stdClass Object ( [id] => 18854 [title] => A guarda do primeiro nome [alias] => a-guarda-do-primeiro-nome [introtext] =>Profecia é história / 28 – Hábito antigo (e atual) dos “senhores” é mudar o nome dos súbditos.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 15/12/2019
«Entre a última palavra dita e a primeira nova a dizer, é ali que habitamos».
Pierluigi Cappello, Assetto di volo
A reciprocidade dos pactos é uma coisa muito séria, que também inclui as consequências da reciprocidade rompida. O relato da queda de Jerusalém recorda-no-lo com rara eficácia e beleza.
Não basta ser minoria para ser minoria profética. Não é o fazer parte dum resto de sobreviventes a fazer o resto da Bíblia. Na conquista babilónica, alguns hebreus foram deportados e outros ficaram na pátria. Em cada uma destas duas comunidades – a do exílio e a da pátria – havia quem se autoatribuía o estatuto de “resto” anunciado por Isaías. Ezequiel e Jeremias falam-nos, em páginas lindíssimas, destes “conflitos entre restos”, das polémicas entre os filhos por herança ideal dos pais. As crises, sobretudo as grandes e determinantes, geram muitos “restos”, vários grupos que pretendem ser os verdadeiros guardas do primeiro pacto, os garantes da primeira aliança, os herdeiros do primeiro testamento. Nestes conflitos identitários, é provável que cada grupo possua alguns elementos autênticos do verdadeiro “resto”; mas mal uma minoria começa a reivindicar a primogenitura contra os outros grupos, as sementes boas começam a estragar-se.
[fulltext] =>Durante e após as crises, é fundamental, portanto, a capacidade de não pretender o monopólio da herança, saber conviver com outros que se baseiam no mesmo património. Porque uma virtude importante de quem se sente, honestamente, parte do “resto” fiel está em saber conviver com outros que dizem coisas diferentes, em nome da mesma herança – inclusive embusteiros e falsos profetas, que acompanham sempre os verdadeiros profetas. Porque, quando é um único grupo a sentir-se o legítimo proprietário da promessa e a ser reconhecido por todos como tal, é quase certo que é esse grupo o errado. O espírito ama o excesso e os desperdícios. A herança espiritual, como a verdade, é sinfónica. Só o tempo e a história sabem separar o trigo do joio e nenhum trigo pode estar seguro, antes do último momento, de não ser joio. Vive-se entre palavras ditas e palavras por dizer, sem ser donos da verdade de umas e de outras. As dúvidas sobre a autenticidade da própria vocação e eleição são, paradoxalmente, o primeiro sinal de autenticidade. Há também esta boa ignorância no repertório humano.
Chegámos ao auge dos Livros dos Reis e da história bíblica. E eis um nome que, sozinho, diz muitas coisas, quase tudo: Nabucodonosor. «No reinado de Joaquim, Nabucodonosor, rei da Babilónia, pôs-se em marcha contra Joaquim, que se tornou seu vassalo durante três anos. Depois, rebelou-se contra ele. YHWH mandou contra Joaquim as tropas dos caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá para o destruir, conforme YHWH anunciara pela boca dos profetas, seus servos» (2Rs 24, 1-2). Mandou-o à Judeia para a destruir… Temos, imediatamente, a interpretação do que o texto está a descrever. O cerco a Jerusalém, a destruição do templo, o exílio em Babilónia, o fim do reino de Judá são queridos por Deus porque são a consequência da violação da Aliança. Tinha-o dito por meio dos profetas e, agora, aquela palavra cumpre-se, para nos mostrar a seriedade da palavra, o valor absoluto de uma promessa, a verdade radical da aliança. Se um pacto é verdadeiro, se a palavra que o cria, pronunciando-o, não é fumo e vanitas, então deve ser verdadeiro tudo o que aquela reciprocidade essencial implica. Um pacto é um bem relacional; portanto, é feito de reciprocidade que morre quando a reciprocidade diminui. Então, a destruição do templo e o fim do reino estão inerentes à verdade da aliança com Abraão e Moisés. E isto é uma coisa verdadeiramente importante.
Os Livros dos Reis mostram-nos que o fim já tinha começado no momento em que Salomão importou, para Jerusalém, os deuses estrangeiros. Portanto, é muito sugestiva e forte a cena da devastação do templo: «Foi nesse tempo que os homens de Nabucodonosor, rei da Babilónia, vieram sobre Jerusalém e a sitiaram. Nabucodonosor chegou à cidade, quando as suas tropas a sitiavam. Joiaquin, rei de Judá, saiu ao encontro do rei da Babilónia… O rei da Babilónia prendeu-o. Isto aconteceu no oitavo ano do reinado de Nabucodonosor. E como YHWH tinha anunciado, Nabucodonosor levou dali todos os tesouros do templo de YHWH e do palácio real, e quebrou todos os objetos de ouro que Salomão, rei de Israel, fizera para o santuário de YHWH» (24, 10-13). Como tinha anunciado YHWH: novamente a mesma tese. Com os despojos dos tesouros do templo e do palácio (talvez um dado anacrónico, pois este episódio acontece provavelmente dez anos mais tarde, com a segunda deportação, durante a destruição de Jerusalém e do templo), encerra-se um longuíssimo ciclo, que durou séculos. A corrupção do coração de Salomão e dos muitos reis que, depois, lhe sucederam, atinge, agora, o seu auge, com a leva daquele tesouro e “reduzindo a pedaços” os objetos.
A palavra que leva Nabucodonosor a Jerusalém é a mesma palavra da bênção enganada e irrevogável de Isaac para Jacob, a mesma palavra que criou a luz e Adão. Se é verdadeiro Adão, se são verdadeiras as dez palavras, se é verdadeira Belém, então também deve ser verdadeiro Nabucodonosor. Esta é a verdade tremenda, dramática e maravilhosa da palavra bíblica, uma palavra que é verdadeira porque é fiel até às consequências extremas da palavra: «YHWH não quis perdoar tal maldade» (24, 4). Também isto é palavra bíblica, também aqui está a sua unicidade, isto também é a sua mensagem dirigida às nossas palavras.
Os escribas que compunham estes capítulos queriam dizer-nos, portanto, que aquela destruição continha a mesma verdade da Aliança e do Sinai. Na Bíblia, aliança e os pactos são algo de imenso, de valor infinito, que nós, leitores do século XXI, já não compreendemos. No humanismo bíblico, os pactos humanos têm o seu fundamento num maravilhoso e inconcebível pacto com Deus. Uma religião da aliança pode fundar uma cultura da aliança que, mesmo em sofrimento, continua ainda a sustentar a cultura ocidental. Também foi pelo valor daquele pacto fundador que soubemos dar vida aos casamentos, às empresas, às cooperativas, às cidades e, depois, aos Estados nacionais e à União Europeia. A religião da aliança é a possibilidade que os nossos “para sempre” possam ser verdadeiros quando os pronunciamos na ignorância do futuro; mas esta aliança também é fonte de valor infinito, na reciprocidade dos pactos. Quando, pela última vez, saio da porta de casa, digo-te que o pacto de reciprocidade que fizemos, anos antes, era verdadeiro, que não era fumo e vento. Enquanto me vou embora digo a mim mesmo e a ti a verdade do primeiro pacto e do tempo que passei. Também é verdade que posso perdoar-te e ficar em casa – muitos, muitos o fazem em cada dia e ressuscitam muitos pactos dos seus túmulos –, mas isto não tira verdade àquele ir embora; embora, depois, seja a mesma Bíblia a dizer-nos que aquele ir embora, apesar de verdadeiro, não é a última palavra, porque “um resto voltará”.
A interpretação que aquela comunidade de redatores dá à destruição de Jerusalém é, portanto, algo de extraordinário e de essencial. Perante a tragédia, aqueles escribas poderiam gritar o abandono, lamentar-se junto de YHWH por ter negado a aliança. Em vez disso, escolheram ler aquela terrível realidade na fé, agarrando-se à corda-fides que os mantinha ligados ao céu, ao seu passado, ao futuro possível e ao “resto” que continuaria a história. Aquela leitura foi a única capaz de salvar a sua fé e o seu povo diferente, porque a única alternativa que tinham era afirmar que o seu Deus era apenas um ídolo, uma vanitas como todos os outros. E, pelo contrário, salvaram a palavra e a aliança, salvaram Deus. Como Job.
Eis porque a destruição de Jerusalém é, verdadeiramente, o coração da Bíblia, o centro gravitacional da sua fé e do seu humanismo. Com todas as probabilidades, não teríamos a Bíblia – ou a teríamos totalmente diferente – se aquela comunidade de escribas, sacerdotes e profetas, abatidos pelo exílio, tivesse escolhido salvar-se a si mesma, condenando Deus. O “resto” poderá voltar e continuar a história se mantemos viva a verdade do primeiro pacto, assumindo todas as consequências.
O exílio babilónico produziu uma das maiores revoluções religiosas e éticas da história da humanidade. Ali, em terra estrangeira e idólatra, nasce o culto sem templo, Deus deixou de estar prisioneiro do seu território. E, sobretudo, terminou a era da identificação da verdade com a vitória, porque se compreendeu que YHWH podia permanecer verdadeiro, embora derrotado; que as nossas verdades também podem ser verdadeiras mesmo que não vençam; que uma vida pode ser verdadeira, enquanto morre. Uma inovação antropológica e teológica determinante, possível porque aquela comunidade de escribas-intérpretes escolheu a sua condenação religiosa para salvar a verdade do Deus da aliança e da promessa, para no-la dar em herança.
Juntamente ao ouro do templo e do palácio, nesta primeira deportação (de 598-597), os babilónios levaram também as elites militares, técnicas e intelectuais: «Levou cativa toda a corte de Jerusalém, todos os chefes e todos os notáveis, ao todo dez mil, com todos os ferreiros e artífices; deixou apenas os pobres do país. Deportou Joiaquin de Jerusalém para a Babilónia» (24, 14-15). Apenas ficou o povo pobre… Também neste relato trágico ressurge a polémica dos “restos”. Quem escreveu ou completou este versículo era uma mão que pertencia ao grupo (golà) de deportados em Babilónia que se considerava o verdadeiro resto fiel. Por isso define “povo pobre” os que permaneceram na pátria, que, enquanto pobres, não podiam aspirar ao estatuto de herdeiros da promessa – como se o ser pobres não fosse compatível com o habitar no Reino, com o ser chamados “bem-aventurados”.
Dentro destas páginas trágicas está, por fim, um pormenor que pode passar despercebido: «Em lugar de Joiaquin, o rei da Babilónia nomeou rei seu tio Matanias, cujo nome mudou para Sedecias» (24, 17). O novo soberano muda o nome ao rei por ele nomeado. A mesma operação, fizeram, alguns anos antes, os egípcios, com o pai do rei Joiaquin: «O Faraó Necao colocou Eliaquim, filho de Josias, no trono, em lugar de seu pai Josias, e mudou-lhe o nome para Joaquim» (23, 34). É um antigo e sempre atual hábito dos senhores mudarem o nome aos seus súbditos. Quando um homem ou uma mulher nos muda o nome, aquele novo nome é o selo de propriedade privada. O Deus bíblico não nos muda o nome. Deixa ficar o nosso, ama-o, aí lê a nossa vocação e é com aquele primeiro nome que nos sabe chamar: Samuel, Agar, Maria. E as poucas vezes em que o muda (com Abraão, Sara, Jacob, Simão) é para nos indicar um horizonte ou uma vocação ainda mais livres e largos.
É difícil atravessar o mundo e terminar a viagem com o nome com que aí chegámos. Os encontros e as feridas, enquanto nos deixam o sinal (in-segnano = ensinam) do nome do outro, procuram, até ao fim, não só ferir o nosso nome (coisa necessária e, geralmente, boa), mas mudá-lo, colocar-nos o selo e, de filhos, transformar-nos em escravos. Que possamos guardar o nome do primeiro dia para o ouvir pronunciar no último.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 08/12/2019
«Mas como pode Josias ignorar Jeremias e enviar emissários a Hulda? Os sábios responderam: Porque as mulheres são mais compassivas e, por isso, esperava que o que lhes diria não seria excessivamente duro».
Talmud, Meguilá 14b
O encontro de um livro, no templo, torna-se a base de uma grande reforma religiosa, onde encontramos a profetisa Hulda, que nos recorda o significado das mulheres e da profecia.
Um pai justo e um grande milagre não são a garantia que os filhos vão continuar a escrever uma história justa e boa. Depois de Ezequias, o rei bom e fiel, que salvou Jerusalém pela sua fé em Deus, reinaram em Judá dois reis maus, Manassés e Amón (2Rs 21), que voltaram e construir altares aos deuses estrangeiros, recuperando e reativando os antigos cultos populares cananeus que não tinham chegado a extinguir-se entre o povo. Depois do bonito parêntesis de Ezequias, volta a idolatria, a antiga doença de Israel e de todos os homens, construtores incansáveis de ídolos para adorar. Somos consumidores de muitas coisas; porém, em primeiro lugar e acima de tudo, somos consumidores de ídolos.
[fulltext] =>No ciclo da alternância do bem e do mal, depois de Amón, chega Josias, o novo David, amadíssimo pela Bíblia, pelo menos quanto o seu antecessor Ezequias: «Josias tinha oito anos quando começou a reinar, e reinou trinta e um anos em Jerusalém... Fez o que é reto aos olhos de YHWH» (2Rs 22, 1-2).
