagre… E depois da couve-flor, eu te darei um belo doce recheado de licor». Esta mulher supera a troca de equivalentes. A reciprocidade das crianças nasce do excesso assimétrico. A troca contratual dos adultos é, para eles, demasiado pouco: «Às seduções desta última guloseima, Pinóquio não conseguiu resistir mais». A reciprocidade diferente dos garotos começa com o dom e continua com o excesso. É assim que, amanhã, aprenderão bem a arte da reciprocidade diferente e necessária dos contratos.
Com a obra-prima de Collodi conclui-se esta série “Raízes de futuro” e os nossos diálogos com alguns grandes autores – espero retomá-los no futuro. No próximo Domingo voltarei aos comentários bíblicos com o Livro de Ester. E cada vez que chego ao fim de um percurso em “Avvenire”, o meu primeiro obrigado vai para o seu Diretor, primeiro companheiro e protagonista das minhas viagens sempre novas, que se realizam sempre nas feridas e alegrias do nosso tempo – dificílimo e terrível, mas sempre maravilhoso, porque é o único tempo que temos para amar.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 06/11/2022
O dinheiro é um bem delicado e geralmente mau para os garotos. Collodi sabe-o e no-lo recorda nas maravilhosas e eternas páginas económicas de Pinóquio.
O dinheiro e os garotos vivem em mundos diferentes. Os contactos entre eles são sempre arriscados, frequentemente prejudiciais. A única boa bolsa de valores dos garotos é a bolsa da mãe e do pai. A sua lei (nomos) da casa (oikos) é o dom, não o contrato e muito menos o incentivo. Quando precisam de dinheiro pedem-no aos pais e é nesta relação não-económica que se aprende o abecedário da economia. A dependência económica dos pais é ótima, porque o dinheiro conhecido, ao princípio, como lugar de gratuidade amorosa cria as premissas éticas para dar, amanhã, o valor correto aos contratos e ao trabalho.
[fulltext] =>Em casa, aprendem que o dinheiro vem do trabalho dos pais, que estão muito tempo fora para ganhar aquele dinheiro, para se viver bem. É esta primeira gratuidade doméstica que dá a correta medida ao dinheiro, ao trabalho, à economia. Por seu lado, a mesada a gerir e a administrar em autonomia cria um contexto comercial semelhante ao do “pequeno traficante” (Garoffi) do livro Coração, mais parecido ao “homenzinho antecipado”, Gigino, de Collodi (Histórias alegres). De facto, quando começamos a usar o dinheiro dentro de casa como incentivo e o desligamos da lógica do dom, tornando-o um meio para motivar os filhos, distorcemos a família e o dinheiro. A gorjeta torna-se o “porquê” de uma menina lavar os pratos e até fazer os trabalhos de casa e o dinheiro corrói a grande lei da educação: as ações boas e corretas são feitas apenas porque são boas e corretas, não pelo incentivo monetário. Pelo contrário, quando nem sequer em casa aprendemos a ética da gratuidade, será difícil, um dia, aprender a lógica diferente e complementar do contrato. Hoje, os jovens não estão a desenvolver uma boa amizade com o mundo do trabalho também porque a lógica económica entra demasiado cedo em casa, graças ao cavalo de Troia da responsabilidade.
Os problemas de Pinóquio começam com o dinheiro. Geppetto tinha acabado de vender o casaco para poder comprar-lhe o abecedário – o trabalho dos pais é estar em mangas de camisa para os filhos poderem estudar: vi-o e vejo-o também na minha família. Pinóquio (cap. IX) fica fascinado pelo chamamento do flautista (é interessante notar que “incentivo” deriva do latim incentivus; a flauta que afina e encanta), esquece o seu propósito de ir à escola e decide entrar no “grande teatro das marionetes”. Pergunta a um rapaz: «Quanto se paga para entrar?». Também Pinóquio conhece a lei fundamental da vida fora de casa: se queres alguma coisa de alguém, tens de lhe oferecer algo em troca. Não se esquiva, aceita-a e tenta encontrar os «quatro tostões». Primeiro, tenta fazer uma troca: oferece, em vão, ao rapaz o seu casaco de papel florido, depois os seus sapatos, o seu boné de migalhas de pão. Por fim, oferece-lhe o seu objeto mais precioso: «Queres dar-me quatro tostões por este abecedário?»
E, aqui, chega a resposta do rapazito: «Eu sou um miúdo e não compro nada de outros miúdos», um rapazito, comenta Collodi, que «que tinha mais juízo do que ele». Os garotos não fazem contratos, não devem fazer negociações com dinheiro. Mas eis a reviravolta: «Por quatro tostões eu fico com o abecedário - gritou um revendedor de roupas usadas». Entra em jogo um adulto, um comerciante, um profissional do dinheiro, que faz um gesto ilícito e instaura uma relação errada com o garoto. Os garotos devem ser protegidos dos “revendedores de roupas usadas»; os comerciantes devem ser expulsos à paulada do templo dos garotos, porque eles têm direito a outra oikonomia onde a única moeda é a gratuidade.
Graças a estes quatro tostões errados, Pinóquio entra na corte do Come-fogo. Conhecemos a história. Também desta vez termina com outro dinheiro: as famigeradas «cinco moedas de ouro» (capítulo XII), outra fonte de muitas desventuras de Pinóquio. Este segundo episódio monetário é, no entanto, diferente, aparentemente oposto. Come-fogo não faz uma troca com a marionete, dá-lhe, ou melhor, oferece-lhe as cinco moedas de ouro – o presente é uma palavra que provem de rei (rex, regis: regalos [presentes]) e assinala uma sua origem assimétrica: o presente [regalo] é dado pelos (ou aos) poderosos. Mas, também desta vez, o dinheiro de um adulto não produz bons frutos para o garoto. Não é suficiente uma boa motivação (como parece a de Come-fogo) para fazer do dinheiro algo de bom para os garotos. Nem sequer o dom-regalo é bom se não se realiza dentro de relações primárias, se não for mediado pela família. O dinheiro que chega diretamente aos garotos, sem esta mediação caseira, estraga-se.
É a posse das moedas que, na realidade, expõe Pinóquio aos abusos do gato e da raposa. Encontrando-os no caminho, Pinóquio diz-lhes: «Tornei-me um grande senhor». Talvez exagerasse, mas no século XIX, na Toscana, com cinco moedas (zecchini) de ouro compravam-se cerca de cinco quintais de trigo [NdT – 500Kg]. Não era um grande senhor, mas, com certeza, manuseava muito dinheiro. O garoto, ingenuamente, fala disso com dois desconhecidos, dois adultos. Esta sinceridade a confiança em relação aos grandes é parte da beleza transitória e maravilhosa das crianças e adolescentes e é também a sua primeira vulnerabilidade: «E mostrou as moedas recebidas como presente do Come-fogo». Como presente, precisamente. Este abuso do gato e da raposa é tão grave para Collodi que na primeira versão do conto conduz Pinóquio à sua morte final (capítulo XV); a dizer-nos que, para um garoto, cometer erros na relação com o dinheiro é vital, é questão de vida ou de morte.
«A bolsa ou a vida», gritam-lhe os assassinos – ai de quem colocar os garotos diante deste dilema, porque é sempre a sua vida a perder-se. Collodi, para compor o diálogo manipulador do gato e da lebre, recorre ao registo do dom e do altruísmo: «As outras quinhentas moedas dar-vos-ei como presente», diz Pinóquio. «Um presente para nós? – gritou a Raposa indignada e ofendida – Deus nos livre!... Não trabalhamos para o vil interesse: trabalhamos para enriquecer os outros» (capítulo XVIII). E, depois, Pinóquio dirá ao gato: «Se todos os gatos fossem iguais a ti, que sorte teriam os ratos» (capítulo XVIII). Mas há mais. No importante episódio de Pinóquio que toma o lugar do cão Melampo, a marionete reconhece algo de errado na proposta de corrupção que lhe fazem as fuinhas (está calado, não ladres e dar-te-emos como paga uma galinha «bela e depenada para o pequeno-almoço do dia seguinte»: capítulo XXII) e denuncia-as ao agricultor. Porém, as fuinhas usam a linguagem da troca e do interesse e a marionete descobre o ilícito. O gato e a raposa, pelo contrário, mais astutas e peritas em humanidade, usam a linguagem do dom e do desinteresse: e “matam-no”. Não há nada mais grave num adulto manipulador do que a linguagem da gratuidade para enganar um garoto (e todos).
Os gatos e as raposas sabem que os garotos vivem no registo do dom, é a sua língua materna e, assim, misturam palavras de morte com as palavras boas de casa. Aqui Collodi revela-se também bom conhecedor da discussão sobre o papel do egoísmo e do altruísmo na economia moderna e talvez tivesse na memória a célebre frase de Adam Smith: «Nunca vi nada de bom feito por quem afirmava negociar para o bem comum» (A riqueza das nações, 1776). De modo mais geral, o sinal que revela frequentemente a presença dos “assassínos” numa relação económica é a sua declaração de trabalhar apenas para enriquecer os outros, sem qualquer interesse pessoal. Pinóquio não podia saber que a economia verdadeira e boa vive do benefício mútuo, e que a ausência do benefício numa das duas partes é sinal de um vício, de um certo engano quando é teorizado pela parte que não teria interesse na troca. Nós, porém, deveríamos sabê-lo.
É interessante notar que o gato e a raposa já aparecem num romance juvenil de Carlo Lorenzini (ainda não Collodi), Os mistérios de Florença. O capítulo II, “Duas aves de rapina” apresenta-nos o Conde Calami e a Condessa Floriani lutando com as suas vítimas: “É preciso depenar a codorniz com um pouco de humanidade”, disse o conde. “Toda a humanidade consiste em não fazê-la guinchar” disse a condessa, cujos olhos brilhavam sinistramente, como os de um gato selvagem” (Carlo Lorenzini, Os mistérios de Florença, p. 33). O ambiente em que se movem as duas «aves de rapina» (expressão que encontramos na terra de Acchiappacitrulli: cap. XVIII) é o do jogo. O Marquês Stanislao Teodori é apanhado por elas nas salas de jogo e arruína-se com o jogo: «Vi-o vir para a mesa com vinte paulos [NdT - moeda de prata, cunhada no pontificado de Paulo III – séc. XVI] no bolso e apostar meio paulo de cada vez. Fazemo-lo jogar pela sua palavra?» (p. 34). Depois, em Giannettino, o livro de Collodi para crianças que precede, em poucos anos, Pinóquio, encontramos no centro da cena de Giannettino a jogar aos dados o dinheiro que a mãe lhe tinha dado para comprar o atlas: «O mais rude do grupo disse: “Proponho uma coisa: Joga-se entre nós para ver quem tem de pagar o jantar a todos?”. “Sim, sim; lancem-se os dados” gritaram os outros… “Está bem”, disse Giannettino, “vamos jogar as cinco liras”. Ele jogou-as e perdeu-as» (Collodi, Giannettino, p. 238). É provável que Collodi fosse um “jogador”. Parece que recomeçou a escrever a segunda parte de Pinóquio para pagar dívidas desta natureza: «Os episódios seguiam um pouquinho os altos e baixos da sua bolsa; e, quando, saindo, de madrugada, da sala de jogos do Palazzo Davanzati, ouvia tilintar algumas moedas na bolsa, encolhia os ombros e não se falava mais de pegar na caneta senão quando se sentia mais leve» (M. Parenti, Rassegna Lucchese, 1952). De facto, se lermos os capítulos dedicados ao gato e à raposa, damo-nos conta que o clima é mais do jogo do que da economia do seu tempo: «Queres transformar essas cinco míseras moedas em cem, mil, duas mil?» (cap. XII). A lógica do ganhar muitíssimo sem qualquer esforço - «para juntar honestamente um dinheirinho é preciso saber ganhá-lo ou com o trabalho das próprias mãos ou com a própria inteligência», recorda a Pinóquio o grande papagaio (cap. XIX) – era e é a grande ilusão-desilusão do jogo e, hoje, também a de certa finança que se lhe assemelha demasiado. Há muito de Collodi em Pinóquio. Pinóquio é também o homem Carlo Lorenzini que procurou a própria redenção sublimando-se numa maravilhosa história oferecida. A arte também é capaz disto: transforma a nossa lama em beleza para os outros. As obras-primas precisam de fragilidade, é a fissura da alma pela qual os artistas, nalgum dia mais luminoso, espreitam o paraíso.
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Collodi recorda-nos isso.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 06/11/2022
O dinheiro é um bem delicado e geralmente mau para os garotos. Collodi sabe-o e no-lo recorda nas maravilhosas e eternas páginas económicas de Pinóquio.
O dinheiro e os garotos vivem em mundos diferentes. Os contactos entre eles são sempre arriscados, frequentemente prejudiciais. A única boa bolsa de valores dos garotos é a bolsa da mãe e do pai. A sua lei (nomos) da casa (oikos) é o dom, não o contrato e muito menos o incentivo. Quando precisam de dinheiro pedem-no aos pais e é nesta relação não-económica que se aprende o abecedário da economia. A dependência económica dos pais é ótima, porque o dinheiro conhecido, ao princípio, como lugar de gratuidade amorosa cria as premissas éticas para dar, amanhã, o valor correto aos contratos e ao trabalho.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 30/10/2022
“Pinóquio” é um livro sobre a essencial liberdade dos garotos e sobre os adultos que procuram negar-lha. E recorda-nos que labutar não nos garante sair da miséria.
Os garotos não colocam os seus pais aos ombros; pelo contrário, os ombros dos seus pais são o seu lugar preferido para observar o grande mundo e estar longe do dinheiro e trabalho.
Nos poucos romances realmente grandes, os personagens fogem da mão do seu autor e começam a viver uma existência livre. Nos livros médios e pequenos, o autor é o deus das suas criaturas, é o artesão das suas marionetes que, inertes, executam perfeitamente as ordens dos dedos. Estes personagens-fantoches não ensinam nada ao seu escritor e, por isso, ensinam pouco também a nós, porque as conclusões do relato já estão inscritas nas suas intenções. Nos grandes livros, pelo contrário, o personagem, uma vez gerado, sai do livro, deixa a sua casa, começa a correr livre e faz coisas que o seu autor nem queria nem pensava. Aqui, o autor empresta a pena a um daimon [NdT – espírito] e as suas criaturas diferentes continuam a viver, crescem, morrem e ressuscitam muitas vezes e fazem ressuscitar também o seu autor, chamado à vida pelo grito: «Vem cá para fora!».
As Aventuras de Pinóquio são um destes livros enormíssimos, mortos e ressuscitados muitas vezes. Pinóquio é um destes personagens libertados, tornados maiores que o seu autor. Em Pinóquio há muito de Carlo Collodi, mas não é apenas Collodi. Porque o que Collodi faz viver a Geppetto – não consegue manter em casa a marionete que acabou de criar, e que dá pontapés, salta, foge, faz coisas que o artífice nem imaginava nem queria – viveu-o ele mesmo com este seu livro. A marionete escapou das mãos do marionetista. Porém, a virtude de Collodi está em ter desejado que os seus personagens fossem diferentes dele. Assim escreve na nota introdutória ao seu Olhos e narizes, um livro de contos, publicado em 1881, poucos meses antes do primeiro episódio de Pinóquio: «Chamei-o assim, olhos e narizes, para dar a entender que não é uma exibição de figurinhas inteiras… que o leitor as termine por si mesmo». Nesta “separação” entre Pinóquio e Collodi nasceu uma obra-prima e aquele terreno livre e libertado soube gerar as interpretações mais díspares, inclusive aquelas, ousadas, que viram aí uma espécie de versão laica da história cristã da salvação (Biffi e Nembrini). A qualidade de uma obra de arte mede-se também pela sua capacidade de dizer coisas que o autor não pensava, nem queria ou até mesmo detestava.
Encontrei Pinóquio várias vezes na minha vida. A última leitura adulta chocou-me e comoveu-me. Compreendi que Pinóquio é, antes de mais, um livro lindíssimo. Depois, também compreendi que As aventuras de Pinóquio são, sobretudo, um livro sobre a liberdade, sobre a vida como aventura, especialmente sobre a liberdade dos garotos, necessária embora negada pelo mundo dos adultos. Geppetto esculpe o seu pedaço de madeira com a intenção explícita de fazer uma marionete, mas, a dado momento e muito rapidamente, começa a chamá-lo “filhinho”. A primeira mensagem imediata do livro é, portanto, clara e desconcertante: na sociedade italiana de meados do século XIX, que procurava “fazer italianos” com base numa pedagogia iluminista e racionalista, os garotos eram tratados como marionetes: madeira de casca dura e selvagem que, graças à educação, se tornarão, um dia, bons cidadãos. Pinóquio foge de um mundo de pais e professores que procuram, com muitos sacrifícios e empenho, construir tenazmente filhos-marionetes, endireitar com a educação e as regras aquela «madeira torta» (Qohélet 1, 15). Mas Pinóquio tem uma resiliência extraordinária à educação dos grandes e vive a sua liberdade selvagem, irresponsável, ingénua, arriscada, imprudentíssima e maravilhosa.
Numa sociedade que fabricava os novos italianos como os artesãos fabricam móveis («para fazer uma perna de mesa»), Colloddi escreve um livro sobre a resistência dos garotos à ação educativa da sociedade. Pinóquio não quer ir à escola e muito menos trabalhar e, por isso, corre e escapa dos únicos lugares onde um bom garoto devia estar; aprende a vida na rua (está aqui uma analogia com o humanismo bíblico), onde faz experiências extraordinárias, onde aprende a arte de viver. Pinóquio tem quatro pés (dois queimados e dois refeitos) mas não tem orelhas: «Na pressa de o esculpir, se esqueceu de lhas fazer». Pinóquio é, portanto, um hino maravilhoso e tenaz à liberdade dos garotos e, por isso, é também um cântico à paternidade entendida como dolorosa e necessária perda do controle sobre os seus filhos que, para não se tornarem marionetes, devem sair de casa.
