Maiores que a culpa

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Maiores que a culpa / 17 – Afinal, os caminhos de Saul são poeirentos, como os nossos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 13/05/2018

samuele 17 210x300«Saul: Oh, meus filhos!... – Fui pai. –
Estás só, ó rei; não te resta um
dos teus amigos ou dos teus servos.
– És paga,
do inexorável Deus, terrível ira?»

Vittorio Alfieri, Saul

Em toda a leitura autêntica, o leitor tem uma parte ativa e criativa. Não é espetador das histórias que lê, mas coencenador e ator. Na forma especial de leitura, que é a leitura bíblica, portanto, quem lê recebe a misteriosa – mas real – faculdade de transformar os personagens em pessoas que, como todas as pessoas vivas, crescem, mudam, movimentam-se, fazem encontros inesperados. Acontece, então, que as pessoas bíblicas começam a interagir entre si, a tecer tramas relacionais diferentes das pensadas e queridas pelo primeiro autor. E, assim, a bruxa de En-Dor torna-se amiga do pai do filho pródigo, Jeremias descobre-se irmão de David e Saul torna-se companheiro de caminho e de desventura de Job, como ele lançado no monte de estrume, por um Deus que quer (Saul) ou permite (Job) a sua desventura. Ambos, Saul e Job, atingidos por penas divinas maiores que a sua (possível) culpa, ambos envolvidos pelo silêncio de um Deus mudo que, para eles, não tem palavras de vida – talvez porque, simplesmente, espera as nossas.

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David continua a sua guerra, ao lado dos filisteus (I Samuel 29), mas, agora, os chefes, em vésperas do ataque final contra Saul, impedem-no de participar na batalha. Entretanto, os Amalecitas – outro inimigo histórico de Israel e de Saul, e ligados ao seu repúdio por parte de Deus (Cap. 15) – tinham conquistado a cidade de Ciclag, onde se encontravam também a família e a mulher de David, que foram feitas prisioneiras. David, com os seus homens, vai em perseguição dos Amalecitas e, graças a um encontro (providencial) com um escravo egípcio, consegue, com uma emboscada, derrotar o exército inimigo: «David recuperou tudo o que os amalecitas haviam tomado, libertando também as suas duas mulheres» (30, 18). Faz também um bom saque: «tomou todos os rebanhos e manadas» (30, 20). Nem todos os seiscentos homens de David tinham participado na missão, porque duzentos, «demasiado extenuados para poderem atravessar a torrente de Besor» (30, 10b), tinham ficado pelo caminho. Quando David regressou ao acampamento, «todos os malvados e perversos que se encontravam na tropa de David começaram a dizer: “Visto que eles não nos acompanharam, nada lhes daremos do espólio recuperado”» (30, 22). Os “malvados e perversos” nunca deixaram de excluir os mais débeis da distribuição da riqueza. Mas nós, já não atribuímos estas palavras e estes atos aos “malvados e perversos”; louvamo-los, revestimo-los de virtudes e de palavras bonitas como mérito e meritocracia, e, depois, em seu nome, rejeitamos os pobres e os “esgotados”, depois de os ter chamado mandriões e preguiçosos.

Porém, a Bíblia conhece uma outra lógica: «David disse-lhes: “Não façais assim, meus irmãos, com o que o Senhor nos deu… A parte dos que ficaram junto às bagagens será igual à daqueles que foram ao combate”» (30, 23-24). A riqueza é “dom do Senhor”, e esta sua natureza de dom-providência prevalece sobre as razões do mérito/demérito individual (mesmo que, por vezes, existam, são, quase sempre supervalorizados). Por isso, a solidariedade que nasce do ser parte da mesma comunidade está acima da produtividade e da eficácia, porque não somos nós os verdadeiros proprietários da nossa riqueza. Antes de a produzir, recebemos a riqueza como dom. Daqui nasce a solidariedade e a gratidão que deverão acompanhar o nosso olhar reconhecedor sobre as nossas riquezas e as dos outros. Sobre a ideia de riqueza-dom, construímos a democracia, os direitos, as reformas, a assistência pública, a escola universal, os subsídios de desemprego, os impostos e o sistema fiscal, uma sociedade onde os “extenuados” poderão, legitimamente, participar duma quota da riqueza. Verdades antigas e grandes, que a ideologia neo-pelagiana do incentivo e da meritocracia nos fizeram esquecer, no espaço de duas décadas.

Mas, agora, deixamo-nos tocar e ferir pelo último trecho da vida de Saul: «Os filisteus atiraram-se contra Saul e seus filhos, matando Jónatas, Abinadab e Malquichua, filhos de Saul. Toda a violência do combate desabou sobre Saul. Os arqueiros descobriram-no e feriram-no gravemente» (31, 2-3). Então, Saul disse ao seu escudeiro: «“Tira a tua espada e trespassa-me, para que não venham esses incircuncisos, me trespassem e escarneçam de mim”. Mas o escudeiro não o quis fazer, pois se apoderou dele um grande terror» (31, 4). Uma cena descrita sem qualquer condenação moral ou religiosa para Saul. O redator final dos livros de Samuel não lê a morte de Sal como um fim merecido pelas suas culpas. Um olhar bom do texto continua, firme, a acompanhar as tristes sortes do primeiro rei. E dá-lhe uma morte digna e heroica: «Então, Saul tomou a sua espada e atirou-se sobre ela. O escudeiro, vendo que Saul estava morto, arremessou-se ele mesmo sobre a sua espada e morreu junto dele. Assim, morreram naquele dia Saul e os seus três filhos, o seu escudeiro e todos os seus homens» (31, 4-6). Acaba com um suicídio de honra a história deste rei trágico. Não merecia uma morte covarde e não a teve.

Os filisteus, depois, cortaram a cabeça a Saul e aos seus dois filhos, tiraram-lhe a armadura e fizeram-na circular de cidade em cidade, para «anunciar a boa notícia» nos seus templos (31, 9), e «suspenderam o seu cadáver nos muros de Bet-Chan» (31, 10). Mas os habitantes de Jabés de Guilead, aqueles a quem os Amonitas tinham arrancaram o olho esquerdo e, depois, foram salvos por Saul (cap. 11), ao terem conhecimento dos factos, «marcharam toda a noite. Tiraram das muralhas de Bet-Chan os cadáveres de Saul e dos seus filhos… Recolheram os ossos e enterraram-nos debaixo da tamareira de Jabés. E jejuaram durante sete dias» (31, 12-13). É muito bonita esta homenagem ao bom reconhecimento popular. O povo recorda, conserva uma memória diferente da oficial da política e da religião. E é capaz, apenas para honrar esta memória, de caminhar toda a noite, recuperar o corpo e assegurar ao amigo derrotado uma digna sepultura. Aqui, debaixo da tamareira, onde Saul costumava estar, com a lança cravada na terra, no meio dos seus soldados em pé. Esta é uma expressão verdadeira e profunda da lei da gratidão, inscrita no DNA da alma do povo e das pessoas – nenhuma lei económica explica porque apanhamos o comboio ou o avião para irmos ao funeral de um amigo, mas o dia em que o cálculo individual custos-benefícios não nos deixar fazer estes atos economicamente inconvenientes em relação aos mortos, esquecemos, pouco a pouco, também a gramática da economia e da reciprocidade entre os vivos.

Também David vem a saber – por um amalecita vindo do campo da batalha, que terá, depois, um mau fim – da morte de Saul e de Jónatas: «Então, David rasgou as suas vestes, e todos os que estavam com ele o imitaram. E prantearam, choraram e jejuaram até à tarde, por amor de Saul, de seu filho Jónatas» (2 Samuel 1, 11-12). E é dentro deste luto de David, que encontramos aquele que, para muitos, é o seu cântico mais bonito, O lamento do arco:

«Tombaram os heróis!
Não o conteis em Gat,
nem o descrevais nas ruas de Ascalon…
Saul e Jónatas, amados e gloriosos,
jamais se separaram,
nem na vida nem na morte,
mais velozes do que as águias,
mais fortes do que os leões.
Filhas de Israel, chorai sobre Saul!
Ele vestia-vos de púrpura sumptuosa
e ornava de ouro as vossas vestes.
Tombaram os heróis no campo de batalha!
Jónatas, morto sobre as tuas colinas!
Jónatas, meu irmão, que angústia sofro por ti!
Como eu te amava!
O teu amor era uma maravilha para mim
mais excelente que o das mulheres.
Como tombaram os heróis» (1, 19-27).

Não é preciso acrescentar comentários. Não o conteis... Em grego: euangelizein. Não leveis esta má notícia, não anuncieis este anti-evangelho. Jónatas “amado e glorioso” e Saul, também ele “amado e glorioso”, até ao fim. Se a Bíblia quis conservar este cântico fúnebre (tomado de material muito antigo: o livro dos justos), é para nos dizer algo sobre David (que não subiu ao trono matando o seu rival). Mas também quer dizer-nos algo de importante sobre Saul. Não se entoa um cântico maravilhoso por um rei mau e malvado. A Bíblia sabia que Saul tinha conservado, no drama, uma sua misteriosa inocência e pureza, que lhe mereceram este cântico de David, talvez o mais belo de todos. E, se David pode cantar estas palavras a um rei repudiado e dominado por um espírito mau, mas que permaneceu, de algum modo, sincero, então, também os repudiados e os rejeitados, se permanecerem sinceros num pequeno ângulo do seu coração, são dignos dos salmos de David – e dos nossos. A Bíblia não reserva bênçãos apenas para os abençoados e para os vencedores, mas os seus cânticos mais belos são para os amigos e para as amigas de Saul; portanto, também para nós. Há muitos caminhos para entrar na Bíblia. Alguns estão reservados para quem se sente justo e abençoado, mas são muito poucos. Outros, mais numerosos, são os caminhos de Saul, caminhos populares, poeirentos, tortuosos, escuros, mas onde caminhamos todos.

David tinha começado a sua relação com Saul tocando para ele a harpa e cantando salmos para afastar dele o “espirito mau”, porque Saul encontrava paz ao ouvir as notas e a voz de David. No fim, encontramos um outro cântico de David – o texto diz que David “cantou” este lamento. Toda a história de David e Saul está contida entre dois cânticos, por um cântico que não se interrompeu. A história de Saul não se fecha com a espada que o trespassa, nem com a digna sepultura debaixo de tamareira. Termina com um cântico de David, que é um cântico de ressurreição. Sempre que o cantamos, Saul, também graças a nós, volta a ser o jovem alto e belíssimo, revemo-lo à procura das jumentas perdidas, em êxtase místico no meio dos profetas, ainda dócil sob a mão consagrante de Samuel. Para que a Bíblia continue a viver e a ressurgir, não basta o maravilhoso cântico de David: é preciso também o nosso cântico. Todos os protagonistas da Bíblia são “personagens à procura de autor”, de um leitor que lhes permita voltar a viver, libertando-os das interpretações redutoras dos seus copistas que as religiões oficiais lhes designaram. De um leitor que grite: “Vem para fora”, e os faça sair vivos dos seus sepulcros.

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Maiores que a culpa / 17 – Afinal, os caminhos de Saul são poeirentos, como os nossos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 13/05/2018

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Estás só, ó rei; não te resta um
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Vittorio Alfieri, Saul

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A honra dos rejeitados

A honra dos rejeitados

Maiores que a culpa / 17 – Afinal, os caminhos de Saul são poeirentos, como os nossos por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 13/05/2018 «Saul: Oh, meus filhos!... – Fui pai. – Estás só, ó rei; não te resta um dos teus amigos ou dos teus servos. – És paga, do inexorável Deus, terrível ira?»...
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Maiores que a culpa / 16 - Dentro de cada vida, pode explodir a compaixão. E o bem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 06/05/2018

Piu grandi della colpa 16 rid«Baalschem disse a um dos seus discípulos: ‘O ínfimo dos ínfimos que te recordes, eu o amo mais do que tu amas o teu filho único»

Martin Buber, Storie e leggende chassidiche  [Histórias e lendas cassídicas]

Videntes, magos, adivinhos, são uma nota recorrente da Bíblia. São uma forma de falsa profecia, muito difundida na antiguidade e duramente combatida pelos profetas, que representou uma tentação constante e muito sedutora para Israel (à qual, frequentemente, cedeu). É expressão de uma religiosidade popular arcaica, que nunca desapareceu e que, nos nossos dias, alimenta um negócio florescente. A fé bíblica não é ameaçada pelo ateísmo, mas pela substituição de YHWH por deuses naturais e muito simples – ontem e hoje, na fé e na vida, onde a eterna tentação é convencer-se que somos algo mais pequeno e banal que a realidade complexa e belíssima que, pelo contrário, somos.

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“Mas David pensou: «Virá um dia em que cairei nas mãos de Saul! Não será melhor refugiar-me na terra dos filisteus?” (1 Samuel 27, 1). David continua a mostrar o seu génio ao encontrar soluções improváveis, mas eficazes, para os seus problemas. Agora, para se salvar decide aliar-se ao inimigo, passando para o lado dos filisteus. Realiza missões militares com sucesso, invasões e grandes saques. Encaixados entre os raids de David, encontramos os últimos dias da vida de Saul, entre os mais intensos e emocionantes de toda a Bíblia.

Samuel morrera. Saul, obedecendo à lei de Moisés, tinha expulsado de Israel “nigromantes e adivinhos” (28, 3). A situação política, porém, está a precipitar-se. Os filisteus marcham, ameaçadores, contra Saul. O rei compreende que a superioridade militar filisteia é avassaladora e entra em pânico: “Ao ver o exército dos filisteus, Saul afligiu-se e teve um medo enorme” (28, 5). Sente que somente uma intervenção extraordinária de YHWH o poderá salvar. Ainda confia no seu Deus e pede-lhe ajuda: “Saul consultou o Senhor, que não lhe respondeu, nem pelos sonhos, nem pelos urim [sortes sagradas], nem pelos profetas” (28, 6).

O habitual fracasso de Saul, o habitual silêncio de Deus. Saul continua a confiar no Deus que o tinha chamado a ungido, através de Samuel. YHWH, porém, um dia, deixou de falar com ele e não mais recomeçou, até ao fim. Este silêncio de Deus coloca perguntas difíceis, não nos pode deixar indiferentes. Saul está cercado, o seu povo está para capitular e Deus não fala. Os profetas estão em silêncio. Tudo é escuridão; a noite não mais acaba e os sonhos estão povoados apenas por fantasmas e pesadelos.

A teologia e a exegese oferecem-nos algumas explicações deste silêncio e desta escuridão que, no entanto, só fazem crescer a nossa pietas por este rei repudiado e abandonado ao seu triste destino. Uma piedade do leitor que pode continuar mesmo quando Saul, desesperado, recorre ao último recurso, ilícito e escandaloso, que ele mesmo tinha combatido. E é aqui que deparamos com uma das cenas mais conhecidas e mais belas da Bíblia: “Saul disse, então, aos seus servos: «Buscai-me uma mulher que invoque os espíritos dos mortos, e eu irei consultá-la»” (28, 7). Saul disfarça-se para não ser reconhecido e dirige-se para bruxa de En-Dor.

Este disfarce de Saul lembra-nos muitas coisas. Os muitos desesperados que, esgotados os recursos lícitos da medicina e da ciência, se dirigem a curandeiros e beatões porque não querem morrer. Frequentemente se ‘disfarçam’ para não serem reconhecidos, por vergonha por aquela parte do seu coração que nunca faria tal coisa, que muitas vezes a tinha criticado e condenado nos outros. Ou os muitos empresários, alguns também bons e honestos, que, no dia anterior a declarar falência, e até mesmo depois olhar nos olhos lúcidos de um empregado, às escondidas e de noite, vão a um usurário à procura do empréstimo “do reino dos mortos”, para continuar a esperar ou adiar, apenas um dia, o fim. Ou os homens – e muitas mulheres – que, desesperados, se agarram ao último fio de esperança para salvar a própria família e vão, em segredo, a magos e bruxas para o fazer regressar a casa. São estes os muitos irmãos e irmãs de Saul; nem todos maus, mas todos desesperados e mergulhados numa imensa escuridão e num absurdo silêncio de Deus (e dos homens). O manto de piedade que a Bíblia lança sobre Saul também envolve todos os seus companheiros e companheiras de desventura que, desesperados como ele, continuam a disfarçar-se e a ‘invocar os mortos’ para não morrer.

Quando a leitura da Bíblia se detém nestas humanidades feridas e frágeis, pede-nos para tomarmos posição, dizermos de que lado estamos. Podemos decidir estar com a teologia oficial, com o Deus dos escribas, do templo e da lei, e condenar Saul e os muitos desesperados como ele. Mas podemos, pelo contrário, com coragem, decidir tornarmo-nos solidários com a numerosa família deste rei rejeitado, derramar lágrimas inconsoláveis; ficarmos um pouco com eles, acompanhá-los com a nossa compaixão e, depois, reconciliar-nos com os nossos atos desesperados e com os dos desesperados à nossa volta. E, depois, sem os julgar, tornamo-nos seus próximos, recolhemo-los, meio mortos, ao longo do caminho, colocamo-los em cima da nossa montada, lavamos as suas feridas com vinho, levamo-los para a estalagem e deixamos, como penhor, os nossos dois últimos denários.

“Disse-lhe, então, a mulher: «A quem invocarei para esse assunto?» Respondeu-lhe Saul: «Faz com que me apareça Samuel»” (28, 11). Um outro golpe de teatro extraordinário. Saul quer Samuel, o profeta que o tinha encontrado e consagrado rei, que, depois, o tinha repudiado e não o tinha perdoado. O texto – também por algumas prováveis alterações – não nos diz porque é que Saul invoca Samuel. Talvez porque era a imagem da sua primeira vocação verdadeira, do espírito bom que, antes de o abandonar, lhe tinha transformado o coração, porque voz da parte melhor da sua alma. Ou talvez por uma necessidade extrema de verdade, embora procurada de modo errado. Não o sabemos – a Bíblia está viva também pelos seus muitos buracos e espaços abertos que se tornam as feridas onde o texto nasce e renasce connosco, seus leitores.

Mal a mulher ouviu o nome de Samuel, “soltou um grande grito, e disse a Saul: «Porque me enganaste? Tu és Saul!»” (28, 12). É extraordinário este grito da mulher e também é extraordinário como ela reconhece Saul: enquanto pronuncia o nome da Samuel. Samuel é, para a mulher, a imagem da condenação da sua profissão, da profecia errada, das técnicas de adivinhação, da magia. Talvez por isso, o grito. Mas porque reconhece Saul ao dizer ‘Samuel’? Talvez porque cada pessoa tem o seu modo de pronunciar o nome das pessoas marcantes da sua vida, uma acentuação inconfundível, uma marca caligráfica única. Cada cristão diz ‘Jesus’ de modo diferente de todos os outros cristãos; cada filho diz ‘mamã’ a seu modo; e o nome com que chamamos a nossa esposa é diferente do modo como pronunciamos todos os outros. Pode-se reconhecer um franciscano, talvez ‘disfarçado’ e sem hábito, pelo modo como diz ‘Francisco’. Nenhum disfarce resiste à pronúncia de certos nomes especiais, porque ao dizê-los, nos tornamos nus como no primeiro dia (também por isso, quando decidimos, pela grande dor, apagar o nosso passado, começamos e esquecer certos nomes).

O que é ainda mais surpreendente – e, para alguns, versículos desconcertantes – é a obediência do espírito de Samuel à invocação da mulher. Ela disse: “«Vi um espírito que subia da terra.» Saul replicou: «Qual é o seu aspecto?» Replicou: «O de um ancião envolto num manto». Saul compreendeu que era Samuel e prostrou-se com o rosto em terra” (28, 13-14). Absolutamente esplêndido (não é fácil comentar estes versículos, que cortam a respiração, paralisam a mão sobre o teclado, aceleram o bater do coração)! É ele: Saul não tem dúvidas; nestes momentos, não se têm dúvidas. Nós, agora, esperaríamos palavras diferentes de Samuel. E, no entanto, reencontramos as mesmas palavras de sempre. Samuel não muda – também está nesta coerência hierática a grandeza de Samuel. E diz a Saul: “O Senhor tirará a realeza da tua mão para a dar a outro, a David… Além disso, o Senhor entregará Israel, juntamente contigo, nas mãos dos filisteus. Amanhã, tu e os teus filhos estareis comigo” (28, 17-19). As palavras do profeta não mudam. Mas as nossas podem mudar; podemos sussurrar, agora, palavras diferentes aos ouvidos de Saul, enquanto jazemos por terra, juntamente com ele: “Saul, atemorizado com as palavras de Samuel, imediatamente caiu estendido por terra” (28, 20). Saul quer morrer, depois de ter esgotado aquele último recurso clandestino.

Mas é justamente aqui que este capítulo nos dá a sua última pérola, também esta imprevista e imprevisível: “A mulher aproximou-se de Saul, e, vendo-o tão transtornado, disse-lhe: «A tua serva obedeceu-te… Ouve também tu a voz da tua serva. Vou dar-te um pouco de alimento, para que comas e recobres forças»” Também uma nigromante, também uma maga pode ser capaz de piedade, na vida e na Bíblia. Esta mulher, aqui, vence a usa má profissão, porque todos, potencialmente, somos capazes de fazer coisas e dizer palavras melhores que as que a vida nos faz fazer e dizer todos os dias. E as suas palavras ‘ressuscitam’ Saul: “ele recusou, dizendo: «Não comerei.» No entanto, acedeu aos rogos dos seus servos e da mulher” (28, 21-23). Nesta cena de morte e de escuridão, um raio luminoso, que emana de uma mulher rejeitada e excomungada, ilumina todo o ambiente: “Levantou-se do chão e sentou-se na cama. A mulher tinha em casa um bezerro cevado. Apressou-se em matá-lo; e, tomando farinha, amassou-a, fez com ela pães sem fermento e cozeu-os. Serviu-os a Saul e aos seus homens” (28, 23-25).