Josias apresenta-se como um restaurador do templo. O texto descreve os trabalhos com palavras muito semelhantes às que o capítulo 12 tinha utilizado para os restauros de Joás. Novamente a prata, recolhida pelos “guardas da entrada” é fundida, transformada em moedas e entregue aos carpinteiros e aos pedreiros. A descrição da fábrica do templo encerra com as mesmas palavras usadas para o restauro de Joás: «Mas não se lhes exigirão contas do dinheiro que lhes é confiado, porque são pessoas íntegras» (22, 7). As palavras boas sobre a honestidade e a lealdade dos trabalhadores nunca se devem calar, sobretudo quando as encontramos na Bíblia; e, sobretudo, hoje, quando, mais que postos de trabalho, precisamos de palavras boas sobre os trabalhadores, de bênçãos do trabalho, sem as quais os postos de trabalho ou não existem ou são maus.
Os trabalhos de restauro provocam um dos acontecimentos mais importantes da Bíblia: daquele estaleiro aparece um livro: «O Sumo-sacerdote Hilquias disse ao escriba Chafan: “Encontrei no templo de YHWH o Livro da Lei (Sefer hat Torá)”» (22, 8). Um achado excecional. Não sabemos quanto haja de histórico nesta descoberta, sendo comum, na literatura antiga coeva, apoiar uma reforma religiosa na descoberta de um texto, real ou imaginário, que se tornava mito fundador da nova época. Muito se escreveu sobre este achado. Para alguns historiadores, aquele livro era uma primeira versão do que hoje conhecemos como livro do Deuteronómio, ou da sua parte que contém a Lei de Moisés (Torá). Um pedreiro – ou, talvez, um grupo de teólogos – encontrou, no templo ou no mito, um fundamento mais antigo da sua fé, sobre o qual, um grupo de reformadores, num tempo de corrução religiosa, fundou a sua reforma.
Não é raro que a minoria profética, que quer uma reforma radical, assente a sua ação em algo de mais antigo porque, naquele antigo, há algo de puro e genuíno que, com o tempo, se contaminou e decaiu. Por vezes, este “algo” é uma tradição esquecida, algumas palavras do fundador, apagadas com o tempo; outras vezes, é um texto, um livro, uma carta, um “evangelho” perdido ou considerado, pelos outros, apócrifo que, pelo contrário, para os reformadores, continha uma mensagem autêntica. No mundo antigo, a Bíblia incluída, o que era mais antigo era também mais verdadeiro. Naquela cultura, havia a convicção que o início contivesse o princípio ideal, que ali estivesse a promessa, antes de chegarem os nossos compromissos, o pacto antes das nossas infidelidades. Havia a certeza que, para sair da crise do presente, o principal e talvez o único recurso era um passado diferente, a terra incontaminada e ainda fértil para gerar futuro - «no princípio, não era assim». Como quando, precipitados num horizonte limitado e sombrio, sentimos que para dar nova vida à nossa relação, temos de voltar aos dias do primeiro amor e às palavras diferentes, capazes de pronunciar uma esperança infinita. Compreendemos que temos de experimentar rever o coração do outro e o nosso como o tínhamos conhecido naquele primeiro pacto e, depois, fazer com que o passado ressuscite o presente, que parece morto. Não é nostalgia, é o seu oposto: na Bíblia, chama-se memória. Nestes atos, não se olha para trás, olha-se só para a frente. Como Moisés que, do Monte Nebo, não olha para o Egipto, mas para o Jordão. Por vezes, aquele texto antigo é encontrado durante o “restauro” de uma obra, surge como um dom de um trabalho nos alicerces. Outras vezes, o livro “cria-se”, nasce da escuta da dor do povo. A história pode ser “produzida”, hoje, por um amor maior, porque o livro pode ser gerado pela carne e pelo sangue de quem acredita que aquela origem não se tenha perdido para sempre e pode ressurgir. As identidades, individuais e coletivas, são sempre criações do presente, mesmo quando partem do passado.
O rei justo Josias partiu da descoberta de um livro antigo e reformou o culto: destruiu os altares pagãos que povoavam a sua região, eliminou do templo os prostitutos sagrados, expulsou os sacerdotes cananeus, destruiu também o antigo altar de Betel (23, 4-14). Além disso, «Josias profanou também o crematório, no vale do filho de Hinom, a fim de que ninguém fizesse passar pelo fogo o seu filho ou a sua filha em honra de Moloc» (23, 10). Qualquer boa reforma começa não matando mais crianças, deixando de os passar pelo fogo para os oferecer aos vários Moloc.
A reforma de Josias foi um acontecimento essencial na história da salvação. Porque marcou a passagem do templo ao livro que se torna centro e “lugar” da fé. Uma operação que se revelou determinante para o tempo do exílio que chegaria rapidamente. Israel conseguiu sobreviver setenta anos sem templo, porque Josias e a escola de escribas e sacerdotes transferiram o centro do templo para o livro. A Torá torna-se o templo móvel, a nova Arca da Aliança, que acompanhava a caravana no mundo e no tempo, nas muitas diásporas e destruições. A destruição de Josias tornou-se a possibilidade de conservar a fé noutras destruições devastadoras e totais.
Impressiona, nestes versículos, a força da destruição criadora de Josias: «O rei ordenou… que tirassem do templo do Senhor todos os objetos fabricados para o culto de Baal, de Achera e de todo o exército dos céus… Destituiu os falsos sacerdotes, postos pelos reis de Judá a fim de oferecerem o incenso nos lugares altos… e também os sacerdotes que ofereciam o incenso a Baal, ao Sol, à Lua, aos signos do zodíaco e a todo o exército dos céus» (23, 4-5). Sem a coragem da destruição, não se leva a cabo nenhuma reforma séria, porque a corrupção consiste, quase sempre, na acumulação – progressiva, contínua, não intencional – de coisas, ideias-ideologias-ídolos, práticas, tradições, que entram, pouco a pouco, no “templo” da cidade e da alma; e, assim, aquele lugar em que, no princípio, havia “apenas uma voz”, aquela nudez falante de infinito, onde tínhamos, um dia, tocado o céu, é preenchida por artefactos, até tornar impercetível o som da primeira voz. Mas o despejo dos lugares é muito custoso – nós e os nossos amigos afeiçoamo-nos demasiado aos artefactos sagrados – e, assim, quase todas as reformas fracassam por incapacidade de aguentar a dor da destruição. Porque a reforma é uma operação de esvaziamento para tornar nu o templo e, depois, rezar e esperar que a voz volte a falar. Nem sempre a voz volta, porque o tempo das vozes é, frequentemente, o da juventude; mas é preferível um templo vazio e mudo que um templo cheio de vozes fingidas, porque, enquanto o espaço permanece vazio, podemos sempre esperar ouvir, naquele silêncio, uma voz diferente, mesmo que seja do último anjo.
Importante, depois, neste capítulo fundamental, é a aparição de uma das profetisas nomeadas explicitamente na Bíblia: Hulda (ou Culda). Josias fica impressionado com as palavras do livro encontrado (as que anunciam as desventuras do povo, devidas às suas infidelidades) e quer uma prova da autenticidade daquele livro. Na Bíblia, os “certificadores” da palavra verdadeira de YHWH eram os profetas: «O sacerdote Hilquias, Aicam, Acbor, Chafan e Asaías foram ter com a profetisa Hulda, mulher de Chalum… Eles falaram com ela» (22, 14). A profetisa Hulda valida aquela palavra como palavra de YHWH e profetiza que Josias será poupado da destruição de Jerusalém. Hulda profetiza, com palavras muito semelhantes às de Jeremias que, no entanto, não é nomeado, embora, naquele período (por volta de 620-622) estivesse já em ação, na cidade.
Porque é consultada uma profetisa, uma mulher, e para um parecer de extrema importância? Uma pergunta que muitos fizeram, já em tempos antigos, assumindo uma resposta. Na Bíblia, não temos muitos outros elementos sobre Hulda. De Ezequiel, sabemos da atividade de profetisas, em Jerusalém, por ele condenadas por terem «desonrado YHWH» (Ez 13, 19). Segundo alguns estudiosos, é possível que, naquele tempo difícil do pré-exílio e, depois, do exílio, houvesse um conflito entre profetas e Hulda fosse excluída da narração oficial porque derrotada por profetas mais poderosos e famosos. Segundo um recente e controverso estudo de Preston Kavanagh (Huldah: The Prophet Who Wrote Hebrew Scripture, 2012), Hulda foi, pelo contrário, uma figura fundamental na Bíblia (até escreveu ou influenciou um terço das escrituras hebraicas). O seu nome, anagramático, apareceria 1.773 vezes na Bíblia, pois, segundo Kavanagh, os «escritores bíblicos usavam o anagrama como os escritores modernos usam o itálico para sublinhar um ponto» (p. 12). Uma tese extrema, dificilmente defensável (ex.: os nomes bíblicos que, na Bíblia, se podem formar como anagrama de Hulda, são muitos), que também nos recorda a importância das profetisas e das mulheres no humanismo bíblico; uma importância que foi maior que aquela – já notável – que a Bíblia atesta. Porque todos sabemos que há uma grande afinidade entre mulher e profecia.
Hulda, em hebraico, significa doninha (ou marta), nome que, segundo o Talmude, ela mereceu por ter ousado chamar ao rei, simplesmente, “homem” («Diz ao homem que te mandou a mim»: 22, 15). As profetisas conseguem chamar os reis pelo nome. As mulheres, mais que os homens, sabem que os poderosos são homens, como todos. Recordam-no a eles, recordam-no a nós, a partir das paredes domésticas. Este é um dom imenso para os poderosos e para todos. Dom das mulheres, dom das profetisas, dom da profecia. Sem profecia, os líderes são reis sempre e em toda a parte. Nunca experimentam a reciprocidade entre iguais; portanto, não conhecem a felicidade. Vivem tristes na sua solidão dourada, rodeados por aduladores e rufias. E, com o tempo, não conseguindo ser homens como todos, tornam-se desumanos. Também por isto, a profecia é recurso essencial da terra.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 08/12/2019
«Mas como pode Josias ignorar Jeremias e enviar emissários a Hulda? Os sábios responderam: Porque as mulheres são mais compassivas e, por isso, esperava que o que lhes diria não seria excessivamente duro».
Talmud, Meguilá 14b
O encontro de um livro, no templo, torna-se a base de uma grande reforma religiosa, onde encontramos a profetisa Hulda, que nos recorda o significado das mulheres e da profecia.
Um pai justo e um grande milagre não são a garantia que os filhos vão continuar a escrever uma história justa e boa. Depois de Ezequias, o rei bom e fiel, que salvou Jerusalém pela sua fé em Deus, reinaram em Judá dois reis maus, Manassés e Amón (2Rs 21), que voltaram e construir altares aos deuses estrangeiros, recuperando e reativando os antigos cultos populares cananeus que não tinham chegado a extinguir-se entre o povo. Depois do bonito parêntesis de Ezequias, volta a idolatria, a antiga doença de Israel e de todos os homens, construtores incansáveis de ídolos para adorar. Somos consumidores de muitas coisas; porém, em primeiro lugar e acima de tudo, somos consumidores de ídolos.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 01/12/2019
«Abraão encontrou a sua parte contrária numa figura tardia, isolada, íngreme da Bíblia: Job. Se Abraão era a graça não assente no mérito, Job era a desgraça não assente na culpa».
Roberto Calasso, Il libro di tutti i libri
A decadência do fim, mesmo nas histórias bíblicas, é a linguagem com que a Bíblia nos diz que todo é graça, que a eleição não está ligada aos nossos méritos.
Os dias mais luminosos da nossa vida, que são sempre demasiados poucos, são aqueles em que nos sentimos compreendidos e estimados não pelos nossos méritos, mas porque alguém – uma mulher, um irmão, uma mãe, um amigo – nos amou nas nossas imperfeições, nos nossos limites, nas nossas ambivalências e ambiguidades; porque, num dia diferente, aquela pessoa viu o nosso coração e a sua sinceridade. Porque não nos amou apesar daqueles limites e daquelas imperfeições, mas graças a eles e a elas. As poucas relações diferentes que nos acompanham durante toda a vida são encontros entre dois corações sinceros que, pelo menos uma vez, se viram assim, pactos nascidos da alquimia entre almas que se encontraram nas suas nudezes, para além e antes dos méritos e deméritos. Depois, também nestas relações diferentes, alegramo-nos com os nossos méritos e os dos outros e sofremos e nos arreliamos pelos deméritos; mas sabemos que são coisas pouco importantes, porque muito, demasiado mais importante é o coração que vimos, compreendemos e, sobretudo, amámos pelo menos uma vez num dia especial. Mesmo se não o sabemos, é este olhar que procuramos desde o primeiro momento em que viemos à luz, e o perseguimos, com tenacidade, até ao fim. Sem este olhar diferente, sem uma pessoa, pelo menos, que nos viu e nos vê assim (estes olhares persistem para sempre), a existência torna-se demasiado difícil, talvez impossível. E se há alguma coisa na vida que ainda continua a fascinar-nos e a seduzir-nos, em cada manhã, não é a procura de alguma forma de perfeição moral, mas o entusiasmo de continuar a caminhar à procura de surpresas, em companhia dos vícios e virtudes dos outros e minhas. Uma vida onde as feridas que, inevitavelmente, marcamos no corpo e na alma dos outros e que deles recebemos, nos combates corpo-a-corpo, são também janelas para experimentar ver um pedaço de céu.