Portanto, Pinóquio é a contínua luta entre o garoto e a marionete. Pinóquio não está então a dizer aos seus leitores: “Garotos, voltai para casa, sede bons e obedientes”; não, diz precisamente o contrário: “Permanecei crianças o máximo possível, resisti e fugi dos adultos que querem negar-vos a vossa irredutível liberdade: a vossa madeira torta é lindíssima”. «Quem apagou as crianças da face da terra?» (Olhos e narizes). E assim lemos Pinóquio sem preconceitos e damo-nos conta de que Pinóquio é uma perene fuga do lugar do mundo que os grandes – Geppetto, Come-fogo, a fada… – tinham pensado para ele.
A crítica sarcástica de Collodi às hipocrisias do seu mundo neoburguês atingiu o máximo com Pinóquio, «uma criancice», como a definiu, uma história para garotos, portanto, isenta da prudente reflexão filosófico-pedagógica – os livros pensados para os garotos têm a característica de libertar também os seus autores da virtude dos seus ensaios e romances sérios, porque escrevendo para o mundo encantado das crianças, conseguem, por vezes, tornar-se livres. E, assim, a crítica superou o crítico e nasceu aquela obra-prima que nos ama há cento e quarenta anos.Numa sociedade que enfatizava a natureza sociável do homem, Pinóquio é, portanto, um garoto só: os seus amigos são animais (e são maravilhosos), marionetes, Pavio, com os quais não faz atividades sociais, não realiza ações coletivas. É um ser tremendamente só, embora, nos momentos determinantes da sua história, inclusive a sua morte, enforcado, no que deveria ser o fim da primeira versão da história (cap. 15): «Ai, meu paizinho, se estivesses aqui», mas o seu paizinho não estava – e esta ausência do pai é a diferença determinante entre a morte de Jesus e a “morte” de Pinóquio. E, assim, recorda-nos que os garotos estão mais sós do que os adultos, geralmente, pensam.
No mundo de Collodi, existiam as crianças e os homens, não havia meio-termo. Pinóquio já não é criança, mas ainda não é adulto: «Para homem, falta-lhe alguma coisa; e para menino há algo mais que o necessário» (Olhos e narizes). Pinóquio inventou a adolescência, que é a idade das fugas e das corridas vertiginosas, quando se regressa a casa feliz e se volta a sair ainda mais feliz. A semelhança entre Pinóquio e o “filho pródigo” do Evangelho de Lucas é encontrada no partir da casa do seu paizinho, não no regressar, ou no literário “irmão mais novo” do filho pródigo (de André Gide) que, na noite do banquete para festejar o regresso, calça os sapatos, saúda o irmão acabado de chegar e sai à procura da liberdade que o irmão não tinha conseguido conquistar. Collodi está totalmente ao lado do Pinóquio e está sempre, mesmo quando faz as suas muitas traquinices, porque ceder às tentações é componente constitutiva da adolescência: qual garoto não teria seguido Pavio no País dos brinquedos? Cresce-se não tanto resistindo às tentações, mas aprendendo com os erros, para depois retomar o corrida – resistir às tentações, depois de as ter chamado pelo nome é, por seu lado, a arte essencial da vida adulta. Em Pinóquio temos, portanto, o cruzamento – não resolvido e, por isso, sempre vital – entre o Ulisses de Homero e o Ulisses de Dante, isto é, entre a saudade do regresso a casa e a irreprimível vontade de a deixar, logo quando chega; e, no florentino Collodi, Dante vence Homero. Pinóquio corre sempre e a nós, que o vemos neste seu gesto, não apetece dizer-lhe; “Volta para casa”, mas sim: “Continua a tua corrida livre”.
Em Pinóquio, a economia é muito importante. Collodi era um observador atento e muito crítico em relação à ideologia que o trabalho (talvez nas fábricas) fosse a solução da miséria em massa na era industrial e da vagabundagem dos garotos, uma sociedade onde os pobres acabavam muitas vezes na prisão. Em Olhos e narizes, na história “O menino da rua”, escreverá: «O homem que trabalha não é feito à imagem e semelhança de Deus porque Deus trabalhou apenas sete [seis] dias e há já seis mil anos que repousa».
Sem a pobreza, a fome, o trabalho, o dinheiro, não se capta a essência das aventuras de Pinóquio – e, por isso, o Pinóquio da Disney (1940), enquadrado numa linda aldeia nórdica, sem pobreza, é uma traição a Collodi. O nome do protagonista, porém, já nos diz tudo: «Quero chamar-lhe Pinóquio. O nome dar-lhe-á sorte. Conheci uma família inteira de Pinóquios. Pinóquio o pai, Pinóquia a mãe e Pinóquios os meninos e todos estavam bem. O mais rico deles pedia esmola». A casa de Geppetto é um ícone de pobreza absoluta, onde o fogo e a panela são apenas desenhos na parede. Pinóquio tem sempre fome, procura sempre alimento e raramente o encontra. Sem a miséria e a fome não se compreendem nem sequer o sentido do trabalho e de trabalhar em Pinóquio: «Que profissão tem o teu pai?», pergunta-lhe Come-fogo – «É pobre», responde-lhe Pinóquio. Geppetto trabalhava, mas era um pobre: trabalhar não o liberta da pobreza nem da fome. Diferentemente da ideologia do seu (e do nosso) tempo, que pensava e pensa que o trabalho derrotaria a miséria e a fome, Geppetto trabalha, mas é radicalmente pobre. Collodi sabia que não basta trabalhar para não ser pobres e a realidade destes anos está a recordar-nos isso com grande força, apesar de nós continuarmos a invocar um trabalho abstrato para condenar, como malditos, os pobres concretos.
Pinóquio tem uma péssima relação com o dinheiro, está na origem das páginas infelizes da sua história – vê-lo-emos nas próximas semanas. Não trabalha e não quer trabalhar. Começará a trabalhar apenas no fim quando, novo Eneias, salvará o seu pai do tubarão, colocando-o aos ombros. Trabalhará porque já não é um garoto. Os garotos não colocam os pais aos seus ombros; pelo contrário, os ombros dos seus pais são o lugar preferido para observar o grande mundo e preparar-se para se lançar no seu voo livre.
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E, sobretudo, devem estar longe do dinheiro e do trabalho e, quando os adultos lho propõem, apenas devem escapar, correr e nunca mais parar.Raízes de futuro / 9 – Nos grandes livros, o personagem sai e faz coisas nunca pensadas pelo autor.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 30/10/2022
“Pinóquio” é um livro sobre a essencial liberdade dos garotos e sobre os adultos que procuram negar-lha. E recorda-nos que labutar não nos garante sair da miséria.
Os garotos não colocam os seus pais aos ombros; pelo contrário, os ombros dos seus pais são o seu lugar preferido para observar o grande mundo e estar longe do dinheiro e trabalho.
Nos poucos romances realmente grandes, os personagens fogem da mão do seu autor e começam a viver uma existência livre. Nos livros médios e pequenos, o autor é o deus das suas criaturas, é o artesão das suas marionetes que, inertes, executam perfeitamente as ordens dos dedos. Estes personagens-fantoches não ensinam nada ao seu escritor e, por isso, ensinam pouco também a nós, porque as conclusões do relato já estão inscritas nas suas intenções. Nos grandes livros, pelo contrário, o personagem, uma vez gerado, sai do livro, deixa a sua casa, começa a correr livre e faz coisas que o seu autor nem queria nem pensava. Aqui, o autor empresta a pena a um daimon [NdT – espírito] e as suas criaturas diferentes continuam a viver, crescem, morrem e ressuscitam muitas vezes e fazem ressuscitar também o seu autor, chamado à vida pelo grito: «Vem cá para fora!».
As Aventuras de Pinóquio são um destes livros enormíssimos, mortos e ressuscitados muitas vezes. Pinóquio é um destes personagens libertados, tornados maiores que o seu autor. Em Pinóquio há muito de Carlo Collodi, mas não é apenas Collodi. Porque o que Collodi faz viver a Geppetto – não consegue manter em casa a marionete que acabou de criar, e que dá pontapés, salta, foge, faz coisas que o artífice nem imaginava nem queria – viveu-o ele mesmo com este seu livro. A marionete escapou das mãos do marionetista. Porém, a virtude de Collodi está em ter desejado que os seus personagens fossem diferentes dele. Assim escreve na nota introdutória ao seu Olhos e narizes, um livro de contos, publicado em 1881, poucos meses antes do primeiro episódio de Pinóquio: «Chamei-o assim, olhos e narizes, para dar a entender que não é uma exibição de figurinhas inteiras… que o leitor as termine por si mesmo». Nesta “separação” entre Pinóquio e Collodi nasceu uma obra-prima e aquele terreno livre e libertado soube gerar as interpretações mais díspares, inclusive aquelas, ousadas, que viram aí uma espécie de versão laica da história cristã da salvação (Biffi e Nembrini). A qualidade de uma obra de arte mede-se também pela sua capacidade de dizer coisas que o autor não pensava, nem queria ou até mesmo detestava.
Encontrei Pinóquio várias vezes na minha vida. A última leitura adulta chocou-me e comoveu-me. Compreendi que Pinóquio é, antes de mais, um livro lindíssimo. Depois, também compreendi que As aventuras de Pinóquio são, sobretudo, um livro sobre a liberdade, sobre a vida como aventura, especialmente sobre a liberdade dos garotos, necessária embora negada pelo mundo dos adultos. Geppetto esculpe o seu pedaço de madeira com a intenção explícita de fazer uma marionete, mas, a dado momento e muito rapidamente, começa a chamá-lo “filhinho”. A primeira mensagem imediata do livro é, portanto, clara e desconcertante: na sociedade italiana de meados do século XIX, que procurava “fazer italianos” com base numa pedagogia iluminista e racionalista, os garotos eram tratados como marionetes: madeira de casca dura e selvagem que, graças à educação, se tornarão, um dia, bons cidadãos. Pinóquio foge de um mundo de pais e professores que procuram, com muitos sacrifícios e empenho, construir tenazmente filhos-marionetes, endireitar com a educação e as regras aquela «madeira torta» (Qohélet 1, 15). Mas Pinóquio tem uma resiliência extraordinária à educação dos grandes e vive a sua liberdade selvagem, irresponsável, ingénua, arriscada, imprudentíssima e maravilhosa.
Numa sociedade que fabricava os novos italianos como os artesãos fabricam móveis («para fazer uma perna de mesa»), Colloddi escreve um livro sobre a resistência dos garotos à ação educativa da sociedade. Pinóquio não quer ir à escola e muito menos trabalhar e, por isso, corre e escapa dos únicos lugares onde um bom garoto devia estar; aprende a vida na rua (está aqui uma analogia com o humanismo bíblico), onde faz experiências extraordinárias, onde aprende a arte de viver. Pinóquio tem quatro pés (dois queimados e dois refeitos) mas não tem orelhas: «Na pressa de o esculpir, se esqueceu de lhas fazer». Pinóquio é, portanto, um hino maravilhoso e tenaz à liberdade dos garotos e, por isso, é também um cântico à paternidade entendida como dolorosa e necessária perda do controle sobre os seus filhos que, para não se tornarem marionetes, devem sair de casa.
Portanto, Pinóquio é a contínua luta entre o garoto e a marionete. Pinóquio não está então a dizer aos seus leitores: “Garotos, voltai para casa, sede bons e obedientes”; não, diz precisamente o contrário: “Permanecei crianças o máximo possível, resisti e fugi dos adultos que querem negar-vos a vossa irredutível liberdade: a vossa madeira torta é lindíssima”. «Quem apagou as crianças da face da terra?» (Olhos e narizes). E assim lemos Pinóquio sem preconceitos e damo-nos conta de que Pinóquio é uma perene fuga do lugar do mundo que os grandes – Geppetto, Come-fogo, a fada… – tinham pensado para ele.
A crítica sarcástica de Collodi às hipocrisias do seu mundo neoburguês atingiu o máximo com Pinóquio, «uma criancice», como a definiu, uma história para garotos, portanto, isenta da prudente reflexão filosófico-pedagógica – os livros pensados para os garotos têm a característica de libertar também os seus autores da virtude dos seus ensaios e romances sérios, porque escrevendo para o mundo encantado das crianças, conseguem, por vezes, tornar-se livres. E, assim, a crítica superou o crítico e nasceu aquela obra-prima que nos ama há cento e quarenta anos.Numa sociedade que enfatizava a natureza sociável do homem, Pinóquio é, portanto, um garoto só: os seus amigos são animais (e são maravilhosos), marionetes, Pavio, com os quais não faz atividades sociais, não realiza ações coletivas. É um ser tremendamente só, embora, nos momentos determinantes da sua história, inclusive a sua morte, enforcado, no que deveria ser o fim da primeira versão da história (cap. 15): «Ai, meu paizinho, se estivesses aqui», mas o seu paizinho não estava – e esta ausência do pai é a diferença determinante entre a morte de Jesus e a “morte” de Pinóquio. E, assim, recorda-nos que os garotos estão mais sós do que os adultos, geralmente, pensam.
No mundo de Collodi, existiam as crianças e os homens, não havia meio-termo. Pinóquio já não é criança, mas ainda não é adulto: «Para homem, falta-lhe alguma coisa; e para menino há algo mais que o necessário» (Olhos e narizes). Pinóquio inventou a adolescência, que é a idade das fugas e das corridas vertiginosas, quando se regressa a casa feliz e se volta a sair ainda mais feliz. A semelhança entre Pinóquio e o “filho pródigo” do Evangelho de Lucas é encontrada no partir da casa do seu paizinho, não no regressar, ou no literário “irmão mais novo” do filho pródigo (de André Gide) que, na noite do banquete para festejar o regresso, calça os sapatos, saúda o irmão acabado de chegar e sai à procura da liberdade que o irmão não tinha conseguido conquistar. Collodi está totalmente ao lado do Pinóquio e está sempre, mesmo quando faz as suas muitas traquinices, porque ceder às tentações é componente constitutiva da adolescência: qual garoto não teria seguido Pavio no País dos brinquedos? Cresce-se não tanto resistindo às tentações, mas aprendendo com os erros, para depois retomar o corrida – resistir às tentações, depois de as ter chamado pelo nome é, por seu lado, a arte essencial da vida adulta. Em Pinóquio temos, portanto, o cruzamento – não resolvido e, por isso, sempre vital – entre o Ulisses de Homero e o Ulisses de Dante, isto é, entre a saudade do regresso a casa e a irreprimível vontade de a deixar, logo quando chega; e, no florentino Collodi, Dante vence Homero. Pinóquio corre sempre e a nós, que o vemos neste seu gesto, não apetece dizer-lhe; “Volta para casa”, mas sim: “Continua a tua corrida livre”.
Em Pinóquio, a economia é muito importante. Collodi era um observador atento e muito crítico em relação à ideologia que o trabalho (talvez nas fábricas) fosse a solução da miséria em massa na era industrial e da vagabundagem dos garotos, uma sociedade onde os pobres acabavam muitas vezes na prisão. Em Olhos e narizes, na história “O menino da rua”, escreverá: «O homem que trabalha não é feito à imagem e semelhança de Deus porque Deus trabalhou apenas sete [seis] dias e há já seis mil anos que repousa».
Sem a pobreza, a fome, o trabalho, o dinheiro, não se capta a essência das aventuras de Pinóquio – e, por isso, o Pinóquio da Disney (1940), enquadrado numa linda aldeia nórdica, sem pobreza, é uma traição a Collodi. O nome do protagonista, porém, já nos diz tudo: «Quero chamar-lhe Pinóquio. O nome dar-lhe-á sorte. Conheci uma família inteira de Pinóquios. Pinóquio o pai, Pinóquia a mãe e Pinóquios os meninos e todos estavam bem. O mais rico deles pedia esmola». A casa de Geppetto é um ícone de pobreza absoluta, onde o fogo e a panela são apenas desenhos na parede. Pinóquio tem sempre fome, procura sempre alimento e raramente o encontra. Sem a miséria e a fome não se compreendem nem sequer o sentido do trabalho e de trabalhar em Pinóquio: «Que profissão tem o teu pai?», pergunta-lhe Come-fogo – «É pobre», responde-lhe Pinóquio. Geppetto trabalhava, mas era um pobre: trabalhar não o liberta da pobreza nem da fome. Diferentemente da ideologia do seu (e do nosso) tempo, que pensava e pensa que o trabalho derrotaria a miséria e a fome, Geppetto trabalha, mas é radicalmente pobre. Collodi sabia que não basta trabalhar para não ser pobres e a realidade destes anos está a recordar-nos isso com grande força, apesar de nós continuarmos a invocar um trabalho abstrato para condenar, como malditos, os pobres concretos.
Pinóquio tem uma péssima relação com o dinheiro, está na origem das páginas infelizes da sua história – vê-lo-emos nas próximas semanas. Não trabalha e não quer trabalhar. Começará a trabalhar apenas no fim quando, novo Eneias, salvará o seu pai do tubarão, colocando-o aos ombros. Trabalhará porque já não é um garoto. Os garotos não colocam os pais aos seus ombros; pelo contrário, os ombros dos seus pais são o lugar preferido para observar o grande mundo e preparar-se para se lançar no seu voo livre.