A nigromante torna-se o ‘pai misericordioso’ que festeja com o seu vitelo gordo um homem-filho ‘que estava morto’ e, embora apenas pelo período de uma ceia, ‘voltou à vida’ – e o ‘irmão mais velho’ somos nós que não entramos para o banquete porque escandalizados pelo excesso de humanidade da Bíblia.

Um trecho maravilhoso, que nos revela a infinita humanidade da Bíblia. Que nos revela também o coração das mulheres, capazes de olhares bons e diferentes quando a religião, a lei, os homens os esgotaram. A última ceia de Saul foi querida e preparada por uma maga, por uma nigromante, por uma mulher, por uma pessoa que, porventura, lhe deu o último abraço misericordioso, lhe ofereceu as últimas palavras boas que a vida, Samuel e Deus lhe tinham negado.

A Bíblia é in-finita também pelas palavras e pelos gestos de mulheres e homens normais, por vezes marginalizados e pecadores, que permitem à palavra bíblica ser, por vezes, mais humana que as palavras de Deus pronunciadas pelos seus profetas.

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Maiores que a culpa / 16 - Dentro de cada vida, pode explodir a compaixão. E o bem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 06/05/2018

Piu grandi della colpa 16 rid«Baalschem disse a um dos seus discípulos: ‘O ínfimo dos ínfimos que te recordes, eu o amo mais do que tu amas o teu filho único»

Martin Buber, Storie e leggende chassidiche  [Histórias e lendas cassídicas]

Videntes, magos, adivinhos, são uma nota recorrente da Bíblia. São uma forma de falsa profecia, muito difundida na antiguidade e duramente combatida pelos profetas, que representou uma tentação constante e muito sedutora para Israel (à qual, frequentemente, cedeu). É expressão de uma religiosidade popular arcaica, que nunca desapareceu e que, nos nossos dias, alimenta um negócio florescente. A fé bíblica não é ameaçada pelo ateísmo, mas pela substituição de YHWH por deuses naturais e muito simples – ontem e hoje, na fé e na vida, onde a eterna tentação é convencer-se que somos algo mais pequeno e banal que a realidade complexa e belíssima que, pelo contrário, somos.

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As palavras santas dos rejeitados

As palavras santas dos rejeitados

Maiores que a culpa / 16 - Dentro de cada vida, pode explodir a compaixão. E o bem por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 06/05/2018 «Baalschem disse a um dos seus discípulos: ‘O ínfimo dos ínfimos que te recordes, eu o amo mais do que tu amas o teu filho único» Martin Buber, Storie e...
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Maiores que a culpa / 15 – O ofício de viver aprende-se apreciando as pequenas pazes

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 29/04/2018

Piu grandi della colpa 15 rid«Deus é o outro, por excelência, o outro enquanto outro, o outro, absolutamente; e, no entanto, só depende de mim o acordo com este Deus. O instrumento do perdão está nas minhas mãos. Por outro lado, o próximo, meu irmão, é, em certo sentido, mais outro que Deus: para obter o seu perdão tenho de conseguir que ele se apazigue. E se recusa? Sendo dois, tudo está comprometido. O outro pode recusar-me o perdão e deixar-me não perdoado para sempre»

Emanuel Levinas, Quattro letture talmudiche

Em cada dia, milhões de pessoas fazem e dizem coisas más e, pouco depois ou pouco antes, dizem e fazem, sinceramente, coisas boas. Porque o cruzamento de maldade e bondade é simplesmente a condição humana. A Bíblia conhece muito bem este mistério ambivalente da pessoa, provavelmente o maior mistério. Podemos tornar-nos maus, perdemo-nos, perder o fio de ouro da vida, mas, até ao último suspiro, ainda somos capazes de bondade, porque feitos à imagem e semelhança de uma dança infinita de amor recíproco que nenhum pecado consegue parar. Caim matou o seu irmão Abel, mas não matou Adão, o primeiro (e último) homem. E, enquanto Caim continua a matar Abel, o Adão continua, teimoso, a ressuscitá-lo, em cada dia. Nenhuma maldade do fratricida que se alberga dentro de nós é capaz de destruir a marca originária de bem inscrita no mais profundo do nosso ser. Neste sentido, o mal pode ser banal; o bem, nunca. O mal tem uma sua resiliência, que também pode ser muito grande, mas é sempre mais pequena que a resiliência do bem. E é este bem que resiste, teimoso, que nos torna mais belos que as nossas culpas. Está aqui o radical otimismo antropológico da Bíblia, que salvou o Ocidente após e dentro dos seus pecados mais hediondos – e que continua a salvar-nos.

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Para o último encontro entre David e Saul, a Bíblia dá-nos uma outra sinfonia. Para nos descrever a sua consagração como rei e a mudança do seu coração, o primeiro livro de Samuel teve necessidade de três relatos. Agora, para nos narrar a sua saída de cena, o texto dá-nos dois relatos, semelhantes e diferentes. Esta abundância e este excesso narrativo mostram a riqueza de Saul, que continua a fazer maldades, mas continua também a arrepender-se e a comover-se, sinceramente. A verdade das maldades de Saul não anula as suas bênçãos e os seus arrependimentos.

Depois do maravilhoso encontro com Abigaíl, David retoma o seu caminho nómada e fugitivo. Sabendo onde Saul, saído em sua perseguição, tinha montado o seu acampamento, David, com um seu companheiro (Abisai), introduz-se no acampamento inimigo: «Saul dormia no acampamento, tendo a lança cravada no chão, à cabeceira» (26, 7). David entra na sua tenda, chega à cabeceira de Saul, mas toma apenas a sua lança e a bilha de água de Saul e, não ouvindo, mais uma vez, o conselho dos companheiros, poupa o seu rei.

Saul e o seu exército dormiam “num sono profundo”. A palavra hebraica “tardemà” (torpor, sono profundo) é rara na Bíblia. Encontramo-la duas vezes no livro do Génesis. A primeira para indicar um sono diferente em que cai Adão, quando Deus lhe tira uma costela para “formar” a mulher (Génesis 2, 21-22). Depois, para indicar o torpor de Abraão, quando da enormíssima cena da aliança, Deus, no sono, lhe revela qual será o futuro da sua descendência (15, 13). Um torpor teológico, portanto, para marcar duas intervenções cruciais de Deus em momentos fundadores e decisivos na origem dos dois pactos fundamentais: entre o homem e a mulher e entre Deus e o seu povo. As palavras e os verbos, na Bíblia, nunca são escolhidos ao acaso – não seria possível naquele humanismo da palavra e das palavras. Este “sono profundo” mostra-nos que está para acontecer algo de importante, um ato que marcará a natureza do reino de David, a qualidade das suas relações. Pela segunda vez, David podia matar Saul. Podia fazê-lo, mas não o fez; escolheu a vida e renovou o pacto horizontal e vertical.

Na raiz dos pactos fundadores da nossa vida estão muitos atos, escolhas, factos. Estão muitas palavras, muitos “sim”, como os pronunciados juntos e reciprocamente no dia das núpcias, onde ainda está viva a herança da antiga capacidade performativa da palavra (enquanto dizemos aquelas palavras especiais cria-se uma realidade nova, gerada pelas nossas palavras). Mas, quase sempre invisíveis, também estão muitos não-atos, não-palavras, ações que não fizemos quando poderíamos e deveríamos fazê-las. Estão muitos silêncios e palavras não pronunciadas que salvaram vidas, honra, dignidade. A qualidade moral de uma vida mede-se também com base em atos que não fizemos e em palavras que não dissemos, quando o bom senso, os amigos, as normas sociais, a lei e até mesmo a religião nos diziam para fazer e dizer. Estes “não”, que na gramática são advérbios de negação, na vida são verbos que se tornam nossa carne e de quem vive connosco.

Esta não-morte de Saul é relatada duas vezes na Bíblia, não só para nos falar de Saul e fazê-lo falar, para nos revelar o ângulo do coração que permaneceu bom e escondido; este duplo relato é também uma linguagem que a Bíblia usa para nos mostrar, com redundância generosa, quem é David. Até ao momento, David é o ungido, o rei “segundo o coração de Deus”, o cantor de salmos, o amado; mas David também é quem, em duas ocasiões, podia matar o seu pai-inimigo e não o fez. David é o duplo não-parricida, o duplo não-Édipo, é duas vezes o anti-Zeus.

David deixa o acampamento, põe-se a gritar, da colina em frente. Saul, ao contrário dos seus soldados, reconhece a voz de David: «“É a tua voz, ó meu filho David?” David respondeu: “Sim, ó rei, meu senhor”» (26, 17). Saul, da sua colina, responde a David: «Fiz mal! Vai, meu filho David, não voltarei a fazer-te mal» (26, 21). O pai, o ungido do Senhor, reconhece o seu pecado, e implora a David, “seu filho”, para regressar.

É muito forte e sugestivo este relato do “filho pródigo, ao contrário”. O filho, David, foi misericordioso para com o pai, salvando-lhe a vida. Aquela misericórdia gera o arrependimento do pai, que pede ao filho para regressar. Não é raro que sejam os filhos a serem misericordiosos e os pais e as mães a arrependerem-se e a pedir ao filho, que feriram e maltrataram, para “regressar”. E, regressando, os filhos e as filhas regeneram os pais, tornam-se pais dos seus pais e mães das suas mães. E como na parábola de Lucas o primeiro ato subversivo é o do pai (que concede a antecipação e a liquidação da herança, quando ainda está vivo), aqui é o filho que transgride os códigos de guerra e poupa o seu inimigo. São estas transgressões imprudentes e arriscadas que geram e regeneram, verdadeiramente, pais e filhos.

Saul reconhece a sua culpa: «Não voltarei a fazer-te mal, pois neste dia consideraste preciosa a minha vida. Procedi insensatamente, cometi um grandíssimo pecado» (26, 21). E, depois, conclui: «Abençoado sejas tu, meu filho David» (26, 25). São estas as últimas palavras de Saul a David, palavras de bênçãos luminosas e verdadeiras. Neste último encontro, Saul, porventura, terá revisto o cantor que, com a harpa, ecoava no seu coração, o vencedor de Golias, o jovem puro e belíssimo (como todos os jovens). Como nós, quando vemos, pela última vez, um amigo ou um filho e, antes de fechar os olhos, revemos a criança e o amigo, belíssimos e puros, como no primeiro dia.

São esplêndidos os salmos que a tradição quis atribuir a David. Mas não menos belos são estes breves, intensos e sinceros salmos de Saul que, embora dominado por um espírito mau, nestes momentos consegue elevar-se acima das suas culpas e a entoar versos de bênção. Nós, leitores, sabemos que estes cânticos de Saul são temporários, provisórios, fugazes, e que rapidamente será novamente possuído pelo seu demónio mau. Sabemos que estas reconciliações são instáveis, breves, tão intensas quanto passageiras.

Mas sabemos também que os salmos de reconciliação que, por vezes, somos capazes de cantar e de acolher, são mais parecidos a estes breves e instáveis de Saul que aos eternos de David. Também somos capazes de reconciliações que geram relações sãs para sempre, mas são mais frequentes os abraços que assumem formas de um oásis no deserto que permanece de dificuldades e de conflitos. Após anos de dores e de lutas, também nós, como Jacob e Esaú, podemos descobrir-nos capazes de nos abraçar e de chorar juntos. Depois, quase sempre, recomeçam as incompreensões, velhas e novas, e pequenas e grandes batalhas de ontem e de hoje. Mas a não-estabilidade da paz e da reconciliação não anula a verdade e a beleza daqueles abraços e daquelas lágrimas, que permanecem verdadeiras e belíssimas, mesmo quando duram apenas alguns momentos. A rosa, porque efémera, não é menos verdadeira e bela que o pinheiro e a oliveira.

Também sabemos que os filhos, por vezes, voltam e nós fazemos uma festa grande. Mas, diferentemente do filho mais novo da parábola de Lucas, aqueles mesmos filhos, terminada a festa, muitas vezes partem de novo para novas liberdades; eles voltam para os porcos e nós voltamos à porta de casa para os esperar, sem saber se, quando e como voltarão de novo, nem se, desta vez, o irmão mais velho fará festa connosco.

A maturidade e o ofício da vida aprendem-se aprendendo a saborear intensamente as palavras de reconciliações passageiras, a fazer festa com os filhos, entre um regresso e uma nova partida. Porque, se são encontros verdadeiros e sinceros, são, a seu modo, perfeitos, apesar de temporários. São infinitos porque instáveis e transitórios. E, à voz do passado que enquanto estamos no abraço e nas lágrimas misturadas, nos sussurra ao ouvido: “não durará muito”, devemos responder: “não é verdade, vai-te embora, não importa; importa apenas o paraíso deste abraço verdadeiro”. Porque é nestes abraços provisórios que nos alcança e toca o eterno, é ali que podemos fazer a experiência do sublime, sentir o palpite mais profundo da vida. É esta a única possibilidade que temos para experimentar, aqui na terra, a eternidade (ou o que mais se lhe assemelha). O desejo e a saudade, profundos e veríssimos, do banquete final da reconciliação definitiva, não nos devem tirar a alegria verdadeira dos banquetes breves e provisórios que, quase sempre, são os únicos que conseguimos preparar e consumar juntos, debaixo da nossa tenda móvel. E, assim, procurando aprender as mansas artes dos abraços provisórios, no fim, talvez, compreenderemos que o deserto e o oásis eram a mesma coisa. E que não nos faltou nada porque, mesmo sem o sabermos, nunca tínhamos saído daqueles breves abraços verdadeiros.

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Maiores que a culpa / 15 – O ofício de viver aprende-se apreciando as pequenas pazes

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 29/04/2018

Piu grandi della colpa 15 rid«Deus é o outro, por excelência, o outro enquanto outro, o outro, absolutamente; e, no entanto, só depende de mim o acordo com este Deus. O instrumento do perdão está nas minhas mãos. Por outro lado, o próximo, meu irmão, é, em certo sentido, mais outro que Deus: para obter o seu perdão tenho de conseguir que ele se apazigue. E se recusa? Sendo dois, tudo está comprometido. O outro pode recusar-me o perdão e deixar-me não perdoado para sempre»

Emanuel Levinas, Quattro letture talmudiche

Em cada dia, milhões de pessoas fazem e dizem coisas más e, pouco depois ou pouco antes, dizem e fazem, sinceramente, coisas boas. Porque o cruzamento de maldade e bondade é simplesmente a condição humana. A Bíblia conhece muito bem este mistério ambivalente da pessoa, provavelmente o maior mistério. Podemos tornar-nos maus, perdemo-nos, perder o fio de ouro da vida, mas, até ao último suspiro, ainda somos capazes de bondade, porque feitos à imagem e semelhança de uma dança infinita de amor recíproco que nenhum pecado consegue parar. Caim matou o seu irmão Abel, mas não matou Adão, o primeiro (e último) homem. E, enquanto Caim continua a matar Abel, o Adão continua, teimoso, a ressuscitá-lo, em cada dia. Nenhuma maldade do fratricida que se alberga dentro de nós é capaz de destruir a marca originária de bem inscrita no mais profundo do nosso ser. Neste sentido, o mal pode ser banal; o bem, nunca. O mal tem uma sua resiliência, que também pode ser muito grande, mas é sempre mais pequena que a resiliência do bem. E é este bem que resiste, teimoso, que nos torna mais belos que as nossas culpas. Está aqui o radical otimismo antropológico da Bíblia, que salvou o Ocidente após e dentro dos seus pecados mais hediondos – e que continua a salvar-nos.

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É infinita a arte do abraço

É infinita a arte do abraço

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Maiores que a culpa / 14 – Costurar, restaurar, agir oportunamente faz a paz

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 22/04/2018

Piu grandi della colpa 14 rid«Nós vemos os bens como um meio, como fios de um véu que mascara as relações subjacentes. A atenção dirige-se ao fluxo de trocas, do qual, porém, os bens marcam apenas a textura»

Mary Douglas, Il mondo delle cose

O presente é uma palavra grande e, por isso, é uma palavra ambivalente. Porque, se não fosse ambivalente, não seria grande, como são grandes e ambivalentes o amor, a religião, a comunidade, a vida, a morte. A “capacidade de dar e receber presentes” é uma possível definição da natureza humana, porque presente significa liberdade, autonomia, dignidade, beleza. Os presentes recebidos e dados marcam as etapas determinantes da nossa vida e da dos que amamos, desde o primeiro presente ao último, quando retribuiremos o cêntuplo do primeiro presente e, talvez só naquele momento, compreenderemos todo o seu valor – e também, o valor e o sentido do último presente que estamos a dar.

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Mas, entre os dias mais dolorosos da vida, estão os marcados na carne, com bisturi muito pesado, de presentes recusados, de ofertas de confiança traídas por quem equivocou e inverteu o nosso presente, o manipulou, deturpou, destruiu. E, como os presentes que funcionam ativam circuitos virtuosos de presentes retribuídos e de reciprocidade generativa, os que correm mal produzem espirais de violência, sempre muito dolorosas. O presente tem, pois, a característica estupenda e tremenda de conseguir transformar-se, repentinamente, no seu oposto: como a água que, num instante, passa do estado líquido ao estado sólido, o presente negado morre e renasce em rancor e raiva no próprio momento em que é negado. Como o presente de Caim, não agradável a Deus, que se torna o anti-presente do fratricídio. Este é um efeito da complexidade e da riqueza do nosso coração, capaz de imenso amor e de imenso ódio, porque infinito.

O encontro de David e Abigaíl é uma verdadeira pérola literária, teológica, antropológica e sociológica. É introduzido por um facto importante: «Tendo morrido Samuel, todo o Israel se juntou para o chorar» (I Samuel, 25, 1). Samuel estava ligado a Saul e a David, tinha sido ele a consagrar ambos os reis. O seu desaparecimento, porém, torna David mais vulnerável em Israel, e ele continua a sua peregrinação de cidade em cidade. Chega ao deserto de Maon, a nordeste do Sinai. Ali «havia um homem cujas propriedades estavam em Carmel. Era muito rico (…). Chamava-se Nabal, e sua mulher, Abigaíl, mulher de grande prudência e formosura. Ele, porém, era grosseiro e mau» (25, 2-3). Chega a festa da tosquia dos rebanhos, e David envia a Nabal (cujo nome significa “estúpido”: nomen omen, como veremos) dez homens a pedir àquele senhor rico, alguns presentes, em forma de alimento e provisões, bastante preciosos, dada a sua condição de fugitivo. É importante a motivação do pedido de David: «Quando os teus pastores moraram connosco no deserto, nunca lhes fizemos mal algum. Nada lhes faltou durante todo o tempo» (25, 7). David vê o pedido a Nabal como uma contraoferta, como uma devida resposta de reciprocidade – nas práticas de ofertas, responder à oferta recebida é uma obrigação. A sua anterior retidão induzia-o a pensar que Nabal cumpriria a dupla regra sagrada da oferta e da hospitalidade e, assim, retribuiria a sua honestidade. Mas estava enganado: «Nabal respondeu-lhes: “Quem é David? E quem é o filho de Jessé? Há, hoje em dia, muitos escravos que fogem da casa dos seus amos! Irei eu tomar o meu pão, a minha água, a minha carne, que preparei para os meus tosquiadores, para os dar a homens que vêm não se sabe de onde?”» (25, 10-11). Nabal não só não envia as ofertas a David, mas também ofende-o a ele e aos seus homens. Não o reconhece – a primeira negação da oferta é negar o reconhecimento do doador. Esta recusa da oferta perverte a originária benevolência de David, que se torna raiva e violência: «Então David disse aos seus homens: “Tome cada um a sua espada!”» (25, 13). E repetia para consigo: «Ele paga-me o bem com o mal. Deus trate com todo o seu rigor a David se, de hoje até amanhã, eu deixar com vida um só homem dos que lhe pertencem”» (25, 21-22).

Neste ponto da crise, entra em cena Abigaíl. Vindo a saber do sucedido, por um dos seus criados, toma conta, literalmente, da situação. Compreende imediatamente a gravidade do gesto desastrado do seu marido, e passa à ação: «Apressou-se, então, Abigaíl e tomou duzentos pães, dois odres de vinho, cinco cordeiros cozidos, cinco medidas (35 litros) de grão torrado, cem tortas de uvas passas, duzentos bolos de figos secos, e carregou tudo sobre os jumentos» (25, 18). Abigaíl age com pressa. Narrativamente, é muito bonita a ação veloz de Abigaíl, marcada por esta série de números (também os números têm a sua beleza laica), que nos revela um escritor que conhecia bem o talento feminino. Faz parte do repertório das mulheres compreender imediatamente o que fazer em circunstâncias dramáticas, especialmente as causadas por conflitos entre homens, e adivinhar o ritmo e os tempos. Nestas ações velozes revemos, em direto, o movimento das muitas mulheres que, durante as crises e as guerras, agem instintiva e rapidamente para salvar a sua família, a qualquer preço.

Abigaíl é o ícone da mulher sábia, concreta e inteligente, que lê dentro das relações e que, depois, age para o bem comum. Atua por um instinto de salvação. É a especialista das relações e do cuidado, construtora de paz. Tecelã de tramas de bem ao serviço da vida. E age em segredo («não informou o seu marido»), porque sabe que os homens não compreenderiam aquele intuito diferente e criariam obstáculos. Guardou no coração e, depois, vai: «Quando Abigaíl avistou David, desceu prontamente do jumento e, prostrando-se, fez-lhe uma profunda reverência. Assim prostrada a seus pés, disse-lhe: “Recaia sobre mim, meu senhor, esta culpa!”» (25, 23-24). Abigaíl também desce depressa. Tem de sarar imediatamente aquela ferida. As mulheres, muito mais que os homens, não gostam de estar dentro de relações doentes. E, peritas em tempos da vida e do corpo, sabem que, nas feridas relacionais, o tempo é o fator determinante.

Abigaíl assume a culpa do que aconteceu, embora estivesse inocente. Quando é preciso sarar uma relação e evitar que se dispare a espiral da vingança, não interessa quem tem razão e quem está errado, e, de certo modo, erros e razões pouco importam. A justiça deve dar lugar ao bem e, portanto, à vida. Muitas feridas continuam a sangrar em nome da justiça e da verdade.