[fulltext] =>Uma das mensagens mais belas da Bíblia, talvez a sua melhor carta de amor para nós, está em dizer-nos que, se não encontrámos, entre os seres humanos, quem conseguisse chegar até à sinceridade mais sincera do nosso íntimo, há ainda um olhar de última instância, o de Quem “vê o coração”, para além de méritos e culpas. Uma mensagem dita e repetida muitas vezes e de muitos modos, uma corda com muitos fios que unem as suas primeiras páginas às últimas. E quando não conseguimos ver a sinceridade do coração dos outros nem do nosso, podemos pedir emprestados os olhos da Bíblia, para nos darmos conta, um dia, que aqueles olhos se tornaram também os nossos. Talvez o milagre mais estupendo da Bíblia seja encontrar-nos, no tempo, transformados nos seus personagens amados, lidos e relidos: descer os caminhos com as mesmas vísceras comovidas do samaritano, voltar indigno das pocilgas e sentir o abraço misericordioso, deixar de maldizer dos nossos montes de estrume e começar somente a chamar Deus. De facto, a Bíblia, embora atravessada por uma linha meritória arcaica e, em parte, herdada das culturas dos povos com quem entrou em contacto ao longo da sua história, na sua alma mais profunda não associa a eleição (do povo e das pessoas individuais) a méritos e virtudes, não rejeita ninguém, apenas e primariamente, pelos seus pecados. Abraão, Jacob, David, Salomão são-nos apresentados como pessoas não mais meritórias que os outros homens. E muitos dos melhores personagens dos livros da Bíblia cometem pecados muito graves (David) e, por vezes, terminam a sua vida com uma decadência moral (Salomão). A recordar-nos que a eleição é apenas graça, que tudo é gratuidade. Quando a Bíblia define alguém “justo” não o faz para justificar a sua eleição mas para indicar uma tarefa de salvação (Noé) ou para refutar a tese da desventura ligada à culpa (Job). Portanto, para os profetas, a Bíblia não nos fala propriamente dos seus méritos porque, nesta economia, são absolutamente secundários, tendo os profetas de transmitir apenas uma palavra não sua, que se revela mais forte e eficaz que os seus vícios e virtudes. E se a palavra de Deus é também mais forte que os nossos pecados, uma palavra pode chegar sempre aos nossos abismos desesperados e salvar-nos. A esperança bíblica é sempre esperança da palavra.
Depois de ter destruído os ídolos, entre os quais estava a serpente de bronze de Moisés, Ezequias acredita apenas em YHWH e obtém, juntamente ao profeta Isaías, o milagre da vitória inesperada sobre a superpotência assíria: «Portanto, eis o que diz o Senhor sobre o rei da Assíria: “Ele não entrará nesta cidade, nem atirará flechas… Nessa mesma noite, o anjo do Senhor apareceu no acampamento dos assírios e feriu cento e oitenta e cinco mil homens...” Senaquerib, rei da Assíria retirou-se, retomou o caminho de sua terra e ficou em Nínive» (2Rs 19, 32-36). Ezequias recebeu depois um segundo “milagre”, a cura, por meio do profeta Isaías, de uma doença mortal, outros quinze anos de vida dados por Deus, que ouviu a sua oração sincera e, assim, retificou a palavra de Isaías que lhe tinha anunciado a morte iminente (20, 1-11). Mas, depois destas grandes façanhas, os Livros dos Reis mostram-nos um Ezequias que, envelhecendo, perde algo da beleza e justiça da primeira parte do seu reinado. A um dado momento do seu arco histórico, aparece a Babilónia: «Naquele tempo, o rei da Babilónia, Merodac-Baladan, ao ouvir dizer que Ezequias estava doente, enviou-lhe uma carta com presente» (20, 12). Ezequias recebeu os embaixadores babilónicos e mostrou-lhe todo o ouro e as riquezas do palácio e de Jerusalém. Estamos um século antes de Nabucodonosor, mas Isaías vislumbra e profetiza o grande desastre da deportação: «Isaías disse ao rei: “Ouve a palavra de YHWH: ‘Dias virão em que tudo o que se encontra no teu palácio e tudo o que ajuntaram teus pais, até ao dia de hoje, será levado para a Babilónia. Nada ficará, diz o Senhor. E os filhos que de ti sairão, gerados por ti, serão levados como eunucos para o palácio do rei da Babilónia’”» (20, 16-18).
Do livro do profeta Jeremias, sabemos que a memória do milagre de Ezequias-Isaías sobre os assírios não ajudou o povo durante o cerco de Nabucodonosor. Aquela vitória, obtida num contexto semelhante, torna-se, mais tarde, motivo de ilusão para o povo de Jerusalém e oferece material eficacíssimo aos falsos profetas, para cultivar as ilusões do povo que chegaria um novo milagre. De facto, em nome do grande milagre obtido contra os assírios, o povo não acredita num outro grande profeta, Jeremias, que só indicava um bom caminho: a rendição às tropas de Nabucodonosor. Não é raro que a recordação de um episódio parecido, de ontem, conduza, hoje, ao caminho errado. O exercício da memória está entre os mais difíceis nas histórias espirituais e carismáticas, porque uma escolha (por exemplo, a resistência até ao fim de Ezequias) que se revela correta e abençoada, num dado contexto, pode revelar-se errada e péssima num outro contexto. Estamos perante um caso, entre os mais importantes de toda a Bíblia, de um uso errado do passado: o povo de Israel não fez um bom uso da recordação do milagre com os assírios e, quando se encontrou numa grande crise parecida à de Ezequias, Jeremias teve de combater contra o embotamento do presente reforçado pela recordação do passado, e foi vencido. Relembrar o milagre com os Assírios, do tempo de Isaías, foi uma desgraça, no tempo de Jeremias, porque o povo não se rendeu aos babilónios e foi destruído e deportado. Dois grandes profetas podem dizer coisas opostas, em circunstâncias semelhantes, e usar as palavras de um profeta do passado para um discernimento concreto pode levar a fazer a escolha errada. A sabedoria de uma comunidade, que se encontra a viver uma crise semelhante a uma vivida no passado, não está em recordar as escolhas concretas e empíricas feitas, nem em reler as palavras que, naquele contexto foram ditas por um grande profeta; a única sabedoria, frente às crises de hoje, está em escutar as palavras que um profeta verdadeiro nos diz, hoje, e segui-lo.
Na história pessoal de Ezequias, é importante a resposta que ele deu à profecia de Isaías: «Ezequias respondeu: “YHWH tem razão! É justo tudo o que me acabas de anunciar”. E acrescentou: “Ao menos, enquanto eu viver, haverá paz e segurança”» (20, 19). Resposta um tanto bizarra, que revela um certo cinismo e, sobretudo, uma falta de interesse pela sorte dos filhos e “pelos dias” das futuras gerações, uma dimensão moral determinante, no humanismo bíblico. O livro das Crónicas – estes feitos de Ezequias vêm descritos em três livros bíblicos: Reis, Crónicas e Isaías –, exprime um juízo mais claro sobre a conclusão da vida de Ezequias: «Ezequias não correspondeu ao benefício recebido do Senhor, porque se orgulhou em seu coração» (2 Crónicas 32, 25). A história diz-nos que nos reinados longos (Ezequias reinou 29 anos: 18,2) também os melhores reis se corrompem e também os mais justos tendem a transformar-se em tiranos.
Também a história de Ezequias conhece a decadência do fim. Nunca é fácil conservar, quando adultos, a beleza da juventude e também as pessoas mais nobres e justas estão expostas ao risco realíssimo do declínio moral no arco descendente da vida. Sorte que une pessoas e instituições, porque também as empresas, as organizações, as comunidades não conseguem, geralmente, manter à tarde as promessas da aurora. Ezequias foi um rei justo, apesar do fim. É a lei da vida, onde, em cada infância, se semeiam mais sementes que as que conseguirão florir na juventude e muito mais que as que produzirão frutos na maturidade. E mesmo quando os frutos adultos são muitos e saborosos, nunca poderão igualar a pureza e a inocência matinais da semente antes de apodrecer e morrer na terra da história. Eis porque uma tentação muito comum, na fase adulta das histórias, nascidas de sementes raras e puras, é a saudade da primeira semente, da sua bonita totalidade, do um antes que se perdesse e contaminasse na variedade, porque nos esquecemos que, debaixo do sol, os frutos só podem nascer da morte d um. E que o excesso da primeira sementeira era necessário para a bondade dos poucos frutos bons, mesmo que fosse só um. A eficácia não é categoria do espírito. Muitas decadências da vida adulta já estão inscritas na infância. Muitas, não todas, porque existem decadências que podíamos evitar, que não eram necessárias. Mas só nos damos conta disso no fim, quando a única sabedoria possível será pronunciar, docilmente, o último “ámen”. E, naquele último olhar, não faltará nada.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 01/12/2019
«Abraão encontrou a sua parte contrária numa figura tardia, isolada, íngreme da Bíblia: Job. Se Abraão era a graça não assente no mérito, Job era a desgraça não assente na culpa».
Roberto Calasso, Il libro di tutti i libri
A decadência do fim, mesmo nas histórias bíblicas, é a linguagem com que a Bíblia nos diz que todo é graça, que a eleição não está ligada aos nossos méritos.
Os dias mais luminosos da nossa vida, que são sempre demasiados poucos, são aqueles em que nos sentimos compreendidos e estimados não pelos nossos méritos, mas porque alguém – uma mulher, um irmão, uma mãe, um amigo – nos amou nas nossas imperfeições, nos nossos limites, nas nossas ambivalências e ambiguidades; porque, num dia diferente, aquela pessoa viu o nosso coração e a sua sinceridade. Porque não nos amou apesar daqueles limites e daquelas imperfeições, mas graças a eles e a elas. As poucas relações diferentes que nos acompanham durante toda a vida são encontros entre dois corações sinceros que, pelo menos uma vez, se viram assim, pactos nascidos da alquimia entre almas que se encontraram nas suas nudezes, para além e antes dos méritos e deméritos. Depois, também nestas relações diferentes, alegramo-nos com os nossos méritos e os dos outros e sofremos e nos arreliamos pelos deméritos; mas sabemos que são coisas pouco importantes, porque muito, demasiado mais importante é o coração que vimos, compreendemos e, sobretudo, amámos pelo menos uma vez num dia especial. Mesmo se não o sabemos, é este olhar que procuramos desde o primeiro momento em que viemos à luz, e o perseguimos, com tenacidade, até ao fim. Sem este olhar diferente, sem uma pessoa, pelo menos, que nos viu e nos vê assim (estes olhares persistem para sempre), a existência torna-se demasiado difícil, talvez impossível. E se há alguma coisa na vida que ainda continua a fascinar-nos e a seduzir-nos, em cada manhã, não é a procura de alguma forma de perfeição moral, mas o entusiasmo de continuar a caminhar à procura de surpresas, em companhia dos vícios e virtudes dos outros e minhas. Uma vida onde as feridas que, inevitavelmente, marcamos no corpo e na alma dos outros e que deles recebemos, nos combates corpo-a-corpo, são também janelas para experimentar ver um pedaço de céu.
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stdClass Object ( [id] => 18857 [title] => Herdeiros, isto é, destruidores e guardas [alias] => herdeiros-isto-e-destruidores-e-guardas [introtext] =>Profecia é história / 25 – Justiça autêntica é também impedir que o passado mate o futuro
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 24/11/2019
«A serpente de bronze, no tempo de Ezequias, nunca curava; pelo contrário, feria: os valores do passado podem fazer isto, porque nenhuma garantia é dada por Deus às coisas de que Ele, de vez em quando, se quis servir».
Paolo De Benedetti, Ezechia e il serpente di bronzo.
A arte de cada reforma é conseguir compreender quais os elementos da origem que devem ser salvos e os que devem ser destruídos. Como soube fazer o rei Ezequias com a arca e com a serpente de bronze.
O passado, a origem e as raízes de uma história e de uma vida são, frequentemente, recursos essenciais para compreender como e onde continuar agora aquela história e aquela vida. Porém, por vezes, nalgumas fases raras e cruciais das comunidades e das instituições, a referência ao início pode revelar-se uma armadilha mortal. Aqui será necessário discernir os espíritos do passado à luz da experiência presente; como acontece frequentemente nas famílias, onde o sentido de um acontecimento doloroso vivido pelo avô é revelado, três gerações depois, na história luminosa de um neto. O passado está vivo e é vivificante se sabe mudar, morrer e ressurgir no presente. Por vezes, nas vicissitudes humanas, são os frutos a regenerar as raízes. Durante os processos de reforma das comunidades, das instituições e das organizações, por exemplo, a origem de uma tradição, de uma regra, de um princípio, não é suficiente para compreender o presente e o futuro. É preciso olhar ao hoje, ao uso corrente que se faz disso. Quando, nas comunidades e nas instituições, é necessária uma reforma ética, é preciso saber identificar que tradições da origem são de conservar e quais se devem esquecer.
[fulltext] =>O reino do Norte foi conquistado pelos Assírios. E, agora, aquela superpotência ameaça também o reino do Sul, Judá, e a capital Jerusalém. Entretanto, Ezequias subiu ao trono: «Fez o que é reto aos olhos do Senhor, conforme o exemplo de David, seu pai» (2Rs 18, 3). Finalmente, depois de uma longa série de reis mais ou menos corruptos e idólatras, chega um rei justo. A sua retidão manifesta-se na luta idolátrica e na afirmação do mono-culto de IHWH, um tema muito estimado pelo autor destes livros históricos. De facto, «Destruiu os lugares altos, quebrou as estelas e cortou os símbolos de Achera» (18, 4). Destruiu os «lugares altos», isto é, os altares aos vários deuses estrangeiros postos nos lugares altos (as famosas bamôt, odiados por todos os profetas) e que os vários predecessores, mesmo os melhores, não conseguiram eliminar, provavelmente porque frequentados e amados pelas pessoas (os povos do Mediterrâneo e do Médio Oriente sempre amaram os “altarin” e amam-nos ainda). Juntamente com estas, também eliminou as estelas rituais (as massebot) e os postes sagrados (as aceras), símbolo da fertilidade, associados à divindade feminina Achera/Istar/Astarté, deusa muito popular e venerada na região. Porém, o elemento mais original da reforma religiosa de Ezequias é outro. Ezequias «despedaçou a serpente de bronze que Moisés tinha feito» (18, 4). O zelo religioso deste rei levou-o a destruir uma relíquia, um objeto sagrado que remontava verdadeiramente a Moisés, o ícone da Lei e da Aliança com YHWH. Provavelmente nenhum nome, sobre a terra, evocava mais o nome de YHWH que Moisés, ninguém mais que ele era símbolo de pureza cultual, de luta anti idolátrica (o bezerro de ouro), do único Deus verdadeiro e diferente. Então, porque destruiu Ezequias um objeto-documento que lembrava diretamente a memória de Moisés, ligado a um importante episódio do Êxodo, parte da tradição e da história da libertação do Egipto?