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E, sobretudo, devem estar longe do dinheiro e do trabalho e, quando os adultos lho propõem, apenas devem escapar, correr e nunca mais parar.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 23/10/2022
O livro Coração é uma reflexão sobre a escola e sobre o trabalho e entrega-nos palavras improváveis e maravilhosas sobre o que uma e outro ainda são hoje, nos olhos das crianças e na vida dos adultos.
De Amicis é capaz de nos oferecer uma frase que é o gotejar de um mar de sabedoria: « Os pobres apreciam as esmolas dos garotos porque não os humilham e porque os garotos, que têm necessidade de toda a gente, se parecem com eles».
O livro Coração é um livro sobre a escola e, portanto, não é um livro sobre o mérito. A escola, toda a escola, jamais foi fundada sobre o mérito. Se a olharmos de longe e superficialmente, vemos as notas, algumas reprovações e pensamos que a escola se assemelha às empresas: as notas, como os salários, o aproveitamento escolar como a progressão na carreira. Mas esta é a uma visão das escolas (e das empresas) demasiado distante e, por isso, errada. A ideologia meritocrática que está a procurar, com sucesso, ocupar também a escola, baseia-se no dogma de que os talentos são méritos e, portanto, quem tem mais talento deve ser mais premiado. Mas todos sabemos que este dogma é uma fraude ou, pelo menos, uma ilusão, para a sociedade e ainda mais para a escola. Porque os talentos são dons e os nossos desempenhos na vida dependem dos talentos-dons recebidos, muito pouco dos méritos (porque também a minha capacidade de empenho é dom). Qual é o mérito de ter nascido inteligente, rico, e até mesmo bom? Por essa razão, a escola se inspirou em valores não apenas diferentes dos da meritocracia, mas até opostos.
A escola de todos e para todos foi pensada e desejada para reduzir as desigualdades sociais e naturais que a meritocracia, isto é, a ideologia do mérito, pelo contrário, aumenta. Todos os meninos e meninas vão e devem ir à escola, não apenas os merecedores. Todos devem ser colocados nas condições de poder florir e alcançar a sua excelência, não apenas os mais merecedores. Todos têm direito aos cuidados, estima, reconhecimento, admiração, dignidade mesmo que não tenham muitos méritos ou que tenham menos do que os outros. Além disso, a escola é um jardim maravilhoso com flores de talentos diferentes: «Precossi, dou-te a medalha. Ninguém é mais digno de a ostentar. Não a dou só à tua inteligência e ao teu querer; dou-a ao teu coração, dou-a à tua coragem, ao teu carácter valoroso e de bom filho. Não é verdade – acrescentou, dirigindo-se à turma – que ele a merece também por isso? Sim, sim, responderam todos a uma só voz». Precossi era filho de um ferreiro que bebia e que, de vez em quando, lhe batia. Mas também ele teve a sua medalha.
Não era a medalha de Derossi, o primeiro da turma. Era a medalha de uma escola diferente. Depois de De Amicis chegou Maria Montessori que eliminou as notas e depois Don Lourenzo Milani e a escola de Barbiana. A democracia foi uma multiplicação das medalhas de Precossi, que hoje chamamos de inclusão escolar e professores de apoio. Porque aprendemos que na vida das crianças não existem apenas méritos: existe a vida. No dia em que alguém nos convencer de que as escolas devem estar assentes sobre a meritocracia, começaremos a dar medalhas todas iguais e sempre aos mesmos alunos, faremos turmas e escolas especiais para os não merecedores, as desigualdades explodirão e a democracia terá finalmente dado o lugar à meritocracia que é a principal tentativa de legitimação ética da desigualdade.
Em Coração, também se fala muito de trabalho. Naquela Itália, trabalhavam os pobres. Nos campos, nas oficinas, nas fábricas não estavam os ricos, os advogados, os professores. Coração deu-nos palavras muito boas sobre o trabalho dos operários e dos artesãos. Assim escreve o pai a Enrico: «Quando tu estiveres na Universidade ou no Liceu, irás procurar os teus companheiros de escola nas lojas ou nas oficinas…; despreza as diferenças de riqueza e de classe, pelas quais só os ignóbeis pautam os sentimentos e a cortesia». A recém-nascida Itália estava a tentar levar a sério aquele princípio de fraternidade, que também agradava a Mazzini, e esperava que as pessoas pertencentes a classes sociais diferentes pudessem aprender, na escola, a sentir-se irmãos e cidadãos, antes das muitas diferenças.
O Pedreirinho. É filho de um pedreiro, um dos melhores amigos de Enrico – que, por seu lado, era de uma família rica. Um dia, convida-o para sua casa: «O pedreirinho veio hoje todo vestido com roupa do seu pai, ainda branca de cal e de gesso», Coração mostra-nos frequentemente o pedreirinho na sua atitude característica e mais simpática: era um fenómeno a fazer o “focinho de coelho”, um recurso relacional que usa de vez em quando para transformar uma repreensão severa do professor num sorriso coral. Falando e brincando, o pedreirinho «falou-me da sua família: vivem numa mansarda, o pai anda na escola noturna a aprender a ler e a mãe é de Biella». A descrição da escola noturna dos operários está entre as páginas mais bonitas: estavam «de boca aberta, a ouvir a lição». Naqueles homens, famintos de saber, revi os garotos encontrados nas escolas da África e da Ásia, com a mesma fome de saber e de uma vida melhor. Depois, lancham juntos, sentados no sofá: «Quando nos levantámos, meu pai não quis que eu limpasse o encosto que o pedreirinho tinha sujado de branco com o seu blusão». De Amicis conclui o episódio com um trecho de uma carta do pai de Enrico, onde encontramos palavras sobre o trabalho, entre as mais bonitas da nossa literatura; «Sabes, filho, porque é que eu não quis que limpasses o sofá? Porque limpá-lo, com o teu colega a ver, era quase admoestá-lo por tê-lo sujado… E o que se faz trabalhando não é sujidade: é pó, é cal, é verniz; é tudo o que queiras, mas sujidade não. O trabalho não suja: Nunca digas a um operário que vem do trabalho: estás sujo». Estavam também estas páginas na alma coletiva dos italianos que os tornaram capazes de escrever, décadas depois: «A Itália é uma República democrática assente no trabalho» (Artigo 1).
Os pobres. É uma outra carta escrita pelo pai a Enrico: «Não te habitues a passar indiferente diante da miséria que te estende a mão». Nós, pelo contrário, estamos perfeitamente habituados à miséria do mundo; depois, compreendemos que esta nossa indiferença se tornou uma nova grande pobreza do nosso tempo que nos impede de sofrer pela pobreza dos outros, por atrofia da alma. Já não sofremos pela miséria porque nos empobrecemos moralmente.
Porém, como um arco-íris inesperado, dentro destas palavras sobre os pobres, encontramos palavras que me trespassaram a alma e a inteligência pela sua beleza e verdade: «Os pobres apreciam as esmolas dos garotos porque não os humilham e porque os garotos, que têm necessidade de toda a gente, se parecem com eles». Esta frase é um gotejar de um mar de sabedoria. As poucas vezes que uma criança ou um jovem consegue aproximar-se e encontrar uma pessoa na pobreza – um acontecimento cada vez mais raro, porque a separação dos garotos da pobreza é uma das características do nosso tempo empobrecido que pensa que imunizar os filhos da pobreza da vida é uma riqueza para eles –, aqueles cruzamentos de olhares estão entre os espetáculos mais admiráveis. Cria-se uma maravilhosa improvável fraternidade. Os meninos, as meninas, as crianças e, de vez em quanto, os jovens não distinguem os adultos entre ricos e pobres: para eles são todos “homens”. Veem, com certeza, as diferenças na aparência, mas é como se não as vissem, porque veem a alma. Por isso, não experimentam o sentimento errado de compaixão que humilha a pessoa de quem se tem pena. Por outro lado, o “pobre” (não gosto de usar a palavra “pobre” de forma genérica) sabe que a criança é pobre como ele - «têm necessidade de toda a gente» - e, assim, experimenta com ele uma verdadeira igualdade. Na minha infância fui amado por muitos pobres, que me enriqueceram com a sua pobreza, sem a intenção de me querer amar, simplesmente sendo o que eram. E também eu os amei com a minha infância e meninice naturalmente fraterna e absolutamente sincera. Então, é verdade que só as crianças podem dar ou fazer algo pelos pobres sem os humilhar, assim como os adultos que lutaram toda a vida para salvar algumas dimensões da sua infância – como adulto, é-me muito difícil estar como irmão junto de um “pobre”, mas quando consigo é bonito, como nos meus dias de infância: «A esmola de um adulto é um ato de caridade; mas a de uma criança é simultaneamente um ato de caridade e uma carícia, compreendes?». Sim, compreendemos..
A oficina. Precossi, um outro companheiro, é filho de um ferreiro que o seu filho conseguiu redimir de uma vida errada, graças à sua medalha. O rapaz «estudava as lições» sobre uma «pilha de tijolos, com o livro em cima dos joelhos». O pai, por seu lado, trabalhava: «Alçou de um grande martelo e começou a bater numa barra de ferro, empurrando a parte ao rubro ora para um lado, ora para outro, entre uma ponta da bigorna e o meio». E, entretanto, «o seu filho observava-nos, com um certo ar ufano, como quem diz: “Vejam como o meu pai trabalha!”».
O orgulho pelo trabalho dos pais é como o bom pão das crianças e dos jovens. A estima pelo mundo e pelos adultos começa estimando o nosso pai enquanto trabalha – é importante que os pais trabalhem, também para a estima dos nossos jovens: os filhos sabem também que os pais e as mães são bons e valentes mesmo que não trabalhem, mas é missão de uma boa sociedade colocar cada pessoa em condições de poder trabalhar, também para que os filhos possam dizer com ar ufano: “Vejam como o meu pai trabalha!”. E os filhos e as filhas orgulham-se de todo o tipo de trabalho dos pais. Mesmo aqui não distinguem entre os trabalhos que a sociedade considera prestigiosos dos mais humildes, porque é a beleza dos seus pais a tornar bonitos os trabalhos que fazem – para as crianças, os pais são a coisa mais bonita do mundo. Eis porque talvez não haja dor maior do que a que uma criança sente quando ouve humilhar o trabalho dos seus pais. É uma profanação no coração. A meritocracia é também uma fábrica de humilhação de muitos trabalhadores e dos seus filhos.
Quando crescidos, e no momento oportuno, as crianças compreenderão que nem todos os trabalhos são iguais, nem todos são dignos, nem todos são pagos de forma justa. Mas, como crianças, devem poder apenas dizer: “Vejam como o meu pai trabalha!”.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 23/10/2022
O livro Coração é uma reflexão sobre a escola e sobre o trabalho e entrega-nos palavras improváveis e maravilhosas sobre o que uma e outro ainda são hoje, nos olhos das crianças e na vida dos adultos.
De Amicis é capaz de nos oferecer uma frase que é o gotejar de um mar de sabedoria: « Os pobres apreciam as esmolas dos garotos porque não os humilham e porque os garotos, que têm necessidade de toda a gente, se parecem com eles».
O livro Coração é um livro sobre a escola e, portanto, não é um livro sobre o mérito. A escola, toda a escola, jamais foi fundada sobre o mérito. Se a olharmos de longe e superficialmente, vemos as notas, algumas reprovações e pensamos que a escola se assemelha às empresas: as notas, como os salários, o aproveitamento escolar como a progressão na carreira. Mas esta é a uma visão das escolas (e das empresas) demasiado distante e, por isso, errada. A ideologia meritocrática que está a procurar, com sucesso, ocupar também a escola, baseia-se no dogma de que os talentos são méritos e, portanto, quem tem mais talento deve ser mais premiado. Mas todos sabemos que este dogma é uma fraude ou, pelo menos, uma ilusão, para a sociedade e ainda mais para a escola. Porque os talentos são dons e os nossos desempenhos na vida dependem dos talentos-dons recebidos, muito pouco dos méritos (porque também a minha capacidade de empenho é dom). Qual é o mérito de ter nascido inteligente, rico, e até mesmo bom? Por essa razão, a escola se inspirou em valores não apenas diferentes dos da meritocracia, mas até opostos.
A escola de todos e para todos foi pensada e desejada para reduzir as desigualdades sociais e naturais que a meritocracia, isto é, a ideologia do mérito, pelo contrário, aumenta. Todos os meninos e meninas vão e devem ir à escola, não apenas os merecedores. Todos devem ser colocados nas condições de poder florir e alcançar a sua excelência, não apenas os mais merecedores. Todos têm direito aos cuidados, estima, reconhecimento, admiração, dignidade mesmo que não tenham muitos méritos ou que tenham menos do que os outros. Além disso, a escola é um jardim maravilhoso com flores de talentos diferentes: «Precossi, dou-te a medalha. Ninguém é mais digno de a ostentar. Não a dou só à tua inteligência e ao teu querer; dou-a ao teu coração, dou-a à tua coragem, ao teu carácter valoroso e de bom filho. Não é verdade – acrescentou, dirigindo-se à turma – que ele a merece também por isso? Sim, sim, responderam todos a uma só voz». Precossi era filho de um ferreiro que bebia e que, de vez em quando, lhe batia. Mas também ele teve a sua medalha.
Não era a medalha de Derossi, o primeiro da turma. Era a medalha de uma escola diferente. Depois de De Amicis chegou Maria Montessori que eliminou as notas e depois Don Lourenzo Milani e a escola de Barbiana. A democracia foi uma multiplicação das medalhas de Precossi, que hoje chamamos de inclusão escolar e professores de apoio. Porque aprendemos que na vida das crianças não existem apenas méritos: existe a vida. No dia em que alguém nos convencer de que as escolas devem estar assentes sobre a meritocracia, começaremos a dar medalhas todas iguais e sempre aos mesmos alunos, faremos turmas e escolas especiais para os não merecedores, as desigualdades explodirão e a democracia terá finalmente dado o lugar à meritocracia que é a principal tentativa de legitimação ética da desigualdade.
Em Coração, também se fala muito de trabalho. Naquela Itália, trabalhavam os pobres. Nos campos, nas oficinas, nas fábricas não estavam os ricos, os advogados, os professores. Coração deu-nos palavras muito boas sobre o trabalho dos operários e dos artesãos. Assim escreve o pai a Enrico: «Quando tu estiveres na Universidade ou no Liceu, irás procurar os teus companheiros de escola nas lojas ou nas oficinas…; despreza as diferenças de riqueza e de classe, pelas quais só os ignóbeis pautam os sentimentos e a cortesia». A recém-nascida Itália estava a tentar levar a sério aquele princípio de fraternidade, que também agradava a Mazzini, e esperava que as pessoas pertencentes a classes sociais diferentes pudessem aprender, na escola, a sentir-se irmãos e cidadãos, antes das muitas diferenças.
O Pedreirinho. É filho de um pedreiro, um dos melhores amigos de Enrico – que, por seu lado, era de uma família rica. Um dia, convida-o para sua casa: «O pedreirinho veio hoje todo vestido com roupa do seu pai, ainda branca de cal e de gesso», Coração mostra-nos frequentemente o pedreirinho na sua atitude característica e mais simpática: era um fenómeno a fazer o “focinho de coelho”, um recurso relacional que usa de vez em quando para transformar uma repreensão severa do professor num sorriso coral. Falando e brincando, o pedreirinho «falou-me da sua família: vivem numa mansarda, o pai anda na escola noturna a aprender a ler e a mãe é de Biella». A descrição da escola noturna dos operários está entre as páginas mais bonitas: estavam «de boca aberta, a ouvir a lição». Naqueles homens, famintos de saber, revi os garotos encontrados nas escolas da África e da Ásia, com a mesma fome de saber e de uma vida melhor. Depois, lancham juntos, sentados no sofá: «Quando nos levantámos, meu pai não quis que eu limpasse o encosto que o pedreirinho tinha sujado de branco com o seu blusão». De Amicis conclui o episódio com um trecho de uma carta do pai de Enrico, onde encontramos palavras sobre o trabalho, entre as mais bonitas da nossa literatura; «Sabes, filho, porque é que eu não quis que limpasses o sofá? Porque limpá-lo, com o teu colega a ver, era quase admoestá-lo por tê-lo sujado… E o que se faz trabalhando não é sujidade: é pó, é cal, é verniz; é tudo o que queiras, mas sujidade não. O trabalho não suja: Nunca digas a um operário que vem do trabalho: estás sujo». Estavam também estas páginas na alma coletiva dos italianos que os tornaram capazes de escrever, décadas depois: «A Itália é uma República democrática assente no trabalho» (Artigo 1).
Os pobres. É uma outra carta escrita pelo pai a Enrico: «Não te habitues a passar indiferente diante da miséria que te estende a mão». Nós, pelo contrário, estamos perfeitamente habituados à miséria do mundo; depois, compreendemos que esta nossa indiferença se tornou uma nova grande pobreza do nosso tempo que nos impede de sofrer pela pobreza dos outros, por atrofia da alma. Já não sofremos pela miséria porque nos empobrecemos moralmente.