As relações são um “terceiro” em relação às pessoas que as geraram, são uma carne viva e, se é curado aquele “terceiro-carne”, pouco contam as razões e os erros de quem feriu aquele corpo. É preciso curá-lo, e basta. Depois, faremos as contas, porque as “contas” feitas antes da reconciliação são muito diferentes e piores que as feitas depois. Todos somos capazes de fazer isto, mas as mulheres sabem fazê-las mais, pelo instinto vital que as leva a escolher a vida, a qualquer preço. E, depois, Abigaíl mostra a David as suas ofertas: «Aceita este presente que tua serva» (25, 27). É significativo que a palavra hebraica para dizer “presente” seja brk, isto é, bênção, a mesma palavra-boa dita pelo anjo a Jacob, depois do combate e da ferida de Jaboc. Os presentes são sempre palavras, e os presentes depois das feridas são sempre e sobretudo bendições, palavras boas que mendigam reconciliações.

Quando se tata de relações primárias, a análise custos-benefícios das mulheres é diferente da dos homens. Para elas, a reconciliação e o bem comum da família pesam muito mais. Talvez também por esse motivo, quando o Prémio Nobel da Paz, Muhammad Yunus, criou a maior inovação financeira do século (o Grameen Bank), no princípio, pôs como regra que os empréstimos fossem concedidos apenas às mulheres, porque sabia que a restituição e o honrar o empréstimo era para as mulheres algo de muito importante e diferente, porque, por detrás dos empréstimos, estavam relações, família, filhos, sangue, vida. E tinha razão: e, assim, criou uma vida melhor a milhões de mulheres (sobretudo) muçulmanas, às suas famílias, aos seus filhos e aos seus maridos.

David foi convencido e vencido pelas palavras de Abigaíl, que têm a beleza e a força de uma oração, de um salmo. São muitas as orações e os salmos nascidos da palavra-oração como esta de Abigail, porque não existem palavras humanas mais espirituais e santas que as pronunciadas por um inocente que se torna culpável para salvar alguém a qualquer preço. Eis porque quem reza, antes de louvar a Deus, louva o homem e louva a mulher, porque, mesmo sem o saber, naquele louvor está a usar as palavras humanas mais belas e santas, as destiladas pela dor-amor de quem salvou usando palavras diferentes. Palavras de homens, palavras de mulheres. Mas as palavras diferentes das mulheres, sobretudo na antiguidade, eram pronunciadas nos segredos da casa e da alma ou ficavam sufocadas na garganta, como na maravilhosa oração de Ana (cap. 1). A Bíblia é agradecida também por nos ter salvado e dado estas palavras-orações de mulheres, que são lápides autênticas às “soldado desconhecido da paz e das relações” que, como qualquer lápide, é memória e convite a reconhecer e a agradecer. 

«David respondeu-lhe: “Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que te mandou hoje ao meu encontro! Bendito seja o teu intuito! E bendita sejas tu própria, porque me impediste hoje de derramar sangue e de exercer vingança por minhas mãos!”» (25, 32-33). Palavras lindas, que ecoam as do anjo a Maria, que abençoam o intuito e a pressa daquela mulher, o seu génio.

A história conclui-se com a morte, por enfarte, de Nabal, depois do sumptuoso banquete: «Pela manhã, tendo Nabal digerido o vinho, sua mulher contou-lhe tudo. Desfaleceu-lhe o coração dentro do peito e ficou como pedra» (25, 37). Conhecida a notícia, David, certamente impressionado pela beleza e pela graça de Abigaíl, mandou os seus mensageiros a pedi-la em casamento: «Abigaíl levantou-se depressa, montou no seu jumento e, seguida de cinco servas, partiu com os enviados de David, que a desposou» (25, 42). Apressada, mais uma vez. E também depressa Abigaíl sairá da Bíblia. Dará a David um filho (de nome incerto) que, provavelmente, morrerá cedo e, depois, não a veremos mais. A sua passagem foi fugaz, mas a sua figura permanece na Bíblia a recordar-nos o talento das mulheres, o seu intuito diferente, o seu carácter concreto, os seus tempos e a sua vocação para as relações, para a paz, para a vida. Um cântico e um reconhecimento grande às mulheres que continuam, com pressa, o seu trabalho de paz, enquanto nós, homens, continuamos, sem pressa, e exercitar-nos na arte da guerra.

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Maiores que a culpa / 14 – Costurar, restaurar, agir oportunamente faz a paz

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 22/04/2018

Piu grandi della colpa 14 rid«Nós vemos os bens como um meio, como fios de um véu que mascara as relações subjacentes. A atenção dirige-se ao fluxo de trocas, do qual, porém, os bens marcam apenas a textura»

Mary Douglas, Il mondo delle cose

O presente é uma palavra grande e, por isso, é uma palavra ambivalente. Porque, se não fosse ambivalente, não seria grande, como são grandes e ambivalentes o amor, a religião, a comunidade, a vida, a morte. A “capacidade de dar e receber presentes” é uma possível definição da natureza humana, porque presente significa liberdade, autonomia, dignidade, beleza. Os presentes recebidos e dados marcam as etapas determinantes da nossa vida e da dos que amamos, desde o primeiro presente ao último, quando retribuiremos o cêntuplo do primeiro presente e, talvez só naquele momento, compreenderemos todo o seu valor – e também, o valor e o sentido do último presente que estamos a dar.

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A sábia pressa das mulheres

A sábia pressa das mulheres

Maiores que a culpa / 14 – Costurar, restaurar, agir oportunamente faz a paz por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 22/04/2018 «Nós vemos os bens como um meio, como fios de um véu que mascara as relações subjacentes. A atenção dirige-se ao fluxo de trocas, do qual, porém, os bens marcam ape...
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Maiores que a culpa / 13 – Não matar, salvar o nome, cortar a ponta do manto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 15/04/2018

Piu grandi della colpa 13 rid«Caro mal
não te peço razões
é esta a lei da hospitalidade…
dou-te abrigo
precisamente a ti que me destapas.
Não te quero bem mal
sei que és sábio estou de olho em ti
e sou ninho
de ti que me saboreias
e depois cospes o caroço»

Chandra Livia Candiani, Fatti vivo

As formas de conflito são muitas. Cada época acrescenta novas, deixando inalteradas as recebidas em herança. Também a Bíblia conhece diversas. O conflito entre Caim e Abel, onde uma frustração vertical (entre Caim e Deus, que recusava as suas ofertas) se torna violência horizontal (contra Abel). O conflito entre os irmãos mais velhos e José, onde a inveja produz a eliminação do invejado, vendido aos cameleiros em viagem para o Egipto. Aquele entre Abraão e o seu sobrinho Lot, devido à abundância de recursos num espaço comum muito pequeno, que é resolvido por separação, graças à generosidade de Abraão que deixa a Lot a escolha da terra («Se fores para a esquerda, irei para a direita; se fores para a direita, irei para a esquerda»: Génesis 13, 9).

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O conflito entre David e Saul assume ainda uma outra forma. É o paradigma do conflito típico que se cria entre quem, geralmente mais jovem, recebeu um chamamento autêntico para desempenhar uma missão e encontra, a criar-lhe obstáculo, alguém que já está a desempenhar a mesma missão por um chamamento recebido num momento precedente e que lê a chegada do novo como uma ameaça e uma mensagem funesta para a sua vocação. Este tipo de conflito é especialmente doloroso para ambas as partes, porque é um desencontro identitário e necessário, onde cada um pensa estar (porque está) legitimamente no seu lugar. Estes conflitos podem-se resolver ou prevenir apenas com a rendição de uma das duas partes, o que pode assumir muitas formas – medo ou debilidade, obediência a uma nova voz que nos chama para outro lado. Na maioria dos casos, não conseguimos resolver estes conflitos ou os resolvemos muito tarde e com graves danos recíprocos que acabam por nos piorar, a ponto de nos desvirtuar e nos deformar o coração. O relato bíblico da guerra entre Saul e David é importante também porque nos dá um paradigma de uma possível boa abordagem destes conflitos, muito desgastantes e muito comuns.

Das grutas de Adulam, David dirige-se para Moab, onde pede ao rei para hospedar o seu pai e a sua mãe. Moab lembra-nos, imediatamente, Rute e a sua história maravilhosa. Os moabitas eram amigos dos judeus e, por isso, hospedaram os pais de David. Mas um outro profeta, Gad, entra em cena e diz a David: «‘Não fiques na fortaleza. Parte, e vai para a terra de Judá’. David partiu» (I Samuel 22, 5). Os livros de Samuel mostram-nos David amigo dos sacerdotes e, sobretudo, amigo dos profetas, que escuta. Está também nesta capacidade de escutar os profetas a beleza de David e uma explicação do amor que a Bíblia manifesta abundantemente por este seu rei-messias.

David continua a sua fuga de Saul e monta a sua tenda no deserto de Zif. Aqui, vem ao seu encontro o seu amigo Jónatas e os dois renovam o seu ‘pacto de sal’: “Não temas, disse-lhe Jónatas, porque Saul, meu pai, não te poderá prender”. E, assim, fizeram ambos uma aliança diante de YHWH” (23, 17-189). E David, depois, partiu e estabeleceu-se no deserto montanhoso de En-Guédi, na direção ao Mar Morto, onde o esperava um encontro determinante.

Saul, avisado da presença de David naquelas montanhas, toma três mil soldados e parte no seu encalce. Ao longo do caminho, Saul entra numa gruta para satisfazer as suas necessidades mas, no fundo dessa mesma gruta, numa cavidade mais interior, encontram-se, escondidos, David com alguns companheiros: “Os homens de David disseram-lhe: «Eis o dia do qual o Senhor te disse: ‘Eu entregarei o teu inimigo nas tuas mãos, para que faças dele o que quiseres»” (24, 5). Os companheiros de David fazem-se intérpretes da vontade de Deus e dos sentimentos do antigo ouvinte deste relato, e convidam David a aproveitar a ocasião de absoluta vulnerabilidade de Saul (só e de costas) para o eliminar. Mas David não considera a vox populi como vox Dei. Aproxima-se de Saul e, em vez de o atingir, “cortou a ponta do manto de Saul, sem ele se aperceber” (24, 5). David não só não escuta o conselho dos homens, como “sente o seu coração bater de remorsos por ter cortado a ponta do manto de Saul” (24, 6). E também “David reprovou com palavras severas os seus homens e impediu que agredissem Saul” (24, 8). E disse-lhes: “Deus me guarde de fazer tal coisa ao meu senhor, o ungido de YHWH, estender a minha mão contra ele, pois ele é o ungido do Senhor!” (24, 7). Temos aqui um relato complexo, narrativamente muito eficaz e denso de pathos que, entre outras coisas, nos ilustra o fenómeno que Freud chamava ‘o tabu dos dominadores’ ou a intocabilidade do soberano. Noutras civilizações arcaicas (e não só nelas) o rei é rodeado por uma proibição de ‘tocabilidade’ que nasce do profundo desejo que têm o povo e os seus herdeiros em o matar (no texto expresso pelo conselho dos companheiros). Mas ainda mais bela é a tira do manto na mão de David que, a quem seguiu, desde o princípio, a epopeia de Saul, lembra imediatamente a ponta do manto de Samuel que permanece na mão de Saul quando procurava agarrar o profeta no dia da sua rejeição.

Saul, satisfeitas a suas necessidades, sai da gruta, e segue-o David, tendo na mão a ponta cortada do manto de Saul. É muito bonito e sincero o diálogo entre estes dois homens. Depois de se ter prostrado diante de Saul, David diz-lhe: “O pensamento de te matar assaltou-me, incitou-me contra ti, mas eu disse: ‘Não levantarei a mão contra o meu senhor, porque é o ungido do Senhor.’ Olha, meu pai, e vê se é a ponta do teu manto que tenho na minha mão” (24, 11-12). Saul ergueu a voz e chorou: “‘É esta a tua voz, ó meu filho David?’ E Saul elevou a voz, soluçando. E disse a David: ‘Tu portas-te bem comigo, e eu comporto-me mal contigo. Provaste hoje a tua bondade para comigo, pois o Senhor havia-me entregado nas tuas mãos e não me mataste’” (25, 17-19).

Mais uma vez, Saul é capaz de mostrar autênticos sentimentos de arrependimento, de chorar em ‘voz alta’ pelo mal que está a fazer. Chama a David ‘meu filho’, reconhece o seu erro e a sua maldade. E suscita em nós uma sincera compaixão e a mesma piedade de David. Toda a trágica história de Saul continua a ser pulverizada por estes fugazes, mas intensos, olhares bons do texto, que parece querer atribuir a maldade de Saul ao espírito mau de Deus que um dia se apossou do seu coração (um modo, eficaz e humaníssimo, de resgatar algo deste primeiro e desafortunado rei). Mal este espírito mau o deixa, Saul torna-se capaz de dizer coisas bonitas e boas: “Que o Senhor te recompense pelo que fizeste comigo!” (24, 20).

Este grande encontro entre Saul e David conclui-se com estas palavras de Saul: “«Jura-me, pelo Senhor, que não eliminarás a minha posteridade, nem apagarás o meu nome da casa do meu pai». E David jurou-lho” (24, 22-23). Saul sente próximo o seu fim e, como os grandes personagens bíblicos, pensa imediatamente nos pais e nos filhos. Naquele humanismo, a salvação mais importante não é a própria, mas a dos filhos e a dos pais que são, juntos, o nosso verdadeiro nome. Naquele breve momento de lucidez espiritual, Saul menciona, então, o nome do pai e o nome dos filhos. Não quer que o fracasso da sua vocação se torne o fracasso do passado e do futuro. Quando nos damos conta que a nossa vida não funcionou, que não se tornou naquilo que podia e devia ser, podemos ainda salvar algo de bom e verdadeiro se protegemos o nome, se procuramos impedir que os nosso erros e pecados contaminem as raízes e a semente, porque sabemos que são inocentes, e queremos que permaneçam como tal. Nestas salvações do nome, regeneramos também os nossos filhos e tornamo-nos pais dos nossos geradores e, por vezes, conseguimos escutar também o seu ‘obrigado’ que nos chega do escuro dos nossos abismos, e os iluminam. Existem famílias salvas por um último ato de amor de quem tinha errado, mas conseguiu salvar a inocência do nome.

Após este intenso encontro, David retoma a sua fuga. Não desiste porque não pode renunciar à sua vocação. Foge, mas não renuncia a tornar-se legítimo rei do seu povo. E, enquanto foge, sofre e vê as maldades de Saul, respeita-o, chama-o ‘meu pai’, ‘meu senhor’, reconhece-o como soberano legítimo. E, quando o poderia matar e, assim, pôr fim aos seus sofrimentos, não o faz. Prefere permanecer no conflito a uma solução mais simples, mas menos verdadeira. E, assim, a Bíblia lança-nos a sua habitual mensagem de vida: aprender a viver as contradições, a lidar com os conflitos, a preferir uma não-solução difícil mas mais verdadeira a uma solução que parece mais simples, apenas porque é menos verdadeira. Aproximar-se, em silêncio, de quem nos faz mal, cortar apenas a ponta do seu manto, e encontrarmos na mão um simples pedaço de tecido cortado em vez do punhal homicida. Porque também é permanecendo, com lealdade e mansidão, num conflito, no qual nos encontramos sem o procurar nem o querer, que as vocações amadurecem, quando escolhemos usar a faca apenas para cortar uma ponta de tecido. Podemos salvar-nos de determinados conflitos recorrendo apenas à força-débil de um pedaço de pano.

David tinha sido escolhido e consagrado rei quando ainda era rapaz. Um dia torna-se rei e foi o maior de todos. Esta lealdade difícil e generosa, aprendida e exibida no conflito com Saul, fê-lo tornar-se o rei mais amado, para além das suas muitas culpas. Também depois dos grandes pecados e infidelidades, podemos esperar ser perdoados pela vida, por Deus, pelos nossos amigos, pelo anjo da morte, se fomos capazes de respeitar um inimigo possesso de um espírito mau, se não abusámos da sua vulnerabilidade, se o chamámos ‘pai’ ou ‘amigo’ quando já o não merecia. Se o fizemos, pelo menos, uma vez.

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Maiores que a culpa / 13 – Não matar, salvar o nome, cortar a ponta do manto

por Luigino Bruni

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Não te quero bem mal
sei que és sábio estou de olho em ti
e sou ninho
de ti que me saboreias
e depois cospes o caroço»

Chandra Livia Candiani, Fatti vivo

As formas de conflito são muitas. Cada época acrescenta novas, deixando inalteradas as recebidas em herança. Também a Bíblia conhece diversas. O conflito entre Caim e Abel, onde uma frustração vertical (entre Caim e Deus, que recusava as suas ofertas) se torna violência horizontal (contra Abel). O conflito entre os irmãos mais velhos e José, onde a inveja produz a eliminação do invejado, vendido aos cameleiros em viagem para o Egipto. Aquele entre Abraão e o seu sobrinho Lot, devido à abundância de recursos num espaço comum muito pequeno, que é resolvido por separação, graças à generosidade de Abraão que deixa a Lot a escolha da terra («Se fores para a esquerda, irei para a direita; se fores para a direita, irei para a esquerda»: Génesis 13, 9).

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A força débil que nos salva

A força débil que nos salva

Maiores que a culpa / 13 – Não matar, salvar o nome, cortar a ponta do manto por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 15/04/2018 «Caro mal não te peço razões é esta a lei da hospitalidade… dou-te abrigo precisamente a ti que me destapas. Não te quero bem mal sei que és sábio estou de olho em ...
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Maiores que a culpa / 12 – A profissão da vida aprende-se pondo-se a caminho

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 08/04/2018

Piu grandi della colpa 12 rid«Desde criança, acontece-me olhar, com simpatia e respeito infinito o rosto meio murcho de uma mulher, como se nele estivesse escrito: “por aqui passaram a vida e a realidade”. Todavia, vivemos e nisto há algo de maravilhoso. Chama-lhe Deus, natureza humana ou como quiseres, mas há algo que não sei definir num sistema, embora seja muito vivo e verdadeiro e isto, para mim, é Deus»

Vincent Van Gogh, Lettere, 179, 193

Quando uma vocação é verdadeira e cresce bem, aos “hossana” da multidão segue-se, pontual, o tempo da paixão. Um período crucial, quando o desígnio e a missão daquela pessoa se começam a revelar com maior clareza, porque o cenário escuro dos acontecimentos fazem-lhe realçar os contornos luminosos. Assim, David, depois do primeiro sucesso na corte e no coração de Saul, da vitória sobre Golias, do canto de glória das mulheres («Saul venceu mil, mas David matou dez mil»), é forçado a fugir e esconder-se, porque Saul o quer matar. Agora, o texto mostra-o foragido e nómada, de cidade em cidade, em perigo de vida contínuo, sem morada fixa, vulnerável e pobre. Como Abraão, como Moisés, como Maria e José. Também ele um arameu errante, também ele à procura de benevolência e de hospitalidade; como nós, como muitos outros que, desde o dia em que viemos à luz, nos tornamos mendicantes de uma mão boa que nos acolha e hóspede, e nunca deixamos de a procurar, até ao fim.

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Chega primeiro a Nob, junto dum sacerdote, Aimélec. David dá-lhe uma explicação (falsa) porque se dirigiu a ele e, depois, pede-lhe “cinco pães” (um número e um alimento muito sugestivos). Aimélec responde-lhe: «Não tenho à mão pão ordinário, mas só pão consagrado» (I Samuel 21, 5). O pão consagrado do santuário era um pão ritual. David consegue persuadir Aimélec; recebe e come, com os seus homens, os “pães da oferta” que, segundo a Lei, só podiam ser consumidos pelos sacerdotes. Eis porque os evangelhos sinóticos citam este episódio quando, ao sábado, Jesus passava pelas searas e os seus discípulos começam a colher espigas. E, depois de ter citado David, Jesus conclui: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado» (Marcos 2, 27). David estava necessitado, tinha fome, e a fome está acima da Lei, na Bíblia e na vida. Nenhum preceito religioso, económico ou político pode justificar a negação do pão a quem tem fome. E quando o pão (e o trabalho) é negado em nome da lei, de qualquer lei, e se deixa o homem sem pão, nega-se a Bíblia, a fé, e ainda antes se nega a lei do pão, que é a primeira lei da vida: se em casa há pão e um faminto mo pede, eu devo dar-lho. Mesmo que não o possa pagar, mesmo que não me possa dar nada em troca, mesmo que seja um pão sagrado, porque nada é mais sagrado e santo que um homem faminto. A Bíblia é também uma história do pão, do maná à última ceia, e é uma história do dom. O pão marca simbolicamente (profundamente, portanto) também o princípio da odisseia de David, que nos é mostrado, antes de mais, como um homem faminto, que tem necessidade de pão.

É com estes olhares largos e bons sobre a condição humana elementar que a Bíblia consegue “ver” os muitos homens e as tantas mulheres que, diariamente, continuam a ter fome e que, como David, têm de recorrer a estratagemas e a mentiras para não morrer – frequentemente sem o conseguir. São estes olhares que fazem da Bíblia o grande livro amigo do homem, de cada homem, de todo o homem, de todas as mulheres e de todos os homens. Nunca deve ser esquecido que a Bíblia, antes de nos falar bem de Deus, fala-nos bem do homem, o ben-diz. E, assim, encontra-o na sua vulnerabilidade e limitação, porque sabe que é apenas dentro do infinitamente pequeno que se podem tocar o infinitamente grande e o seu mistério. David também está desarmado e, com o pão, pede ao sacerdote uma arma. Com uma ulterior série de mentiras, recebe a espada de Golias que estava guardada no templo (21, 19). David mostra-se manhoso e sem preconceitos, a ponto de, para se salvar, recorrer sistematicamente à mentira. A mentira e as meias verdades não o fazem sair da graça de YHWH, que continua a assisti-lo, a abençoá-lo e a protege-lo. A Bíblia, que tem uma estima infinita pela capacidade performativa da palavra e que, em época das contínuas desmentiras, de todos os pactos transformados em contratos e das fake news, continua a recordar-nos a importância e a dignidade das palavras na vida, não tem medo de se inserir nos fundamentos do seu humanismo, também das mentiras, ditas pelos seus personagens que ama e olha com olhos benevolentes (Abraão, Jacob, Mical, Jónatas, David, Pedro…). Mentir é uma outra expressão da “pobreza” e vulnerabilidade de David, da sua humanidade e da nossa. É a resposta natural a uma outra forma de indigência. As mentiras de David são as de um homem pobre, com medo, indefeso e faminto. Por isso, as mentiras não são todas iguais. A da serpente, a de Caim e as dos falsos profetas são sempre e só mal e, por isso, são condenadas pela Bíblia e por nós. Mas, como a violação da lei sobre o pão consagrado, estas mentiras de David estão ao serviço da vida.