Aquela serpente de bronze fez boa figura durante uma crise de fé do povo, que começava a murmurar e a ter saudades do bom alimento da escravidão. Deus os puniu («O Senhor enviou contra o povo serpentes ardentes, que mordiam o povo, e por isso morreu muita gente de Israel»). O povo pede a Moisés para interceder, para obter o perdão. Moisés pediu e «YHWH disse a Moisés: “Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num poste. Sucederá que todo aquele que tiver sido mordido, se olhar para ela, ficará vivo”... Quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, vivia» (Números 21, 6-9). Portanto, aquela serpente de bronze foi construída por Moisés em obediência a uma precisa palavra de Deus, era “sacramento” de uma teofania e memória de uma etapa importante da história da salvação. Um episódio que permaneceu vivo durante séculos na tradição hebraica e que encontramos também no Novo Testamento, como uma imagem do crucificado: «Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que nele crê tenha a vida eterna» João 3, 14-15). Todavia, Ezequias, rei justo e fiel, decide destruir aquela serpente de Moisés, estende a sua “destruição criadora” de ídolos também àquele objeto abençoado, recordação e memória de um trecho de história abençoada, construído pelo maior profeta, plasmado pelas suas mãos santas. Podemos imaginar quão amada era aquela serpente, quão venerada era pelo povo, quantas orações recitadas aos seus pés pela gente simples, à procura de ajuda e graças. De facto, o texto acrescenta: «até então, os israelitas queimavam incenso diante dela. Chamavam-na Neustan» (18, 4). E é aqui, nesta veneração, neste queimar incenso e dar-lhe um nome, que está a explicação da sua eliminação por parte de Ezequias. Quando, a um objeto, era queimado incenso e, sobretudo, lhe era dado um nome, aquele objeto já não era apenas um símbolo, um memorial, um ícone; aquele objeto, com incenso e um nome, tornara-se um ídolo. Aquela serpente de bronze, com o tempo, tinha-se afastado do seu significado original e o seu uso tinha-se tornado, de facto, idolátrico.
A própria origem daquela serpente já tinha elementos arcaicos que confinavam com as práticas xamânicas e mágicas. Curar – ou experimentar curar – de um mal, utilizando como médium uma imagem do mesmo mal (mordidela de serpente com a visão da serpente) é uma expressão de uma técnica mágica muito antiga, chamada homeopática (o semelhante cura o semelhante). Portanto, aquela serpente tinha uma origem complexa e, em parte, mítica, talvez aprendida no Egipto, onde estava difundida a prática mágica e adivinhadora. Sabemos que, na história antiga de Israel, os profetas (Samuel, Ezequiel) conservavam ainda vestígios do profetismo arcaico; a novidade da profecia bíblica tinha-se entrelaçado com as práticas dos adivinhos e dos videntes cananeus, assírios e babilónicos. Este objeto de Moisés – a serpente – tinha, portanto, sofrido, com o tempo, uma evolução e, de relíquia da libertação, do Sinai e do Êxodo, tinha começado e viver uma vida própria. A ligação com Moisés, forte no princípio, tinha dado lugar às contaminações dos cultos cananeus. E quando, no século oitavo, chegou Ezequias, a transmutação em ídolo já estava completa. Este rei foi grande ao encontrar coragem de associar aquela serpente de Moisés às estelas de Astarté e aos altares dos outros deuses pagãos. Terá encontrado, entre o seu povo, fortes resistências, mas, se o texto quis deixar os vestígios deste dado incómodo para os redatores (um rei que destrói uma relíquia de Moisés), é porque este episódio esconde algo de importante na economia da história bíblica – e na nossa “economia”.
Moisés tinha mandado construir a Arca da Aliança que, no tempo de Ezequias, ainda era guardada no templo de Jerusalém. A serpente foi destruída; a arca não. Porque, podemos deduzir, a arca tinha conservado o significado e o uso inicial, era memória e sacramento da Aliança. Continha segundo a tradição, as Tábuas da Lei; mas, aquele objeto, diferentemente da serpente, não se tinha tornado ídolo. Por isso, na reforma religiosa de Ezequias, a arca devia ser conservada para manter viva a memória, A arca era um símbolo que conseguia falar das coisas corretas, que mantinha junto (sym-ballo), corretamente, o presente e o passado, era um sinal que indicava o caminho correto a percorrer, naquele tempo de mudança ética e espiritual. A serpente, não. Embora fosse produzida pela mesma origem, o seu presente não conseguia ligar-se com um rosto bom do passado. No século oitavo, o Moisés da serpente era diferente do Moisés da Arca. Ezequias teve a sabedoria e a inteligência de o compreender. Estamos perante um ato fundamental, que pode dizer muitas coisas nos momentos de reforma e de renovação das comunidades. Operação muito difícil, porque, quer a arca a conservar quer a serpente a destruir, tinham sido criadas pelo mesmo Moisés; as suas origens foram escritas nos mesmos livros sagrados, ambas são parte da história e das palavras dos profetas. As comunidades começam um lento, mas inexorável, declínio, quando se afeiçoam às origens e não olham ao significado atual das próprias realidades e das próprias pessoas. Uma tradição não é salva apenas porque criada pelo fundador ou por um profeta. Porque se a origem era ótima, mas o uso se tornou perverso, nenhuma reforma é possível sem a coragem de destruir estas tradições, objetos, regras e valores da origem santa, e afastar as pessoas que, boas na origem, se perderam ao longo do caminho.
A história das comunidades e dos movimentos mostram-nos, a este respeito, cenários geralmente sombrios. Os casos mais comuns são aqueles nos quais as comunidades, absolutizando a origem, conservam quer a arca quer a serpente e, assim, com o tempo, a serpente devora a arca. Este desfecho é muito frequente porque a origem da serpente é guardada, com a arca, na história íntima das comunidades e destruí-la é interpretado, pela maioria, como traição da herança. Talvez, quando Ezequias comunicou a sua decisão de destruir a serpente, não poucos escribas e doutores lhe tenham recordado e lido o trecho das escrituras do milagre de Moisés no deserto. Aquele rei foi justo porque impediu que o passado matasse o futuro. Porém, outras vezes, destroem-se quer a serpente quer a arca. Sente-se o risco da idolatria por aquilo em que se tornou uma parte da origem, mas não sabendo ou não conseguindo distinguir, destrói-se todo o passado. Assim, perde-se também o contacto com a origem boa (a arca) e morre-se lentamente, como uma planta sem raízes. Mas a morte mais infeliz é a que se verifica quando as comunidades, nas reformas, conservam a serpente e destroem a arca. Aqui, morre-se acreditando estar vivos, porque a comunidade não se extingue, mas transforma-se numa comunidade de adoradores da serpente Neustan, pensando, geralmente de boa-fé, adorar o mesmo Deus da origem. A Bíblia, contando-nos a história de Ezequias, diz-nos que é possível outro desfecho: salvar a arca e destruir a serpente. Esta é a arte mais preciosa de qualquer processo de reforma, o talento crucial de qualquer verdadeiro reformador. Ezequias foi um rei muto amado: «Ezequias pôs a sua esperança em YHWH. Não houve outro como ele, entre todos os reis de Judá que o precederam ou lhe sucederam… Observou todos os mandamentos que YHWH prescreveu a Moisés» (2Rs 18, 5-6). Foi “fiel aos decretos de Moisés” também porque teve a força de destruir a sua serpente de bronze enquanto conservava a sua arca.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 24/11/2019
«A serpente de bronze, no tempo de Ezequias, nunca curava; pelo contrário, feria: os valores do passado podem fazer isto, porque nenhuma garantia é dada por Deus às coisas de que Ele, de vez em quando, se quis servir».
Paolo De Benedetti, Ezechia e il serpente di bronzo.
A arte de cada reforma é conseguir compreender quais os elementos da origem que devem ser salvos e os que devem ser destruídos. Como soube fazer o rei Ezequias com a arca e com a serpente de bronze.
O passado, a origem e as raízes de uma história e de uma vida são, frequentemente, recursos essenciais para compreender como e onde continuar agora aquela história e aquela vida. Porém, por vezes, nalgumas fases raras e cruciais das comunidades e das instituições, a referência ao início pode revelar-se uma armadilha mortal. Aqui será necessário discernir os espíritos do passado à luz da experiência presente; como acontece frequentemente nas famílias, onde o sentido de um acontecimento doloroso vivido pelo avô é revelado, três gerações depois, na história luminosa de um neto. O passado está vivo e é vivificante se sabe mudar, morrer e ressurgir no presente. Por vezes, nas vicissitudes humanas, são os frutos a regenerar as raízes. Durante os processos de reforma das comunidades, das instituições e das organizações, por exemplo, a origem de uma tradição, de uma regra, de um princípio, não é suficiente para compreender o presente e o futuro. É preciso olhar ao hoje, ao uso corrente que se faz disso. Quando, nas comunidades e nas instituições, é necessária uma reforma ética, é preciso saber identificar que tradições da origem são de conservar e quais se devem esquecer.
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Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 17/11/2019.
«Sei bem que o nome de saloio, na linguagem corrente da minha região é, agora, termo ofensivo e zombaria; mas eu adoto-o neste livro na certeza que quando, na minha região, a dor já não for vergonha, ele tornar-se-á nome de respeito e, talvez, também de honra».
Ignazio Silone, Fontamara.
A esperança dos profetas verdadeiros é o oposto da esperança falsa e consoladora dos falsos profetas e é verdadeira e forte como um filho.
São muitos os que justificam ações injustas, em nome da algo de bom que aquelas pessoas ou instituições fazem, enquanto negam justiça e direitos (postos de trabalho, PIB…). E também ainda é demasiado débil o grito dos profetas que dizem que estas coisas “boas” nunca são verdadeiramente boas sem justiça, sobretudo sem a típica justiça concebida e medida pela perspetiva dos pobres. As razões da economia, da política e da finança transformam-se profundamente se olhadas, juntamente com Lázaro, a partir de baixo da mesa do rico opulento.
[fulltext] =>«Jeroboão [II] restabeleceu as fronteiras de Israel, desde a entrada para Hamat até ao mar da planície, conforme YHWH anunciara pela boca do seu servo Jonas» (2Rs 14, 25). Uma das constantes que encontrámos, nestes anos de comentário á Bíblia, é o seu pluralismo nas leituras dos dados históricos. Estas diversidades são de muitos tipos. Uma importante é aquela entre as interpretações dos factos dos profetas da corte e a dos grandes profetas bíblicos. Os profetas do palácio, quase sempre falsos profetas, ontem e hoje, têm como principal objetivo confirmar e tranquilizar os reis e os poderosos nas suas certezas e, sobretudo, nas suas ilusões. Os profetas verdadeiros, pelo contrário, não têm nenhuma agenda própria e, assim, têm a liberdade-obrigação de referir apenas as palavras que recebem. Por isso, são intratáveis, imprevisíveis, não domesticáveis, não à venda.
Neste capítulo, encontramos um exemplo desta típica diversidade. Para os livros dos Reis, este Jonas, provavelmente um profeta da corte, dificilmente o autor do livro bíblico que tem o seu nome, parece ter exprimido uma avaliação positiva sobre aqueles sucessos militares. Um outro profeta, Amós, um grande grande e contemporâneo de Jeroboão II, tinha dado, àqueles mesmos factos, uma leitura oposta: «Vós converteis o direito em veneno, e o fruto da justiça em absinto. Vós alegrais-vos por causa de Lodebar, e dizeis: ‘Não foi pela nossa força que conquistámos Carnaim?’ Mas, ó casa de Israel, vou suscitar contra vós uma nação que há de oprimir-vos desde a entrada de Hamat até à torrente da Arabá’» (Amós, 6, 12-14). Amós não é um profeta da corte, lê aquelas conquistas como ações de guerra de um rei injusto que, não respeitando a justiça e o direito dos pobres, não podia, certamente, agir conforme o coração de YHWH. Cerca de dois séculos mais tarde, o grupo de escribas que redigiu os Livros dos Reis, fez daquelas ações militares de Jeroboão II uma leitura diferente e, apesar de tudo, providencial: «YHWH não decretara ainda apagar o nome de Israel de debaixo do céu e, por isso, libertou-o pelas mãos de Jeroboão» (14, 27). O juízo complicado sobre Jeroboão II permanece negativo, também no Livro dos Reis («fez o mal aos olhos de YHWH»: 14, 24); mas, enquanto para estes redatores também um rei mau pode fazer uma boa ação, para Amós e para muitos profetas, a presença ou ausência da justiça torna-se o elemento determinante para avaliar todas as ações de um rei. Para os profetas, o direito e a justiça são o juízo absoluto da política de um povo, que pode estar próximo também de um outro juízo absoluto: o da idolatria. Por esta mesma lógica, Isaías, no início do seu livro, dirige-se assim a Jerusalém: «De que me serve a mim a multidão das vossas vítimas? - diz YHWH –. Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. […] Não me ofereçais mais dons inúteis… podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo. É que as vossas mãos estão cheias de sangue» (Isaías 1, 11-15).