Porém, como um arco-íris inesperado, dentro destas palavras sobre os pobres, encontramos palavras que me trespassaram a alma e a inteligência pela sua beleza e verdade: «Os pobres apreciam as esmolas dos garotos porque não os humilham e porque os garotos, que têm necessidade de toda a gente, se parecem com eles». Esta frase é um gotejar de um mar de sabedoria. As poucas vezes que uma criança ou um jovem consegue aproximar-se e encontrar uma pessoa na pobreza – um acontecimento cada vez mais raro, porque a separação dos garotos da pobreza é uma das características do nosso tempo empobrecido que pensa que imunizar os filhos da pobreza da vida é uma riqueza para eles –, aqueles cruzamentos de olhares estão entre os espetáculos mais admiráveis. Cria-se uma maravilhosa improvável fraternidade. Os meninos, as meninas, as crianças e, de vez em quanto, os jovens não distinguem os adultos entre ricos e pobres: para eles são todos “homens”. Veem, com certeza, as diferenças na aparência, mas é como se não as vissem, porque veem a alma. Por isso, não experimentam o sentimento errado de compaixão que humilha a pessoa de quem se tem pena. Por outro lado, o “pobre” (não gosto de usar a palavra “pobre” de forma genérica) sabe que a criança é pobre como ele - «têm necessidade de toda a gente» - e, assim, experimenta com ele uma verdadeira igualdade. Na minha infância fui amado por muitos pobres, que me enriqueceram com a sua pobreza, sem a intenção de me querer amar, simplesmente sendo o que eram. E também eu os amei com a minha infância e meninice naturalmente fraterna e absolutamente sincera. Então, é verdade que só as crianças podem dar ou fazer algo pelos pobres sem os humilhar, assim como os adultos que lutaram toda a vida para salvar algumas dimensões da sua infância – como adulto, é-me muito difícil estar como irmão junto de um “pobre”, mas quando consigo é bonito, como nos meus dias de infância: «A esmola de um adulto é um ato de caridade; mas a de uma criança é simultaneamente um ato de caridade e uma carícia, compreendes?». Sim, compreendemos..
A oficina. Precossi, um outro companheiro, é filho de um ferreiro que o seu filho conseguiu redimir de uma vida errada, graças à sua medalha. O rapaz «estudava as lições» sobre uma «pilha de tijolos, com o livro em cima dos joelhos». O pai, por seu lado, trabalhava: «Alçou de um grande martelo e começou a bater numa barra de ferro, empurrando a parte ao rubro ora para um lado, ora para outro, entre uma ponta da bigorna e o meio». E, entretanto, «o seu filho observava-nos, com um certo ar ufano, como quem diz: “Vejam como o meu pai trabalha!”».
O orgulho pelo trabalho dos pais é como o bom pão das crianças e dos jovens. A estima pelo mundo e pelos adultos começa estimando o nosso pai enquanto trabalha – é importante que os pais trabalhem, também para a estima dos nossos jovens: os filhos sabem também que os pais e as mães são bons e valentes mesmo que não trabalhem, mas é missão de uma boa sociedade colocar cada pessoa em condições de poder trabalhar, também para que os filhos possam dizer com ar ufano: “Vejam como o meu pai trabalha!”. E os filhos e as filhas orgulham-se de todo o tipo de trabalho dos pais. Mesmo aqui não distinguem entre os trabalhos que a sociedade considera prestigiosos dos mais humildes, porque é a beleza dos seus pais a tornar bonitos os trabalhos que fazem – para as crianças, os pais são a coisa mais bonita do mundo. Eis porque talvez não haja dor maior do que a que uma criança sente quando ouve humilhar o trabalho dos seus pais. É uma profanação no coração. A meritocracia é também uma fábrica de humilhação de muitos trabalhadores e dos seus filhos.
Quando crescidos, e no momento oportuno, as crianças compreenderão que nem todos os trabalhos são iguais, nem todos são dignos, nem todos são pagos de forma justa. Mas, como crianças, devem poder apenas dizer: “Vejam como o meu pai trabalha!”.
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stdClass Object ( [id] => 19413 [title] => O outro nome do pai [alias] => o-outro-nome-do-pai [introtext] =>Raízes de futuro / 7 – A tarefa difícil é encontrar a vida e Deus onde nem a vida nem Deus existem.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 16/10/2022
«Minha menina,
por ti, teria dado todos os jardins
do meu reino se tivesse sido rainha,
até à última rosa, até à última pluma.
Todo o reino para ti.
Contudo, deixo-te barracos e espinhos…
Estamos apenas confusos, acredita.
Mas sentimos. Ainda sentimos.
Ainda somos capazes de amar alguma coisa.
Ainda experimentamos piedade..
Há esplendor
em cada coisa. Vi-o.
Agora vejo-o mais.
Há esplendor. Não tenhas medo.».Mariangela Gualtieri
O livro Cuore [Coração] é um livro que, nalgumas páginas, ainda nos fala. Recorda-nos o que é, verdadeiramente, a escola (e também os cuidados de saúde). Exercício necessário para compreender quais as virtudes de ontem que também hoje devem ser preservadas.
Cada geração deve decidir quais virtudes de ontem quer preservar e quais quer esquecer. Pouquíssimas virtudes são virtudes sempre e em toda a parte; todas as outras são virtudes aqui e agora e algumas virtudes transformam-se, com o tempo, em vícios (e vice-versa). As virtudes militares foram grandes virtudes nas civilizações passadas. Eram transmitidas nas famílias, nas religiões, na escola, descritas nas histórias e nos romances. Aquelas histórias guerreiras e patrióticas, por vezes, ainda nos comovem. Mas nós decidimos não nos entregar a elas e desviamos o olhar. Porque a história das guerras ensina-nos que a árvore da democracia nasce, cresce, produz bons frutos quando se cultivam outras virtudes: a mansidão, o diálogo, a reciprocidade, a compaixão, a tolerância, a não-violência. E, assim, palavras como “o inimigo” saíram do território das virtudes para entrar no das palavras a recolocar no armário de ontem.
[fulltext] =>O livro Coração, de Edmondo De Amicis, um dos livros mais lidos na Itália e no mundo, fala muitíssimo de virtudes. Fala muito de virtudes militares e de amor à pátria, virtudes muito importantes para o jovem Reino de Itália. Quem pode esquecer “O pequeno vigia lombardo” ou “O tamborzinho sardo”? Mas os meninos de De Amicis liam aqueles contos de pequenos soldados heróis enquanto estavam sentados nos bancos e, assim diziam-nos, talvez para lá das intenções do autor, que o lugar bom onde os meninos devem estar é o recreio da escola, não o campo de batalha. A primeira crítica àquelas virtudes bélicas era, portanto, intrínseca ao próprio livro que, enquanto as descrevia, superava-as para fundar uma civilização diferente.
Reli o Coração na idade adulta. Gostei muito; de algumas páginas gostei muitíssimo. Não partilhei o sarcasmo de Umberto Eco (Elogio a Franti, 1962), gostei do bom julgamento de Benedetto Croce (La Crítica, 1903). Um livro que fala de meninos, de família, de pobreza e de muita dor, fala de adultos e professores – maravilhoso o retrato de “a professorinha da caneta vermelha”. Mas fala, sobretudo, de escola, dos primeiros anos escolares dos alunos. Coração é um livro que vê os meninos, numa sociedade que “não via” meninos e meninas. E, ali, começou a vê-los no seu gesto de ir à escola – e é sempre ali, enquanto correm rápidos, com as suas mochilas pesadas, que cada geração deve aprender a revê-los, para os compreender, para compreender presente e futuro.
Estamos na Itália de 1886, em Turim, numa escola primária, depois da Lei de Coppino (1887) que tinha elevado para três anos a escolaridade obrigatória. É o alvorecer da escola de todos e, como em cada aurora, a luz e o ar são diferentes e únicos. Coração é um livro sobre a maior revolução civil e moral da modernidade. Antes (e, em parte, ainda depois) só os filhos dos nobres e dos ricos iam à escola. Os filhos dos pobres, pelo contrário, deviam trabalhar, trabalhar muito e mal – dos meus quatro avôs e avós, apenas Domenico e Luigi sabiam escrever a sua assinatura porque – por serem homens – tinham feito a primeira e a segunda classe.
De Amicis é enormíssimo ao colocar-nos entre os bancos daquelas primeiras classes: «Eu nasci para ser professor e quando vejo, numa sala, quatro carteiras e uma mesinha, emociono-me» (Pagine sparse, 1874). É ali que podemos voltar a compreender o que foi e continua a ser, verdadeiramente, a escola de todos e para todos. Naquela Itália e naquela Europa, os meninos dos ricos iam à escola juntamente com os filhos dos pobres, classes sociais diferentes que se encontravam e confraternizavam, graças à amizade e à fraternidade por eles vividas nas carteiras da escola. Era na escola que se diluía a inveja social que é a raiz de toda a desarmonia social. Eram todos diferentes, mas todos iguais. Uma Itália ainda semifeudal que aprendeu o alfabeto da democracia nas salas de aula, que eram e permanecem não menos importantes do que as salas do parlamento. Pudemos escrever os artigos proféticos da Constituição porque tínhamos vivido e escrito aquele novo humanismo nas redações e nos ditados – estamos assentes no trabalho porque as crianças pobres podem ir à escola. E, depois, também quisemos que as crianças com problemas estivessem nas aulas de todos, graças aos professores de apoio (revi-os muitos deles no livro Coração) e afastámos a tentação das “aulas especiais”. As leis raciais-racistas foram desumanas sob todos os pontos de vista, mas também foram sacrílegas quando expulsaram as crianças judias das escolas. A saída pela porta das suas salas de aula não foi, para aqueles meninos e meninas, menos assustadora e terrível do que a entrada na porta dos campos de concentração.
Os contos de Coração falam de rapazes, machos, entre os 9 e os 12-13 anos. Uma idade maravilhosa, suspensa entre a infância e a adolescência. Quando a inocência da infância já não existe e outra desabrocha no seu lugar. A inocência que, por exemplo, se exprime numa nova confiança para com os grandes – os “homens”, assim os chamam os meninos de Coração, porque, para eles, os grandes são habitantes de um mundo muito diferente. A confiança incondicional da criança de ontem, que permanece, agora pinta-se de estima e de imitação. É a idade onde os grandes são amadíssimos pelos pequenos, tios e tias, professores e professoras. Já não têm a candura de criança, mas têm uma outra, com mais esplendor. Têm também uma inteligência típica e extraordinária que, nalgumas das suas dimensões, desaparece com a adolescência e que a transitoriedade torna sublime – esta inteligência diferente e efémera é património moral da humanidade.
Algumas páginas de Coração estão entre as maiores da nossa literatura. Alguns dos seus contos são romances no romance – voltaremos a alguns no próximo domingo.Dos Apeninos aos Andes. É a história de Marco, menino genovês de treze anos, que parte, sozinho, para a Argentina, à procura da sua mãe. Revi-o em tantos meninos que ainda partem sozinhos, embarcam no nosso mar, por vezes chegam, algum encontra a mãe ou o pai ou ambos, outros encontram, os portos fechados, muitos encontram a morte. E quando, após a viagem longuíssima e desesperada, chega a Tucuman (De Amicis tinha estado na Argentina), Marco encontra, finalmente, a sua mãe doente, lemos três vezes uma palavra: «Deus, Deus, meu Deus», gritada pela mãe ao ver aparecer o seu filhinho. Coração foi criticado pela ausência da religião: esta tríplice palavra gritada por uma mãe enche o livro de uma fragância de alta espiritualidade; é o silêncio da religião que faz ecoar a palavra “Deus”. Também é significativo que os livros infantis mais estimados e influentes na catolicíssima Itália sejam Coração e Pinóquio, livros que falam pouquíssimo de Deus e de religião, mas que sabem falar à alma das crianças (e dos adultos). Talvez porque as obras que nascem com a intenção de escrever um livro religioso raramente são bons livros (seria necessário o génio imenso e conturbado de Manzoni ou de Dostoievski); porque a mensagem devora a arte, que tem uma necessidade absoluta de liberdade e de gratuidade. Deus gosta de se infiltrar na vida sem o nosso conhecimento, surpreender e surpreender-nos; é assim que se protege das nossas ideologias. Mas onde os livros ideológicos, incluídos os religiosos, nunca funcionam é com as crianças e jovens. As crianças encontram Deus e o seu espírito apenas na vida, não nas nossas ideias sobre a vida. Vêm ao mundo equipadas com um sentido religioso que trazem como dote do mundo donde provêm e com o qual se mantêm, durante anos, em contacto vital e contínuo. São companheiros dos anjos e cidadãos do Paraíso. Nós, adultos, só conseguimos falar de Deus com elas se entrarmos neste seu reino - «se não vos tornardes como crianças…». É difícil transmitir a fé às crianças porque em vez de experimentarmos nós entrar no seu reino diferente, pedimos-lhes para entrar no nosso, muito menos evangélico e religioso.
O enfermeiro do paizinho (L’infermiere di tata). Talvez o meu “conto mensal” preferido. Cicillo é enviado pela mãe ao hospital de Nápoles, para visitar o seu pai, paizinho, regressado da França e ali internado. O enfermeiro indica-lhe um homem muito doente: «Eis o teu pai». Cicillo desata a chorar, «pobre paizinho, que diferente estava». Cicillo assiste-o, o doente está quase sempre com os olhos fechados. E, assim, Cicillo «começou a sua vida de enfermeiro»: acomodava-lhe a roupa, segurava-lhe a mão, «afastava os mosquitos». Após cinco dias de assistência, um homem entra na camarata e grita: «Cicillo». Era… o seu pai. A criança tinha cuidado de um outro doente. Reabraça o pai, mas não se afasta daquela cama. O pai convida-o a voltar para casa e Cicillo: «É este velhote…. Está sempre a olhar para mim. Eu julgava que eras tu… Deixa-me ficar aqui mais um bocado». Cicillo fica e «recomeçou a fazer de enfermeiro». Permanece com ele alguns dias, segura-lhe sempre a mão. Por fim, o homem morre. Cicillo regressa, mas procurava um nome para dar àquele homem: «E vem-lhe, do coração aos lábios, o doce nome que lhe tinha dado durante cinco dias: Adeus, pobre paizinho (tata)». Cicillo está a mostrar-nos um dos segredos da existência humana: começa-se amando uma mãe e um pai e talvez um irmão, termina-se descobrindo cada homem e mulher como “irmão, irmã, mãe” e pai.
Cicillo é também uma imagem esplêndida, porque infantil, das religiosas, das enfermeiras e dos enfermeiros, de ontem e de hoje. Não sabiam o nosso nome, mas trataram-nos como paizinho (tata) e continuam a fazê-lo. É esta a natureza profunda do sistema de saúde, um mundo maravilhoso de desconhecidos que cuidam e seguram a mão de outros desconhecidos que, porém, se assemelham muito, até demasiado, às pessoas de casa. Se virmos bem, Cicillo continua a segurar a mão e a afastar os mosquitos ao ‘tata’ diariamente, nos nossos hospitais, por aquela pietas laicíssima e religiosa que mantem o mundo de pé. E como não ouvir no «Eis o teu pai» do enfermeiro a Cicillo um eco do «Eis a tua mãe» de Jesus a João?
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A tarefa mais difícil é aprender a encontrar a vida dentro da morte, ver o Evangelho onde não deveria estar, tocar Deus onde ele não existe.Raízes de futuro / 7 – A tarefa difícil é encontrar a vida e Deus onde nem a vida nem Deus existem.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 16/10/2022
«Minha menina,
por ti, teria dado todos os jardins
do meu reino se tivesse sido rainha,
até à última rosa, até à última pluma.
Todo o reino para ti.
Contudo, deixo-te barracos e espinhos…
Estamos apenas confusos, acredita.
Mas sentimos. Ainda sentimos.
Ainda somos capazes de amar alguma coisa.
Ainda experimentamos piedade..
Há esplendor
em cada coisa. Vi-o.
Agora vejo-o mais.
Há esplendor. Não tenhas medo.».Mariangela Gualtieri
O livro Cuore [Coração] é um livro que, nalgumas páginas, ainda nos fala. Recorda-nos o que é, verdadeiramente, a escola (e também os cuidados de saúde). Exercício necessário para compreender quais as virtudes de ontem que também hoje devem ser preservadas.
Cada geração deve decidir quais virtudes de ontem quer preservar e quais quer esquecer. Pouquíssimas virtudes são virtudes sempre e em toda a parte; todas as outras são virtudes aqui e agora e algumas virtudes transformam-se, com o tempo, em vícios (e vice-versa). As virtudes militares foram grandes virtudes nas civilizações passadas. Eram transmitidas nas famílias, nas religiões, na escola, descritas nas histórias e nos romances. Aquelas histórias guerreiras e patrióticas, por vezes, ainda nos comovem. Mas nós decidimos não nos entregar a elas e desviamos o olhar. Porque a história das guerras ensina-nos que a árvore da democracia nasce, cresce, produz bons frutos quando se cultivam outras virtudes: a mansidão, o diálogo, a reciprocidade, a compaixão, a tolerância, a não-violência. E, assim, palavras como “o inimigo” saíram do território das virtudes para entrar no das palavras a recolocar no armário de ontem.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 09/10/2022
A segunda parte de «O Mercador de Veneza» faz aparecer uma crítica à sociedade comercial do seu tempo, às suas hipocrisias e contradições. E se, nesta obra, a vítima fosse o próprio Shyloch?
Shakespeare, na Londres dos finais do século XVI, torna-se profeta do mundo nascente do capitalismo. A religião do lucro pretende que consenso e acordo recíproco sejam os novos dogmas.Uma das ilusões destes últimos tempos de cultura capitalista é pensar que o dinheiro e os incentivos económicos podem comprar quase tudo, certamente as coisas mais importantes. As civilizações pré-modernas eram dominadas pelas paixões. O interesse económico, que sempre existiu, desenvolvia um papel muito importante, mas não era decisivo, porque eram as paixões a governar o mundo e as mais importantes não conheciam a conversão em dinheiro. As paixões, isto é, a honra, o respeito, a fama, a raiva, a vingança não tinham, no mundo de ontem, equivalentes monetários. O advento da sociedade de mercado trouxe consigo a promessa-utopia de reduzir todas as paixões aos interesses económicos, esperando atribuir a cada sentimento humano um valor monetário correspondente.