A Bíblia não é um tratado de ética, não é um manual de virtudes civis. É muito mais. É o livro da vida, é um cântico ao homem vivo e à terra que é a primeira casa dos anjos de Elohim, que não vêm visitar-nos porque somos bons e religiosamente perfeitos, mas porque são atraídos pela nossa imperfeição quando é acompanhada por um bom coração. A bíblica sinceridade do coração está, sobretudo, ligada à capacidade de se arrepender e de sofrer pelo mal praticado (David arrepender-se-á pelas mentiras ditas àquele sacerdote: 22, 22), é a bênção que nos atinge a alma e nos surpreende quando já estávamos convencidos de ter perdido a inocência para sempre. Pouco antes, num outro relato da sua fuga, em Naiot, foram os profetas a salvar David, primeiro dos homens enviados por Saul, depois do próprio rei. Saul entra, assim, em contacto com uma espécie de exaltação mística: «Saul despiu também as suas vestes e pôs-se a cantar com os outros diante de Samuel, ficando assim despido e prostrado por terra, durante todo o dia e toda a noite» (19, 24). Um episódio misterioso e ambivalente, certamente sugestivo e fascinante, eco de uma antiga tradição local. Saul, já abandonado pelo espírito bom e cada vez mais à mercê do espírito mau e dos seus fantasmas, encaminhado inexoravelmente para o seu fim, em contacto com aquela comunidade de profetas, revive algo de muito semelhante ao entusiasmo profético do dia da sua vocação, quando recebe, de Samuel, a unção como rei e «YHWH transformou-lhe o coração» (10, 9).

É muito humana e cheia de pietas esta nudez de Saul, este seu prostrar-se por terra e permanecer assim um dia e uma noite. Provavelmente, reencontrando-se em contacto com o espírito que tinha sentido vivo e maravilhoso naquele primeiro dia abençoado, algo o sacode interiormente, lhe bate, o derruba. Como acontece a quem, quando a vida já o conduziu por caminhos onde perdeu a voz e a luz do distante primeiro encontro, um dia se encontra, casualmente, com a sua primeira comunidade, ou volta a escutar uma velha canção, revê uma foto, ou volta àquele lugar onde recebeu um chamamento verdadeiro (como verdadeiro foi o de Saul). E, dentro da alma, o perturba um vento de emoções de uma saudade imensa por algo de belíssimo que sabe ter perdido para sempre – graças a Deus, diferentemente de Saul, por vezes os grandes choros e as longas horas transcorridas prostrados por terra, são o princípio de uma fase nova e esplêndida da vida. Com a ajuda dos profetas e dos sacerdotes, David salva-se e continua a sua viagem de fuga. Chega a Gat, uma cidade filisteia. É reconhecido e, para se salvar, «simulou um ataque de loucura diante deles: fazia movimentos raros com as mãos, batia nas portas e deixava correr a saliva pela barba» (21, 14). O rei de Gat, Aquis, disse aos seus servos: «Bem vedes que este homem está louco. Porque mo trouxestes? Porventura, não tenho aqui bastantes loucos, para me trazerdes ainda mais este?» (21, 15-16). David finge ser louco, como Ulisses. Continua a lutar e a simular, para viver.

De Gat, chega, depois, a uma região com muitas grutas, Adulam. Ali chegaram os seus familiares, que já não se sentiam muito seguros em Belém. À volta de David «se juntaram os que se viam angustiados, endividados e descontentes e David tornou-se o seu chefe» (22, 2). É muito bonita a descrição desta comunidade que se forma à volta de David. Recorda os hebreus que deixaram o Egipto com Moisés, as multidões que seguiam Jesus na Palestina, as primeiras igrejas cristãs, o primeiro movimento monacal, as ordens mendicantes e as muitas comunidades que procuravam e procuram um libertador para sonhar uma outra vida. Pessoas honestas e oprimidas, devedores insolventes que fugiam da prisão e de escravidão e outros simplesmente descontentes. Todos pobres, perseguidos, oprimidos. O povo das bem-aventuranças. As comunidades verdadeiras, as capazes de reconhecer os David e iniciar resgates sociais e autênticas revoluções, são sempre assim: mestiças, promiscuas, biodiversificadas, heterogéneas, feitas de pessoas impelidas por motivações muito diferentes, que se tratam e melhoram ‘tocando-se’. E é assim que permanecem vivas e fecundas. Quando, pelo contrário, as comunidades começam a subdividir-se e a segmentar-se em comunidades de honestos, comunidades de insolventes e comunidades de descontentes-e-basta, perdem força profética, criatividade e capacidade de mudança. E os devedores acabam escravos, os descontentes desistem, os honestos tornam-se muito parecidos aos trabalhadores da primeira hora e ao irmão mais velho do filho pródigo. As comunidades de diferentes que se tornam comunidades de semelhantes empobrecem-se e, rapidamente, se extinguem. David continua o seu percurso pelos caminhos perigosos da Palestina, faminto, mentirosos e medroso, em companhia de gente normal e imperfeita, como ele, como nós. O jovem eleito, fascinante e amável, aprende a profissão da vida experimentando a fragilidade e a vulnerabilidade da condição humana. Como nós, como todos.

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Maiores que a culpa / 12 – A profissão da vida aprende-se pondo-se a caminho

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 08/04/2018

Piu grandi della colpa 12 rid«Desde criança, acontece-me olhar, com simpatia e respeito infinito o rosto meio murcho de uma mulher, como se nele estivesse escrito: “por aqui passaram a vida e a realidade”. Todavia, vivemos e nisto há algo de maravilhoso. Chama-lhe Deus, natureza humana ou como quiseres, mas há algo que não sei definir num sistema, embora seja muito vivo e verdadeiro e isto, para mim, é Deus»

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Quando uma vocação é verdadeira e cresce bem, aos “hossana” da multidão segue-se, pontual, o tempo da paixão. Um período crucial, quando o desígnio e a missão daquela pessoa se começam a revelar com maior clareza, porque o cenário escuro dos acontecimentos fazem-lhe realçar os contornos luminosos. Assim, David, depois do primeiro sucesso na corte e no coração de Saul, da vitória sobre Golias, do canto de glória das mulheres («Saul venceu mil, mas David matou dez mil»), é forçado a fugir e esconder-se, porque Saul o quer matar. Agora, o texto mostra-o foragido e nómada, de cidade em cidade, em perigo de vida contínuo, sem morada fixa, vulnerável e pobre. Como Abraão, como Moisés, como Maria e José. Também ele um arameu errante, também ele à procura de benevolência e de hospitalidade; como nós, como muitos outros que, desde o dia em que viemos à luz, nos tornamos mendicantes de uma mão boa que nos acolha e hóspede, e nunca deixamos de a procurar, até ao fim.

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Maiores que a culpa / 12 – A profissão da vida aprende-se pondo-se a caminho por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 08/04/2018 «Desde criança, acontece-me olhar, com simpatia e respeito infinito o rosto meio murcho de uma mulher, como se nele estivesse escrito: “por aqui passaram a vida e a...
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Maiores que a culpa / 11 – O amor é um, mas os amores são muitos: eros, philia, ágape…

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 01/04/2018

Piu grandi della colpa 11 B rid«Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia].
Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia].
Pedro, tu amas-me [philia]?»

Evangelho de João 21,15-17

O amor é um, mas os amores são muitos. Amamos muitas pessoas e muitas coisas, somos amados por muitos, de modos diferentes. Amamos os pais, os filhos, as namoradas e as mulheres, os irmãos e as irmãs, professores, avós e primos, poetas e artistas. E amamos, muito, os amigos e as amigas. O amor humano não se limita aos seres humanos. Atinge os animais, toca toda a natureza, toca Deus. O mundo grego, para exprimir o amor, tinha duas palavras principais, eros e philia, que não esgotavam as suas muitas formas, mas que ofereciam um registo semântico mais rico que o nosso, para declinar esta palavra fundamental da vida. Um léxico que era capaz de distinguir o ‘amo-te’, dito à mulher amada, do ‘amo-te’, dito a um amigo e, ao mesmo tempo, reconhecer que o segundo era nem inferior nem menos verdadeiro que o primeiro.

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O cristianismo, depois, acrescentou uma terceira palavra grega para dar uma outra tonalidade ao mesmo amor, já presente na Bíblia hebraica e, sobretudo, já presente na vida. Esta terceira palavra, estupenda, é ágape, o amor que sabe amar quem não é desejável e o não-amigo. Três dimensões do amor que, frequentemente, se encontram juntas nas relações verdadeiras e importantes. Também na amizade, onde a philia nunca está só, porque é ela a primeira a precisar de amigos. É acompanhada pelo desejo-paixão pelo amigo e é banhada pelo ágape que lhe permite durar para sempre, renascer dos nossos fracassos e das nossas fragilidades. Uma amizade que é só philia não é suficientemente forte para não nos deixar sós nos nossos caminhos. Mas é a philia que liga o eros e o ágape entre si e os irmana – também Jesus teve necessidade do registo da philia para nos mostrar o seu amor. Nas pouquíssimas amizades que nos acompanham durante longos períodos da nossa vida, por vezes até ao fim, a philia encerra em si também as cores e os sabores do eros e do ágape. São aqueles amigos a quem perdoámos e que nos perdoaram setenta vezes sete, os que, enquanto não regressavam, foram esperados e desejados como uma esposa ou um filho. Os que abraçámos, beijámos como e diferentemente dos outros abraços e dos outros beijos, com os quais misturámos muitas vezes as lágrimas até as fundir na mesma gota salgada. Poucas dores são maiores que a da morte dum amigo – nesse dia, um pedaço de coração deixa de bater e não mais recomeça. A Bíblia, perita em humanidade, conhece muito bem a gramática das relações e dos sentimentos humanos e dá-nos páginas maravilhosas sobre a amizade. E, assim, usa a mesma palavra – ahavah – para descrever o amor entre pai e filho, o amor erótico e sensual entre um jovem e uma jovem, e também o amor entre dois amigos.

Com Jónatas, filho do rei Saul, a amizade faz a sua aparição na Bíblia. E é um aparecimento belíssimo, um verdadeiro cântico ao amor-amizade. Jónatas é príncipe, é guerreiro, mas é, sobretudo, amigo. O texto apresenta-no-lo, também ele, conquistado pelo fascínio de David. “Jónatas estabeleceu um pacto, pois este amava David como a si mesmo” (I Samuel 18, 3). Um pacto solene, Talvez um ‘pacto de sal’, onde a não corrupção do sal dizia, na Bíblia, simbolicamente ‘para sempre’. A Bíblia sabe o que é um pacto-Aliança e, se recorre a esta palavra para nos falar de uma amizade, ainda anos está a dizer algo de importante. Algo de importante que diz também Matteo Ricci, o missionário de Macerata (Lì Mădòu (利瑪竇)), cujo primeiro livro em chinês foi sobre a amizade (em 1595).

Como a fazer de fundo à amizade entre David e Jónatas, depois de nos ter introduzido este pacto de amizade, o texto leva-nos a Saul, cada vez mais perseguido pelos seus espíritos maus. David regressa à pátria, depois de ter vencido Golias, e vêm-lhe ao encontro Piu grandi della colpa 11 ridas mulheres da cidade, cantando e dançando ao som dos seus tambores: “Saul matou mil, mas David matou dez mil” (19, 7). As mulheres, um outro elemento que será uma constante na vida de David, fazem a sua entrada solene dançando, em fila, uma atrás da outra, com a típica leveza e graça dos movimentos do seu corpo. Celebram a vitória de David mas, sobretudo, a de YHWH. Como Maria, a irmã de Moisés, com a pandeireta e o seu canto, cantou a dança das mulheres, depois da travessia do mar. Saul disse: “‘Dão dez mil a David e a mim apenas mil! Só lhe falta a coroa!’ A partir daquele dia, não voltou a olhar para David com bons olhos” (18, 8-9). E, depois, sob a ação do seu espírito mau, arremessou a lança contra David: “Vou cravar David à parede!”; mas “David desviou-se por duas vezes” (18, 11).

É grande o contraste entre os olhos bons de Jónatas e os olhos “tortos” de Saul. A inveja e o ciúme são uma questão de olhos. O ciúme e a inveja são instrumentos gémeos que se alimentam um ao outro, embora a segunda tenha uma estrutura binária (Saul inveja o sucesso de David), enquanto o ciúme é ternário (David pode levar-lhe o reino). Enquanto se desenvolve a tragédia de Saul, o texto continua a mostrá-lo vítima do espírito mau de YHWH, em poder do seu triste destino de rei escolhido e, depois, desprezado. Uma outra forma de misericórdia é a dos escritores em relação aos seus personagens, que faz com que a misericórdia sobre a terra seja melhor que a que existe entre os homens e as mulheres de carne e osso (e, nisto, os artistas assemelham-se, um pouco, a Deus, porque podem amar, perdoar e salvar as suas criaturas, num ato de liberdade absoluta).
Saul já está obcecado com David e começa a tramar planos para a sua eliminação. Promete-lhe como esposa a sua filha mais velha (Merab), mas “tendo chegado o tempo [dois anos], Merab foi dada a Adriel” (18, 19). Mas a outra filha de Saul, Mical, enamorou-se de David e Saul ficou contente, porque pensou: “Vou dar-lha Mical para que seja para ele uma armadilha” (18, 21) – um episódio que lembra o de Jacob com as duas filhas de Labão, Raquel e Lia. Saul pede em dote “os prepúcios de cem filisteus” (18, 25), preço que David paga com generosidade (duzentos prepúcios).

Porém, Mical não se torna “uma armadilha” para David. Pelo contrário, salvou-o da loucura homicida de Saul, ajudando-o a fugir na noite em que o seu pai o queira matar: “Mical tomou os ídolos familiares, meteu-os na cama, colocou-lhes ao redor da cabeça uma pele de cabra e cobriu-os com um manto. Saul enviou emissários a prender David, e ela disse-lhes: «Ele está doente»” (19, 13-14). David é protegido pelo amor que gera em quem está perto dele.

De facto, num outro relato da sua fuga de Saul, David, de acordo com Jónatas, não se apresenta ao banquete na festa da lua-nova. Quando Saul notou a ausência e Jónatas deu a (falsa) explicação pela ausência de David (ir a Belém), o rei “encolerizou-se contra Jónatas e disse: «Filho de uma prostituta, pensas que não sei que és amigo do filho de Jessé, e que isso é uma vergonha para ti?» … Jónatas respondeu ao pai, dizendo: «Porque há de morrer? Que mal fez ele?» Saul brandiu a lança para o atravessar” (20, 30-33). Jónatas enfrenta abertamente o seu pai, defende as razões de David, arriscando assim a sua vida. Poderia não o fazer. Pelo contrário, foi leal. A lealdade é uma componente essencial de qualquer amizade autêntica. Toma sobre si as consequências difíceis de uma relação, quando é possível evitá-las. Frequentemente é falar, outras vezes é calar, outras vezes manifesta-se em não referir ao amigo as palavras más dos outros, que tinham como único objetivo feri-lo. É agir como se o outro estivesse sempre presente.

David e Jonatas despedem-se renovando o seu pacto de amizade e de unidade: “um juramento que fizemos, que o Senhor esteja sempre como testemunha entre ti e mim, entre a tua posteridade e a minha!” (20, 42). Na Aliança com Abraão, Deus passou no meio dos animais cortados ao meio. Nestes pactos de amizade, Deus passa ‘no meio’ dos amigos (Mateus 18, 20). Por isso, é um pacto que fura espaço e tempo. Envolve as nossas descendências, os nossos filhos que temos e que teremos, pais e avós. Os pactos de amizade, diferentemente dos pactos nupciais, não são, geralmente, celebrados com a palavra. São, quase sempre, pactos mudos. Por vezes, porém, numa amizade que amadurece, pode haver também pactos explícitos, celebrados também com a palavra. São, por exemplo, os pactos de amizade na base de novas comunidades e movimentos, civis o religiosos, gerados por dois ou mais amigos, que trocam palavras especiais num momento especial. O contexto do relato da amizade entre David e Jónatas é o de um pacto sagrado, de uma aliança solene, de uma fraternidade espiritual. Recorda-nos Francisco, Clara e frei Elias, Kiko Arguello e Carmen Hernández. Francisco de Sales e Joana de Chantal, Chiara Lubich e Igino Giordani, Basílio e Gregório, Don Zeno e mamã Irene, Ganghi e os seus primeiros companheiros na ‘marcha do sal” e os muitos pactos de amizade, implícitos e explícitos, que geraram sindicatos, corporativas, empresas, partidos políticos, resistências, libertações. Pactos afetuosos e castos, todos íntimos e inclusivos, ligados e livres, nunca ciumentos, sempre generosos e imensamente geradores.

Antes de o saudar, Jónatas tinha dito a David: “Vamos para o campo” (20, 11). A Bíblia já conhece esta frase. É a de Caim (Gn 4, 8). O amigo é anti-Caim, alguém que te convida a ir para o campo, para te salvar. Na terra, o convite de Caim, o fratricida, e o de Jónatas, o amigo, coexistem, vivem um ao lado do outro, cruzam-se. Por vezes, só descobrimos que o outro não é Jónatas, mas Caim, quando, chegados ao campo, vemos a sua mão a tornar-se diferente. E são os dias mais tristes. Outras vezes, descobrimos que quem pensávamos ser Caim era, na realidade, Jónatas. A humanidade continua a sua história porque os ‘convites de Jónatas’ são mais numerosos que os ‘convites de Caim’, porque os amigos são mais que os assassinos.

Um outro dia, um outro amigo, o maior de todos, foi colocado numa cruz por uma outra mão fratricida. Junto à cruz estavam as mulheres e um amigo. Dessa vez, as mulheres e o amigo não o conseguiram salvar. Mas aqueles amigos viram-no vivo, e nós, seus amigos, continuamos a esperá-lo, na companhia de Abel e de todas as vítimas da história. Esperamo-lo porque prometeu-nos que voltará e a promessa do amigo é verdadeira.
Boa Páscoa.

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Maiores que a culpa / 11 – O amor é um, mas os amores são muitos: eros, philia, ágape…

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 01/04/2018

Piu grandi della colpa 11 B rid«Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia].
Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia].
Pedro, tu amas-me [philia]?»

Evangelho de João 21,15-17

O amor é um, mas os amores são muitos. Amamos muitas pessoas e muitas coisas, somos amados por muitos, de modos diferentes. Amamos os pais, os filhos, as namoradas e as mulheres, os irmãos e as irmãs, professores, avós e primos, poetas e artistas. E amamos, muito, os amigos e as amigas. O amor humano não se limita aos seres humanos. Atinge os animais, toca toda a natureza, toca Deus. O mundo grego, para exprimir o amor, tinha duas palavras principais, eros e philia, que não esgotavam as suas muitas formas, mas que ofereciam um registo semântico mais rico que o nosso, para declinar esta palavra fundamental da vida. Um léxico que era capaz de distinguir o ‘amo-te’, dito à mulher amada, do ‘amo-te’, dito a um amigo e, ao mesmo tempo, reconhecer que o segundo era nem inferior nem menos verdadeiro que o primeiro.

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A promessa do amigo é verdadeira

Maiores que a culpa / 11 – O amor é um, mas os amores são muitos: eros, philia, ágape… por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 01/04/2018 «Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia]. Pedro, tu amas-me [ágape]? – Sim, Senhor, amo-te [philia]. Pedro, tu amas-me [philia]?» ...
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Maiores que a culpa / 10 – Os instrumentos humildes que acrescentam páginas ao livro da história

por Luigino Bruni

publicado em  Avvenire em 25/03/2018

Piu grandi della colpa 10 rid

«Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices.
Uma nação não levantará a espada contra outra,
e não se adestrarão mais para a guerra»
Isaías 2,4

No livro da história que nos descreve fortes e prepotentes vencedores e débeis e pobres que sucumbem, encontram-se algumas páginas diferentes. São aquelas onde a ordem natural se altera, os humildes são elevados, os soberbos derrotados. Poucas páginas, mas a sua luz fulgurante ilumina todo o livro, transforma-o, muda-lhe o sentido, fazem a diferença. Outros relatos, que revelam uma segunda lei de movimento da humanidade. A do Magnificat de Ana e de Maria, da profecia do Emanuel, da pedra rejeitada, do servo sofredor-glorificado, do crucificado-ressuscitado, de Rosa Parks, de organizações corporativas e sindicatos que libertaram e libertam as vítimas dos impérios e dos faraós. Páginas que nos dizem que a ordem hierárquica natural não é a única possibilidade, que tudo pode acontecer, que nos é dada uma última oportunidade quando tudo e todos nos dizem que é impossível. É esta mesma lei frágil e tenaz que explica porque, no barulho das vozes fortes e poderosas, conseguimos, por vezes, escutar uma pequena voz diferente e a seguimos; porque, naquela vez soubemos acreditar mais numa única pequena razão para seguir em frente e não nas muitas razões mais fortes que nos diziam para nos render; ou porque, perante aquela encruzilhada crucial não entrámos no caminho do sucesso e do poder, mas no que sabíamos que nos tornaria mais pequenos e vulneráveis. Outras páginas, uma outra história, uma lei diferente. Um outro caminho, que tomámos porque, talvez, aí vislumbrámos a única possibilidade de uma salvação verdadeira, porque mais pequena; ou, talvez, porque fomos docilmente conduzidos apenas pelo nosso coração.