Com certeza que também os reis do tempo de Isaías fizeram sacrifícios e ofertas formalmente válidas e lícitas para a Lei; mas, para o profeta, as «mãos cheias de sangue» anulam o valor mesmo das ações mais religiosas. Porque aquelas injustiças e faltas de direito esvaziam de verdade qualquer outra ação, porque estes pecados não podem ser compensados nem condenados. Os profetas são parciais, partidários, desequilibrados, excessivos e, por isso, agradam-nos porque, assim, salvam-nos nos nossos cálculos e compromissos, no bom senso e na prudência. O século oitavo, politicamente tumultuso e idólatra, está cheio de muitos grandes profetas. Este foi o tempo de Amós, Oseias, de Miqueias e foi o tempo de Isaías. Devemos ler as suas profecias juntamente às vicissitudes históricas narradas nos Livros dos Reis e percorrer estes episódios acompanhados pelas palavras dos profetas. Descobriremos muitas coisas importantes. Veremos, por exemplo, que o Acaz de Isaías não se cruza com o Acaz do Livro dos Reis que, no capítulo 16, a ele dedicado, nem sequer menciona Isaías. Tradições e fontes diferentes, certamente, mas permanece misterioso não ver aqui o nome de Isaías ao lado de Acaz. De facto, este rei, no livro de Isaías é protagonista (pela negativa) do grande milagre de YHWH que afastou os assírios de Jerusalém. Mas também é causa de um dos versículos mais belos e poderosos de Isaías. Acaz, apesar de uma palavra específica («O Senhor falou ainda a Acaz: “pede, para ti, um sinal”»: 7, 11), desobedece e não pede um sinal. Essa recusa, porém, produz uma profecia maravilhosa que, sempre nos tira a respiração: «O Senhor, por sua conta e risco, vos dará um sinal. Olhai: a jovem está grávida e vai dar à luz um filho, e há de pôr-lhe o nome de Emanuel» (Isaías, 7, 14). O Emanuel, o sonho dos sonhos; um menino, o sinal dos sinais.
É verdade que não conhecemos Acaz sem ler a segundo livro dos Reis e o livro das Crónicas; mas também é verdade que, para ter uma ideia correta de quem foi Acaz para a Bíblia, também é essencial a descrição que nos dá Isaías. Não para apurar a imagem de Acaz mais verdadeira, mas apenas para reconhecer que as duas são coessenciais. A verdade da Bíblia é sinfónica e esta sinfonia mantem-na viva e geradora nos milénios. E, se hoje quiséssemos experimentar compreender ou imaginar, como o humanismo bíblico julgaria a nossa economia, a nossa política, a nossa religião, teríamos necessidade das análises e das histórias que nos relatam as guerras, as conquistas, as intrigas de corte, as razões de estado; mas também teríamos necessidade, e sobretudo, das palavras proféticas de quem sabe ler a intimidade das mulheres e dos homens da história, das palavras de quem, entre os rumos e as feridas dos relatos, das atas dos conselhos de administração e os documentos dos magistrados, sabe ler coisas essenciais para compreender o sentido do que vivemos. Temos de procurar também as páginas sobre o Emanuel, caso contrário faltar-nos-á sempre a página mais importante dos nossos encontros pessoais e coletivos. Estes capítulos do segundo Livro dos Reis são uma escalada para o seu cume: a queda da Samaria, a capital do Reino no Norte, às mãos dos assírios, e a consequente dupla deportação (dos habitantes da Samaria para várias regiões distantes e de muitos povos e tribos, deportados na Samaria, para substituir os hebreus: cap. 17). Não foi uma deportação em massa (um documento assírio fala de 27.290 deportados, numa populaça de 800.000), mas foi um acontecimento social e “religiosamente” devastador, o acontecimento histórico mais dramático, apenas ultrapassado pela destruição de Jerusalém e do seu templo (em 587). A Bíblia lê a queda do Reino do Norte e, depois, a do Sul, como consequência da sua infidelidade a YHWH e idolatria do povo. Os profetas estão, substancialmente, de acordo com esta leitura histórica, embora, neles, o peso da infidelidade “económica e social” seja ainda mais enfatizado.
Há uma frase que encerra, na sua força profético-teológica, o sentido profundo daquele fim: «Foram atrás das coisas vazias e eles próprios se tornaram vazios» (17, 15). A palavra hebraica que o texto utiliza para este “nada” é uma palavra muito estimada e preciosa para a Bíblia: hevel. É a grande palavra de Qohélet: tudo é hevel, tudo é vaidade das vaidades. Tudo é um infinito nada. Mas hevel é também uma das palavras que os profetas (Jeremias) usam para definir os ídolos: os ídolos são vaidade, ninguém, um nada (hevel) que anulam o que os adoram. Seguindo o nada, tornamo-nos nada: a eterna luta entre a fé e niilismo, o niilismo que hoje está enchendo de nada o mundo, tendo-o esvaziado antes – os humanos não sabem resistir muito tempo nos templos vazios. Mas, também aqui, os profetas sabem dizer outras palavras além do nada. Sabem-no ver e compreender melhor que qualquer outro; mas, uma vez visto e compreendido, sabem ir mais além. O nada dos profetas é penúltima palavra. E, assim, enquanto anunciam a queda e condenam a infidelidade, conseguem ver a aurora dentro desta noite escura, a anunciar uma salvação. Amós, Isaías, Miqueias são os profetas do “resto de Israel”, da pequena esperança segura que diz que quanto está a morrer não morrerá para sempre, que há algo de vivo que continuará a história: «Talvez, então, o Senhor, Deus do universo, tenha compaixão do resto de José» (Amós 5, 15). Miqueias. «Eu te reunirei, ó Jacob, todo inteiro; congregarei o resto de Israel» (Miqueias 2, 12). E Oseias: «Como poderia abandonar-te, ó Efraim? Entregar-te, ó Israel? … O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (Oseias 11, 8). Poucas coisas na Bíblia (e na vida) são mais maravilhosas que a “profecia do resto”.
Estes profetas, portanto, disseram, em coro, a frase que será o coração da profecia de Jeremias, o cantor da destruição de Jerusalém: acabou uma história, mas não acabou a história. São impiedosos ao anunciar o fim de quanto tem de acabar, são radicais ao anunciar os erros e as causas profundas; mas as suas obras-primas são o Emanuel, a esposa que regressa, as entranhas que se comovem, o resto que voltará. E são-no porque nascem daquela crueldade e daquela radicalidade, sem as quais seriam apenas pobres páginas consoladoras. Sem profetas, não se regressa dos exílios a casa. Porque nos falta a capacidade de ver o resto que regressa enquanto tudo fala de desespero e de morte. Os profetas não veem o resto enquanto o anunciam, porque ainda não existe. A profecia é também o dom de gerar esperanças não-vãs, vendo-as quando ainda estão invisíveis. E, por isso, é bem comum necessário. Isaías apresentou-se ao encontro com Acaz com o seu filho, levando-lhe, como primeira mensagem, o seu nome. O filho de Isaías chamava-se Chear-Yachub, que significa “Um resto voltará” (Isaías 7, 3). Aquele profeta escreve a sua profecia do resto com o nome do filho. Para dizer algo maior que Isaías, aquela palavra devia tornar-se carne da sua carne. É o filho, o resto que volta e salva a nossa história, é o filho que diz que a vida é maior que qualquer morte. Em cada criança que nasce, a esperança vence hevel. A Bíblia sabia isto muito bem; nós temos de o reaprender rapidamente.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/11/2019
Rabbi Schmelke disse: "O pobre dá ao rico mais que o rico dá ao pobre. E mais que o pobre do rico, o rico precisa do pobre"
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche.
O dom não se opõe ao contrato e o dinheiro investido, ganho e gasto honestamente, não é menos nobre que as ofertas ao templo. Só juntos, os dons e os contratos nos podem salvar.
A confiança na honestidade das pessoas que nos circundam é um recurso essencial de qualquer economia e sociedade. Quando a presunção de honestidade dos outros – que os juristas chamam boa-fé – inspira as nossas relações, a economia melhora juntamente ao nosso bem-estar. Sem esta premissa de honestidade, são as desconfianças e o pessimismo antropológico a infestar os nossos locais de trabalho e de vida. Nenhuma gestão pode ser subsidiária – isto é, confiar a responsabilidade das escolhas a quem se encontra mais próximo do trabalho a realizar – se não somos capazes de pensar bem dos outros até evidente (e reiterada) prova em contrário. A benevolência, pensar bem dos outros, é a raiz da confiança. Valoriza os trabalhadores, fá-los sentir-se estimados, reforça a confiança nas organizações e, assim, melhora a eficácia e a eficiência da gestão.
Morta Atália, Joás torna-se rei e reina em Jerusalém durante quarenta anos. Para a Bíblia, Joás foi um rei justo e um reformador. É-nos apresentado como um restaurador e um reconstrutor do templo de Salomão: «Joás disse aos sacerdotes: “Todo o dinheiro das coisas consagradas trazido ao templo de IHWH… recebê-lo-ão os sacerdotes e empregá-lo-ão na reparação do templo do Senhor, onde quer que precise de ser reparado”» (2 Rs 12, 5-6). Passam os anos e, apesar das indicações de Joás, o templo não é reparado: «O rei chamou o sacerdote Joiadá e os outros sacerdotes, e disse-lhes: “Porque não fazeis a reparação do templo? Doravante não recebereis mais dinheiro do povo, mas entregá-lo-eis, para se proceder às reparações do templo”» (12, 8). Verificado o fracasso, o rei muda de política, tira dos sacerdotes a gestão dos trabalhos: «Os sacerdotes que guardavam a entrada do templo depositavam ali todo o dinheiro que era levado ao templo do Senhor» (12, 10).
Um bom governo das organizações entende, possivelmente não muito tarde, quando existe um conflito de interesse nos trabalhadores, quando os incentivos individuais não são compatíveis com os objetivos comuns. Estes sacerdotes, por mentalidade e missão (gerir o culto) estavam, objetivamente, numa condição que os levava a não usar bem o dinheiro que recebiam. O rei, que se mostra sábio, não continua a insistir no plano moral, pedindo aos sacerdotes uma conversão; pelo contrário, muda a organização, revê a estrutura objetiva e formal do financiamento e da gestão dos trabalhos do templo. Porque, quando há uma incompatibilidade objetiva entre a missão e o incentivo, continuar a insistir na dimensão moral não é eficaz e apenas cria frustração e conflitos. É preciso mudar imediatamente a estrutura organizativa objetiva e tirar as pessoas dos papéis e encargos não adequados.
Cria-se, assim, no templo um cofre onde serão lançadas as ofertas e a recolha e a administração desses fundos passam para a responsabilidade do rei e do sumo-sacerdote: «O sacerdote Joiadá tomou um cofre, fez-lhe um buraco na tampa e colocou-o junto do altar, à direita da entrada do templo do Senhor» (12, 10). É interessante verificar que quando o escriba do rei e o sumo-sacerdote recolhiam a prata deixada no cofre (porque cheio), «eles fundiam o dinheiro encontrado no templo» (12, 11). Encontramos aqui uma referência à função económica dos templos, na antiguidade. O templo não era apenas o centro do sistema fiscal e de “welfare”; em determinados períodos históricos, no templo também se fundiam os metais para cunhar moedas, desempenhando, portanto, funções de proto-bancos.
Neste trecho, vemos, em primeira mão, o nascimento de uma certa laicização da “fábrica do templo” de Jerusalém. Quanto antes estavaconfiado estritamente aos sacerdotes («era levado aos sacerdotes»), passa, agora, aos que seguem diretamente os trabalhos: o escriba e o sumo-sacerdote «entregavam-no aos encarregados das obras do templo do Senhor» (12, 12). O fracasso da primeira solução de confiança direta – os sacerdotes usavam as ofertas das pessoas para as urgências e para a gestão do culto e dos sacrifícios – produz uma reforma “laica” onde eram os trabalhadores e os técnicos a gerir os trabalhos do templo: uma primeira aplicação do princípio de subsidiariedade económica e administrativa: «os quais pagavam aos carpinteiros e operários que trabalhavam na casa do Senhor, bem como aos pedreiros e aos canteiros; compravam ainda a madeira e as pedras de cantaria necessárias às reparações, e cobriam todas as despesas decorrentes dos trabalhos» (12, 12-13). Assim, evitava-se que as entradas “fiscais” se usassem para fins impróprios: «Porém, não se faziam taças, nem facas, nem bacias, nem trombetas, nem utensílio algum de ouro ou de prata, com o dinheiro trazido do templo do Senhor. Antes, era integralmente dado aos empreiteiros que o empregavam nas reparações do templo do Senhor» (12, 14-15).
É interessante notar a valorização ética que o texto dá a esta mudança: «Não se pediam contas àqueles que recebiam o dinheiro, destinado à paga dos operários, porque eram homens que trabalhavam honestamente» (12, 16). Muito bonita esta honestidade. Delegar e aproximar a gestão do dinheiro de quem o utiliza para o seu fim específico reduziu as custas de monitorização («não se pediam contas…») e, assim, melhorou a eficácia global daquele dinheiro. Mas, antes, o rei tinha mudado algo de importante na estrutura organizativa: a confiança e a honestidade, para nascer e durar, devem ser possíveis e sustentáveis. Muitas confianças desaparecem por falta de reformas organizativas.
É significativo depois que a palavra ’aron, que o texto usa para indicar o cofre colocado no templo para recolher as ofertas, seja a mesma palavra da arca (da Aliança), o artefacto mais precioso de todos, o que continha as tábuas da Lei de Moisés, guardada na zona mais íntima e sagrada do templo, porque símbolo do pacto com o seu Deus diferente. A caixa que contém a prata é colocada dentro do templo. Esta prata, constituída por taças e ofertas (as ofertas também eram livres), não é impura, pode entrar no templo. A Bíblia sabe que há um dinheiro que é “mamona”, não porque, em si mesmo, seja um ídolo (seria demasiado banal), mas porque dá a quem a possui a ilusão de ser deus (toda a idolatria é ilusão): o nosso eu é o ídolo mais tremendo. Este dinheiro não deve entrar nos templos, porque não é amigo de Deus enquanto não é amigo do homem e dos pobres.