[fulltext] =>Talvez o principal carácter da modernidade seja precisamente esta transformação das paixões em juros, uma transformação que, como nos ensinou o grande economista Albert Hirschman, (em 1977), tem algo de desejável. Porque, enquanto as paixões, não sendo racionais, podem ser devastadoras para o indivíduo e para as comunidades, os juros são menos perigosos, porque são previsíveis e calculáveis. Se tenho boas razões para acreditar que o meu homólogo se comportará seguindo os seus interesses, posso prever facilmente os seus movimentos e contra-ataques. Com o orgulho, a vingança, a honra, pelo contrário, não sabemos fazer as contas, sobretudo com os efeitos das paixões dos outros. Talvez uma das grandes dificuldades que a NATO está a encontrar na gestão e previsão dos desenvolvimentos da guerra na Ucrânia esteja em ter desvalorizado a força que as paixões ainda têm na sociedade russa, iludindo-nos que os interesses económicos lá tivessem a natureza e a força que têm na nossa sociedade capitalista.
Mas voltemos a Shakespeare, onde o deixámos no domingo passado. Depois do contrato carnal assinado entre os dois mercadores, com a bizarra pena de uma libra de carne do devedor, em O Mercador de Veneza o imponderável acontece: todos os barcos do devedor, António, naufragam. E, assim, passados os três meses previstos pelo contrato, este não está em condições de honrar a sua dívida de 3.000 ducados. Shyloch, o credor judeu, pede a execução da pena, diante do Doge de Veneza. Bassânio, o amigo esbanjador, por quem António se endividou, entra em profunda crise pela pouca sorte do amigo, confidencia com a sua prometida esposa Pórcia e esta pergunta-lhe: «Que quantia deve ao judeu?», três mil ducados, responde Bassânio. «Mais nada? Dá-lhe seis mil e liquida a dívida. Duplica-os, triplica-os».
Também Pórcia, apesar de ser habitante da medieval Belmonte, se movimenta num mundo onde o dinheiro compra tudo. Mas, paradoxalmente, não é este o mundo do banqueiro Shyloch. De facto – elemento crucial –, a pena pedida a António não era em dinheiro, mas em carne. Por isso, tecnicamente, o seu contrato não era de usura, não queria que o dinheiro emprestado produzisse outro dinheiro. Por isso, Shyloch recusa que a carne seja comutada em dinheiro: «Shyloch, é-te oferecido três vezes mais dinheiro» (Pórcia). «Jurei, jurei ao céu: devo cometer um perjúrio?». Shyloch quer apenas a libra de carne: «Que ganharia eu exigindo que ele cumpra a condição acordada? Uma libra de carne de um homem não vale uma libra de carne de um carneiro, boi ou cabra».
O mundo de Shyloch era, portanto, um mundo mais próximo do mundo cavaleiresco e feudal de Belmonte do que do comercial e moderno de Veneza, onde tudo estava para se tornar monetizável. Pórcia, mulher do mundo antigo, com a sua oferta de multiplicar o dinheiro para extinguir a pena de carne, mostra-se, na realidade, uma mulher do novo mundo (sem a ambivalência dos seus personagens não compreendemos nem O Mercador de Veneza nem Shakespeare). Então, Shyloch, por alguns traços, está do lado de Veneza e dos seus negócios, cada vez menos ligados à moral e à religião, mas, por outros traços decisivos do carácter, ainda está no mundo medieval, onde nem tudo pode (e deve) ser convertido em dinheiro.
É este cruzamento multidimensional de moderno e antigo, cristãos e judeus, religião e laicidade, que torna O Mercador de Veneza belíssimo e atual: «Se somos como vós em tudo o resto, também nos assemelharemos nisto. Se um judeu comete uma injustiça contra um cristão, que faz o manso cristão? Vingança! E se um cristão comete uma injustiça contra um judeu, que fará, seguindo o exemplo do cristão, o judeu vítima? Vingança! Porei em prática a maldade que me ensinastes e será difícil não o fazer melhor do que os meus mestres» (Shyloch). Há também um segundo aspeto importante. Pórcia aparece, no processo, disfarçada de jovem advogado e começa por afirmar que o contrato com a pena carnal era legítimo: «a causa apresentada por vós é estranha, mas regular; a lei veneziana não vos pode impedir de prosseguir». Também António tinha reconhecido a impossibilidade de anular aquele contrato: «O Doge não pode impedir o curso da lei: se os privilégios comerciais que os estrangeiros têm em Veneza fossem repudiados, seria desacreditada a justiça do Estado que tem negócios e lucros com todas as nações». Por isso, aquele contrato consensual é válido. Na realidade, um contrato com uma pena de carne humana é um contrato nulo por objeto ilícito – sê-lo-ia atualmente (art.º 1346 do Código Civil Italiano) e também o era no passado, pelo direito romano.Na verdade, é famosa a frase de Ulpiano, contida no Digesto: «Ninguém pode ser considerado dono dos seus próprios membros» (Dig. 9.II.13). O direito romano e europeu estava fundado, de facto, na distinção entre pessoas e coisas: as coisas podiam ser alienadas, as pessoas e os seus corpos não. Esta regra não era respeitada no caso dos escravos, que eram assemelhados às coisas e, enquanto tal, comprados, vendidos, e não raramente mortos pelo seu proprietário (com ou sem justa causa) – e se Shakespeare, entre as muitas mensagens implícitas, nos estivesse a dizer que os devedores insolventes são os novos escravos do novo capitalismo? Então, porque considerar legítimo aquele contrato? Naquela não-nulidade, Shakespeare está a mostrar-se profeta do mundo que estava a nascer na sua Londres de finais do século XVI, que se tornará, mais tarde, o capitalismo. A religião dos lucros pretende que o consenso e o acordo recíproco sejam os únicos novos dogmas da sociedade comercial, nenhum obstáculo se deve intrometer entre as duas vontades.
Eis-nos, assim, conduzidos diretamente à solução do dilema e à conclusão da comédia. Pórcia recorre a um sofisma jurídico: Shyloch venceu a causa e, por isso, pode, legitimamente, retirar de António a libra de carne. Mas, acrescenta Pórcia, «há outra coisa. Esta obrigação [bond] não te dá uma gota de sangue; diz explicitamente “uma libra de carne”». Portanto, Shyloch deverá retirar, com uma faca, aquela carne sem deixar sair de António nem sequer uma gota de sangue. Uma impossibilidade prática evidente, com base na qual Pórcia afirma que a intenção de Shyloch, escondida naquela pena, era a morte de António: «Conspiraste contra a vida do acusado». E, assim, condena Shyloch a dar metade de todo seu património a Veneza e a outra metade a António. O Doge poupa-lhe a vida, mas obriga-o a «tornar-se cristão». O usurário é derrotado e arruinado graças a um sofisma jurídico. Os mesmos sofismas jurídicos usados naquele tempo por moralistas, juristas e teólogos cristãos em questões de usura, para condenar os judeus e absolver os banqueiros e os mercadores cristãos (lucro cessante, dano emergente, juros “da” hipoteca e juros “pela” hipoteca, letras bancárias, comendas, contratos de seguro, etc., etc.). A ética vencedora em O Mercador não é a do capitalismo reformado e calvinista do trabalho como vocação (beruf), mas a herdada em Londres de uma Itália mercantil já decadente; “Inglês italianizado é um diabo incarnado” (provérbio citado por Roger Ascham, preceptor da rainha Isabel).
Portanto, quem vence a causa é o proto capitalismo veneziano e londrino, com a sua hipocrisia, que condenava os judeus por usura e se absolvia a si próprio por ofensas muito mais graves. Pórcia tinha invocado a misericórdia (mercy) de Shyloch em relação a António: «Então, o judeu deve ser misericordioso». Shyloch responde: «E obrigas-me a sê-lo?». Pórcia: «A misericórdia tem esta qualidade: não deve ser forçada [strained]». Aquele mundo cristão pedia ao judeu para praticar a misericórdia, mas, depois, era impiedoso para com Shyloch que até o obrigava a batizar-se – a mercy não pode ser forçada, mas o batismo sim. Portanto, Shyloch é um derrotado, mas com armas morais impróprias. A usura de Shyloch já não serve mais para aquele novo mundo comercial: desenvolveu todos os mecanismos hipócritas inerentes à cultura e também à teologia cristã, que lhes permite obter empréstimos sem incorrer em crimes religiosos ou jurídicos. Shyloch é uma das vítimas daquele novo mundo impiedoso que estava a avançar velozmente na Europa: talvez seja ele a principal vítima de Os Mercadores.
Encontramos, também aqui, um indício determinante de apoio a estas hipóteses numa referência explícita à Bíblia, presente na obra. De facto, quando, no processo, entra em cena Pórcia, disfarçada de advogado, o seu nome é Balthasar. E as palavras que Shyloch pronuncia, ao ouvir Pórcia-Balthasar, são: «Um Daniel, um segundo Daniel veio para fazer justiça». De facto, Baltasar é o nome babilónico do profeta Daniel (Dn 1, 7). O único lugar onde, na Bíblia, Daniel-Baltazar assume as funções do juiz justo é no episódio de Susana, acusada por dois velhos que a queriam violar com o engano e que Daniel consegue libertar de um processo injusto (Dn 13). Portanto, Shyloch é-nos apresentado por Shakespeare como uma nova Susana que espera que seja feita justiça; de assinalar também que o capítulo 13, sobre Susana, apenas é considerado pelo cânone cristão, não pelo hebreu, a realçar que os destinatários destas mensagens éticas, implícitas, mas fortes, eram os cristãos, não os judeus. O papel de Shyloch na obra é, sobretudo, o de fazer surgir as contradições internas do novo que avançava e que, nalguns aspetos, era ainda muito antigo (Belmonte não era muito diferente de Veneza) e que, nas suas novas componentes, aparecia mais impiedoso e injusto do que o velho mundo. Onde estão hoje os novos Shakespeare para revelar as contradições, as hipocrisias, as vítimas do nosso mundo, que não é muito diferente de O Mercador de Veneza nos seus interesses e nas suas paixões?
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 09/10/2022
A segunda parte de «O Mercador de Veneza» faz aparecer uma crítica à sociedade comercial do seu tempo, às suas hipocrisias e contradições. E se, nesta obra, a vítima fosse o próprio Shyloch?
Shakespeare, na Londres dos finais do século XVI, torna-se profeta do mundo nascente do capitalismo. A religião do lucro pretende que consenso e acordo recíproco sejam os novos dogmas.Uma das ilusões destes últimos tempos de cultura capitalista é pensar que o dinheiro e os incentivos económicos podem comprar quase tudo, certamente as coisas mais importantes. As civilizações pré-modernas eram dominadas pelas paixões. O interesse económico, que sempre existiu, desenvolvia um papel muito importante, mas não era decisivo, porque eram as paixões a governar o mundo e as mais importantes não conheciam a conversão em dinheiro. As paixões, isto é, a honra, o respeito, a fama, a raiva, a vingança não tinham, no mundo de ontem, equivalentes monetários. O advento da sociedade de mercado trouxe consigo a promessa-utopia de reduzir todas as paixões aos interesses económicos, esperando atribuir a cada sentimento humano um valor monetário correspondente.
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Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 01/10/2022.
«O Mercador de Veneza» é uma obra fundamental para compreender o nascimento do espírito do capitalismo. No entanto, contém ideias e uma mensagem que podem surpreender. No diálogo-luta de Shyloch e Bassânio estão muitas bases da modernidade. Sobretudo a semente do “evangelho da prosperidade”, hoje novamente na moda.
Para captar a essência de uma civilização, a sua arte é sempre o caminho principal. O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, por si só, diz quase tudo acerca do espírito do capitalismo. Estamos nos finais do século XVI, em Londres, Shakespeare está na sua maturidade artística. Entra em contacto, mais uma vez, com materiais narrativos italianos. Sobretudo com o conto “Il pecorone” [O carneiro], de Ser Giovanni Fiorentino, composto por volta dos anos oitenta do século XIV, onde estão presentes todos os elementos de O Mercador de Veneza, inclusive o centro narrativo da tragédia: a pena de carne prevista pelo contrato entre o rico mercador de Veneza (Ansaldo) e o usurário hebreu de Mestre (Conto I). Elio Toaf, em 1966, relatou um facto acontecido realmente em Roma (descrito por G. Leti, em 1852), durante o pontificado de Sisto V (1585-1590): Paolo M. Secchi, mercador romano, tinha apostado uma libra da sua carne com o «judeu» Sansone Ceneda, um episódio talvez também conhecido em Londres.
[fulltext] =>O enredo de O Mercador, de Shakespeare, é conhecido. Bassânio, jovem esbanjador, precisa de 3 mil ducados, para poder participar numa espécie de concurso amoroso (os “três cofres”) e poder casar-se com a rica e bela Ponzia. Por isso, dirige-se ao seu amigo António, um rico mercador de Veneza (que dá, talvez, o nome à obra) o qual, não tendo dinheiro, mas amando loucamente Bassânio, procura arranjar o dinheiro através de um conhecido usurário de Rialto: o judeu Shyloch.
Porém, este não lhe propõe um contrato normal a juros. Faz-lhe uma proposta bizarra e terrível: se não restituir o dinheiro no fim do prazo, o usurário retirará, como castigo, «uma libra [NdT: 450gr] da vossa boa carne, da parte do corpo que me agradar escolher». António aceita – sobre a continuação da história nos debruçaremos no próximo domingo.
Porquê um tal contrato? Porque apresentar este usurário como um carni-ceiro? Tem-se discutido muito sobre a presença de um sentimento antissemita nesta obra. Na realidade, Shakespeare regista os sentimentos do seu tempo, sem exprimir a sua própria opinião sobre o tema – nas obras de arte, sobretudo nas obras-primas, a descrição do mundo é a primeira crítica do artista. Estudando esta obra, e olhando-a com os olhos do economista que sou, estou convencido de que se pode delinear o juízo ético de Shakespeare e talvez nos surpreenda. É verosímil que O Mercador contenha uma descrição e uma crítica do proto capitalismo de Veneza e, sobretudo, da “sua” Londres.
Shyloch é uma figura complexa e ambivalente. Encontramos uma primeira chave de leitura no diálogo inicial com António, o mercador devedor: «Shyloch: “Mas, oiça: parece-me que disse que nunca emprestou ou pediu emprestado com juros”. António: “Não, nunca”». António era um mercador que realizava também a atividade bancária, mas gabava-se de emprestar sem juros. De facto, quando o vê, Shyloch pensa: «“Como se parece com um publicano hipócrita! Odeio-o porque é cristão e odeio-o ainda mais porque, na sua humilde candura, empresta dinheiro de graça e, assim, faz baixar a taxa dos juros em Veneza».
Uma primeira tensão narrativa: de um lado o usurário judeu e do outro o filantropo cristão. Ambos se conheciam: «Shyloch: “Ele ataca-me a mim e aos meus ganhos lícitos a que ele chama usura”». Portanto, António ofende-o na praça de Rialto. Além disso – um dado importante – António não empresta com juros, mas agora está a aceitar um contrato usurário. E é aqui que encontramos uma primeira chave de leitura. Shyloch cita a Bíblia, recorda o conhecido episódio da astúcia de Jacob, graças à qual enriquece em casa do sogro, Labão, um pagão (Génesis, cap. 30). António comenta: «E o que é que isso tem a ver? Jacob recebeu juros?” Shyloch: “Não eram juros diretos, como vós dizeis”». Então, o judeu explica aquele episódio central da história de Israel e na história de O Mercador de Veneza. Labão quer liquidar o salário de Jacob pelo serviço que lhe prestou, mas a primeira resposta importante de Jacob foi; “Não me darás nada” (Gn 30, 31). Uma resposta que se assemelha ao “grátis” de António. Jacob e Labão fazem um contrato bizarro que, ao leitor, parece quase uma burla, não muito diferente do contrato entre Shyloch e António: estabelecem que todos os cordeiros nascidos malhados seriam de Jacob, os outros de Labão. O leitor sabia que, num rebanho, os cordeiros malhados são muito poucos; portanto, imagina-se um contrato desfavorável a Jacob e pensa que o seu “não me darás nada” fosse quase verdadeiro. Pelo contrário, eis a reviravolta.
Jacob encontra um expediente (portanto, não rouba): enquanto as ovelhas mais fortes acasalavam, punha-lhes diante varas que ele havia descascado, com listras verticais, de modo – pensava ele – que olhando para as varas listradas, as ovelhas parissem cordeiros listrados (Gn 30, 39). O expediente funcionou, os cordeiros melhores nasceram listrados e Jacob tornou-se muito rico.
A referência a este episódio do Génesis é crucial na economia de O Mercador de Veneza (negligenciado pelos comentadores). Antes de tudo, na saga de Labão e Jacob, o desonesto é o sogro que continua a não respeitar os pactos (ele mudou-os “dez vezes”: Gen 31, 5). O vigarista é o pagão: aqui, Jacob é apenas o esperto e astuto mas, a seu modo, respeita os pactos. Além disso, Jacob não recebeu o seu salário em dinheiro: levou ovelhas que foram, por isso, para ele um rendimento muito maior do que o salário em dinheiro. E António pergunta: «Queres tirar disto alguma dedução em favor da usura? O vosso ouro e a vossa prata são parecidos às ovelhas e às cabras de Jacob?». Na realidade, a resposta é: as tuas ovelhas são. Shyloch estava, de facto, a dizer a António: não há nenhuma diferença ética entre as tuas “ovelhas” (os teus lucros dos negócios) e os meus juros sobre o dinheiro. Estamos iguais, mas tu és hipócrita e vigarista, como Labão, pagão como tu.