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“O espírito do Senhor retirou-se de Saul, que era atormentado por um espírito maligno enviado por YHWH” (I Samuel 16, 14). Depois da esplêndida cena da eleição-unção de David por parte de Samuel, o relato leva-nos ao palácio de Saul, o primeiro rei de Israel, repudiado por YHWH. Encontramo-lo à mercê de um espírito mau que, diz o texto, tinha sido “enviado por Deus”. Volta aqui uma outra constante bíblica. Em Saul, dera-se uma troca de espíritos: o bom tinha sido retirado e o seu lugar tinha sido ocupado por um espírito mau, que o atormentava. As bênçãos e as maldições dos protagonistas da história da salvação já não são coisas só naturais (doenças, depressões…); contêm sempre uma mensagem mais alta. Na Bíblia, YHWH é a fonte dos espíritos bons e dos maus. Não encontramos nela a luta entre o deus do Bem e o deus do Mal, entre luz e sombra, como era comum nas teodiceias dualistas do Médio Oriente. Se YHWH é o único verdadeiro Deus, deve ser o responsável também da presença dos espíritos maus na terra. Mas, atribuir ao próprio Deus também os espíritos maus, significa tornar YHWH responsável também pelas maldades e pelas dores do mundo – culpável não, mas sim responsável, porque se deve procurar dar uma resposta às perguntas mais difíceis que se levantam das suas criaturas feridas, nas escrituras ou através dos profetas.

Semelhante responsabilidade, normalmente, mete medo à Bíblia (e a nós), mas, por vezes, as suas páginas mais ousadas desafiam-nos e vencem este medo e oferecem-nos obras-primas espirituais e antropológicas. Porque um Deus que fosse fonte somente das coisas bonitas e boas do mundo não estaria à altura das páginas mais verdadeiras da Bíblia, onde descobrimos uma ideia de Deus demasiado elevada para o não confinar apenas no bom e no belo da vida. O Deus bíblico não é um deus banal porque tem de nos dizer donde chegam também os ‘espíritos maus’ que atormentam os nossos filhos – é também esta a mensagem do grande cântico de Job, onde Satanás é um dos anjos na corte de Deus-Elohim (depois de Job e graças a Job, o Deus bíblico tornou-se mais responsável do mal do mundo).

Os ministros de Saul dizem-lhe: “Eis que um espírito mau te atormenta… os teus servos, aqui presentes, procurarão um homem que saiba tocar harpa, para que, quando o mau espírito dominar sobre ti, ele a toque, a fim de te acalmar” (16, 15-16). Um dos seus criados diz: “Conheço um filho de Jessé de Belém que sabe tocar muito bem harpa” (16, 18). Saul mandou dizer a Jessé para lhe mandar o seu filho, o “pastor” (16, 19). O jovem chegou à corte e, neste momento do relato, aparece o seu nome: “Saul mandou dizer a Jessé: «Rogo-te que deixes David comigo, pois ganhou a minha estima»” (16, 22). E, assim, “sempre que o mau espírito atormentava Saul, David tomava a harpa e tocava. Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau deixava-o” (16, 23). É muito bonito ver David, que a tradição nos mostrará como o criador e cantor de salmos maravilhosos, entrar, pela primeira vez em cena, com a harpa para cantar um cântico para Saul doente. O seu primeiro som bíblico é para um rei repudiado e abandonado pelo espírito de Deus. O seu primeiro cântico é o cântico da gratuidade. Um trecho que, entre outras coisas, faz-nos intuir o que significava a música no mundo bíblico e antigo. Alegrava as festas, acompanhava as liturgias e as danças de louvor, também afastava os espíritos maus. Um poder extraordinário e sobrenatural que, na Bíblia, permite aos artistas ‘comandar’ até o espírito de Deus. A música (e toda a arte) é também este diálogo com os espíritos do mundo, misteriosa parteira do daimon.

Enquanto estamos ainda enfeitiçados pela harpa de David, o desenvolvimento do texto conduz-nos a uma das cenas mais populares da literatura antiga. Somos introduzidos no campo de batalha: os israelitas alinhados contra os filisteus. Do acampamento dos filisteus sai um guerreiro, Golias, um campeão muito alto, armado e imponente para aterrorizar os seus inimigos. Durante quarenta dias, Golias gritou contra o povo e o Deus de Israel e dizia: “Dai-me um homem para lutarmos juntos” (17, 10). No meio desta cena bélica, chega David, e chega como se não o conhecêssemos ainda – na relação final cruzam-se diversas tradições. Seu pai, Jessé, tinha-o mandado aos seus irmãos que estavam no exército de Saul: “Toma para os teus irmãos um efá de grão torrado e estes dez pães e leva-os sem demora ao acampamento… e pergunta se os teus irmãos vão bem ou se têm necessidade de alguma coisa” (17, 17-18). David, o mais novo, é enviado aos seus irmãos, para os reabastecer, trazer para casa o seu salário de guerra e para se informar da sua ‘saúde’, do seu shalom. Um outro rapaz, o penúltimo filho, foi enviado a verificar o shalom dos irmãos (Génesis 37, 14). Este outro rapaz era José, um outro ‘pequeno’, desprezado e vendido, que, mais tarde, se torna a salvação dos irmãos e do povo. Também David é criticado a acusado pelos irmãos: “Eliab, seu irmão mais velho, ouvindo-o falar com os homens, indignou-se contra David e disse: «Porque vieste aqui? A quem deixaste o rebanho no deserto? Conheço as tuas pretensões e a maldade do teu coração»” (17, 28).

David vê Golias, escuta as suas palavras e as suas ameaças. É chamado por Saul e David diz-lhe: “O teu servo irá combater com este filisteu” (17, 32). Saul hesita por causa da jovem idade e falta de experiência de David. David procura convencê-lo, aludindo à sua habilidade de pastor: “Quando vinha um leão ou um urso roubar uma ovelha do rebanho, eu perseguia-o e matava-o, arrancando-lhe a ovelha da boca. E, se ele se levantava contra mim, agarrava-o pela goela e estrangulava-o” (17, 34-35). Saul acredita em David e dá-lhe a sua bênção: “Vai, e que o Senhor esteja contigo” (17, 38). Um outro ‘bom olhar’ do texto sobre Saul. Também um homem, a quem é retirado o espirito de Deus, pode reconhecer a presença do espírito bom sobre outro homem e abençoá-lo. Também quando sabemos que o “Senhor” já não está connosco, podemos sempre dizer a um outro: “O Senhor esteja contigo” – o mundo avança porque existem pessoas capazes de abençoar outras em nome de um Deus ou de um ideal que eles próprios perderam.

O lendário duelo entre David e Golias não é o balanço de uma ação militar. É muito mais. É uma luta teológica, uma narração da vocação de David, uma outra teofania. Golias é também a imagem do ídolo, um novo Dagon que, novamente, cai ‘por terra’, em contacto com a Arca do verdadeiro Deus (5, 3). Saul empresta a David a sua armadura, para melhor defrontar o combate, mas David diz: “Não posso caminhar com esta armadura, pois não estou habituado!” (17, 39). Despe-a e vai ao encontro de Golias, levando consigo apenas o seu cajado de pastor e uma funda; apanha cinco pedras lisas na torrente, mete-as no seu alforge. Golias gritou: “Sou eu, porventura, um cão, para vires contra mim de pau na mão?” (17, 43). E, por isso, “amaldiçoou David em nome dos seus deuses”. Mas, logo que Golias se dirige para David, este “meteu a mão no alforge, tomou uma pedra e arremessou-a com a funda, ferindo o filisteu na fronte. A pedra penetrou-lhe na cabeça, e o gigante tombou com o rosto por terra” (17, 48-49). O cajado e a funda podem vencer a lança e a haste, a nudez derrota a fortíssima armadura. A vitória de David foi grande, a maior de todas, porque foi a vitória do pastor nu, não a vitória do guerreiro – como, genialmente, intuíram Miguel Ângelo, Donatello, Cellini.

David lutou com Golias, não como guerreiro, mas como pastor. Derrota o poderoso Golias com os instrumentos normais de trabalho do pastor. A profissão das armas não derrota a profissão do pastor. David obteve de Saul a permissão de desafiar Golias em nome da sua perícia na arte do trabalho e não na arte da guerra.

Ainda hoje, enquanto os poderosos e prepotentes continuam a exercitar-se na arte da guerra e a aterrorizar o mundo com as suas espadas e os seus gritos, outros continuam e exercitar-se apenas nas artes e nas profissões. Por vezes, conseguem vencer a guerra e a morte com o seu trabalho, com os instrumentos humildes de trabalho. E acrescentam uma nova página diferente ao livro da história. David, o bom pastor, renasce e revive, vencedor nu, com o seu bastão e a sua vergasta.

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Maiores que a culpa / 10 – Os instrumentos humildes que acrescentam páginas ao livro da história

por Luigino Bruni

publicado em  Avvenire em 25/03/2018

Piu grandi della colpa 10 rid

«Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices.
Uma nação não levantará a espada contra outra,
e não se adestrarão mais para a guerra»
Isaías 2,4

No livro da história que nos descreve fortes e prepotentes vencedores e débeis e pobres que sucumbem, encontram-se algumas páginas diferentes. São aquelas onde a ordem natural se altera, os humildes são elevados, os soberbos derrotados. Poucas páginas, mas a sua luz fulgurante ilumina todo o livro, transforma-o, muda-lhe o sentido, fazem a diferença. Outros relatos, que revelam uma segunda lei de movimento da humanidade. A do Magnificat de Ana e de Maria, da profecia do Emanuel, da pedra rejeitada, do servo sofredor-glorificado, do crucificado-ressuscitado, de Rosa Parks, de organizações corporativas e sindicatos que libertaram e libertam as vítimas dos impérios e dos faraós. Páginas que nos dizem que a ordem hierárquica natural não é a única possibilidade, que tudo pode acontecer, que nos é dada uma última oportunidade quando tudo e todos nos dizem que é impossível. É esta mesma lei frágil e tenaz que explica porque, no barulho das vozes fortes e poderosas, conseguimos, por vezes, escutar uma pequena voz diferente e a seguimos; porque, naquela vez soubemos acreditar mais numa única pequena razão para seguir em frente e não nas muitas razões mais fortes que nos diziam para nos render; ou porque, perante aquela encruzilhada crucial não entrámos no caminho do sucesso e do poder, mas no que sabíamos que nos tornaria mais pequenos e vulneráveis. Outras páginas, uma outra história, uma lei diferente. Um outro caminho, que tomámos porque, talvez, aí vislumbrámos a única possibilidade de uma salvação verdadeira, porque mais pequena; ou, talvez, porque fomos docilmente conduzidos apenas pelo nosso coração.

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O trabalho sabe vencer a guerra

Maiores que a culpa / 10 – Os instrumentos humildes que acrescentam páginas ao livro da história por Luigino Bruni publicado em  Avvenire em 25/03/2018 «Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e nã...
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Maiores que a culpa / 9 – O trabalho nunca é um obstáculo às nossas vocações

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/03/2018

Piu grandi della colpa 09 rid«Uma vez, Rabbi Bunam rezou numa pousada. Mais tarde, disse aos discípulos: “Às vezes, julga-se que não seja possível rezar num lugar e procura-se outro. Mas esta não é a atitude correta. Porque o lugar abandonado queixa-se: porque não quiseste fazer as tuas orações em cima de mim? Se havia algo que te perturbava, isso era precisamente o sinal que tinhas a obrigação de me redimir”»

Martin Buber, Storie e leggende Chassidiche  [Histórias e lendas cassídicas]

O declínio de Saul cruza-se com a subida de David, estrela luminosíssima na Bíblia, talvez a mais luminosa no Antigo Testamento. É o personagem de quem conhecemos melhor o coração – uma palavra que, não por acaso, faz a sua aparição já no primeiro relato da sua vocação («o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração»: Samuel 16, 7).

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Abraão e Moisés são figuras imensas na Bíblia, ainda mais centrais na história da salvação. Deles, conhecemos as façanhas, as palavras, sobretudo a fé, e estas são suficientes para fazer deles as colunas do povo e da aliança. O coração de Abraão ou de Moisés, porém, não o conhecemos ou conhecemo-lo muito pouco. O Sinai e o Monte Moriá são lugares de grandes diálogos, talvez os maiores de todos, mas o que, verdadeiramente, acontece na alma de Moisés e de Abraão, o texto não no-lo diz. Deixa-no-lo imaginar e, também por isto, os escritores e os artistas, ao longo dos séculos, puderam “completar” as histórias íntimas destes homens de Deus que, no texto bíblico, apenas eram sugeridas ou sussurradas.

De David, a Bíblia faz-nos entrar na sua interioridade, nas suas emoções, nos seus sentimentos e nas suas tragédias. Por isso, a narração da sua história dá-nos páginas das mais emocionantes e sublimes da literatura antiga, e David torna-se um rei muito amado apesar de mais pecador e “pequeno” que outros personagens bíblicos. David assemelha-se a Jeremias: ambos chamados enquanto jovens, ambos seduzidos no coração, ambos grandes pelas suas façanhas e seus gestos, mas amados, sobretudo, pelas páginas dos seus diários da alma, pelos seus cânticos e salmos intimíssimos do coração. Com David, o som, o canto e a amizade tornam-se palavra de Deus e os sentimentos humanos adquirem direitos de cidadania no coração da Bíblia, que é o grande códice da nossa civilização, não só e nem tanto porque nos fala de modo diferente de Deus, mas porque nos fala diversamente dos homens e das mulheres, porque nos fala diversamente de nós, para nos dizer quem somos.

«YHWH disse a Samuel: “Até quando chorarás Saul, tendo-o Eu rejeitado para que não reine em Israel? Enche o teu chifre de óleo e vai. Quero enviar-te a Jessé de Belém, pois escolhi um rei entre os seus filhos”» (1 Samuel 16, 1). A nova palavra de Deus para Samuel começa com uma referência a Saul. Samuel chora por Saul rejeitado. O texto não nos diz porque chora Samuel. No entanto, podemos pensar que Samuel tenha vivido com sofrimento o repúdio de Saul por parte de YHWH. Tinha-o procurado e consagrado; tinha-o beijado e, depois, tinha participado na alegria da festa da sua entronização. O fracasso de Saul fora também o fracasso de Samuel, como acontece na vida, quando o insucesso de quem escolhemos para desempenhar uma tarefa se torna também o nosso insucesso. Quem se encontra a orientar uma comunidade ou uma organização sabe que não é possível desprender-se dos fracassos das pessoas em quem nos confiámos. Mesmo se a responsabilidade objetiva do insucesso não for nossa, o pacto que criou aquela missão é uma reciprocidade incarnada. E, como em todos os pactos, o fracasso do outro é também o meu fracasso. É verdade que Samuel, juiz e profeta, agia a falava sob o comando de YHWH. Mas o profeta honesto, no momento em que pronuncia a palavra recebida, torna-se pessoalmente solidário com a palavra que diz. Sempre, mas sobretudo quando as coisas correm mal.

O pranto de Samuel pelo repúdio de Saul, que faz após os seus gritos («Samuel entristeceu-se e clamou ao Senhor durante toda a noite» 15, 11), repete-nos também a misteriosa e maravilhosa dinâmica da palavra e da profecia na Bíblia. A profecia vive de um duplo pacto de fidelidade: entre Deus e o profeta e entre o profeta e a palavra. No momento em que Samuel age e fala, fundado na palavra recebida, começa uma solidariedade-fidelidade entre o profeta e a palavra que pronuncia, que chega mesmo ao dever ético de sentir na sua carne a dor por uma palavra que não se cumpre, por razões que ele não pode controlar. O profeta não é uma máquina, não é um mediador indiferente entre Deus e o mundo. É, pelo contrário, um canal vivo e incarnado; e, quando a palavra o atravessa para alcançar a terra e se tornar eficaz, ele torna-se parte das histórias e das ações que aquela palavra opera e acompanha as suas sortes. Um Samuel que não chorasse por uma palavra de YHWH que deu errado, não seria um profeta responsável, mas simplesmente um falso profeta, que não sofre pelo fracasso das suas palavras proferidas, porque essas palavras eram apenas vanitas, fumo, fake news. A unção de Saul nascera de uma palavra autêntica e, enquanto tal, tinha operado, fora performativa, tinha mudado a realidade, para sempre. «Tornar-te-ás outro homem» (10, 6), tinha dito Samuel a Saul, no dia da unção. Se aquela palavra era verdadeira, foi uma palavra eficaz. Deus muda de ideia e/ou Saul peca, mas é o pranto de Samuel a dizer-nos que as palavras não são vento, e que Samuel era um profeta honesto. A mostrar-nos o imenso valor da palavra e das palavras na Bíblia – e na vida.

Samuel parte, vai ter com Jessé, em Belém: «Logo que entraram, Samuel viu Eliab e pensou consigo: “Certamente é este o ungido do Senhor”. Mas o Senhor disse a Samuel: «Que te não impressione o seu belo aspeto, nem a sua alta estatura”» (16, 6-7). Samuel aparece-nos ainda confuso, numa cena que recorda, de perto, o chamamento de Saul à procura das jumentas perdidas. De facto, fica impressionado pelo aspeto e pela estatura do primogénito de Jessé (Eliab) (bonito e alto). Jessé apresenta todos os sete filhos, mas «Samuel disse: “O Senhor não escolheu nenhum deles”» (16, 10). Eis aqui a viragem narrativa: «Samuel acrescentou: “Estão aqui todos os teus filhos?” Jessé respondeu: «Resta ainda o mais novo, que anda a apascentar as ovelhas”. Samuel ordenou a Jessé: “Manda buscá-lo”» (16, 11). O oitavo filho, o ausente, o pastor, chega junto de Samuel e de toda a sua família: «era louro, de belos olhos e de aparência formosa. Disse YHWH: “Ei-lo, unge-o: é esse”. Samuel tomou o chifre de óleo e ungiu-o na presença dos seus irmãos. E, a partir daquele dia, o espírito do Senhor apoderou-se de David» (16, 12-13).

Uma cena esplêndida, que deveria ser ainda mais rica de pormenores nas primeiras narrações antigas (já perdidas). O mérito, na Bíblia, é algo de radicalmente diferente da nossa meritocracia. Impressionam alguns pormenores que assumem valor teológico e antropológico. A estrutura narrativa do texto mostra-nos um diálogo entre YHWH e Samuel, onde até Deus tem necessidade de ver o rosto de David, antes de dizer a Samuel: “unge-o: é esse”. A Bíblia é, com certeza, um humanismo da palavra, mas é também um humanismo do olhar e dos olhos. Do primeiro olhar de Elohim sobre Adão, quando vê que “era coisa muito boa”, ao segundo olhar entre dois humanos, finalmente “olhos-nos-olhos”, ao olhar entre Jesus e o homem rico: “olhando-o, amou-o”. David é o mais novo dos irmãos. Seu pai Jessé nem sequer o tinha convidado para o banquete sacrificial, dada a sua jovem idade que não lhe permitia participar nos sacrifícios. Estamos, portanto, dentro de um outro grande episódio, talvez o maior de todos, da economia da pequenez que atravessa toda a Bíblia e representa uma sua alma profundíssima.

A Aliança, a libertação, a conquista e a proteção da terra, a profecia, vivem de um diálogo vital e fecundíssimo entre força e debilidade, grandeza e pequenez, lei e liberdade, instituição e carisma, templo e profecia. São a trama e a urdidura da história da salvação que só juntas permitem ver as formas, as cores e a beleza do desígnio da humanidade. Mas, nos momentos determinantes desta história, a Bíblia mostra-nos que a co-essencialidade destes dois princípios não chega a negar a existência do primado que pertence à oikonomia da salvação. A de Abel, a das mulheres estéreis e mães, de José, de Amós e de Jeremias, de David, de Belém, das bem-aventuranças, do Gólgota. A lógica da economia da pequenez nasce diretamente da ideia de Deus, de pessoa e de relações contidas na Bíblia. Diz-nos que YHWH é uma “subtil voz do silêncio”, o seu tempo é um tempo vazio. É uma voz, não se vê nem se toca, que se escolhe como aliado, o mais pequeno entre os pequenos, que se torna criança, e que depois deixa o seu filho e os nossos filhos dependurados numa cruz. Mas também nos diz que a vida espiritual da pessoa desabrocha verdadeiramente no dia em que se começa a intuir que a salvação se encontra no que é tão pequeno que nem sequer é “convidado para o banquete”, nos fracassos de ontem, nas feridas da alma, nas perguntas que mandámos embora, nos pecados e nos limites que não queremos ver. Tomar a sério esta economia da pequenez leva-nos a olhar o mundo de outro modo. A procurar os reis de amanhã entre os rejeitados e os pobres de hoje, a levar muito a sério os jovens e as crianças, a encontrar méritos onde a oikonomia da grandeza apenas sabe ver deméritos.

Há um último pormenor, tão humilde a ponto de ficar, frequentemente, no fundo do relato. Enquanto Samuel passa em revista os seus irmãos, David está “pastoreando o rebanho”. Na sua família, era o único rapaz que, naquele momento, estava a trabalhar (talvez com as irmãs e a mãe que podemos imaginar, por sua vez, no trabalho). Estava a guardar o rebanho, como Moisés, no Monte Horeb. O trabalho não é um obstáculo aos nossos chamamentos maiores, porque, simplesmente, as vocações e as teofanias mais importantes e verdadeiras acontecem enquanto “guardamos o rebanho”. Um cântico estupendo à laicidade e ao trabalho. Para descobrir a nossa vocação e também o nosso lugar no mundo, não podemos fazer nada melhor que trabalhar.  