Mas também há um outro dinheiro. É certamente o dinheiro dado mas também a prata ganha com honestidade. O dinheiro do dom é amigo do dinheiro de muitos negociantes, porque o contrato não mata necessariamente o dom. Muitas vezes, dom e contrato são companheiros. Quando o samaritano deu ao estalajadeiro as duas moedas para que “cuidasse” do homem meio morto, estava a realizar um ato não menos nobre e espiritual de quem dava dinheiro no templo. E também o dinheiro que damos, hoje, em filantropia não é menos nobre e espiritual que o dinheiro dado por um empresário a um trabalhador num contrato de trabalho justo. As civilizações florescem quando o dom é aliado do contrato e murcham quando quem dá vê com ódio e rivalidade quem trabalha e produz riqueza. A arca da aliança não é a caixa forte de um banco, os seus nomes são diferentes; mas aproximam-se muito se aquele dinheiro nasceu na honestidade e é eticamente administrado e investido. Estão aqui a laicidade da fé e a espiritualidade da economia.
A última parte do reinado de Joás é marcada pela ameaça assíria contra Jerusalém. Joás, novo Salomão, tinha colocado a restauração e o cuidado do templo no centro da sua missão; agora, sente-se obrigado a ter uma atitude que parece negar o sentido de toda a sua vida: «Joás, rei de Judá, tomando os objetos sagrados oferecidos pelos seus antepassados, Josafat, Jorão e Acazias, reis de Judá, e os que ele mesmo tinha oferecido, assim como todo o ouro que se achava nas reservas do templo do Senhor e do palácio real, enviou tudo a Hazael, rei da Síria, o qual desistiu da sua campanha contra Jerusalém» (12, 19).
O templo é esvaziado de todos os tesouros acumulados por ele e pelos seus antecessores. A Bíblia fala-nos de Joás quase exclusivamente em relação ao templo – tinha-o reparado; tinha sido, ali, em criança, coroado rei; ali, tinha sido protegido e educado. A sua vida, toda votada ao templo, termina com o templo esvaziado. Uma outra mensagem sobre a gratuidade e sobre a incompletude da vida, que encontramos em muitas páginas da Bíblia. Passa-se uma vida ao serviço de uma obra que, por vocação e missão, torna-se o sentido da nossa existência. E depois, um dia, aquele tesouro, guardado e acumulado, deve ser mandado embora, e a vida parece perder sentido. Uma grande metáfora da existência humana, onde os tesouros, guardados e acumulados, devem ser restituídos, um pouco de cada vez, para nos tornar livres e pobres; é também metáfora de cada fundador ou responsável de comunidades, que gasta uma primeira, longa, parte da vida a reparar e a acrescentar o tesouro da comunidade, até ao dia em que terá de devolver tudo e viver, finalmente, a castidade.
Mas o relato também nos diz uma outra coisa: aquele tesouro salvou Jerusalém dos sírios que, pagos pelo tesouro, se afastaram. Talvez porque os tesouros que guardamos e cuidamos desempenham verdadeiramente a sua função não quando são acumulados e conservados, mas quando são usados para salvar alguém. Se Joás não tivesse conservado aqueles tesouros, não teria podido salvar a sua cidade no momento determinante do seu reinado. Nós vemos capitais acumulados com grandes sacrifícios desaparecerem em pouco tempo, devorados por advogados, bancos, fornecedores; mas, numa perspetiva diferente e verdadeira, talvez aqueles capitais, enquanto desaparecem, estejam a salvar-nos.
Enquanto se desenrolam as vicissitudes de Joás, rei de Judá, no reino do Norte regressa à cena, pela última vez, o profeta Eliseu: «Eliseu morreu e sepultaram-no» (13, 20). Encontrámo-lo jovem, a guiar doze juntas de bois. Era um jovem rico. Foi chamado por Elias, que lhe pôs pelos ombros o seu manto. Torna-se, primeiro, discípulo de profeta e, depois, ele próprio profeta. Seguiu a sua vocação até ao fim.
Diferentemente de Elias, não é raptado para o céu, mas morre, como nós, como todos. Mas a Bíblia dá-nos uma última cena para nos dizer que os profetas nunca morrem totalmente: «Mas aconteceu que um grupo de pessoas, que ia enterrar um homem, viu esses guerrilheiros e atirou o cadáver ao túmulo de Eliseu. O morto, porém, ao tocar nos ossos de Eliseu, voltou à vida e pôs-se de pé» (13, 21). Os ossos dos profetas sabem fazer ressuscitar. Nem sempre, nem todos, vivemos ao lado de profetas vivos que nos salvam das nossas mortes. A Bíblia, porém, conservou as palavras diferentes e os “ossos” vivos dos profetas. Estão ali, para todos, para nós. Basta apenas tocar-lhe para tornar a viver.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/11/2019
Rabbi Schmelke disse: "O pobre dá ao rico mais que o rico dá ao pobre. E mais que o pobre do rico, o rico precisa do pobre"
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche.
O dom não se opõe ao contrato e o dinheiro investido, ganho e gasto honestamente, não é menos nobre que as ofertas ao templo. Só juntos, os dons e os contratos nos podem salvar.
A confiança na honestidade das pessoas que nos circundam é um recurso essencial de qualquer economia e sociedade. Quando a presunção de honestidade dos outros – que os juristas chamam boa-fé – inspira as nossas relações, a economia melhora juntamente ao nosso bem-estar. Sem esta premissa de honestidade, são as desconfianças e o pessimismo antropológico a infestar os nossos locais de trabalho e de vida. Nenhuma gestão pode ser subsidiária – isto é, confiar a responsabilidade das escolhas a quem se encontra mais próximo do trabalho a realizar – se não somos capazes de pensar bem dos outros até evidente (e reiterada) prova em contrário. A benevolência, pensar bem dos outros, é a raiz da confiança. Valoriza os trabalhadores, fá-los sentir-se estimados, reforça a confiança nas organizações e, assim, melhora a eficácia e a eficiência da gestão.
Morta Atália, Joás torna-se rei e reina em Jerusalém durante quarenta anos. Para a Bíblia, Joás foi um rei justo e um reformador. É-nos apresentado como um restaurador e um reconstrutor do templo de Salomão: «Joás disse aos sacerdotes: “Todo o dinheiro das coisas consagradas trazido ao templo de IHWH… recebê-lo-ão os sacerdotes e empregá-lo-ão na reparação do templo do Senhor, onde quer que precise de ser reparado”» (2 Rs 12, 5-6). Passam os anos e, apesar das indicações de Joás, o templo não é reparado: «O rei chamou o sacerdote Joiadá e os outros sacerdotes, e disse-lhes: “Porque não fazeis a reparação do templo? Doravante não recebereis mais dinheiro do povo, mas entregá-lo-eis, para se proceder às reparações do templo”» (12, 8). Verificado o fracasso, o rei muda de política, tira dos sacerdotes a gestão dos trabalhos: «Os sacerdotes que guardavam a entrada do templo depositavam ali todo o dinheiro que era levado ao templo do Senhor» (12, 10).
Um bom governo das organizações entende, possivelmente não muito tarde, quando existe um conflito de interesse nos trabalhadores, quando os incentivos individuais não são compatíveis com os objetivos comuns. Estes sacerdotes, por mentalidade e missão (gerir o culto) estavam, objetivamente, numa condição que os levava a não usar bem o dinheiro que recebiam. O rei, que se mostra sábio, não continua a insistir no plano moral, pedindo aos sacerdotes uma conversão; pelo contrário, muda a organização, revê a estrutura objetiva e formal do financiamento e da gestão dos trabalhos do templo. Porque, quando há uma incompatibilidade objetiva entre a missão e o incentivo, continuar a insistir na dimensão moral não é eficaz e apenas cria frustração e conflitos. É preciso mudar imediatamente a estrutura organizativa objetiva e tirar as pessoas dos papéis e encargos não adequados.
Cria-se, assim, no templo um cofre onde serão lançadas as ofertas e a recolha e a administração desses fundos passam para a responsabilidade do rei e do sumo-sacerdote: «O sacerdote Joiadá tomou um cofre, fez-lhe um buraco na tampa e colocou-o junto do altar, à direita da entrada do templo do Senhor» (12, 10). É interessante verificar que quando o escriba do rei e o sumo-sacerdote recolhiam a prata deixada no cofre (porque cheio), «eles fundiam o dinheiro encontrado no templo» (12, 11). Encontramos aqui uma referência à função económica dos templos, na antiguidade. O templo não era apenas o centro do sistema fiscal e de “welfare”; em determinados períodos históricos, no templo também se fundiam os metais para cunhar moedas, desempenhando, portanto, funções de proto-bancos.
Neste trecho, vemos, em primeira mão, o nascimento de uma certa laicização da “fábrica do templo” de Jerusalém. Quanto antes estavaconfiado estritamente aos sacerdotes («era levado aos sacerdotes»), passa, agora, aos que seguem diretamente os trabalhos: o escriba e o sumo-sacerdote «entregavam-no aos encarregados das obras do templo do Senhor» (12, 12). O fracasso da primeira solução de confiança direta – os sacerdotes usavam as ofertas das pessoas para as urgências e para a gestão do culto e dos sacrifícios – produz uma reforma “laica” onde eram os trabalhadores e os técnicos a gerir os trabalhos do templo: uma primeira aplicação do princípio de subsidiariedade económica e administrativa: «os quais pagavam aos carpinteiros e operários que trabalhavam na casa do Senhor, bem como aos pedreiros e aos canteiros; compravam ainda a madeira e as pedras de cantaria necessárias às reparações, e cobriam todas as despesas decorrentes dos trabalhos» (12, 12-13). Assim, evitava-se que as entradas “fiscais” se usassem para fins impróprios: «Porém, não se faziam taças, nem facas, nem bacias, nem trombetas, nem utensílio algum de ouro ou de prata, com o dinheiro trazido do templo do Senhor. Antes, era integralmente dado aos empreiteiros que o empregavam nas reparações do templo do Senhor» (12, 14-15).
É interessante notar a valorização ética que o texto dá a esta mudança: «Não se pediam contas àqueles que recebiam o dinheiro, destinado à paga dos operários, porque eram homens que trabalhavam honestamente» (12, 16). Muito bonita esta honestidade. Delegar e aproximar a gestão do dinheiro de quem o utiliza para o seu fim específico reduziu as custas de monitorização («não se pediam contas…») e, assim, melhorou a eficácia global daquele dinheiro. Mas, antes, o rei tinha mudado algo de importante na estrutura organizativa: a confiança e a honestidade, para nascer e durar, devem ser possíveis e sustentáveis. Muitas confianças desaparecem por falta de reformas organizativas.
É significativo depois que a palavra ’aron, que o texto usa para indicar o cofre colocado no templo para recolher as ofertas, seja a mesma palavra da arca (da Aliança), o artefacto mais precioso de todos, o que continha as tábuas da Lei de Moisés, guardada na zona mais íntima e sagrada do templo, porque símbolo do pacto com o seu Deus diferente. A caixa que contém a prata é colocada dentro do templo. Esta prata, constituída por taças e ofertas (as ofertas também eram livres), não é impura, pode entrar no templo. A Bíblia sabe que há um dinheiro que é “mamona”, não porque, em si mesmo, seja um ídolo (seria demasiado banal), mas porque dá a quem a possui a ilusão de ser deus (toda a idolatria é ilusão): o nosso eu é o ídolo mais tremendo. Este dinheiro não deve entrar nos templos, porque não é amigo de Deus enquanto não é amigo do homem e dos pobres.
Mas também há um outro dinheiro. É certamente o dinheiro dado mas também a prata ganha com honestidade. O dinheiro do dom é amigo do dinheiro de muitos negociantes, porque o contrato não mata necessariamente o dom. Muitas vezes, dom e contrato são companheiros. Quando o samaritano deu ao estalajadeiro as duas moedas para que “cuidasse” do homem meio morto, estava a realizar um ato não menos nobre e espiritual de quem dava dinheiro no templo. E também o dinheiro que damos, hoje, em filantropia não é menos nobre e espiritual que o dinheiro dado por um empresário a um trabalhador num contrato de trabalho justo. As civilizações florescem quando o dom é aliado do contrato e murcham quando quem dá vê com ódio e rivalidade quem trabalha e produz riqueza. A arca da aliança não é a caixa forte de um banco, os seus nomes são diferentes; mas aproximam-se muito se aquele dinheiro nasceu na honestidade e é eticamente administrado e investido. Estão aqui a laicidade da fé e a espiritualidade da economia.
A última parte do reinado de Joás é marcada pela ameaça assíria contra Jerusalém. Joás, novo Salomão, tinha colocado a restauração e o cuidado do templo no centro da sua missão; agora, sente-se obrigado a ter uma atitude que parece negar o sentido de toda a sua vida: «Joás, rei de Judá, tomando os objetos sagrados oferecidos pelos seus antepassados, Josafat, Jorão e Acazias, reis de Judá, e os que ele mesmo tinha oferecido, assim como todo o ouro que se achava nas reservas do templo do Senhor e do palácio real, enviou tudo a Hazael, rei da Síria, o qual desistiu da sua campanha contra Jerusalém» (12, 19).
O templo é esvaziado de todos os tesouros acumulados por ele e pelos seus antecessores. A Bíblia fala-nos de Joás quase exclusivamente em relação ao templo – tinha-o reparado; tinha sido, ali, em criança, coroado rei; ali, tinha sido protegido e educado. A sua vida, toda votada ao templo, termina com o templo esvaziado. Uma outra mensagem sobre a gratuidade e sobre a incompletude da vida, que encontramos em muitas páginas da Bíblia. Passa-se uma vida ao serviço de uma obra que, por vocação e missão, torna-se o sentido da nossa existência. E depois, um dia, aquele tesouro, guardado e acumulado, deve ser mandado embora, e a vida parece perder sentido. Uma grande metáfora da existência humana, onde os tesouros, guardados e acumulados, devem ser restituídos, um pouco de cada vez, para nos tornar livres e pobres; é também metáfora de cada fundador ou responsável de comunidades, que gasta uma primeira, longa, parte da vida a reparar e a acrescentar o tesouro da comunidade, até ao dia em que terá de devolver tudo e viver, finalmente, a castidade.