Mas o sentido último da citação de Jacob aparece no fim: «Era o seu modo de prosperar [thrive] e Jacob foi abençoado: a prosperidade [thrift] é bênção, a não ser que seja um roubo». Thrift, em inglês, não significa lucro nem muito menos usura; pelo contrário, significa prosperidade, benefício, até mesmo parcimónia e, por isso, não tem uma aceção negativa. Para a ética de Shyloch, prosperar com a astúcia é uma bênção, não um roubo nem um comportamento moralmente reprovável. E se esta fosse também a ética de Shakespeare?
Mas há um segundo elemento também importante. O que poderia ser moralmente condenável era a prodigalidade de Bassânio: «Não ignores, António, o quanto eu arruinei o meu património levando um padrão de vida muito mais sumptuoso do que os meus meios me permitiam». De facto, vendo bem, nesta obra os obcecados com o dinheiro são os cristãos (Bassânio acima de todos). Shyloch pede uma libra de carne, sem qualquer valor económico – o seu espírito é parecido ao de Mazzarò para com as suas “coisas”.
As perguntas da comédia-tragédia, tornam-se: porque é que emprestar dinheiro com juros deveria ser mais imoral do que o lucro de um mercador? «Chamas-me descrente, cão assassino… e tudo por causa do uso que faço do que é meu?» E porque é que, pelo contrário, os esbanjadores, como Bassânio, são amigos, amados e respeitados? É ético para António arriscar a própria carne para satisfazer os caprichos de um amigo perdulário? Então, de que lado está a boa ética?
Eis, portanto, uma primeira conclusão. Com O Mercador estamos num momento de viragem da ética económica no nascimento do capitalismo – de assinalar que a palavra usada para o contrato da libra de carne é «bond».
Neste diálogo-conflito entre Shyloch e Bassânio, estão muitas raízes da modernidade. Está a semente do “evangelho da prosperidade”, ideologia centrada na bênção da riqueza que, hoje, está de novo na moda, sobretudo nos países de cultura protestante. Está também uma raiz da visão romântica do dinheiro que só é bom se for gasto, de uma riqueza ética apenas se for consumida, não importa se esse dinheiro vem de empréstimo de instituições financeiras que condenamos. Aí se encontra também um ícone do declínio do primeiro proto capitalismo italiano do Renascimento. De facto, a Itália que entrou na Inglaterra puritana já não era a dos mercadores parcimoniosos do século XIV. Era, pelo contrário, a de Francesco Benni: «Não há, no mundo, melhor vida do que a do devedor, falido, arruinado e desesperado. É este que se pode dizer bem-aventurado. Faz, caro amigo, até mesmo estoques [empréstimos], recorre frequentemente a crédito, com juros e deixa as preocupações para os outros: porque um urde a teia, outro a tece» (In lode del debito, 1548).
O Mercador é uma obra charneira entre dois mundos. Na Londres isabelina de Shakespeare, ainda estava viva uma ética feudal cristã que louvava o consumo, a terra, a nobreza que permitia o recorrer a empréstimos, mas que condenava o conceder empréstimos – é, na verdade, curioso que à condenação do empréstimo a juros não corresponda também uma firme condenação do débito com juros, prática muito mais popular e difundida. Aquela ética cristã aprovava o débito para o luxo e estimava os mercadores, como António, que acumulavam grandes riquezas nos negócios e, assim, podiam permitir-se emprestar gratuitamente, mas condenava e amaldiçoava o empréstimo com juros de judeus que, com o seu dinheiro, permitiam aos comerciantes cristãos enriquecer e fazer beneficência e ter luxos: «Como se parece com um publicano hipócrita». Quem emprestava dinheiro era “como Judas”, quem o recebia emprestado para o consumo ou para os negócios era, pelo contrário, um “bom cristão”, imitava a “Madalena” que “desperdiçou” um perfume no valor de 300 denários. Não compreendemos a Europa moderna sem estas ambivalências e hipocrisias e pouquíssimos, como Shakespeare, no-lo fazem ver com uma clareza auroral.
Na primeira parte de O Mercador, a ambivalência determinante é, pois, totalmente interna a Shakespeare e à sua época, combatida entre o velho mundo e o novo espírito capitalista. Até ao contrato de carne, a tragicomédia ainda está toda em aberto; qual das duas éticas prevalecerá no fim?En la primera parte del Mercader la ambivalencia decisiva es completamente interna a Shakespeare y a su época, que combate entre el viejo mundo y el nuevo espíritu capitalista. Hasta el contrato de carne, la tragedia-comedia permanece totalmente abierta: ¿cuál de las dos éticas prevalecerá al final?
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Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 01/10/2022.
«O Mercador de Veneza» é uma obra fundamental para compreender o nascimento do espírito do capitalismo. No entanto, contém ideias e uma mensagem que podem surpreender. No diálogo-luta de Shyloch e Bassânio estão muitas bases da modernidade. Sobretudo a semente do “evangelho da prosperidade”, hoje novamente na moda.
Para captar a essência de uma civilização, a sua arte é sempre o caminho principal. O Mercador de Veneza, de William Shakespeare, por si só, diz quase tudo acerca do espírito do capitalismo. Estamos nos finais do século XVI, em Londres, Shakespeare está na sua maturidade artística. Entra em contacto, mais uma vez, com materiais narrativos italianos. Sobretudo com o conto “Il pecorone” [O carneiro], de Ser Giovanni Fiorentino, composto por volta dos anos oitenta do século XIV, onde estão presentes todos os elementos de O Mercador de Veneza, inclusive o centro narrativo da tragédia: a pena de carne prevista pelo contrato entre o rico mercador de Veneza (Ansaldo) e o usurário hebreu de Mestre (Conto I). Elio Toaf, em 1966, relatou um facto acontecido realmente em Roma (descrito por G. Leti, em 1852), durante o pontificado de Sisto V (1585-1590): Paolo M. Secchi, mercador romano, tinha apostado uma libra da sua carne com o «judeu» Sansone Ceneda, um episódio talvez também conhecido em Londres.
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Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 24/09/2022
O encontro entre Jean Valjean e Gervasinho em “Os Miseráveis” é uma reflexão sobre como acontecem as ressurreições na vida e o papel que as crianças têm nelas. Por vezes o que parece uma recaída na velha vida é apenas o primeiro passo da nova.
Para as conversões, verdadeiras e duradouras, compreender apenas com a cabeça não chega: a racionalidade, a inteligência são demasiado frágeis. Tais acontecimentos dependem pouquíssimo das nossas intenções. Acontecem a basta.Houve um longo tempo em que as crianças e jovens não cresciam dentro das suas casas. A miséria gerava muitos pequenos vagabundos. Alguns escapavam dos orfanatos, outros, sem família, giravam à procura de pequenos trabalhos temporários, algum inventava pequenos espetáculos ambulantes para granjear algum dinheiro. Todos expostos às violências dos moradores e dos viajantes. No século XIX, ainda se encontravam muitos na Europa. E ainda se encontram demasiados em muitas cidades do mundo. No Brasil, chamam-lhes meninos da rua; noutros países não têm um nome, vivem na rua, sem casa e sem família, expostos nas praças da privação.
[fulltext] =>Jean Valjean encontrou-se com um destes meninos vagabundos. Gervasinho será o seu segundo bom samaritano. Tinha acabado de ser “redimido” pelo bispo Myriel que, como resposta ao seu furto dos talheres lhe tinha feito o segundo dom extraordinário dos castiçais e da liberdade. Agora, vagueia pelos campos, confuso, devorado por muitos pensamentos: «Experimentava uma espécie de cólera; não sabia contra quem» (Os Miseráveis, I, 13). Encontrar o ágape de Myriel depois de vinte anos de prisão foi para ele um acontecimento ao mesmo tempo maravilhoso e tremendo: «Ao sair daquela casa disforme e negra chamada prisão, o bispo tinha-lhe ferido a alma como uma luz demasiado viva lhe teria ferido os olhos ao sair das trevas». Aquele dom excessivo, recebido de Maryel, depois do seu roubo, tinha mostrado a Jean Valjean, com uma força nova, o roubo que tinha sofrido da sua própria existência: «Como uma coruja que, de repente, vê nascer o sol, o condenado tinha sido deslumbrado e como que cegado pela virtude». E, assim, «contemplou a sua vida e pareceu-lhe horrível».
Quem quer que tenha sido alcançado por um amor grande e gratuito numa condição de erro e de pecado sabe que o encontro com aquela luz agápica fere a alma: «Parecia-lhe ver Satanás à luz do paraíso». Vemos mais, compreendemos mais, sofremos mais: a luz faz-nos ver a nossa escuridão em toda a sua tremenda grandeza; esta nova visão do passado amedronta-nos e o medo pode tornar-se angústia. Eis porque, às vezes, muitas vezes, o encontro com um amor gratuito autêntico não basta para começar, de verdade, uma nova vida: aquela grande luz não nos liberta do nosso passado que, paradoxalmente, nos pesa mais porque vemos toda a sua gravidade.
Nesta luta interior de luz e de trevas, Jean Valjean senta-se atrás de um arbusto: «Voltou-se e viu aproximar-se, pelo caminho, um pequeno saboiano de doze anos que cantava, com a sanfona de lado e a caixinha da marmota às costas, um dos dóceis e alegres rapazes que andam de terra em terra, mostrando os joelhos pelos buracos das calças». O rapaz não sabia que estava a ser observado e brincava atirando as suas poucas moedas ao ar e aparando-as com as costas da mão. Uma moeda de quarenta soldos escapou-se-lhe «e foi rolando para o arbusto até Jean Valjean que a viu e pôs-lhe o pé em cima». O pequeno aproxima-se: «Senhor – disse o pequeno saboiano, com a confiança da infância, feita de ignorância e inocência –, a minha moeda!». Jean Valjean pergunta-lhe como se chama: «Gervasinho (pequeno Gervásio), senhor». «Desaparece – disse Jean Valjean». «A minha moeda – gritou a criança – a minha moeda de prata! A minha moeda!... A criança chorava». A um dado momento, «Ainda aqui estás? - disse Jean Valjean - e, pondo-se bruscamente de pé, sempre com o sapato em cima da moeda de prata, acrescentou: Queres ir embora ou não?». Nesse momento «o menino olhou para ele assustado; depois, começou a tremer dos pés à cabeça e, após poucos segundos de espanto, desatou a fugir, correndo com todas as suas forças».
Jean Valjean permaneceu sentado. Escurecia. Quando se inclina para pegar no bastão, vê a moeda: «O que é isto?». «Pôs-se a olhar ao longe pela planície… E gritou com todas as suas forças: «Gervasinho, Gervasinho». No entanto, o rapaz já estava longe e Jean Valjean continuava a gritar: «Gervasinho, Gervasinho». Encontrou um padre e perguntou-lhe pelo rapaz. Ficou sem resposta. Continuou a sua corrida desesperada: «Gervasinho, Gervasinho, Gervasinho, gritou pela última vez». Depois, caiu esgotado e «com a cara entre os joelhos, gritou: sou um miserável». O coração explodiu-lhe: «Era a primeira vez que chorava desde há dezanove anos».
Chegou uma segunda luz forte, uma luz diferente. Não chegou do ágape do bispo; chegou da «ignorância e inocência» de um menino da rua. A violação daquela inocência ignorante está a continuar a ressurreição começada pelo dom de Myriel. Aquele nome de criança – Gervasinho – repetido obsessivamente, muitas vezes, gritado, urrado com desespero, está prestes a fazer rolar a pedra do sepulcro.Para as conversões verdadeiras e duradouras compreender apenas com a cabeça não basta: a racionalidade, a inteligência são demasiado frágeis. Os poucos, pouquíssimos acontecimentos que nos mudam verdadeiramente – por vezes, apenas um – não são fruto da nossa vontade, dependem pouquíssimo das nossas intenções. Acontecem e basta: esperam-nos atrás de um arbusto enquanto vagueamos confusos, sem procurar nada. Jean Valjean já estava dentro de um processo de conversão, a sua ressurreição já tinha começado à porta de Myriel. Mas, para se concluir, havia necessidade de um encontro com a inocência violada de um inocente. Se tivesse sido um adulto a deixar escapar a moeda de prata, o efeito não teria sido o mesmo. As crianças contêm e conservam em si um mistério de gratuidade absoluta e de inocência. Quando um adulto rouba uma moeda a um menino, aquele roubo é de uma outra natureza: é roubo da vida. É a condição adulta que nos ensina a distinguir as pessoas das suas coisas (sem nunca o conseguirmos totalmente). As coisas das crianças estão, pelo contrário, entrelaçadas com a sua carne. Por isso, os seus bens, até mesmo as suas poucas moedas, não são os dos adultos: a matéria (a res) é a mesma, mas quando as coisas chegam às mãos das crianças, aquela matéria muda de “substância”, mesmo se não mudam os seus “acidentes”: as mãos das crianças realizam “transubstanciações” diferentes, mas não menos reais do que as operadas pelas mãos dos sacerdotes. Violar as suas coisas é sacrilégio. Na oikonomia da vida o valor das moedas manuseadas pelas crianças é diferente, o seu percurso é um outro –rolam de outra maneira. E, assim, recordam-nos que as moedas, todas as moedas, ganham o seu verdadeiro valor das relações em que são usadas, abusadas, dadas, roubadas. Ontem e hoje, na literatura e na vida.
Jean Valjean, por uma autêntica graça – Hugo está a fazer-nos um tratado de teologia incarnada da graça – toma, inesperadamente, consciência de ter feito um sacrilégio, de ter violado um lugar sagrado, de ter profanado uma hóstia. Porque cada coração de criança é sacrário – é-o o coração de cada pessoa. Não teria podido compreender este sacrilégio sem o dom agápico do bispo; mas aquele dom extraordinário não teria produzido os seus frutos de vida sem a profanação do mistério daquela moeda pequenina. O coração de Jean Valjean foi capaz de experimentar terror e angústia por aquela moeda roubada porque, antes, fora ferido pelo dom de Myriel. A experiência de ser amados com um amor-ágape começa com um corte da alma que cria uma fenda onde pode entrar uma nova dor que, antes, não podíamos conhecer porque o coração estava demasiado endurecido. Quando se inicia uma ressurreição, o amor e a dor convivem, e conseguir experimentar uma nova qualidade de dor moral é o primeiro sinal de que o coração mudou verdadeiramente.
E, dentro desta dor tão aguda, Hugo faz Jean Valjean dizer uma das suas frases mais lindas: «Uma voz dizia-lhe ao ouvido que tinha atravessado a hora solene do seu destino, que já não havia outro meio-termo para ele, que se não se tornasse já o melhor dos homens, seria o pior». Nos dias normais da vida apresentam-se-nos escolhas cujo êxito nos fará um pouco melhores ou um pouco piores. No entanto, existem alguns poucos dias diferentes. São os dias do grande julgamento sobre a nossa vida, e o juiz seremos nós. Neste dia, escolhe-se entre o paraíso e o inferno: o purgatório já não existe mais. Sente-se, com uma clareza infinita, que ou tentamos tornar-nos o melhor ou tornamo-nos, com certeza, o pior dos homens da terra. Foi o dia de Padre Kolbe, o dia de Cristo no Gólgota, de Francisco diante do seu pai e do bispo de Assis; é também o dia de muitos de nós, mulheres e homens normais que, apesar de tudo, conhecemos, de vez em quando, um dia extraordinário. Está ligado a estes dias o verdadeiro sentido da palavra “salvação” e da outra, simétrica, “perder-se”. Pode-se errar e viver uma vida inteira errada porque não vemos o mal que estamos a fazer: mas, se um dia, por uma graça, vemos, finalmente, o mal e não escolhemos não voltar a fazê-lo, o mal de ontem torna-se o inferno de amanhã.
Neste encontro falhado entre o ex-prisioneiro e o pequeno saboiano há, também, uma última mensagem preciosa, para nós e para as pessoas que amamos. Quando uma pessoa que foi muito amada começa uma nova vida há, frequentemente, a fase que vai da porta de Myriel ao arbusto de Gervasinho. Tinha recebido uma autêntica graça; depois, vemo-la cair de novo e pensamos que o primeiro dom e aquela esperança tinham sido desperdiçados, eram apenas ilusões. Hugo diz-nos: Cuidado! Talvez estejas a ver Jean Valjean entre a porta da cúria e o arbusto. Aquela maldade que não devia fazer e, no entanto, faz, pode ser o primeiro passo da nova vida. Já é homem novo, embora ainda revestido da dor do homem velho: «Ao roubar aquela moeda àquele menino, ele tinha feito uma coisa de que já não era capaz».Muitas vezes, não compreendemos e condenamos porque não damos a Jean Valjean o tempo para gritar desesperado: «Gervasinho!». Já está no caminho certo, mas, para continuar no bom caminho, precisa também da nossa confiança. Jean Valjean foi salvo por Myriel e foi salvo por Gervasinho, em conjunto: pela inocência, filha da virtude de um idoso, e pela inocência natural de um menino pobre. A grande literatura faz-nos atravessar esta experiência até ao fim e, depois, repete-nos: “Vai e faz também tu o mesmo”.