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Maiores que a culpa / 9 – O trabalho nunca é um obstáculo às nossas vocações

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/03/2018

Piu grandi della colpa 09 rid«Uma vez, Rabbi Bunam rezou numa pousada. Mais tarde, disse aos discípulos: “Às vezes, julga-se que não seja possível rezar num lugar e procura-se outro. Mas esta não é a atitude correta. Porque o lugar abandonado queixa-se: porque não quiseste fazer as tuas orações em cima de mim? Se havia algo que te perturbava, isso era precisamente o sinal que tinhas a obrigação de me redimir”»

Martin Buber, Storie e leggende Chassidiche  [Histórias e lendas cassídicas]

O declínio de Saul cruza-se com a subida de David, estrela luminosíssima na Bíblia, talvez a mais luminosa no Antigo Testamento. É o personagem de quem conhecemos melhor o coração – uma palavra que, não por acaso, faz a sua aparição já no primeiro relato da sua vocação («o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração»: Samuel 16, 7).

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A economia da pequenez

Maiores que a culpa / 9 – O trabalho nunca é um obstáculo às nossas vocações por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 18/03/2018 «Uma vez, Rabbi Bunam rezou numa pousada. Mais tarde, disse aos discípulos: “Às vezes, julga-se que não seja possível rezar num lugar e procura-se outro. Mas e...
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Maiores que a culpa / 8 – Somos cidadãos duma terra parcial e incompleta

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/03/2018

Piu grandi della colpa 08 rid«É muito difícil encontrar, em toda a Bíblia, um único personagem, justo ou injusto, que não tenha sido desmentido por Deus, exceto talvez Abraão e Jesus. Mas exatamente com estes desmentidos, o homem de fé aprende a duvidar de toda a instituição que não se deixe contradizer»

Paolo De Benedetti I profeti del re  [Os profetas do rei]

Depois da consagração realizada por Samuel, Saul começa a desempenhar a sua missão de rei guerreiro, um início que marca a sua trágica sorte, narrada em páginas entre as mais excitantes e belas de toda a Bíblia: «Juntaram-se os filisteus para combater Israel, com trinta mil carros, seis mil cavaleiros. (…) Saul, entretanto, estava ainda em Guilgal com todo o seu povo, que tremia de medo. Esperou sete dias, segundo a ordem de Samuel. Mas este não chegava a Guilgal, e o povo, pouco a pouco, ia-se afastando. Disse, pois, Saul: «Trazei-me o holocausto e os sacrifícios de comunhão». E ele mesmo ofereceu o holocausto” (1 Samuel 13, 5-9).

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No dia da sua unção como rei, Samuel tinha-lhe dito: “Descerás antes de mim a Guilgal, onde irei ter contigo para oferecer holocaustos e sacrifícios de comunhão. Esperarás sete dias até que eu chegue; então te direi o que deves fazer” (10, 8). Passam sete dias, Samuel não chega, o povo tem medo e dispersa-se. Por isso, Saul decide ele mesmo oferecer a YHWH o sacrifício perfeito de comunhão (o holocausto). Imediatamente depois, «chegou Samuel. Saul saiu-lhe ao encontro para o saudar. Disse-lhe Samuel: «Que fizeste?»” (13, 11). Respondeu Saul: «Disse de mim para mim: ‘Agora os filisteus vão cair sobre mim em Guilgal, antes de eu aplacar o Senhor. Por isso, eu próprio me decidi a oferecer o holocausto’» (13. 12). Saul tinha esperado os dias indicados por Samuel; por isso, não tinha agido fora das indicações recebidas. No entanto, Samuel critica-o com dureza inesperada e surpreendente: «Procedeste insensatamente, não observando o mandamento que te deu YHWH» E conclui: «Agora, o teu reinado não subsistirá» (13, 13-14).

Começa, aqui, a revelar-se o tristíssimo destino do primeiro Rei de Israel. Na sua história, encontram-se entrelaçadas muitas tradições e teologias. Entre estas, não menos importante, a crítica radical que o autor dos Livros de Samuel faz ao nascimento da monarquia, que se torna, imediatamente, um olhar crítico sobre o seu fundador – toda a cítica radical é sempre uma crítica arqueológica, que põe em causa a raiz, o seu princípio originário (arché). Nesta história, existem, porém, outras razões profundas e carregadas de significados éticos de grande importância, que se revelam melhor se lermos esta primeira narração da crise entre Saul e Samuel juntamente com o segundo relato sobre os Amalecitas, ainda mais forte e dramático.

Antes de mais, é bom falar de “crise” e não de conflito entre estes dois grandes personagens. De facto, Saul não “combate” Samuel nem, em toda a gestão desta crise imensa, põe alguma vez em causa a autoridade de Samuel. Mostra até uma grande suavidade nas suas relações, invoca misericórdia para os seus erros, oferece expiações pelos seus comportamentos, atos e sentimentos que não podem deixar de captar a nossa simpatia de nós, seus leitores. De facto, é, retoricamente, muito interessante que, lendo estes relatos com a habitual necessária ignorância que deve acompanhar toda a leitura fecunda da Bíblia (e os grandes textos) – isto é, ler cada trecho como se fosse pela primeira vez – encontramo-nos, espontaneamente, conduzidos pela narração pelo lado de Saul e num contraste emotivo com Samuel. E, neste contraste narrativo que se cria entre o Saul condenado por YHWH e o Saul salvo pelo leitor, está muita da beleza destes capítulos que revelam, entre outras coisas, o infinito talento literário do autor.

Depois da gesta bélica de Jónatas, filho de Saul (cap. 14), encontramos uma nova ordem que Samuel dirige a Saul: «Isto diz o Senhor do universo: ‘Vou pedir contas a Amalec do que ele fez a Israel, opondo-se-lhe no caminho, quando saía do Egipto. Vai, pois, agora, ferir Amalec. Votarás ao extermínio tudo o que lhe pertence, sem nada poupar. Matarás tudo, homens e mulheres, crianças e meninos de peito, bois e ovelhas, camelos e asnos’» (15, 2-3).

Página tremenda, que nos obriga a procurar chaves de leitura mais profundas, para não associar a Bíblia à nossa violência – é Deus o primeiro que tem necessidade da exegese da Bíblia e dos textos sagrados das religiões, se não queremos continuar a “matar as crianças” em Seu nome: com estas páginas bíblicas, YHWH tem necessidade do nosso estudo para poder dizer “não em meu nome”. Em primeiro lugar, Amalec e o seu povo (os amalecitas) são conhecidos do leitor bíblico porque, no deserto, combateram Israel para o impedir de chegar a Canaã. O maior inimigo, o que se tinha oposto ao cumprimento da promessa. Por isso, é imagem do mal absoluto, ícone bíblico de qualquer idolatria. Como o faraó; como o Egipto. E isto já é a primeira hermenêutica diferente do pedido desconcertante de Samuel. Os filhos dos Amalecitas são imagens dos “filhos” dos ídolos, como o eram os filhos doe egípcios, que não podiam ser os meninos “de carne e osso”, feitos nascer pelas parteiras, que aquele mesmo Deus abençoou por terem salvado os filhos dos hebreus, dando-lhes «uma família numerosa» (Êxodo 1, 19-20). Eis porque, no fim do relato, Samuel menciona explicitamente a idolatria: «A desobediência é tão culpável como a superstição, e a insubmissão é como o pecado da idolatria» (15, 23).

Mas Saul não executa à letra a ordem de Samuel-YHWH, porque poupa Agag, o rei dos Amalecitas e «o melhor dos rebanhos e manadas» (15, 9). Na economia do relato, a esta desobediência de Saul é atribuída uma importância enorme: «Arrependo-me de ter feito rei a Saul, porque me voltou as costas e não executou as minhas ordens» (15, 11). Samuel irrita-se – no texto não se compreende se com Deus ou com Saul (ou com ambos?) – e, imediatamente, vai ao encontro de Saul, que o acolhe e lhe diz: «O Senhor te abençoe! Cumpri a ordem de YHWH» (15, 13). A frase de boas vindas de Saul trai a sua boa-fé (15, 20-21). Mas Samuel reitera o veredito: «Visto, pois, que rejeitaste a palavra do Senhor, também Ele te rejeita e te tira a realeza» (15, 23). A tensão trágica atinge o seu auge. Saul, o escolhido, rejeitado por quem o escolheu (15, 26). E acrescenta ainda: «Porventura, o Senhor se compraz tanto nos holocaustos e sacrifícios como na obediência à sua palavra?» (15, 22). Na rejeição de Saul e no seu “salvar a melhor parte” pode haver algo de mais diferente da polémica anti idolatria e anti sacrificial dos profetas que, no entanto, existe.

Quando se recebe uma missão de uma voz – de Deus ou da consciência – que nos fala com clareza, não somos nós a ter de decidir que parte realizar. Em qualquer missão ética existem elementos que nos agradam e outros que não amamos ou que odiamos. Se deixamos fora a parte que não nos agrada, estamos a transformar-nos em donos da voz, e perdemo-nos. Porque, naquela parte que deixámos de fora, esconde-se algo de essencial que, se não é realizado, afeta todo o resto. O destino ou se cumpre ou não se cumpre; não é possível realizá-lo em parte. Eis porque a maior parte das vocações não conseguem florir em plenitude porque, quando chega o momento em que é preciso escolher realizar a parte que não amamos ou que odiamos, quase sempre fazemos a escolha de Saul. A vocação de Saul fora uma vocação verdadeira, não um erro de Deus ou de Samuel (também os três relatos da sua unção no-lo dizem). Mas a vocação de uma pessoa é só a aurora de um destino, e o que acontecerá durante todo o dia dependerá da capacidade de fidelidade aos compromissos morais que não nos agradam e que temos boas razões para não amar. Muitas destas escolhas parciais são feitas por pietas e em boa-fé, como parece ser com Saul. Mas a boa-fé não basta para salvar uma vocação – como nos recorda Jeremias, também entre os falsos profetas existem muitos em boa-fé.

Poderíamos deter-nos aqui, satisfeitos com esta leitura diferente destas páginas tremendas. Mas ainda é possível entrarmos em cumes ainda mais ousados e escorregadios, porque são estes que, frequentemente, nos abrem horizontes mais amplos.

O texto mostra-nos Saul como um homem que escuta o profeta e como um homem íntegro e justo que, se erra, o faz com boa-fé e por razões imputáveis à pietas e, talvez, à debilidade. Abre-se, então, aqui, um discurso antropológico importante para todas as vocações. Apresenta-se, ao seu coração, um mistério, feito também de um lado sombrio. Juntamente às vocações de Abraão, Jeremias, Isaías, Samuel, Noé, a Bíblia, aqui, com Saul, dá-nos um outro “paradigma” de vocações que tem, em comum com as outras, a incompletude e a parcialidade (onde se encontram a sua plena e completa beleza). A de quem recebeu uma autêntica vocação, procurou vivê-la em boa-fé, mas não conseguiu a completá-la. Uma vocação verdadeira pode “dar errado” sem que o queiramos ou o mereçamos. Em qualquer vocação está inscrita a possibilidade da sua tragédia, porque é um pacto de reciprocidade.

E, nos pactos, dependemos radicalmente dos outros, do seu coração, do seu arrependimento, da sua leitura do nosso coração. A realização do nosso matrimónio não depende apenas da nossa boa-fé; o sucesso da nossa empresa não depende apenas do nosso empenho. A florescimento do nosso pacto com Deus depende também de como “se tornará” amanhã aquela voz que escutámos hoje e na qual acreditámos com todo o coração – não posso dizer que mude Deus mas, certamente, crescendo, muda a voz. Saul, homem bom, provavelmente em boa-fé, mas rejeitado e repudiado por aquele Deus e por aquele profeta que o tinham chamado enquanto procurava as “jumentas perdidas”, que se torna rei por vocação sem o querer nem o procurar, é, portanto, imagem de todos os que seguem, honestamente, uma voz e que não chegam à terra prometida, embora sendo e permanecendo bons.

Também as verdadeiras vocações, também os bons, se podem perder – como aquelas jumentas que Saul não encontrou. Um outro Saul, mil anos depois, pode escrever, com coragem, que «as promessas e os dons de Deus são irrevogáveis» (Rm 11, 29), talvez porque levava inscrita no seu próprio nome a auto subversão daquela tese.

Saul procurou, com todas as suas forças, reconciliar-se com a sua vocação e com o próprio destino. Agarrou Samuel para ele mudar, para o fazer mudar a direção e o coração, mas não conseguiu: «Samuel virou as costas para se retirar, mas Saul agarrou-o pela ponta do manto, o qual se rasgou» (15, 27). As vocações verdadeiras, as de carne e osso, são variantes da incompleta de Saul. Lutamos toda a vida para não perder o nosso destino e, ao fim, resta-nos, em herança, uma “tira do manto” rasgado do profeta, que nos deixa, quando adultos, depois de nos ter chamado, quando jovens.

Como Moisés, que tinha falado cara a cara com Deus que, no fim da vida, não o fez entrar na Terra Prometida. Mas se Saul e Moisés e os outros profetas são habitantes de uma terra diferente da prometida, então a nossa terra parcial e incompleta é um bom lugar onde poder montar as nossas tendas nómadas.

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Maiores que a culpa / 8 – Somos cidadãos duma terra parcial e incompleta

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/03/2018

Piu grandi della colpa 08 rid«É muito difícil encontrar, em toda a Bíblia, um único personagem, justo ou injusto, que não tenha sido desmentido por Deus, exceto talvez Abraão e Jesus. Mas exatamente com estes desmentidos, o homem de fé aprende a duvidar de toda a instituição que não se deixe contradizer»

Paolo De Benedetti I profeti del re  [Os profetas do rei]

Depois da consagração realizada por Samuel, Saul começa a desempenhar a sua missão de rei guerreiro, um início que marca a sua trágica sorte, narrada em páginas entre as mais excitantes e belas de toda a Bíblia: «Juntaram-se os filisteus para combater Israel, com trinta mil carros, seis mil cavaleiros. (…) Saul, entretanto, estava ainda em Guilgal com todo o seu povo, que tremia de medo. Esperou sete dias, segundo a ordem de Samuel. Mas este não chegava a Guilgal, e o povo, pouco a pouco, ia-se afastando. Disse, pois, Saul: «Trazei-me o holocausto e os sacrifícios de comunhão». E ele mesmo ofereceu o holocausto” (1 Samuel 13, 5-9).

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Herdeiros da tira do manto

Maiores que a culpa / 8 – Somos cidadãos duma terra parcial e incompleta por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 11/03/2018 «É muito difícil encontrar, em toda a Bíblia, um único personagem, justo ou injusto, que não tenha sido desmentido por Deus, exceto talvez Abraão e Jesus. Mas exat...
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Maiores que a culpa / 7 – A Aliança bíblica estabelece compromisso e perdão recíprocos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/03/2018

Piu grandi della colpa 07 rid«Procurarei ajudar-te enquanto não fores destruído dentro de mim. Uma coisa, porém, se torna cada vez mais evidente para mim, isto é, que tu não podes ajudar-nos, mas que somos nós a ter de te ajudar… Também já posso perdoar a Deus, porque a situação é a que, certamente, deve ser. Que se possa ter tanto amor a ponto de poder perdoar a Deus!»

Etty Hillesum Diário, 1942

Em muitos episódios-chave da vida, não basta apenas um relato; é demasiado pouco. Para dizer o que aconteceu no dia em que somos conhecidos ou em que ouvimos chamar-nos pelo nome, uma única voz não basta. Temos de contar muitas vezes os momentos determinantes; temos de os contar a pessoas diferentes e, a cada uma, do seu modo. As coisas repetidas favorecem quem as conta e quem as ouve. Quando esta bio-diversidade falta, é negada ou é combatida, os nossos relatos empobrecem, o mistério da vida escapa-se-nos. A multiplicidade das histórias protege da ideologia, que se desenvolve quando é atribuído, a uma única narração, o crisma de verdade e a todas as outras o da heresia. Esta multiplicidade e variedade de relatos, geralmente, perturbam o homem moderno na busca de acordo nos dados históricos; mas, para o escritor bíblico, pelo contrário, é uma linguagem para mostrar a grandeza e a importância dos episódios que está a narrar. A não-avareza e a generosidade emergem também da abundância com que acompanha as suas histórias mais bonitas; como nas cartas de amor, onde os adjetivos se somam, para dizer um pouco o que não conseguimos dizer – a Bíblia é uma longa e única carta de amor dirigia a nós e que, frequentemente, permanece dentro do sobrescrito. A verdade é sinfónica, sempre.

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São, pelo menos, três as narrações da vocação de Saul, que encontramos nos Livros de Samuel, cada uma diferente das outras, porque expressões das várias tribos e cidades ligadas às figuras de Saul (e de Samuel). E, assim, depois dos dois relatos que já encontrámos, agora, o texto traz-nos uma outra tradição sobre a consagração do rei Saul: “Naás, o amonita, pôs-se em campanha e atacou Jabés, em Guilead. Todos os habitantes de Jabés lhe disseram: «Faz connosco uma aliança e seremos teus servos.» Naás, o amonita, respondeu-lhes: «Só farei aliança convosco com a condição de vos tirar a todos o olho direito. Infligirei esta vergonha a todo o Israel»” (1 Samuel 11, 1-2).

Estamos dentro duma narração muito densa, rica, tremenda. A ameaça vem dos Amonitas. Os hebreus pedem um pacto de vassalagem, mas Naás (isto é, a ‘serpente’) humilha-os, propondo-lhes uma pacto tremendo e ultrajante: arrancar o olho direito a todos os hebreus. No manuscrito dos Livros de Samuel, encontrado em Qumran, mais antigo e, provavelmente, original, descobrimos que aquele pacto nefasto e maluco, foi implementado: “Naás tinha oprimido duramente os gadistas e rubenitas, arrancando o olho direito a cada um deles. Mas sete mil homens fugiram dos amonitas e chegaram a Jabés de Guilead”.

Para entrar um pouco dentro destas páginas duríssimas e longínquas, embora tendo uma grande sabedoria, uma chave de leitura é-nos oferecida pela grande categoria bíblica da Aliança (berit). O pacto entre YHWH e Israel, o ato originário e fundador desta experiência religiosa e social diferente e única, é descrito na Bíblia tomando como paradigma próprio um dos pactos de vassalagem do Médio Oriente que aqueles hebreus tinham pedido aos amonitas. O relato deste pacto absurdo também pode fazer-nos entrever, embora em contraluz, algo do significado que a Aliança tem no humanismo bíblico. Num povo pequeno, perante o fracasso dos pactos políticos, amadurece, progressivamente, a consciência da existência da aliança numa outra possibilidade impensada: fazer um pacto com Deus. Encontrar o aliado bom a afável, numa realidade que não se vê e que não se pode representar. Um aliado que não arranca o olho direito, mas dá um outro para ver o invisível. Viver a relação com Deus como um pacto com o invisível, no meio de povos que adoram apenas coisas visíveis e tocáveis (mas mudas), permitiu àquele povo, pequeno e conflituoso, gerar invocações teológicas e espirituais extraordinárias. De facto, o que espanta na Aliança bíblica, não é a sua diversidade mas a sua semelhança com os pactos político-comerciais do tempo e também à sua estrutura recíproca. Nos pactos, cada uma das duas partes compromete- se a respeitá-los. A genialidade foi aplicar a Deus o status de aliado, estipular um contrato social e perene com uma voz, à qual se reconhece a possibilidade de estar dentro de um pacto de reciprocidade, de compromisso mútuo. Um pacto chegado aos hebreus como dom. Mas um dom que era um pacto e, portanto, reciprocidade e benefício mútuo, onde ambas as partes beneficiam.

Então, uma hipótese perturbante, subjacente à própria ideia de Aliança, é a ideia que também Deus tenha benefício da relação com os homens, um benefício diferente, assimétrico, mas que a categoria de Aliança nos legitima a chamar benefício. A categoria da Aliança diz-nos que, se YHWH obtém um benefício em se aliar connosco, a nossa fidelidade àquela aliança e àquele pacto enriquece também Deus, muda-O, melhora-O. O Deus bíblico, o do Antigo e do Novo Testamento (que é o mesmo) não é o ser perfeitíssimo, porque a nossa fidelidade ao pacto O faz ‘mais perfeito’ (e também ‘menos perfeito’ as nossas infidelidades). Pelo menos, é este o pensamento bíblico, uma teologia que se torna, imediatamente, um humanismo maravilhoso. Se fomos criados à ‘imagem e semelhança’ de um Deus que á capaz de pactos, também nós nos alegramos com a fidelidade de Deus e sofremos pelas suas ‘infidelidades’: quando ‘adormece’ e nós ficamos escravos, quando, inocentes, nos deixa no monte de esterco com Job, ou quando abandona o seu Filho e os nossos nas cruzes infinitas da história. A lógica da Aliança permite-nos, também, imaginar o impensável. Como nos revelou Etty Hillesum, no seu lager, deixando-nos em herança uma das páginas humanas mais altas do séc. XX: mesmo nos abandonos mais sombrios, podemos salvar a fé na Aliança se aprendemos a perdoar a Deus. Algo que faz estremecer a alma, que dá uma infinita substância e seriedade à fidelidade aos nossos pactos ‘debaixo do sol’. E, quando somos traídos e enganados nos nossos pactos, nos perdoamos e sabemos recomeçar juntos, podemos esperar que alguém ‘debaixo do sol’, possa compreender-nos porque, talvez, estas nossas alegrias e estas dores se assemelham às suas. Então, não nos devemos admirar por, no fim do discurso de Samuel, que se segue a estes factos, encontrar a referência à Aliança: “YHWH, por amor do seu grande nome, não vos abandonará, pois YHWH quis fazer de vós o seu povo» (12, 22).

Após o pedido deste pacto absurdo, chegam junto de Saul mensageiros de Jabés, que lhe contam o acontecimento: “Todo o povo se pôs a chorar em alta voz… O espírito do Senhor apoderou-se de Saul. E Saul ficou enfurecido. Tomando uma junta de bois, fê-la em pedaços e mandou-os pelos mensageiros a todo o território de Israel” (11, 4-7).