Mas o relato também nos diz uma outra coisa: aquele tesouro salvou Jerusalém dos sírios que, pagos pelo tesouro, se afastaram. Talvez porque os tesouros que guardamos e cuidamos desempenham verdadeiramente a sua função não quando são acumulados e conservados, mas quando são usados para salvar alguém. Se Joás não tivesse conservado aqueles tesouros, não teria podido salvar a sua cidade no momento determinante do seu reinado. Nós vemos capitais acumulados com grandes sacrifícios desaparecerem em pouco tempo, devorados por advogados, bancos, fornecedores; mas, numa perspetiva diferente e verdadeira, talvez aqueles capitais, enquanto desaparecem, estejam a salvar-nos.
Enquanto se desenrolam as vicissitudes de Joás, rei de Judá, no reino do Norte regressa à cena, pela última vez, o profeta Eliseu: «Eliseu morreu e sepultaram-no» (13, 20). Encontrámo-lo jovem, a guiar doze juntas de bois. Era um jovem rico. Foi chamado por Elias, que lhe pôs pelos ombros o seu manto. Torna-se, primeiro, discípulo de profeta e, depois, ele próprio profeta. Seguiu a sua vocação até ao fim.
Diferentemente de Elias, não é raptado para o céu, mas morre, como nós, como todos. Mas a Bíblia dá-nos uma última cena para nos dizer que os profetas nunca morrem totalmente: «Mas aconteceu que um grupo de pessoas, que ia enterrar um homem, viu esses guerrilheiros e atirou o cadáver ao túmulo de Eliseu. O morto, porém, ao tocar nos ossos de Eliseu, voltou à vida e pôs-se de pé» (13, 21). Os ossos dos profetas sabem fazer ressuscitar. Nem sempre, nem todos, vivemos ao lado de profetas vivos que nos salvam das nossas mortes. A Bíblia, porém, conservou as palavras diferentes e os “ossos” vivos dos profetas. Estão ali, para todos, para nós. Basta apenas tocar-lhe para tornar a viver.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/11/2019
«Porque assim encontraram escrito na sua Lei: estabelecer acima de vós o rei (Dt 17, 15) e não uma rainha»
David Franco-Mendes, Il castigo di AtaliaA triste história da rainha Atália oferece-nos a oportunidade de refletir sobre muitas páginas suas (e da vivência humana) que não foram escritas pelas vítimas. E sobre a necessidade de salvar, antes de mais, as e os que não têm voz.
As comunidades ideais nascem, frequentemente, da obra e da palavra dos profetas. Movimentos carismáticos, congregações religiosas, mas também movimentos políticos, culturais, associações, nascem porque uma ou mais pessoas, com dons proféticos, as geraram e as fizeram crescer. À volta destas pessoas “especiais”, depois, reúnem-se outras pessoas, chamadas pela mesma voz, que reconhecem, nos fundadores, um papel diferente e único, e tendem a conformar-se às suas personalidades carismáticas. Estas comunidades fundadas por profetas não são, porém, as únicas comunidades ideais ou espirituais. Há outras que nascem à volta de um pacto e uma regra. São estas realidades coletivas que não são geradas por profetas, mas por uma regra, vivida e transmitida de geração em geração.
O movimento espiritual da segunda metade do século XX, conheceu quase exclusivamente comunidades fundadas por profetas, ao passo que, nos séculos anteriores, as comunidades espirituais se constituíam, mais habitualmente, à volta de regras. Aqui, a personalidade e o carisma do fundador eram importantes, mas muito mais o era a regra, porque permitia que, da personalidade do fundador, se passasse ao equilíbrio e à sustentabilidade da vida comunitária, a ponto de, frequentemente, as regras comunitárias serem tomadas de regras antigas, já existentes (beneditinos, agostinianos…). Nestas comunidades-regra, o modelo, a exemplaridade, não é formado pela pessoa do profeta, mas pela regra, que não coincide com a vida de ninguém, mas inspira ou modela a vida de todos. Quando um novo membro chega a estas comunidades, o pacto e a promessa consistem em conformar a sua vida à regra comunitária, não em imitar o fundador ou o líder carismático como, de facto, acontece nas comunidades-profeta. A história mostra-nos que as comunidades-regra são mais resilientes e duradouras que as comunidades-profeta.
«Atália, mãe de Acazias, ao ver seu filho morto, decidiu exterminar toda a descendência real. Joseba, porém, filha do rei Jorão e irmã de Acazias, tomou Joás, filho de Acazias, e livrou-o do massacre dos filhos do rei, escondendo-o, com a sua ama-de-leite, no quarto de dormir.
Ocultaram-no, assim, de Atália, de modo que pôde escapar à morte. Esteve seis anos escondido com Joseba no templo de YHWH, no tempo em que Atália reinava no país» (2Rs 11, 1-3). O segundo livro dos Reis, depois do ciclo do rei sanguinário Jeú, muda para o Reino do Sul (Judá) e mostra-nos uma rainha, sanguinária como Jezabel, que o texto hebraico (massorético) nos apresenta como sua mãe (8, 18). Atália, mulher da dinastia do Norte, interrompe a sucessão davídica em Judá. Esta é retomada graças a um menino salvo da morte por uma outra mulher. A grande história da salvação está dependurada no fragilíssimo fio de um menino – como Moisés, como o Emanuel, como Jesus. Este menino torna-se o objeto e o sujeito de uma insurreição contra a rainha Atália, orquestrada por Joiadá, um sacerdote do templo de Jerusalém.
A rainha Atália percebe que, no templo, está a acontecer algo de importante. Dirige-se para lá e compreende: «Atália rasgou as vestes, gritando: “Conspiração! Conspiração!”» (11, 14). O sacerdote Joiadá revela imediatamente as suas intenções. Manda os seus homens segui-la até sua casa: «Agarraram-na e ao chegarem ao palácio real, pelo caminho da entrada dos cavalos, ali a mataram» (11, 16).
Para a teologia e para a economia do relato, a história da sanguinária Atália conclui-se aqui. A ordem é restabelecida; Joás, um (alegado) sucessor de David, reina de novo em Jerusalém. A escola sacerdotal, que organizou a última versão do Livro dos Reis, alcançou o seu objetivo teológico e narrativo. Mas nós não nos podemos quedar aqui. Se queremos tentar um olhar menos ideológico sobre aqueles tristes séculos, demasiado longínquos, temos de escavar mais profundamente o texto.
Não são as vítimas a contar a história. Os desprezados, os escorraçados, os expulsos não conseguem dar a sua versão dos factos. No mundo antigo, não eram as mulheres a escrever os relatos de que eram protagonistas ou comparsas. E, se elas os tivessem escrito, ter-nos-iam contado coisas diversas, muito diferentes das que lemos. Porque, quando os homens contam histórias de poder, onde os protagonistas são as mulheres, quase sempre projetam nelas as suas próprias dinâmicas, doenças, palavras que as mulheres reais não gostam e não querem, a não ser quando obrigadas a serem como os homens. As mulheres que tiveram e têm papéis de poder e de responsabilidade, em organizações essencialmente masculinas, conhecem estas típicas resistência e dor que, por vezes, se torna tão intensa e longa a ponto de as levar a deixar aqueles papéis de comando. Ainda hoje, nas instituições e nas empresas, existem muito poucas mulheres, não só porque elas não conseguem chegar às funções de comando, administradas e geridas por homens; são poucas porque algumas, que poderiam, não querem chegar a esses lugares estranhos e hostis, e porque algumas, entre as poucas que lá chegaram, fogem por causa da muita dor. As boas batalhas do feminismo, de hoje e de amanhã, deverão concentrar-se não só nas quotas de mulheres, nos lugares de poder, mas na transformação antropológica e relacional destes lugares, pensados e habitados só por homens, em lugares vivíveis e possíveis também para as mulheres. Este trabalho, que requer um grande investimento cultural e teórico nas ciências económicas e administrativas, está a tornar-se cada dia mais urgente.
Antes de mais, o nome: Atália significa “YHWH é exaltado”. Diferentemente de Jezabel, Atália não é uma idólatra. Portanto, não é difícil apurar que a estrutura narrativa da história de Atália é construída artificialmente para a tornar muito semelhante à de sua “mãe”, Jezabel. É um relato “ao espelho”. Como Jezabel tinha exterminado os profetas de YHWH, Atália extermina a família real; ali, um profeta, Abdias tinha escondido e salvo cem profetas do extermínio de Jezabel (1Rs 18, 13), aqui, uma mulher (Joseba) escondeu e salvou um menino do massacre de Atália; Jezabel inclinou-se à janela para ver o novo rei usurpador (Jeú) e é morta, Atália aparece no templo (“olhou”) e, também ela, é morta. Portanto, não estaremos a forçar muito o sentido do texto bíblico se dissermos que a crueldade de Atália é, essencialmente, uma crueldade “teológica”, uma maldade construída literariamente por quem tinha como intenção principal restabelecer a continuidade davídica, fechando o parêntesis representado pela rainha estrangeira do Norte, da família de Omeri, inimiga. Atália era uma mulher do norte, tornada rainha em consequência de alianças políticas. Foi a única mulher a ser rainha, na história do Reino de Israel. Era viúva e o seu filho tinha sido assassinado por um rei usurpador do Norte. Nós nunca poderemos imaginar como poderia ser a vida de uma mulher, rainha e viúva, num mundo de homens. Quantas e quais pressões, ameaças, os olhares violentos, as chantagens. Se aquelas páginas dos Livros dos Reis tivessem sido escritas por Atália ou alguma irmã sua, talvez nos tivessem relatado que Atália não matou nenhum menino, porque o massacre dos inocentes são uma especialidade típica dos homens e das suas fantasias literárias.
A Bíblia, sabemo-lo e dissemo-lo muitas vezes, conhece páginas esplêndidas sobre as mulheres. A história de Atália, porém, não está entre elas. Aquela rainha do Norte foi, com toda a probabilidade, eliminada por uma conjura dos sacerdotes do templo – e não é de excluir que aquele grito “conspiração, conspiração” sejam as poucas palavras originais conservadas no texto. Atália era uma pessoa incómoda em Judá, porque originária do Norte e ainda mais porque mulher. Também pode dar-se que Atália tenha mudado e se tenha pervertido pelo poder, a ponto de se tornar como os reis homens e, assim, ordenar o massacre dos inocentes. Não o creio, e penso até que devemos ler esta história de Atália com a mesma pietas com que se lê a história de uma vítima, não com o desdém com que lemos as vicissitudes dos carrascos. Porque a Bíblia não é um livro de relatos históricos. É um texto que nos pede sempre para entrar nas histórias que lemos, fazer as nossas escolhas, dizer de que lado queremos estar. Geralmente, quase todos estão da parte dos redatores do texto e, por isso, com o sacerdote Joiadá e, com ele, condenamos Atália, a sanguinária. Quase todos.
Jean Racine, na sua esplêndida tragédia Athalie (1691), faz aparecer a Atália, em sonho, o pequeno Joás, que a trespassa com uma espada. Um seu conselheiro, sabendo do sonho, impele Atália a matar o menino. Mas ela chama o pequeno, fala com ele, fica impressionada com a sua inteligência e não o mata. Aquela clemência, aquela pietas de mãe em relação com uma criança, decretou, mais tarde, a sua morte. Por vezes, são os artistas, sobretudo os maiores, a dar à Bíblia e aos seus personagens a humanidade que os seus redatores nem sempre possuem. E, se queremos salvar a Bíblia das suas páginas menos luminosas e, por vezes, escuríssimas, devemos lê-la na companhia dos artistas que, sem moralismos, a ajudaram a tornar-se melhor.
Antes e depois da morte de Atalia, o sacerdote Joiadá celebra a aliança restabelecida e fá-lo em duas fases. Antes da morte de Atália, «Joiadá trouxe para fora o filho do rei, pôs-lhe o diadema na cabeça e entregou-lhe o documento da aliança. Proclamaram-no rei, ungiram-no e todos o aplaudiram, gritando: “Viva o rei!”» (11, 12). Ao menino, consagrado rei, é entregue o “testemunho” (edut), talvez uma cópia da Lei de Moisés, o sacramento da aliança e da promessa. Na cena não estão os profetas, nem está Eliseu; tudo se desenrola no templo, sob a bandeira da aliança.
Na Bíblia, os momentos fundacionais são, frequentemente, marcados pela ação dos profetas. Por vezes, porém, como neste caso, é um pacto que consagra algumas passagens determinantes da vida do povo e das comunidades, a começar pela Aliança com YHWH, celebrada por Abraão e por Moisés. Depois, após o assassinato de Atália, «Joiadá fez uma aliança com YHWH, o rei e o povo, segundo a qual o povo devia ser o povo do Senhor. Fez também uma aliança entre o rei e o povo» (11, 17). O novo pacto está concluido. E este pacto, para o escritor, é mais importamte que o sangue de Atália, é mais importante que tudo.
«Todo o povo da terra se alegrou e a cidade ficou em paz. Atália tinha sido morta à espada no palácio real» (11, 20). A cidade «ficou em paz». Mas não podemos «ficar em paz» diante de uma mulher «morta à espada no palácio real». Não nos bastam a teologia e a economia do relato. Temos o dever conseguir salvar Atália. Porque, se não fazemos este exercício espiritual enquanto lemos estas páginas, dificilmente conseguiremos salvar as muitas Atálias que continuam a ser condenadas, apenas porque mulheres, apenas porque vítimas.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/11/2019
«Porque assim encontraram escrito na sua Lei: estabelecer acima de vós o rei (Dt 17, 15) e não uma rainha»
David Franco-Mendes, Il castigo di AtaliaA triste história da rainha Atália oferece-nos a oportunidade de refletir sobre muitas páginas suas (e da vivência humana) que não foram escritas pelas vítimas. E sobre a necessidade de salvar, antes de mais, as e os que não têm voz.