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Finalmente, é impressionante rever hoje – entre os rapazes e as raparigas de Fridays for Future e de Economy of Francesco – os olhos de Gervasinho que nos pede a sua moeda roubada. Quando voltaremos a ouvir o seu pranto? Quando levantaremos da terra o nosso pé pesado? Quando restituiremos a sua moedinha?Raízes de futuro / 4 – Acontece encontrar um segundo bom samaritano. E é determinante.
Luigino Bruni
Original publicado em Avvenire em 24/09/2022
O encontro entre Jean Valjean e Gervasinho em “Os Miseráveis” é uma reflexão sobre como acontecem as ressurreições na vida e o papel que as crianças têm nelas. Por vezes o que parece uma recaída na velha vida é apenas o primeiro passo da nova.
Para as conversões, verdadeiras e duradouras, compreender apenas com a cabeça não chega: a racionalidade, a inteligência são demasiado frágeis. Tais acontecimentos dependem pouquíssimo das nossas intenções. Acontecem a basta.Houve um longo tempo em que as crianças e jovens não cresciam dentro das suas casas. A miséria gerava muitos pequenos vagabundos. Alguns escapavam dos orfanatos, outros, sem família, giravam à procura de pequenos trabalhos temporários, algum inventava pequenos espetáculos ambulantes para granjear algum dinheiro. Todos expostos às violências dos moradores e dos viajantes. No século XIX, ainda se encontravam muitos na Europa. E ainda se encontram demasiados em muitas cidades do mundo. No Brasil, chamam-lhes meninos da rua; noutros países não têm um nome, vivem na rua, sem casa e sem família, expostos nas praças da privação.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 17/09/2022
Os Miseráveis, de Victor Hugo, contêm também um grande ensinamento sobre o ágape como cura da miséria. A partir do encontro entre Valjean e o bispo Myriel, Deus torna-nos inocentes com o olhar, alguns escritores com a pena da alma. E a arte é a vida invisível entre o Gólgota e o sepulcro vazio.
Existem alguns livros – e são pouquíssimos – que são capazes de, sozinhos, dizer tudo o que se deve dizer sobre a justiça, sobre a dor moral, sobre a vida. São filhos, como todos, do seu tempo e do seu lugar, embora possuam o privilégio quase divino da eternidade. Os seus personagens são mais contemporâneos do que os nossos colegas, são amigos e parentes: somos nós, são a parte mais verdadeira do nosso coração. Enquanto folheamos as páginas destes livros e destas poesias, relemos a nossa vida, iluminam-se ângulos invisíveis ou escondidos, aquelas palavras conseguem exprimir a dor indescritível. Lemos as histórias dos personagens e aquelas histórias lêem-nos e revelam-nos a alma da alma.
[fulltext] =>Os Miseráveis de Víctor Hugo é um destes livros. O seu protagonista principal é Jean Valjean. Porém, o romance começa com um bispo, Monsenhor Myriel, a quem são dedicadas páginas entre as mais bonitas e intensas da história da literatura. Páginas que tocam, comovem, convertem.
Estamos em 1815 – o mesmo ano do início da história da outra obra-prima francesa: O Conde de Monte Cristo. Encontramos um bispo, já idoso, que, em jovem, fora filho de um aristocrata. A Revolução marcou a sua ruína económica e social. Teve de emigrar para Itália com a sua jovem mulher, que veio a morrer durante aquele exílio. Este fracasso dos projetos da juventude provoca uma viragem: o sacerdócio. O bispo é-nos apresentado como o ícone do Evangelho vivido. Acabado de ser nomeado, dá a sua grande residência episcopal ao hospital de Digne; depois, é-nos descrito o seu orçamento pessoal todo gasto para os pobres. Por isso, vemo-lo deslocar-se montado num burro, nunca numa carruagem.
À casa deste bispo, numa noite de inverno, vem bater o vagabundo Jean Valjean, acabado de sair da prisão. Tinha sido libertado depois de dezanove anos de cárcere. Tinha chegado lá porque ficara sem trabalho (era podador): desesperado pela fome das sete crianças da sua irmã viúva, acabou por roubar um pão a um padeiro: «Entrou triste e saiu desesperado». Hugo explica-nos a razão deste desespero. Na prisão, «a luz natural estava acesa nele» e «a desventura, que tem a sua luz», tinha-a aumentado. Naquela luz infeliz Jean Valjean torna-se «tribunal de si próprio» e reconhece não ser um inocente punido injustamente». Na verdade, tinha roubado aquele pão, não tinha sabido suportar a fome, não tinha sabido esperar – pensava enquanto estava preso. Mas, depois, também pensou: «Era ele o único a estar errado naquela história fatal?». E respondeu que não. Compreendeu que também a sociedade tinha a sua culpa por fazê-lo perder, primeiro, o trabalho, depois, por fazer passar fome a ele e aos seus sobrinhos e, por fim, por tê-lo encarcerado durante dezanove anos por ter roubado um pão. E, assim, «julgou a sociedade e condenou-a: condenou-a ao seu ódio». Declarou a si mesmo «que não havia equilíbrio entre o dano causado por ele e o dano causado a ele». Por isso «Jean Valjean sentia-se indignado».
Os Miseráveis é também uma grande reflexão sobre a inocência dos seres humanos. Embora Jean Valjean reconheça as suas culpas, nós sentimos que está inocente. Porque a inocência que vale não é a ausência de culpas nem a inocuidade (vê-lo-emos em breve); se fosse assim, nenhuma pessoa seria inocente. A inocência deste romance, profundamente bíblica e evangélica, tem a ver, pelo contrário, com a pureza do coração, com a sinceridade, com a honestidade para consigo mesmo e para com os outros. Jean Valjean «não era de má natureza. Ele ainda era bom quando chegou à cadeia». E o escritor pergunta a si mesmo: «O homem, criado bom por Deus, pode tornar-se mau por obra do homem?»; a maldade dos outros e a própria pode «apagar a palavra que o dedo de Deus escreveu na testa de cada homem: Esperança?» A resposta de Hugo é um claro: “não”. A justiça não vê esta inocência profunda nem nós conseguimos vê-la nos outros nem em nós próprios. É a inocência do filho pródigo, é a de Job: é a inocência que Deus vê, aquela que, pelo menos Deus, deve ver. A imagem de Deus, a vocação ao amor e à relação, permanece viva e operante na nossa medula, apesar do gesto de Caim. O olhar do escritor, atingindo as vítimas da sua história, toca-as com a pena da alma e, tocando-as, inocencitiza-as. A arte é o caminho invisível que conduz as vítimas do Gólgota ao sepulcro vazio. A Bíblia diz-nos que Deus, olhando-nos e tocando-nos na nossa miséria, torna-nos inocentes com o seu olhar, do primeiro ao último fôlego, quando, entre os braços do anjo da morte, sentirmos a mesma inocência com que viemos ao mundo.
Com este ódio e com esta indignação, Jean Valjean tinha chegado a Digne. Na cidade, é reconhecido como ex-presidiário e, por isso, expulso das estalagens. Até que, resignado a dormir esfomeado e ao relento, chega à porta de Myriel. O bispo acolhe-o, prepara-lhe a mesa com os talheres de prata. E, quando se dirige a Jean Valjean, trata-o por “senhor”. Hugo dá-nos uma das suas frases mais bonitas: «A ignomínia tem sede de consideração».
Depois desta ceia de ágape fraterno, chega a noite. Voltam à cabeça de Jean Valjean os fantasmas do ódio, da vingança e da indignação: «Fica obcecado por aqueles seis talheres de prata». Levanta-se, dirige-se ao armário e logo «enfiou os talheres de prata na mochila, atravessou o jardim, saltou o muro como um tigre e fugiu».
Na manhã seguinte, a empregada descobre o roubo e avisa o bispo. E este retorquiu: «Eram nossos aqueles talheres de prata? Pertenciam aos pobres. Quem era aquele homem? Um pobre, evidentemente». Batem à porta: «Três homens seguram um quarto pela lapela. Os três eram polícias, o outro era Jean Valjean». E eis o inesperado: «Ah, estás aqui; fico contente por te ver. Como aconteceu? Tinha-te dado também os castiçais de prata; porque não os levaste juntamente com os talheres?». A respiração para.
A hospitalidade é um gesto vulnerável. O anfitrião pode ser um anjo (Heb 13, 2), mas quem chega pode ser Ismael que mata Godolias que o acolheu, assassinado enquanto «comiam juntos» em casa (Jr 31, 1). Sempre existiram, existem e existirão anfitriões “mortos” por aqueles que acolhem. Quando acolhemos alguém em casa, não podemos saber o que acontecerá durante a noite, sobretudo quando quem entra é um homem ferido, humilhado, desalmado, indignado. Myriel foi imprudente: não foi virtuoso, a ética do ágape não é a ética das virtudes. Nós reprovamos a ação de Jean Valjean; mas o exercício empático que Hugo nos leva a fazer não se conclui com a recomendação: “não acolher futuros Jean Valjean”; pelo contrário, termina aumentando em nós o desejo imprudente de abrir mais uma porta – pelo menos a de nossa casa. Deixámos de ler a Bíblia e Os Miseráveis; fechámos as portas e os portos aos nossos viajantes e tornámo-nos nós os novos miseráveis.Myriel ensina-nos o que é o ágape. Chega um desconhecido, talvez um condenado. Torna-se um de casa, vamos buscar, para ele, os talheres mais bonitos. Sabemos bem, porque somos especialistas em humanidade, que aquela visão brilhante depois de tanta dor e maldade se pode tornar uma tentação irresistível para aquele pobre. Mas a honra a dar ao hóspede supera o medo da tentação – não devemos amaldiçoar toda a nuvem carregada de água pela recordação da tempestade homicida.
Esta forma especial (maravilhosa e essencial) de dom começa com uma transgressão: em vez de mandar dormir num albergue o hóspede inquietante, dá-lhe a melhor cama da casa; não o manda para a sopa dos pobres, convida-o para a sua mesa. Para honrar o hóspede, oferece-lhe os talheres de prata e trata-o por “senhor”. A beleza é a primeira cura de qualquer miséria. Depois, vai para a cama sabendo que arrisca os seus bens e até mesmo a sua vida (a ingenuidade do ágape não é estupidez), mas sabendo que os bens e até mesmo a vida não são propriedade privada; são dom e, por isso, podem/devem ser doados. Depois, chega a experiência da traição; ficamos desapontados, mas não nos sentimos defraudados. Depois o hóspede volta: espera a condenação e o insulto e, pelo contrário, encontra o per-dão. Isto é, no lugar do dom roubado encontra um outro dom: o anel no dedo, o banquete.
Mas porquê também os castiçais? Não bastava a “mentira” boa da oferta dos talheres? (Nota bem: as regras abstratas, “nunca digas mentiras”, estão quase sempre erradas). Talvez porque a traição de quem errou se cura olhando para o futuro, gerando esperança com um novo dom. É o excedente gratuito dado a nós pelo outro que, depois do erro, nos torna capazes do necessário. Só um novo dom pode curar o furto de um primeiro dom. O eros não basta para o acolhimento vulnerável. A amizade (philia) pode dar o jantar e a cama e ir até aos três guardas, mas ali diz ao hóspede: “malandro e ingrato”. Só o ágape chega aos castiçais. Com certeza que é difícil, hoje impossível, construir todo um sistema social e penal baseado apenas no ágape. Mas quando o construímos sem o ágape, as nossas sociedades e as nossas prisões acabam por se assemelhar demasiado às de Polifemo e dos benjaminitas de Guibeá (Jz 19-21).
Porém, é na vida normal do bispo que se encontra a dimensão determinante da gramática do ágape. Myriel reagiu daquele modo à traição do dom – o dom agápico inclui, desde o princípio, a possibilidade concreta da traição – porque toda a sua existência era alimentada pelo ágape. O que pode parecer uma resposta emotiva é, em vez disso, o fruto de uma vida de exercício diário de ágape. Como quando vejo alguém que se está a afogar no mar tempestuoso: se me lanço, por instinto, no redemoinho das ondas, é quase certo que me afogo com ele: se, pelo contrário, a lançar-se é um nadador profissional, o provável salvamento é o resultado do treino de uma vida. O ágape não é improvisação: é habitus conquistado, é disciplina dura: «Quando pensardes na leveza da bailarina, olhai para os seus pés» (Carla Fracci). Nem todos podem viver, todos os dias, a hospitalidade agápica: porém, alguém o deve fazer: pelo menos um, pelo menos eu, pelo menos uma vez. Um único gesto de ágape pode resgatar uma vida; por isso, pode salvar o mundo – vê-lo-emos no próximo domingo, continuando a seguir Jean Valjean. Mas, por agora, deixemos repousar o coração na beleza do ágape.
Dedicado aos presos, inocentes como Jean Valjean, que na luz da sua desventura souberam conservar uma inocência verdadeira.
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por Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 10/09/2022.
O conto de Verga “La roba” [A coisa] oferece-nos intuições sobre o sistema económico do nosso tempo, sobre o seu triste epílogo se não formos capazes de inverter a rota.
A acumulação de coisas e bens realiza-se “à vista de toda a gente” e faz crescer a inveja dos jovens em quem a procura e nas sociedades em que se realiza.«De quem é isto? - ouvia responder: - De Mazzarò. E, passando junto de uma quinta do tamanho de uma aldeia: - E isto? - De Mazzarò… Depois, um olival, tão grande como um bosque. Eram as oliveiras de Mazzarò. Tudo coisas de Mazzarò».
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La roba é um dos contos mais bonitos de Giovanni Verga e da literatura italiana. Escrito em 1880, enquanto estava a escrever a sua obra-prima I Malavoglia. O capitalismo ainda não existia, sobretudo no interior da Sicília; talvez se vissem alguns primeiríssimos lampejos ténues; mas Verga, do pináculo da sua poesia, nalguma manhã claríssima, conseguiu vislumbrar o nosso meio-dia.A sua crítica àquele proto capitalismo ainda está viva porque é antropológica; é uma reflexão radical sobre os efeitos que a procura da riqueza provoca nas pessoas encantadas e encadeadas pelo totem das coisas. Neste fascínio irresistível e quase religioso há algo de parecido ao «fetichismo das coisas» de que Marx tinha falado poucos anos antes: mas o olhar do escritor siciliano é poético, dramático, atravessado por uma grande pietas pelas vítimas das suas histórias, pelos vencidos que ficam ao longo da inundação do progresso. E, assim, mostra-nos dimensões fundamentais e gerais do espírito meridional, mediterrânico e católico de algo novo que, em breve, será chamado capitalismo. Um espírito diferente do da Europa do Norte, mas diferente também do espírito dos primeiros mercadores medievais.
Verga pressente que os ventos da modernidade estavam a levar algo de novo também para baixo dos Alpes. De facto, Mazzarò já não é o aristocrático proprietário de terras («com a cabeça como um brilhante, ele tinha acumulado tudo aquilo»), mas também não é o moderno capitão da indústria. Nem sequer é atraído pelo dinheiro em si, como os avarentos de todos os tempos: «Ele não se importava com o dinheiro; dizia que não eram coisas, e mal juntava uma certa quantia, imediatamente comprava um pedaço de terra». Mazzarò não acumula dinheiro, ele acumula coisas, propriedades. Na civilização católica-meridional da vergonha, diferente da civilização protestante da culpa, a riqueza só vale se for vista pelos outros. O olho do “viajante” que abre o conto e pergunta “De quem é isto?» é uma presença necessária em todo o Ciclo dos vencidos. Porque, se ninguém a vê, a riqueza não vale, nem serve. O património é a riqueza vista pelos outros. Esta visibilidade é orgulho, é resgate social: «Todos os que agora o tratavam por excelência se lembravam de lhe ter dado pontapés no traseiro». Ou melhor: é ilusão de resgate.
Os milagres económicos e sociais do século XX italiano e meridional foram também - e sobretudo - o resultado da ação de muitos Mazzarò – dos que permaneceram na agricultura e dos muitos que emigraram da terra para a pequena e, depois, grande indústria familiar. Riqueza investida em quintas e fábricas também para ser vista pelos outros e, assim, para serem admirados, louvados, invejados. Uma carga de trabalhos: «Não tinha deixado passar um minuto de sua vida que não tivesse sido empregue a fazer coisas». Uma ética da poupança e quase uma mística do não-desperdício: «Vedes o que eu como? Respondia ele: - pão e cebola! e tenho os armazéns cheios e sou o dono de tudo isto».
Os primeiros empresários meridionais não eram hedonistas, não procuravam nem prazeres nem diversões com o dinheiro. Não amavam o consumismo que reduz o património, mas o investimento que o aumenta e aumenta os olhares. Criam, com as coisas, uma relação quase matrimonial. Não por acaso, as coisas [la roba] era também o nome do dote das esposas; «Nunca teve mulheres a seu cargo a não ser a sua mãe». Na realidade, mais que esponsal, esta relação de Mazzarò é incestuosa, como a de um pai que quer que a lindíssima filha seja admirada e invejada e nunca dada a ninguém como esposa.
Verga sabe que as coisas não conseguem cumprir as promessas que fazem. Também conhece as teorias económicas liberais do seu tempo que, depois de Galiani e Smith, confiavam na «mão invisível» dos efeitos indiretos positivos do engano-ilusão da procura individual da riqueza. Conhece-as, mas não acredita nelas porque ele vê os rejeitados, os vencidos, está interessado «nos débeis que ficam pelo caminho, nos fracos que se deixam ultrapassar pela onda» (Prefácio a I Malavoglia).