Estamos dentro de uma tradição sobre a tribo de Benjamim e estamos na cidade de Guibeá. O leitor acostumado à leitura bíblica, diante de Saul que transforma os seus bois em ‘mensageiros de carne’, não pode deixar de pensar imediatamente na trágica história do levita, narrada pelo Livro dos Juízes. Naquela noite, entre as mais escuras da Bíblia, um levita, de passagem por aquela cidade de Guibeá, com a sua mulher, é hospedado, durante a noite, por um velho. Um grupo de habitantes irrompe pela sua casa e violam a mulher. Na manhã seguinte, o levita, “tendo chegado a casa, pegou num cutelo e, agarrando na sua concubina, esquartejou-a membro a membro em doze pedaços, enviando-os depois a todas as tribos de Israel. A quem levava isto, ordenou: «Direis assim a todo o homem de Israel: «Nunca aconteceu nem se viu tal coisa, desde o dia em que os filhos de Israel subiram da terra do Egipto até este dia. Pensai bem nisto! Consultai-vos sobre isto e pronunciai-vos!» (Juízes 19, 29-30). Antes de fazer o comentário, devemos parar um momento, experimentar superar a dor e a perturbação perante tal relato, e às ‘muitas coisas semelhantes’ que, infelizmente, continuam a acontecer. E não é fácil… Depois, descobrimos uma forte afinidade entre os dois episódios. O amonita ultrajou o pedido de pacto daqueles hebreus. Os benjaminitas profanaram o pacto de hospitalidade, um dos mais sagrados. Os pactos e as alianças, naqueles povos antigos, celebravam-se esquartejando animais, com a linguagem da carne e do sangue. Deus estabeleceu a sua Aliança com Abraão, passando como fogo no meio de animais esquartejados.

São linguagens fortíssimas, arcaicas, primitivas, que não compreendemos. Mas, se conseguimos olhá-las nos ‘olhos’, ainda nos falam. Podemos ler o sangue e a carne dos pactos na Bíblia para construir uma imagem de um Deus sedento do nosso sangue e até do do seu Filho crucificado, com o qual de dessedenta para aplacar a sua ira com o mundo. E, assim, não vamos muito longe; permanecemos bloqueados pelos mitos do Medio Oriente, dos quais há vestígios também na Bíblia e que continuam a influenciar também algumas leituras cristãs do sacrifício e a teologia da expiação.

Mas, daquela carne e daquele sangue, pode também começar uma outra história, muito diferente. A que nos diz que os pactos são coisas tremendamente sérias, como o são o sangue e a carne, porque são a carne e o sangue da vida em conjunto. Aqueles homens, para mostrar a seriedade e o valor da vida, usavam as palavras mais fortes que tinham à disposição. Para nos dizer que as promessas e os pactos são importantes e sérios como a carne e o sangue dos filhos, dos maridos, das mulheres, dos pais, dos irmãos. Podemos assinar e dissolver milhares de contratos, sem que nos deixem qualquer sinal. Com os pactos, não o podemos fazer. Estes são feitos de carne e de sangue e, por isso, quando decidimos cortá-los para sair, os seus sinais permanecem para sempre gravados na nossa carne. Toda a aliança é uma ferida; como é uma ferida a fé, a fissura em direção ao céu que, por toda a vida, procuramos não fechar, que esperamos que esteja ainda aberta, quando fecharmos os olhos e, talvez assim, através dela, ver Deus.

Num outro dia, numa outra noite, a Bíblia enviou-nos uma outra mensagem de carne. Desta vez, era um menino maravilhoso, palavra feita carne e sangue. Num outro dia, aquele menino maravilhoso, tornado homem, foi suspenso numa cruz, outro sangue e outra carne verdadeiros. Outras mensagens incarnadas, que a Bíblia, suave, continua a guardar-nos.

Depois de Saul ter derrotado os amonitas, “todo o povo foi para Guilgal e ali proclamaram rei a Saul, na presença do Senhor, e ofereceram naquele lugar sacrifícios de comunhão. E Saul, com todo o povo de Israel, alegrou-se grandemente” (11, 15).

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Maiores que a culpa / 7 – A Aliança bíblica estabelece compromisso e perdão recíprocos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/03/2018

Piu grandi della colpa 07 rid«Procurarei ajudar-te enquanto não fores destruído dentro de mim. Uma coisa, porém, se torna cada vez mais evidente para mim, isto é, que tu não podes ajudar-nos, mas que somos nós a ter de te ajudar… Também já posso perdoar a Deus, porque a situação é a que, certamente, deve ser. Que se possa ter tanto amor a ponto de poder perdoar a Deus!»

Etty Hillesum Diário, 1942

Em muitos episódios-chave da vida, não basta apenas um relato; é demasiado pouco. Para dizer o que aconteceu no dia em que somos conhecidos ou em que ouvimos chamar-nos pelo nome, uma única voz não basta. Temos de contar muitas vezes os momentos determinantes; temos de os contar a pessoas diferentes e, a cada uma, do seu modo. As coisas repetidas favorecem quem as conta e quem as ouve. Quando esta bio-diversidade falta, é negada ou é combatida, os nossos relatos empobrecem, o mistério da vida escapa-se-nos. A multiplicidade das histórias protege da ideologia, que se desenvolve quando é atribuído, a uma única narração, o crisma de verdade e a todas as outras o da heresia. Esta multiplicidade e variedade de relatos, geralmente, perturbam o homem moderno na busca de acordo nos dados históricos; mas, para o escritor bíblico, pelo contrário, é uma linguagem para mostrar a grandeza e a importância dos episódios que está a narrar. A não-avareza e a generosidade emergem também da abundância com que acompanha as suas histórias mais bonitas; como nas cartas de amor, onde os adjetivos se somam, para dizer um pouco o que não conseguimos dizer – a Bíblia é uma longa e única carta de amor dirigia a nós e que, frequentemente, permanece dentro do sobrescrito. A verdade é sinfónica, sempre.

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Os pactos são sangue e carne

Maiores que a culpa / 7 – A Aliança bíblica estabelece compromisso e perdão recíprocos por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 04/03/2018 «Procurarei ajudar-te enquanto não fores destruído dentro de mim. Uma coisa, porém, se torna cada vez mais evidente para mim, isto é, que tu não pode...
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Maiores que a culpa / 6 – O entusiasmo profético acende-se na vida ordinária

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 25/02/2018

Piu grandi della colpa 06 c rid

«Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão,
os vossos jovens terão visões
e os vossos anciãos terão sonhos»

Livro de Joel

A consagração de Saul, o primeiro rei de Israel, realiza-se, mais uma vez, dentro dos afazeres normais da vida. Saul afastou-se de casa à procura das jumentas perdidas, animais precisos para a economia do tempo. Durante esta normal missão de trabalho, o extraordinário irrompe na sua vida. Saul tinha saído de casa para ir trabalhar e voltou a casa ‘ungido do senhor’. Partiu procurando jumentas que não encontrou; encontrou, porém, uma vocação, uma missão, um destino que não procurava. Isto é um dos episódios maiores de serendipitismo, que não explica apenas porque sem ir pessoalmente à livraria nunca descobriremos os livros mais importantes que não procurávamos, que nos esperavam ali, ao lado dos menos importantes que procurávamos, mas que nos faz intuir algo da lógica profunda da vida espiritual. Os bens maiores da vida são os que não compramos, porque não estão à venda, os que não procuramos porque ainda não sabemos que existem, os que recebemos porque, simplesmente, somos amados.

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“Havia um homem da tribo de Benjamim chamado Quis, filho de Abiel, filho de Seror, filho de Becorat, filho de Afia, filho de um benjaminita, que era um guerreiro forte e valente. Tinha um filho chamado Saul, mancebo de bela presença. Não havia em Israel outro mais belo do que ele; sobressaía entre todos dos ombros para cima. Tendo-se perdido as jumentas de Quis, pai de Saul, disse ele ao filho: «Toma um criado contigo e vai procurar as jumentas.» Atravessaram a montanha … sem nada encontrar. Saul disse ao criado: «Vem, regressemos...» Respondeu-lhe o criado: «Nesta cidade há um homem de Deus... Vamos lá, pois talvez ele nos diga o caminho que devemos seguir»” (1 Samuel 9, 1-6). Saul é eleito também pelo seu aspeto físico: forte, o mais belo, o mais alto. Mas pertence à tribo de Benjamim, a mais pequena, a que em Guibeá se tinham manchado com um dos crimes mais hediondos de toda a Bíblia (Juízes 19) – uma ambivalência que marcará até ao fim o destino de Saul.

Saul escuta o conselho do seu assistente. Mas pergunta-lhe: “Está bem, vamos; mas que presente levaremos ao homem de Deus? Os nossos alforges estão vazios e não temos dinheiro para lhe dar. Que nos resta?» Respondeu novamente o criado: «Tenho aqui um quarto de siclo de prata; dá-lo-ei ao homem de Deus para que nos mostre o caminho»” (9, 7-8). Regressa, aqui, o grande tema do dom, que está a marcar estes primeiros capítulos de Samuel. Do contexto, compreende-se que o dom que preocupa Saul tem muito pouco de gratuidade e assemelha-se muito ao preço a pagar em troca de um serviço. A zona do dom e a da troca sempre se cruzaram, chegando, por vezes, a sobrepor-se. O dom gratuito e totalmente desinteressado é uma invenção recente que, quase sempre, existe nos livros dos estudiosos ou nalgum ângulo da nossa alma, onde são guardadas as recordações preciosas e eternas da primeira infância. Na realidade, o dom é a primeira linguagem da reciprocidade, é um sinal de interesse por alguém ou por alguma coisa. O desinteresse (ausência de interesse) não faz parte da semântica do dom.

A continuação do relato revela-nos a natureza específica daquele dom: “Antigamente, em Israel, todo aquele que ia consultar a Deus, costumava dizer assim: «Vinde, vamos ao vidente.» Chamava-se, então, «vidente» ao que hoje se chama «profeta»” (9, 9). O nascimento da profecia, em Israel, foi um processo longo e, por isso, complexo e ambivalente. Videntes, magos, adivinhos, eram muito comuns em todo o mundo antigo e desempenhavam funções diferentes e importantes (cura de doenças, interpretação de sonhos, leitura de sinais, libertação dos espíritos maus, previsões de acontecimentos, conselhos aos reis…). A sua profissão era (quase) como as outras e, por isso, para usufruir dos seus serviços era preciso pagar um preço; mas sendo habitantes do território sagrado, para interagir com os videntes, recorria-se ao registo da oferta ou do dom. Uma linguagem mais própria do que a da linguagem comercial porque, quando o homem antigo entrava em relação com o sagrado, pensava que aquele especial do ut des não fosse uma troca de valores equivalentes, porque o que se recebia (ou era recebido) em troca valia muito mais que o que era ‘pago’ (como nunca alguém acreditou que o ‘valor’ de uma missa fossem os dez euro ‘pagos’ ao sacerdote). O excesso do dom está ainda muito presente no nosso tempo. Todos sabemos (se pensarmos bem) que o valor de quanto damos, num mês, à nossa empresa é muto mais que o salário que recebemos. A profecia, em Israel, partiu das antigas figuras dos viventes e dos adivinhos e, progressivamente, separou-se, como fenómeno único e extraordinário. Samuel conserva ainda vestígios da antiga figura do vidente, mas, nele, está também a semente da nova profecia que gerará, séculos depois, Isaías e Jeremias. De facto, é significativo que quando Saul chega junto de Samuel, desaparece do relato qualquer referência ao preço a pagar ao ‘vidente’, a dizer-nos que na relação com este vidente-profeta há algo de diferente e de novo, em relação ao dom-troca com os adivinhos.

Chega, finalmente, a hora do encontro: “Eis que ao entrarem, Samuel vinha ao seu encontro, pois ia subir ao lugar alto. Ora no dia anterior à chegada de Saul, YHWH tinha revelado ao ouvido de Samuel: «Amanhã, a esta mesma hora, enviar-te-ei um homem da terra de Benjamim, e tu o ungirás como chefe do meu povo de Israel»” (9, 14-16). Está aqui um pormenor que nos mostra uma diferença essencial entre Samuel e os videntes: YHWH tinha revelado “ao ouvido” de Samuel. A nova era da profecia é marcada por uma mudança de sentido: da vista passa ao ouvido. O vidente ‘vê’, o profeta ‘escuta’ um Deus diferente que não se vê. Com a profecia, o Deus dos patriarcas e de Moisés torna-se uma voz. As antigas teofanias (a nuvem, o fogo…), ainda muito semelhantes às dos outros povos, dão lugar, progressivamente, a uma voz. Algo de maravilhoso, que nós, hoje, já não conseguimos compreender, submersos por demasiadas vozes e demasiadas visões, mas que continua a fascinar-nos e a comover-nos e que, por vezes, se transforma em oração: quando reaprenderemos a escutar aquela voz diferente? E quem nos ensinará a reconhecê-la?

Samuel tem uma segunda ‘audição profética’ (“Quando Samuel viu Saul, o Senhor disse-lhe: «Este é o homem de quem te falei»: 9, 17) e, depois, convida Saul para a sua mesa, onde lhe reserva um tratamento especial, oferecendo-lhe para comer a melhor parte do animal que fora sacrificado (9, 24). Assim, entramos no coração do relato: “Ao romper da aurora … Saul levantou-se e saíram ele e Samuel para fora da cidade. Ao descerem para a periferia da cidade, Samuel disse a Saul: «Diz ao criado que vá adiante de nós.» Ele passou. «Mas tu, detém-te aqui, pois quero comunicar-te hoje o que disse o Senhor»” (9, 26-27). E na periferia da cidade, “Samuel tomou então um frasco de óleo, derramou-o sobre a cabeça de Saul e beijou-o, dizendo: «O Senhor ungiu-te príncipe sobre a sua herança»” (10, 1). Nos bairros periféricos acontecem coisas extraordinárias. É belíssima esta normalidade que rodeia a eleição de Saul, como se a Bíblia tivesse querido responder ao pedido de um rei consagrado, dessacralizando e normalizando o ambiente em que se desenrola a cena: duas jumentas, um criado, um almoço, um caminho de periferia. Como Moisés, Gedeão, Amós, os pescadores da Galileia, como Maria de Nazaré, que é visitada pelo anjo Gabriel na sua casa enquanto, provavelmente, estava a realizar as habituais tarefas domésticas. Para as teofanias, não há jugares mais aptos que um barco, uma cozinha, uma mata, uma viagem para trazer para casa as jumentas ou que uma travessia noturna dum rio, do deserto, da estrada para Damasco, de uma igrejinha arruinada nos arredores de Assis.

Saul retoma o caminho de casa mas, em Guibeá, “veio ao seu encontro um coro de profetas; o espírito do Senhor apoderou-se de Saul e ele pôs-se a profetizar no meio deles. Todos os que antes o haviam conhecido, vendo-o profetizar com os profetas, perguntavam uns aos outros: «Que aconteceu ao filho de Quis? Porventura também Saul está entre os profetas?»” (10, 10-12). Saul vive uma experiência de exaltação profética, semelhante àquela de que falam os Atos dos Apóstolos, no dia de Pentecostes (2,13); e também em Guibeá, como acontecerá, mil anos mais tarde, em Jerusalém (“Estão cheios de vinho doce”), quem observava a cena pensava que Saul estava fora de si.

O texto acabara de nos dizer algo de importante: “Logo que Saul voltou as costas e se separou de Samuel, Deus transformou-lhe o coração” (10, 9). O encontro com Samuel e a sua unção tinham mudado alguma coisa no íntimo de Saul, tinham-lhe mudado o coração. Isto é, tinha acontecido algo que lhe tinha mudado a pessoa, não só as suas emoções e os seus sentimentos. E quando a Bíblia nos quer exprimir os efeitos de uma mudança de coração, faz ‘profetizar’ os seus personagens, coloca-lhes dentro um entusiasmo profético. Associa-os, temporariamente, à vocação profética que, naquele humanismo, é a condição humana mais próxima de Deus – o que mostra a estima que a Bíblia tem pelos profetas.

Não somos todos profetas, nem todos temos a vocação de receber audições divinas ao ouvido da alma. Mas muitos – talvez todos – se estamos abertos à voz os profetas e da vida, podemos, pelo menos, fazer uma experiência de entusiasmo profético. Talvez no dia do casamento ou naquele em que, finalmente, compreendemos quem somos verdadeiramente, ou, quando ela partiu, compreendemos que era tudo e só amor, e começámos a entoar o cântico mais belo de um entusiasmo do espírito. Poucos momentos, mas infinitos.

Também aquela experiência de Saul durou ‘pouco tempo: “Saul acabou de profetizar e foi para o lugar alto” (10, 13). Mas a Bíblia conservou aquele breve momento extraordinário, também para nos recordar que a profecia que experimentou Saul, pode ser para todos. Também nós podemos esperar fazer algum pedaço de caminho em companhia do maravilhoso ‘coro de profetas’. Também nós podemos sair da casa para ir simplesmente para trabalhar e, nas periferias da cidade, encontrar uma vocação, uma incumbência, um destino.

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Maiores que a culpa / 6 – O entusiasmo profético acende-se na vida ordinária

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 25/02/2018

Piu grandi della colpa 06 c rid

«Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão,
os vossos jovens terão visões
e os vossos anciãos terão sonhos»

Livro de Joel

A consagração de Saul, o primeiro rei de Israel, realiza-se, mais uma vez, dentro dos afazeres normais da vida. Saul afastou-se de casa à procura das jumentas perdidas, animais precisos para a economia do tempo. Durante esta normal missão de trabalho, o extraordinário irrompe na sua vida. Saul tinha saído de casa para ir trabalhar e voltou a casa ‘ungido do senhor’. Partiu procurando jumentas que não encontrou; encontrou, porém, uma vocação, uma missão, um destino que não procurava. Isto é um dos episódios maiores de serendipitismo, que não explica apenas porque sem ir pessoalmente à livraria nunca descobriremos os livros mais importantes que não procurávamos, que nos esperavam ali, ao lado dos menos importantes que procurávamos, mas que nos faz intuir algo da lógica profunda da vida espiritual. Os bens maiores da vida são os que não compramos, porque não estão à venda, os que não procuramos porque ainda não sabemos que existem, os que recebemos porque, simplesmente, somos amados.

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A unção das periferias

Maiores que a culpa / 6 – O entusiasmo profético acende-se na vida ordinária por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 25/02/2018 «Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões e os vossos anciãos terão sonhos» Livro de Joel A consagração de Saul, o prim...
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Maiores que a culpa / 5 – Reconhecer as encruzilhadas erradas da vida e reconciliar-se

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/02/2018

Piu grandi della colpa 05 rid

«Quero passar como uma tela
em que o olhar crucificado
extingue os ídolos»

Heleno OliveiraSe fosse verdadeira a noite

É muito comum que, para descrever a maior corrupção moral e espiritual, a Bíblia use palavras da economia. E fá-lo porque não há nada de mais espiritual e teológico que a economia, a política, o direito. A fé só fala com as palavras da vida. Então, não existem palavras mais verdadeiras para dizer a natureza e a qualidade da nossa vida espiritual que: salário, lucro, taxas, percentagem, aquisições, empresa. São as palavras mais teológicas e espirituais disponíveis ‘debaixo do sol’, que conferem verdade também às palavras da fé. Porque, se não sabemos dizer a espiritualidade com palavras da economia, do direito, da política, é muito provável que aquelas palavras espirituais sejam, de facto, orações aos ídolos, mesmo quando as pronunciamos, devotos, dentro dos templos, sinagogas, igrejas. A Bíblia e a sua verdadeira laicidade sabem isto muito bem – nós, hoje, sabemo-lo muito pouco, porque esquecemos a Bíblia e a laicidade.

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 “Sendo já velho, Samuel estabeleceu os seus filhos como juízes de Israel… Os filhos de Samuel, porém, não seguiram as pisadas de seu pai, antes se deixaram levar pela avareza, recebendo presentes e violando a justiça” (8, 1-3).Como tinha acontecido a Eli, no templo de Silo, também Samuel gerou filhos corruptos. A Bíblia, para por fim a uma história coletiva, deve quebrar as cadeias das gerações, ao longo das quais se desenrola a Aliança. Para fazer isto, recorre, geralmente, à esterilidade das mulheres, mas, por vezes, também à não justiça dos filhos. A sua função é a mesma, porque as tradições (familiares, espirituais, empresariais, políticas…) morrem pela esterilidade dos pais ou pela traição dos filhos. Ontem e hoje.

A corrupção dos filhos de Samuel torna-se o pretexto para a reviravolta epocal na história de Israel, o nascimento da monarquia: “Reuniram-se todos os anciãos de Israel e vieram ter com Samuel a Ramá. Disseram-lhe: «Estás velho e os teus filhos não seguem as tuas pisadas. Dá-nos um rei que nos governe, como têm todas as nações»” (8, 4-5). Neste pedido que os anciãos do povo dirigem a Samuel, as palavras que melhor espicaçam a reação do profeta são: ‘como têm todas as nações’. A identidade de Israel estava, porém, naquele seu Deus diferente do de ‘todos os outros povos’. Um rei como os outros, como os outros povos idólatras. Samuel percebe que neste querer ter um rei como todos os outros povos se escondia algo mais determinante, antes de mais no plano teológico e espiritual e, por isso, o perigo real de perder a própria identidade civil e religiosa. Eis porque estes capítulos cruciais sobre o início de era monárquica são introduzidos por uma enésima conversão-regresso do povo dos ídolos a YHWH: “E Samuel falou a toda a casa de Israel, dizendo: «Se de todo o vosso coração vos converterdes a YHWH, tirando do meio de vós os deuses estrangeiros e as estátuas de Astarté, se vos apegardes de todo o vosso coração a YHWH e só a Ele servirdes» … Então os filhos de Israel afastaram os ídolos e as estátuas de Baal e de Astarté, e serviram só ao Senhor” (1 Samuel 7, 3-4).