O primeiro caruncho da civilização das coisas é intrínseco à própria coisa. Se o capitalismo se torna o reino da quantidade e da extensão, apenas res extensa, não pode conhecer qualquer limite ou travão: rapidamente se torna ilimitado e desenfreado: «Mazzarò queria chegar a ter tanta terra como o rei». Se a bênção não se encontra, como pensavam os calvinistas, no trabalho visto como vocação (beruf), mas nas coisas, especialmente nas coisas que os outros possam ver e invejar, então o despique em superar-se um ao outro em quantidade e extensão nunca mais tem fim: «Os vencidos, que levantam os braços desesperados e dobram a cabeça sob os pés brutais dos supervenientes, os vencedores de hoje, também eles apressados, também eles ávidos de chegar e que amanhã serão ultrapassados» (prefácio). Uma primeira surpresa: o “espírito” do capitalismo “vencedor” (ou vencido?), no século XXI não é o espírito calvinista do trabalho/beruf; é, inesperadamente, o espírito meridional das coisas. Porém, de coisas apenas de consumo, não mais investidas e acumuladas. É o consumo – não o trabalho – o protagonista da economia global de hoje que, não por acaso, está a crescer e crescerá nas culturas comunitárias da vergonha (Ásia e África), próximas do espírito de Mazzarò.Porém, o golpe de génio do conto de Verga encontra-se na sua esplêndida e “desesperada” conclusão, onde se encontra a sua chave de leitura. A derrota de Mazzarò é-nos introduzida por alguns pormenores da última parte do conto: «Ele não tinha filhos, nem netos, nem parentes; nada mais tinha do que as suas coisas». A sua economia é uma economia das coisas sem filhos nem futuro. O capitalismo meridional das coisas tem (em parte) funcionado e gerou também alguns valores e virtudes civis, enquanto permaneceu capitalismo da família, onde a fábrica era, sobretudo, a corda que ligava entre si as gerações e as classes: as coisas acumulavam-se – também e sobretudo – para os filhos. Eis porque a economia de Mazzarò é também traição do próprio espírito meridional das coisas, que nascera profundamente familiar, comunitário e intergeracional.
De facto, a grande ilusão-desilusão desta (des)economia mede-se claramente apenas no fim desta corrida. Encontramo-la na viragem narrativa final e determinante do conto: «Apenas uma coisa lhe custava; que começasse a envelhecer e que tivesse de deixar a terra onde ela estava. Isto é uma injustiça de Deus que, depois de ter passado a vida a adquirir aquelas coisas, quando começa a tê-las e a querer ainda mais, tem de as deixar!». Neste epilogo, há também um segundo pormenor, terrível e maravilhoso: «E se um rapaz seminu lhe passava diante, curvado sob o peso, como um burro cansado, ele atirava a sua bengala às suas pernas, por inveja». Esta economia das coisas, sem filhos é invejosa dos jovens e das crianças. Numa cultura da vida, os jovens são o paraíso; numa cultura da morte eles são o inferno. Esta é uma característica terrível da civilização de Mazzarò. Terrível e profética, porque o que Verga, graças ao seu génio artístico, vislumbrava, torna-se, agora, mais evidente. A má inveja em relação aos jovens não é teorizada nem, muito menos, admitida pelos protagonistas do nosso sistema de desenvolvimento, cada vez mais semelhante à economia de Mazzarò. Porém, há um lugar onde a inveja de Mazzarò é já demasiado evidente para ser negada: a gestão da terra. Só uma economia da morte que tem inveja dos jovens, que os olha com olhos tortos, pode deixar-lhes um planeta devastado, uma terra ferida pela busca neurótica, ilimitada e desenfreada da riqueza.
Esta inveja raivosa explode em toda a sua beleza desesperada nas últimas páginas do conto que são uma obra-prima: «Assim, quando lhe disseram que era tempo de deixar as suas coisas, para pensar na alma, saiu para o quintal como um louco, cambaleando, e ia matando à pancada os seus patos e perus, e gritava: “Coisas minhas, vinde comigo!”». Um capitalismo das coisas, sem filhos e sem paraíso, mata a última galinha no seu último dia de vida, gasta o último metro cúbico de gás para o seu último respirador. A crise demográfica diz-nos que já nos tornámos o capitalismo sem futuro de Mazzarò. O capitalismo de Mazzarò leva para a sua sepultura as suas florestas, os seus mares, os seus rios, os seus glaciares, porque não vê nada de valor para deixar em herança aos jovens que inveja e não ama. As coisas tornaram-se a terra, espancada e ferida de morte.
Mazzarò tornar-se-á, poucos anos depois, Mestre D. Jesualdo: «Então, desesperado por ter de morrer, [D. Jesualdo] começou a bater em patos e perus, a arrancar pedras preciosas e sementes. Teria gostado de destruir, de um só golpe, todo aquele bem de Deus que tinha acumulado a pouco e pouco. Queria que as suas coisas fossem com ele, desesperadas como ele».
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Há já vários anos que estamos batendo em patos e perus, que começámos a arrancar sementes que deveriam matar a fome dos filhos que não temos e não amamos. Verga sabia que esta economia é uma economia desesperada – nós ainda não nos apercebemos disso. Só seremos salvos por uma economia que cria patos e perus, que conserva e planta sementes enquanto Mazzarò continua a bater – ainda estaremos a tempo?Raízes de futuro / 2 – O consumismo atraiçoa também a civilização meridional das coisas.
por Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 10/09/2022.
O conto de Verga “La roba” [A coisa] oferece-nos intuições sobre o sistema económico do nosso tempo, sobre o seu triste epílogo se não formos capazes de inverter a rota.
A acumulação de coisas e bens realiza-se “à vista de toda a gente” e faz crescer a inveja dos jovens em quem a procura e nas sociedades em que se realiza.«De quem é isto? - ouvia responder: - De Mazzarò. E, passando junto de uma quinta do tamanho de uma aldeia: - E isto? - De Mazzarò… Depois, um olival, tão grande como um bosque. Eram as oliveiras de Mazzarò. Tudo coisas de Mazzarò».
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stdClass Object ( [id] => 18287 [title] => Para além do capitalismo estético [alias] => para-alem-do-capitalismo-estetico [introtext] =>Raízes de futuro / 1 – O «Aut-Aut», Ou-Ou, de Kierkegaard e outras grandes ideias para este tempo de crises.
por Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 03/09/2022.
As empresas, como vendedoras, procuram consumidores sugestionáveis e, como produtoras, trabalhadores fiéis. As mesmas pessoas. E o conflito é incipiente, mas já é grave. Crises ambientais e energéticas desmascararam definitivamente o bluff: o tempo acabou. É necessário o arrependimento; não uma transição lenta, mas uma conversão forte.
«Imagina um capitão no seu navio no momento em que deve começar a batalha; talvez possa dizer “é preciso fazer isto ou aquilo; mas o navio, enquanto ele ainda não decidiu, avança. Também para o homem, no final, chega o momento em que já não tem liberdade de escolha, não porque tenha escolhido, mas porque o não fez». Esta página, tirada do Aut-Aut, do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, um livro de 1841, obra-prima do pensamento moderno, coloca-nos imediatamente diante da encruzilhada decisiva: «Aut-Aut, Ou-Ou: viver esteticamente ou viver eticamente». A estética «é o que o homem é espontaneamente, é o que é; a ética é aquilo em que se torna». Quem vive esteticamente diz: “É preciso gozar a vida”. O ícone da vida ética é o marido, o que fez uma escolha e vive a sua existência na fidelidade a um compromisso e a um pacto. A imagem da vida estética é o sedutor, o Don Juan, que voa de flor em flor, que colhe todos os frutos que encontra ao longo do seu caminho. Alimenta-se de emoções, tudo é tomado e perdido no presente sem qualquer necessidade de combinar as escolhas de hoje com algum compromisso de ontem. O esteta, como o define Kierkegaard (todo o grande autor inventa as suas palavras), vive disperso no múltiplo, num perene «estado de indiferença», porque «a escolha estética não é uma escolha», é um fluxo. O esteta não se presta a nenhuma missão, nenhum compromisso que não seja o que emerge momento após momento. Nunca saciado, sempre faminto de novas emoções para consumir, numa busca espasmódica de felicidade que não chega porque devorada pelo prazer.
[fulltext] =>Não é difícil identificar, na nossa sociedade de consumidores, a realização perfeita da vida estética, descrita por Kierkegaard. O cidadão, habitante da cidade global capitalista, é tanto mais perfeito quanto mais voa de flor em flor para sugar as oportunidades que se lhe apresentam. A infidelidade e a traição são qualidades necessárias do homo consumens, porque toda a forma de condicionamento que uma escolha passada exerce sobre as presentes é um vínculo ineficaz de que se deve libertar. O consumidor ideal é o que renasce em cada dia, sem passado nem futuro, todo mergulhado no presente onde satisfaz ao máximo os seus gostos. Pactos, promessas, fidelidade são autênticos atritos do sistema, porque o que torna fluido e eficaz o capitalismo é precisamente a velocidade da reação dos consumidores face à mínima variação de qualidade e de preço.
As empresas, por seu lado, apresentam-se, na relação com os consumidores, como agências de oferta de infinitos objetos de prazer. Desde sempre, nos mercados, os sedutores são os vendedores e os seduzidos são os clientes, conquistados e enfeitiçados pelos bens oferecidos. As mercadorias são os instrumentos com que se exercita a grande sedução. Consumidores insaciáveis – a não-saciedade é um axioma da teoria económica do consumo – continuam cercados, seguidos e seduzidos pelas mercadorias. No passado, esta sedução estava também aliada aos gestos, às piscadelas, à voz e às palavras dos vendedores; os seus lugares eram as feiras e os mercados nas praças da cidade. Sempre houve uma analogia entre eros e comércio, entre a sedução amorosa e a mercantil; mas, nos mercados mestiços das gerações passadas, ao lado do eros compareciam também a philia e o ágape, que libertavam o eros da jaula do eterno presente. Hoje, a sedução é fabricada nos centros de estudos e marketing das grandes multinacionais e realiza-se, sobretudo, nos media e na rede; logo, sem corpos. A tendência sedutora da economia, no entanto, aumentou, o mercado tornou-se cada vez mais um grande mecanismo de sedução anónima de massa, um enorme sistema de cortejamento. Mas é a sedução de um eros sem corpo – não é de admirar, portanto, que num mundo cada vez mais sedutor e “erótico”, centrado na procura da saúde e do bem-estar do corpo, esteja a diminuir, na realidade, o desejo de corpos verdadeiros, viciados por corpos imaginados e não tocados.
O capitalismo é um imenso jardim das delícias, infinitos sedutores e seduzidos afundados no momento fugidio, novos lotófagos desmemoriados de passado e ainda mais de futuro. O século XX conheceu um sucesso enorme e imprevisto da civilização da estética. Num mundo que ainda vivia na escassez generalizada, o crescimento exponencial dos consumos permitiu um bem-estar extraordinário geral, sobretudo no Norte e no Ocidente. Este bem-estar das mercadorias seduziu-nos, primeiro o corpo e, depois a alma. No crepúsculo dos deuses, emergiram novos-antigos ídolos brilhantes de ouro e de prata. E, assim, o capitalismo tornou-se a nova religião, toda estética, sem inferno, uma nova vida eterna: apenas paraíso sem tempo. A categoria de tentação foi completamente apagada e ridicularizada, porque é incompatível com a civilização estética que a vê como uma limitação indevida das oportunidades aqui e agora. Um culto diário e instantâneo, cuja dimensão efémera lhe determina um sucesso extraordinário: se o seu paraíso só pode ser usufruído no próprio momento do seu consumo, o único modo para não sair desta bem-aventurança é não deixar de comprar – se for a débito, melhor – porque a nova finança perverteu o sentido económico do tempo. No passado, o crédito permitia ao presente tornar-se futuro; agora, o crédito ao consumo transforma o futuro no presente. Também a ética das virtudes conhece o valor do presente, mas o seu presente é o lugar onde se encontram passado e futuro e impedem o presente de afundar no nada.
Um primeiro sinal forte de crise do capitalismo estético surgiu do próprio mundo empresarial. As empresas, como vendedoras, têm necessidade de consumidores estéticos, mas as empresas, como produtoras, precisam de trabalhadores capazes de ética, de fidelidade, de lealdade. Mas os consumidores e os trabalhadores são as mesmas pessoas, muda apenas a máscara em cena. Assim, nasce um conflito visceral no capitalismo, que ainda é incipiente, embora grave: para poder vender e crescer, as empresas incentivam a cultura estética dos consumidores, mas quando estes passam os portões das empresas, são cada vez mais privados daquele capital ético de que as empresas têm uma necessidade vital. Por detrás do recente movimento das “grandes demissões” do mundo do trabalho estão muitos fatores, mas está também uma sociedade que está corroendo, sobre o altar do consumo, os seus patrimónios civis e se encontra com jovens “estetas” incapazes de aguentar o impacto com o trabalho, que permanece um lugar de sacrifício, de obrigação, de cansaço. O capitalismo quer-nos adolescentes no consumo e adultos no trabalho e está a tornar “adolescente” o mundo adulto.
Mas quem desmascarou definitivamente o bluff do capitalismo estético foi o ambiente. A crise ecológica, da qual também a crise energética é expressão direta, traz à ribalta económica e política a grande questão de Kierkegaard: Aut-Aut. Uma opção fundamental que hoje tem uma inédita valência coletiva e global porque, pela primeira vez, diz respeito a cada habitante do planeta. O tempo acabou: é impossível continuar na indiferença da vida estética.
Kierkegaard, em Aut-Aut, diz-nos que a etapa intermédia, para passar da estética à ética, se chama desespero. Não se passa da ética à estética com uma lenta transição ecológica. O desespero é um momento, é uma mudança de olhar: não é ascese; é metanoia, isto é, conversão radical. «A condição do teu desespero é bonita. Escolhe, portanto, o desespero». O desespero nasce do arrependimento: «A verdadeira salvação do homem é desesperar». Kierkegaard contrapõe o desespero à dúvida: «O desespero é a salvação de toda a pessoa; a dúvida limita-se apenas ao pensamento». A dúvida envolve a razão, o desespero toda a existência. Pensar uma crise não chega, frequentemente é a enésima desilusão. Há décadas que nos afundamos em dúvidas sobre a sustentabilidade: Congressos, comissões, intermináveis debates, apelos, discussões… A era das dúvidas deve dar lugar à do arrependimento coletivo e, portanto, ao desespero que antecede uma nova escolha ética: «Desespera e o mundo tornar-se-á novamente bonito e cheio de alegrias para ti, mesmo que o vejas com olhos diferentes de antes». É preciso desesperar com todo o coração, com toda a mente, com todas as forças, mas juntos: um justo desespero coletivo é salvação.
São precisos atos simbólicos fortes e coletivos de arrependimento, pedir desculpa ao presente e ao futuro, de imediato. E, depois, sentir o desespero, porque o desespero é a parteira de uma esperança não-vã depois da idade da ilusão. Só uma economia arrependida e desesperada pode tornar-se uma economia ética.
Neste processo coletivo vital e necessário de arrependimento-desespero-ética, precisamos, principalmente, de mestres verdadeiros. Sozinhos não conseguiremos. São precisas palavras diferentes das nossas. Temos encontrado muitas nestes anos, na Bíblia, e usá-las-emos. Nesta nova série de reflexões, Raízes de futuro, pedimos palavras maiores aos escritores, aos filósofos, aos poetas, pessoas-raiz que sentiram o desespero do seu tempo e experimentaram ver um outro “com olhos diferentes”. Boa caminhada.
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Raízes de futuro / 1 – O «Aut-Aut», Ou-Ou, de Kierkegaard e outras grandes ideias para este tempo de crises.
por Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 03/09/2022.
As empresas, como vendedoras, procuram consumidores sugestionáveis e, como produtoras, trabalhadores fiéis. As mesmas pessoas. E o conflito é incipiente, mas já é grave. Crises ambientais e energéticas desmascararam definitivamente o bluff: o tempo acabou. É necessário o arrependimento; não uma transição lenta, mas uma conversão forte.
«Imagina um capitão no seu navio no momento em que deve começar a batalha; talvez possa dizer “é preciso fazer isto ou aquilo; mas o navio, enquanto ele ainda não decidiu, avança. Também para o homem, no final, chega o momento em que já não tem liberdade de escolha, não porque tenha escolhido, mas porque o não fez». Esta página, tirada do Aut-Aut, do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard, um livro de 1841, obra-prima do pensamento moderno, coloca-nos imediatamente diante da encruzilhada decisiva: «Aut-Aut, Ou-Ou: viver esteticamente ou viver eticamente». A estética «é o que o homem é espontaneamente, é o que é; a ética é aquilo em que se torna». Quem vive esteticamente diz: “É preciso gozar a vida”. O ícone da vida ética é o marido, o que fez uma escolha e vive a sua existência na fidelidade a um compromisso e a um pacto. A imagem da vida estética é o sedutor, o Don Juan, que voa de flor em flor, que colhe todos os frutos que encontra ao longo do seu caminho. Alimenta-se de emoções, tudo é tomado e perdido no presente sem qualquer necessidade de combinar as escolhas de hoje com algum compromisso de ontem. O esteta, como o define Kierkegaard (todo o grande autor inventa as suas palavras), vive disperso no múltiplo, num perene «estado de indiferença», porque «a escolha estética não é uma escolha», é um fluxo. O esteta não se presta a nenhuma missão, nenhum compromisso que não seja o que emerge momento após momento. Nunca saciado, sempre faminto de novas emoções para consumir, numa busca espasmódica de felicidade que não chega porque devorada pelo prazer.
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