A Bíblia tem uma relação difícil, ambivalente e, geralmente, negativa com a monarquia, porque nada nem ninguém mais que um rei arrisca transformar-se ou ser transformado num ídolo – o faraó do Egipto, muito conhecido da tradição bíblica, era também um Deus e, geralmente, eram também divinos os reis e soberanos dos outros povos. Embora o texto ofereça uma explicação ética e, portanto, política, para o fim da idade dos Juízes e, portanto, para o início da monarquia, esconde a verdadeira natureza teológica da fortíssima polémica anti-monarquia dos livros de Samuel. Pedir um rei é uma expressão da mesma tentação por muitos ‘bezerros de ouro’ que tinham seduzido Israel depois da libertação do Egipto.

Samuel entristeceu-se com este pedido (“Esta linguagem desagradou a Samuel”: 8, 6). No diálogo entre Samuel e YHWH é dita, claramente, a sua verdadeira natureza idólatra: “O Senhor disse-lhe: «Ouve a voz do povo em tudo o que te disser, pois não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, para que Eu não reine mais sobre eles. Fazem o que sempre têm feito, desde o dia em que os tirei do Egipto até ao presente, abandonando-me para servir deuses estrangeiros. E também assim estão a fazer contigo»” (8, 7-8). Não é, portanto, um assunto de forma de governo nem de líder político; no pedido de um rei, o profeta entrevê a traição idolátrica. Nestas páginas, verdadeiramente importantes na economia e na história bíblica, há algo que ultrapassa a valorização histórica que o escritor faz da monarquia em Israel. Há também um ensinamento sobre a natureza intrinsecamente idólatra do poder. A corrupção e a tendência idolátrica não são exclusivas da monarquia. Aarão foi cúmplice do povo rebelde na construção do bezerro de ouro, junto do Sinai; alguns Juízes e os seus filhos foram corruptos; e a corrupção continuará também depois do exílio em Babilónia. Quanto mais absoluto é o poder, mais absoluta se torna a corrupção, porque mais absoluta se pode tornar a idolatria. Um absoluto, ainda mais absoluto, se o rei é o ungido de YHWH, se assume um crisma sagrado que o coloca no limiar que divide a condição humana da de Elohim. Um rei ungido confina muito com o rei-ídolo dos outros povos, como a arca se assemelhava demasiado aos baldaquinos que transportavam, na procissão, o deus filisteu Dagon.

O texto diz-nos, depois, que Samuel recebe a ordem de YHWH de acolher o pedido da monarquia: “Atende-os, agora, mas expõe-lhes solenemente os direitos do rei que reinará sobre eles” (8, 9). O autor dos livros de Samuel, escrevendo estas histórias, séculos depois dos factos, sabia que aos Juízes se seguiu a monarquia e sabia também que o Reino de Israel se dividiu depressa e que os reis que se seguiram foram quase todos corruptos. Mas, sobretudo, sabia que, apesar dos muitos reis corruptos, a começar por Saul, David e Salomão, o povo foi capaz de continuar, durante séculos, a sua história diferente de fé; aquela salvação foi gerada pela presença, pelas palavras e pelas ações dos profetas. Samuel, depois Natã, Isaías, Jeremias fizeram com que o poder dos seus reis não se tornasse, só e sempre, opressão e idolatria: “escuta o seu pedido”, mas ‘avisa-os claramente’. Sem os profetas que avisam, o poder é sempre e apenas corrupção e idolatria, dentro e fora das religiões. E, quando o poder se torna corrupção, os profetas não estão: fugiram, foram mortos, tornaram-se falsos profetas da corte ou foram colocados na folha de pagamento dos reis. É a profecia e a sua típica admoestação que tornam suportável o jugo de qualquer poder.

Samuel obedece e faz, imediatamente, a sua admoestação: “Eis como será o poder do rei que vos há de governar: tomará os vossos filhos para guiar os seus carros e a sua cavalaria … empregá-los-á nas suas lavouras... Tomará as vossas filhas como suas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Há de tirar-vos também o melhor dos vossos campos, das vossas vinhas e dos vossos olivais, e dá-los-á aos seus servidores... Cobrará igualmente o dízimo dos vossos rebanhos. E vós próprios sereis seus servos. Então, clamareis por causa do rei que vós mesmos escolhestes, mas o Senhor não vos ouvirá” (8, 10-18). Aqui, Samuel não está a forçar ou a exagerar a relação entre os soberanos e os seus súbditos; apenas está a descrever a substância de quanto acontecia nos reinos vizinhos de Israel (e nos que estão próximos de nós). E, se em Israel e nos nossos ‘reinos’ políticos e económicos, os ‘soberanos’ não consomem totalmente os nossos filhos e as nossas filhas, é porque há, pelo menos, um profeta que lho impede ou que lho impediu no passado.

Apesar da admoestação de Samuel-YHWH: “o povo não quis ouvir a voz de Samuel. Disse: «Não! Precisamos de ter o nosso rei! Queremos ser como todas as outras nações»” (8, 19-20). Queriam, verdadeiramente, tornar-se como os outros povos. Mas, na realidade, graças aos profetas, tornaram-se quase como os outros. Os profetas, quando existem e não são silenciados, são os guardas do quase, sentinelas que impedem o poder de se tornar perfeita idolatria e, a nós, de não perder totalmente a alma nas provas da vida.

Nestes diálogos à volta do pedido da monarquia, regressa, enfim, uma mensagem das mais belas e profundas da Bíblia. O escritor bíblico está consciente que a trajetória histórica, seguida pelo seu povo, depois da libertação de Moisés, foi menos luminosa, fiel e bela do que poderia ser. A dor de todos podia ser menor, os pobres menos humilhados, a fé mais verdadeira. Toda a Bíblia é atravessada por esta linha de sombra que, porém, também aqui, nos sugere uma verdade antropológica e espiritual. Quando nos pomos a escrever a nossa história – e, para o fazer, temos de olhar e ler os acontecimentos e as escolhas de ontem – é forte a experiência de ver um caminho mais alto e luminoso, aquele que poderíamos ter seguido se, nas encruzilhadas e nos encontros determinantes (que são sempre poucos) tivéssemos feito outras escolhas. Ao lado da nossa história, aparece-nos uma pista no cume e vemos o espetáculo dos seus horizontes mais amplos, que apenas poderíamos ter percorrido se tivéssemos um profeta perto ou se tivéssemos acreditado nas suas palavras. Ver e entrever, retrospetivamente, estas estradas mais altas e luminosas que nós não percorremos, pode ser o momento mais doloroso da nossa vida e, frequentemente, é-o para muitos. O mesmo olhar sobre as mesmas trajetórias falhadas pode, pelo contrário, tornar-se muito diferente e bom se os nossos olhos são acompanhados pelos da Bíblia e dos seus profetas. Com eles, conseguimos acolher com mansidão as encruzilhadas e os encontros perdidos, a vê-los como se os tivéssemos vivido verdadeiramente, a preparar-nos para o último troço da corrida, finalmente reconciliados com o nosso lamento. Depois, assistir, maravilhados, ao milagre que aqueles cumes falhados e aqueles horizontes que nunca vimos se tornaram, inesperadamente, reais e verdadeiros como os mais baixos e pequenos que a vida nos fez viver. E agradecemos. Tudo é graça.

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Maiores que a culpa / 5 – Reconhecer as encruzilhadas erradas da vida e reconciliar-se

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/02/2018

Piu grandi della colpa 05 rid

«Quero passar como uma tela
em que o olhar crucificado
extingue os ídolos»

Heleno OliveiraSe fosse verdadeira a noite

É muito comum que, para descrever a maior corrupção moral e espiritual, a Bíblia use palavras da economia. E fá-lo porque não há nada de mais espiritual e teológico que a economia, a política, o direito. A fé só fala com as palavras da vida. Então, não existem palavras mais verdadeiras para dizer a natureza e a qualidade da nossa vida espiritual que: salário, lucro, taxas, percentagem, aquisições, empresa. São as palavras mais teológicas e espirituais disponíveis ‘debaixo do sol’, que conferem verdade também às palavras da fé. Porque, se não sabemos dizer a espiritualidade com palavras da economia, do direito, da política, é muito provável que aquelas palavras espirituais sejam, de facto, orações aos ídolos, mesmo quando as pronunciamos, devotos, dentro dos templos, sinagogas, igrejas. A Bíblia e a sua verdadeira laicidade sabem isto muito bem – nós, hoje, sabemo-lo muito pouco, porque esquecemos a Bíblia e a laicidade.

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Os necessários guardas do quase

Maiores que a culpa / 5 – Reconhecer as encruzilhadas erradas da vida e reconciliar-se por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 18/02/2018 «Quero passar como uma tela em que o olhar crucificado extingue os ídolos» Heleno Oliveira, Se fosse verdadeira a noite É muito comum que, para...
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Maior que a culpa / 4 – Deus omnipotente e derrotado ensina a fé que muda tudo

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/02/2018

Piu grandi della colpa 04 rid«As mais belas poesias
escrevem-se nas pedras
com joelhos feridos
e as mentes aguçadas pelo mistério.
As mais belas poesias escrevem-se
diante de um altar vazio
cercado por agentes
da divina loucura.
Assim, louco criminoso como és
tu ditas versos à humanidade,
os versos do resgate
e as bíblicas profecias
e és irmão de Jonas»

Alda Merini, La Terra Santa

«Nessa altura, os Filisteus reuniram-se para combater contra Israel. Então Israel saiu ao encontro dos filisteus para lhes dar combate» (4, 1b). Depois da grandiosa e esplêndida noite da vocação de Samuel, muda o cenário e sobre Israel sopram ventos de guerra. Aparece um povo já conhecido de Israel, que o acompanhará e combaterá durante muitos séculos, os filisteus, um antigo povo dos mares que exerceu o domínio político e cultural sobre toda a região, associando-a ao seu nome (Palestina, Philistia: a terra dos filisteus). Muda a cena, talvez também a mão do narrador, mas permanecem alguns elementos de continuidade. Entre estes, Eli, os seus filhos e, sobretudo, a Arca.

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Samuel, diz o texto (cap. 3, 3), dormia junto da arca, no templo de Silo. Não é fácil para nós, leitores de hoje, compreender o que era, na verdade, a Arca da Aliança, mandada construir por Moisés, durante o Êxodo, sob ordem explícita do Senhor. Era uma pequena caixa, forrada a ouro, contendo as Tábuas da Lei. Durante as peregrinações no deserto, era transportada, coberta por um toldo. Quando o povo acampava, a Arca era colocada debaixo de uma tenda (a “tenda da reunião”). Sobre a Arca, YHWH falava face a face com Moisés: «É ali que me encontrarei contigo» (Êxodo 25, 22). Aquela pequena caixa móvel era sacramento da Lei, testemunha dos diálogos, únicos e extraordinários, de Moisés com a voz, memorial da Aliança das doze tribos com o seu Deus diferente.

Para o homem antigo, as coisas visíveis eram sempre sacramento do invisível. A Arca da Aliança ainda o era mais, agora, porque, para os israelitas, era a coisa mais sagrada que havia sobre a terra, guardada no sancta sanctorum do templo de Silo e, depois, no de Jerusalém. Ao mesmo tempo, a Arca era também a realidade que mais confinava com os ídolos de madeira ou ouro, odiadíssimos pela Bíblia e pelos profetas. Assemelhava-se muito aos baldaquinos e aos sarcófagos que os egípcios e os povos cananeus levavam em procissão nas festas sagradas. O Deus de Israel, YHWH, tinha-se revelado aos seus patriarcas e a Moisés, como um Deus totalmente diferente, mas o povo escolhido por aquele Deus diferente, era muito semelhante aos outros povos vizinhos, à sua necessidade de tocar, de ver os deuses, de usar magicamente a divindade para propiciar nascimentos e colheitas, para afugentar doenças e inimigos. A Arca colocava-se, então, nos limites entre o velho e o novo e, como todos os limites e todas as fronteiras, era extremamente perigosa, vulnerável e porosa. Pela Bíblia (e pela vida) sabemos que se passa facilmente dum terreno a outro se, no limiar, não estão, operacionais e vigilantes, as sentinelas. Os profetas são as sentinelas do limiar que separa a religião da idolatria, guardas preciosíssimos, sobretudo para os homens religiosos que são os primeiros a estar expostos à travessia do limiar. Sem os profetas, acabamos, inevitavelmente, por transformar as fés em idolatrias, mesmo quando chamamos os ídolos com o nome de YHWH ou de Jesus. Porque, como a Arca, que foi construída sob as indicações de Deus, se transformam em ídolos as realidades mais sagradas que recebemos como dom e, sem os profetas, é quase impossível compreender a sua metamorfose de dom em ídolo. Por isso, não surpreende que o início da nova era profética, em Israel, inaugurada com a vocação de Samuel, seja acompanhado por uma grande crise da Arca da Aliança.

Na primeira batalha com os filisteus, Israel sofre uma pesada derrota: «Israel foi vencido pelos filisteus, que mataram em combate cerca de quatro mil homens» (4, 2). A desfeita é lida como um facto teológico («porque é que o Senhor nos derrotou» (4, 3) e os anciãos propõem a sua solução: «Vamos a Silo e tomemos a Arca da aliança do Senhor, para que Ele esteja no meio de nós e nos livre da mão dos nossos inimigos» (4, 3). Levam a arca do templo e transportam-na para o campo de batalha, acompanhada pelos dois filhos de Eli, sacerdotes (corruptos) do templo de Silo, onde estava guardada a Arca.  Levando a Arca para a batalha, comportam-se exatamente como os outros povos, que descem ao campo com as estátuas dos seus deuses guerreiros. Anunciam um Deus diferente, mas comportam-se como os seus inimigos idólatras. A chegada da Arca ao campo de batalha foi, de facto, recebida com grandes gritos e terror, em ambas as frentes de combate, cenas parecidas às que, infelizmente, ainda se vêm em muitas guerras tribais. Mas quando «os Filisteus começaram a luta, Israel foi derrotado (…). O massacre foi tão grande que ficaram mortos trinta mil homens de Israel. A Arca de Deus foi tomada, e os dois filhos de Eli, Hofni e Fineias, pereceram» (4, 10-11).

A presença da Arca não evitou uma derrota ainda mais devastadora, a arca capturada pelo inimigo, os filhos de Eli mortos na batalha. A notícia chega a Silo, ao velho Eli, que morre de desgosto com a notícia da morte dos seus dois filhos na batalha e pela captura da Arca («Eli caiu da cadeira para trás, junto à porta, fraturou o crânio e morreu»: 4, 18). Ao mesmo anúncio, morre também a sua nora («se prostrou e, acometida pelas dores de parto, deu à luz»: 4, 19).

A derrota e a captura da Arca representam, portanto, não só um acontecimento militar, mas a aurora de uma nova época religiosa e, portanto, humana: a separação de Deus das coisas, o santo do sagrado, a religião da magia. Um processo longuíssimo, que acompanha toda a Bíblia, toda a história da Igreja e a história de cada crente (religioso ou leigo). A derrota da Arca foi análoga, por significado e tragicidade, à conquista babilónica, em 587 a.C., uma imensa tragédia, mas também o início de uma nova fé, que ensinou ao povo a rezar sem templo e a acreditar num Deus omnipotente e derrotado.

A Arca é colocada, pelos filisteus, no templo, ao lado da estátua do seu deus principal: Dagon. No dia seguinte, os filisteus encontram Dagon caído no chão. Levantam-no, mas, no dia seguinte, quando voltam ao templo, veem a estátua de Dagon novamente no chão. Mas, desta vez, estava quebrada e a cabeça e as mãos estavam no limiar da porta do tempo: «Por isso é que os sacerdotes de Dagon e todos os que entram no seu templo … evitam ainda hoje colocar o pé sobre o limiar da porta» (5, 5). Os pedaços de Dagon tinham tocado o limiar, contaminando-o. Uma cena que nos leva, em ligação direta, àquele mundo religiosos arcaico, numa “cultura do limiar” que separava o sagrado do profano, um sagrado indistinto, que se misturava sempre com o tremendum. Um mundo sacral-mágico que tocava e, em boa parte, abarcava também Israel, nestes primeiros séculos da sua história.

Entre os muitos elementos destes interessantes capítulos, ricos de pormenores narrativos, alguns muito preciosos pelas informações religiosas, antropológicas e históricas que nos dão, impressiona o relato das estranhas ofertas com que os filisteus acompanham a restituição da Arca.

A captura da Arca revelou-se uma desgraça para os filisteus. Tumores (ou peste bubónica) e invasões de ratos (que acreditavam serem os veículos da peste) infestaram a cidade em que a Arca foi colocada naqueles meses, quais novas pragas do Egipto. Até que o povo, em grande alarido, pede aos seus chefes que a Arca seja restituída aos hebreus: «Devolvei a Arca do Deus de Israel; que ela volte para o seu lugar» (5, 11). Para esperar a cessação das calamidades, porém, não era suficiente restituir a “nua propriedade” da Arca: naquele mundo antigo havia necessidade também de presentes, de ofertas para acompanhar o regresso da Arca. Mas quais? Os filisteus convocaram os seus adivinhos e magos, e estes responderam: «Cinco tumores de ouro e cinco ratos de ouro» (6, 4). Recorre-se a um princípio homeopático (os semelhantes curam-se pelos semelhantes), que encontramos também no conhecido episódio do livro do Números, quando YHWH diz a Moisés: «O Senhor disse a Moisés: «Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num poste. Sucederá que todo aquele que tiver sido mordido, se olhar para ela, ficará vivo» (21, 8). Também naquele episódio, o limite entre a magia e a religião é fugaz e porosa, e aquela serpente de bronze era muito, demasiado semelhante às que o povo tinha visto nos cultos egípcios.

Estas antigas práticas do dom homeopático queriam imunizar de um mal utilizando, simbolicamente, o mesmo mal – como dois valores negativos que, multiplicados, se tornam positivos. Entre os muitos vestígios arcaicos e idólatras que se estão a tornar fortes e operativos no capitalismo do nosso tempo, este do dom homeopático como mecanismo de imunidade é espacialmente poderoso e relevante, e não apenas no âmbito económico. Como aqueles filisteus que, dando cinco bubões e cinco ratos pensavam imunizar-se do grande mal da peste, analogamente, grandes instituições capitalistas tentam imunizar-se do grande mal do dom verdadeiro (que teria a força subversiva para as fazer implodir, se deixado livre de agir dentro das relações), inserindo no sistema minúsculas doses de dom, que reproduzem o dom verdadeiro e são mais brilhantes. Gadget, saldos, doações a instituições filantrópicas, mas também incentivos e prémios, são os novos bubões e ratos “dados” para tentar afastar a peste. E, como para os filisteus, por agora, esta prática mágica imunizante parece funcionar muito bem no nosso sistema do dom homeopático.

Os capítulos deste primeiro ciclo da Arca estão todos impregnados de elementos das religiões arcaicas e mágicas (em Israel e entre os filisteus). Mas, acima de tudo, mostra-se mais forte o princípio de uma nova era religiosa e, por isso, antropológica e social. Israel, após os sete meses de ausência da Arca, reapropriar-se-á da Arca – tê-la-á consigo até à destruição de Jerusalém pelos babilónios (quando de novo desaparecerá) – continuará a sua relação ambivalente com ela. Mas aqueles sete meses de fé no “Deus da arca sem a arca de Deus” tinham mudado a natureza daquela arca, daquela fé, daquele Deus, daquele homem. Foi um exercício religioso e ético daquela nova fé num Deus verdadeiramente diferente, garantia da experiência do exílio babilónico onde, sem templo, aquela fé atingirá uma maturação tal, a ponto de gerar muitas das obras-primas literárias, teológicas e antropológicas que compõem a Bíblia. Sem a experiência concreta de um Deus derrotado juntamente com o seu povo, de uma fé tenaz que não morre embora perdendo, primeiro, a Arca e, depois, o templo, nunca se teriam escrito o Cântico do Servo, o livro de Jeremias, muitos salmos, nem teríamos o diálogo de Jesus com a samaritana. Como nós, que escrevemos os capítulos mais belos da nossa vida quando continuamos a acreditar no amor de quem não conseguimos tocar na alma e que no dia em que, finalmente, descobrirmos que a nossa terra está verdadeiramente sem Arca e sem templo, teremos, simplesmente, aprendido a amar a vida “em espírito e verdade”

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Maior que a culpa / 4 – Deus omnipotente e derrotado ensina a fé que muda tudo

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/02/2018

Piu grandi della colpa 04 rid«As mais belas poesias
escrevem-se nas pedras
com joelhos feridos
e as mentes aguçadas pelo mistério.
As mais belas poesias escrevem-se
diante de um altar vazio
cercado por agentes
da divina loucura.
Assim, louco criminoso como és
tu ditas versos à humanidade,
os versos do resgate
e as bíblicas profecias
e és irmão de Jonas»

Alda Merini, La Terra Santa

«Nessa altura, os Filisteus reuniram-se para combater contra Israel. Então Israel saiu ao encontro dos filisteus para lhes dar combate» (4, 1b). Depois da grandiosa e esplêndida noite da vocação de Samuel, muda o cenário e sobre Israel sopram ventos de guerra. Aparece um povo já conhecido de Israel, que o acompanhará e combaterá durante muitos séculos, os filisteus, um antigo povo dos mares que exerceu o domínio político e cultural sobre toda a região, associando-a ao seu nome (Palestina, Philistia: a terra dos filisteus). Muda a cena, talvez também a mão do narrador, mas permanecem alguns elementos de continuidade. Entre estes, Eli, os seus filhos e, sobretudo, a Arca.

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A civilização do dom homeopático

Maior que a culpa / 4 – Deus omnipotente e derrotado ensina a fé que muda tudo por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 11/02/2018 «As mais belas poesias escrevem-se nas pedras com joelhos feridos e as mentes aguçadas pelo mistério. As mais belas poesias escrevem-se diante de um altar va...