As comunidades ideais nascem, frequentemente, da obra e da palavra dos profetas. Movimentos carismáticos, congregações religiosas, mas também movimentos políticos, culturais, associações, nascem porque uma ou mais pessoas, com dons proféticos, as geraram e as fizeram crescer. À volta destas pessoas “especiais”, depois, reúnem-se outras pessoas, chamadas pela mesma voz, que reconhecem, nos fundadores, um papel diferente e único, e tendem a conformar-se às suas personalidades carismáticas. Estas comunidades fundadas por profetas não são, porém, as únicas comunidades ideais ou espirituais. Há outras que nascem à volta de um pacto e uma regra. São estas realidades coletivas que não são geradas por profetas, mas por uma regra, vivida e transmitida de geração em geração.
O movimento espiritual da segunda metade do século XX, conheceu quase exclusivamente comunidades fundadas por profetas, ao passo que, nos séculos anteriores, as comunidades espirituais se constituíam, mais habitualmente, à volta de regras. Aqui, a personalidade e o carisma do fundador eram importantes, mas muito mais o era a regra, porque permitia que, da personalidade do fundador, se passasse ao equilíbrio e à sustentabilidade da vida comunitária, a ponto de, frequentemente, as regras comunitárias serem tomadas de regras antigas, já existentes (beneditinos, agostinianos…). Nestas comunidades-regra, o modelo, a exemplaridade, não é formado pela pessoa do profeta, mas pela regra, que não coincide com a vida de ninguém, mas inspira ou modela a vida de todos. Quando um novo membro chega a estas comunidades, o pacto e a promessa consistem em conformar a sua vida à regra comunitária, não em imitar o fundador ou o líder carismático como, de facto, acontece nas comunidades-profeta. A história mostra-nos que as comunidades-regra são mais resilientes e duradouras que as comunidades-profeta.
«Atália, mãe de Acazias, ao ver seu filho morto, decidiu exterminar toda a descendência real. Joseba, porém, filha do rei Jorão e irmã de Acazias, tomou Joás, filho de Acazias, e livrou-o do massacre dos filhos do rei, escondendo-o, com a sua ama-de-leite, no quarto de dormir.
Ocultaram-no, assim, de Atália, de modo que pôde escapar à morte. Esteve seis anos escondido com Joseba no templo de YHWH, no tempo em que Atália reinava no país» (2Rs 11, 1-3). O segundo livro dos Reis, depois do ciclo do rei sanguinário Jeú, muda para o Reino do Sul (Judá) e mostra-nos uma rainha, sanguinária como Jezabel, que o texto hebraico (massorético) nos apresenta como sua mãe (8, 18). Atália, mulher da dinastia do Norte, interrompe a sucessão davídica em Judá. Esta é retomada graças a um menino salvo da morte por uma outra mulher. A grande história da salvação está dependurada no fragilíssimo fio de um menino – como Moisés, como o Emanuel, como Jesus. Este menino torna-se o objeto e o sujeito de uma insurreição contra a rainha Atália, orquestrada por Joiadá, um sacerdote do templo de Jerusalém.
A rainha Atália percebe que, no templo, está a acontecer algo de importante. Dirige-se para lá e compreende: «Atália rasgou as vestes, gritando: “Conspiração! Conspiração!”» (11, 14). O sacerdote Joiadá revela imediatamente as suas intenções. Manda os seus homens segui-la até sua casa: «Agarraram-na e ao chegarem ao palácio real, pelo caminho da entrada dos cavalos, ali a mataram» (11, 16).
Para a teologia e para a economia do relato, a história da sanguinária Atália conclui-se aqui. A ordem é restabelecida; Joás, um (alegado) sucessor de David, reina de novo em Jerusalém. A escola sacerdotal, que organizou a última versão do Livro dos Reis, alcançou o seu objetivo teológico e narrativo. Mas nós não nos podemos quedar aqui. Se queremos tentar um olhar menos ideológico sobre aqueles tristes séculos, demasiado longínquos, temos de escavar mais profundamente o texto.
Não são as vítimas a contar a história. Os desprezados, os escorraçados, os expulsos não conseguem dar a sua versão dos factos. No mundo antigo, não eram as mulheres a escrever os relatos de que eram protagonistas ou comparsas. E, se elas os tivessem escrito, ter-nos-iam contado coisas diversas, muito diferentes das que lemos. Porque, quando os homens contam histórias de poder, onde os protagonistas são as mulheres, quase sempre projetam nelas as suas próprias dinâmicas, doenças, palavras que as mulheres reais não gostam e não querem, a não ser quando obrigadas a serem como os homens. As mulheres que tiveram e têm papéis de poder e de responsabilidade, em organizações essencialmente masculinas, conhecem estas típicas resistência e dor que, por vezes, se torna tão intensa e longa a ponto de as levar a deixar aqueles papéis de comando. Ainda hoje, nas instituições e nas empresas, existem muito poucas mulheres, não só porque elas não conseguem chegar às funções de comando, administradas e geridas por homens; são poucas porque algumas, que poderiam, não querem chegar a esses lugares estranhos e hostis, e porque algumas, entre as poucas que lá chegaram, fogem por causa da muita dor. As boas batalhas do feminismo, de hoje e de amanhã, deverão concentrar-se não só nas quotas de mulheres, nos lugares de poder, mas na transformação antropológica e relacional destes lugares, pensados e habitados só por homens, em lugares vivíveis e possíveis também para as mulheres. Este trabalho, que requer um grande investimento cultural e teórico nas ciências económicas e administrativas, está a tornar-se cada dia mais urgente.
Antes de mais, o nome: Atália significa “YHWH é exaltado”. Diferentemente de Jezabel, Atália não é uma idólatra. Portanto, não é difícil apurar que a estrutura narrativa da história de Atália é construída artificialmente para a tornar muito semelhante à de sua “mãe”, Jezabel. É um relato “ao espelho”. Como Jezabel tinha exterminado os profetas de YHWH, Atália extermina a família real; ali, um profeta, Abdias tinha escondido e salvo cem profetas do extermínio de Jezabel (1Rs 18, 13), aqui, uma mulher (Joseba) escondeu e salvou um menino do massacre de Atália; Jezabel inclinou-se à janela para ver o novo rei usurpador (Jeú) e é morta, Atália aparece no templo (“olhou”) e, também ela, é morta. Portanto, não estaremos a forçar muito o sentido do texto bíblico se dissermos que a crueldade de Atália é, essencialmente, uma crueldade “teológica”, uma maldade construída literariamente por quem tinha como intenção principal restabelecer a continuidade davídica, fechando o parêntesis representado pela rainha estrangeira do Norte, da família de Omeri, inimiga. Atália era uma mulher do norte, tornada rainha em consequência de alianças políticas. Foi a única mulher a ser rainha, na história do Reino de Israel. Era viúva e o seu filho tinha sido assassinado por um rei usurpador do Norte. Nós nunca poderemos imaginar como poderia ser a vida de uma mulher, rainha e viúva, num mundo de homens. Quantas e quais pressões, ameaças, os olhares violentos, as chantagens. Se aquelas páginas dos Livros dos Reis tivessem sido escritas por Atália ou alguma irmã sua, talvez nos tivessem relatado que Atália não matou nenhum menino, porque o massacre dos inocentes são uma especialidade típica dos homens e das suas fantasias literárias.
A Bíblia, sabemo-lo e dissemo-lo muitas vezes, conhece páginas esplêndidas sobre as mulheres. A história de Atália, porém, não está entre elas. Aquela rainha do Norte foi, com toda a probabilidade, eliminada por uma conjura dos sacerdotes do templo – e não é de excluir que aquele grito “conspiração, conspiração” sejam as poucas palavras originais conservadas no texto. Atália era uma pessoa incómoda em Judá, porque originária do Norte e ainda mais porque mulher. Também pode dar-se que Atália tenha mudado e se tenha pervertido pelo poder, a ponto de se tornar como os reis homens e, assim, ordenar o massacre dos inocentes. Não o creio, e penso até que devemos ler esta história de Atália com a mesma pietas com que se lê a história de uma vítima, não com o desdém com que lemos as vicissitudes dos carrascos. Porque a Bíblia não é um livro de relatos históricos. É um texto que nos pede sempre para entrar nas histórias que lemos, fazer as nossas escolhas, dizer de que lado queremos estar. Geralmente, quase todos estão da parte dos redatores do texto e, por isso, com o sacerdote Joiadá e, com ele, condenamos Atália, a sanguinária. Quase todos.
Jean Racine, na sua esplêndida tragédia Athalie (1691), faz aparecer a Atália, em sonho, o pequeno Joás, que a trespassa com uma espada. Um seu conselheiro, sabendo do sonho, impele Atália a matar o menino. Mas ela chama o pequeno, fala com ele, fica impressionada com a sua inteligência e não o mata. Aquela clemência, aquela pietas de mãe em relação com uma criança, decretou, mais tarde, a sua morte. Por vezes, são os artistas, sobretudo os maiores, a dar à Bíblia e aos seus personagens a humanidade que os seus redatores nem sempre possuem. E, se queremos salvar a Bíblia das suas páginas menos luminosas e, por vezes, escuríssimas, devemos lê-la na companhia dos artistas que, sem moralismos, a ajudaram a tornar-se melhor.
Antes e depois da morte de Atalia, o sacerdote Joiadá celebra a aliança restabelecida e fá-lo em duas fases. Antes da morte de Atália, «Joiadá trouxe para fora o filho do rei, pôs-lhe o diadema na cabeça e entregou-lhe o documento da aliança. Proclamaram-no rei, ungiram-no e todos o aplaudiram, gritando: “Viva o rei!”» (11, 12). Ao menino, consagrado rei, é entregue o “testemunho” (edut), talvez uma cópia da Lei de Moisés, o sacramento da aliança e da promessa. Na cena não estão os profetas, nem está Eliseu; tudo se desenrola no templo, sob a bandeira da aliança.
Na Bíblia, os momentos fundacionais são, frequentemente, marcados pela ação dos profetas. Por vezes, porém, como neste caso, é um pacto que consagra algumas passagens determinantes da vida do povo e das comunidades, a começar pela Aliança com YHWH, celebrada por Abraão e por Moisés. Depois, após o assassinato de Atália, «Joiadá fez uma aliança com YHWH, o rei e o povo, segundo a qual o povo devia ser o povo do Senhor. Fez também uma aliança entre o rei e o povo» (11, 17). O novo pacto está concluido. E este pacto, para o escritor, é mais importamte que o sangue de Atália, é mais importante que tudo.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 27/10/2019
«Uma teoria puramente sacrificial dos evangelhos deve basear-se na Carta aos Hebreus. Mas a Epístola não consegue, creio, captar a verdadeira singularidade da paixão de Cristo e deixa na sombra a absoluta especificidade do Cristianismo»
René Girard, Il capro espiatorio [O bode expiatório]
A relação entre religiões e violência é um grande tema da Bíblia e da vida, que aborda argumentos de extrema atualidade como a meritocracia e a teologia da expiação.
A ideologia do mérito é também ideologia do demérito, os sistemas que premeiam os merecedores devem, necessariamente punir os desmerecedores e toda a mérito-cracia é também uma demérito-fobia. Sem punir quem mereceu as punições não é possível premiar quem mereceu os prémios. Mas assim como somos muito mais capazes de encontrar culpas (nos outros) que méritos, os sistemas meritocráticos superabundam de penas porque, na base de qualquer sistema meritocrático, está um profundo pessimismo antropológico, mesmo quando mascarado com belas palavras sobre virtudes e prémios. Porque, premiando apenas os “vencedores” e quem atinge o cume do monte delicioso (a meritocracia é, necessariamente, hierárquica e posicional), esquece-se que somos todos, em modos diversos, merecedores, que toda a pessoa pode ter – e tem – um seu caminho de excelência que não pode nem deve ser confrontado hierarquicamente com os outros nem medido com indicadores únicos e iguais para todos.
Não é, certamente, uma coincidência que o crescimento da cultura do business, o primeiro veículo da meritocracia, seja, hoje, acompanhado por uma nova época do justicialismo e do aperto das penas. «O profeta Eliseu chamou um dos filhos dos profetas e disse-lhe: “Aperta o teu cinto e parte para Ramot de Guilead com este frasco de óleo. Quando lá chegares, procurarás Jeú (…) tomando o frasco de óleo, derramá-lo-ás sobre a sua cabeça, dizendo: ‘Isto diz YHWH: Eu te consagro rei de Israel’”» (2Rs 9, 1-3).
Em Israel, reinava Jorão. Eliseu reconhece e legitima uma insurreição, consagra e encoraja o que hoje chamamos um golpe de Estado, que o texto nos apresenta também como reforma religiosa javista e anti idolátrica. A saga de Jeú, marcada por cenas de violência brutal, obriga-nos a refletir num grande tema que atravessa toda a Bíblia: a relação entre religião e violência, o paradoxo de um Deus que parece servir-se da violência dos homens para realizar o seu desígnio de salvação. Eliseu, para realizar uma profecia de Elias (1Rs 19, 16), manda um profeta, seu discípulo, consagrar um dos reis mais cínicos e sanguinários de Israel, dá a sua bênção a um homem que, para repor a pureza do culto de YHWH em Israel, se manchará com crimes monstruosos, em “nome do Senhor”. A necessidade radical da justiça divina, que também marca toda a Bíblia – YHWH é um Deus diferente verdadeiro, porque justo – traz consigo uma lei simétrica da retaliação, onde cada um recebe o que mereceu, no bem e no mal. Deus é justo porque premeia os bons e pune os maus.É assim que os homens começaram a formar o sentido de justiça que, depois, escreveu códices e constituições, que superaram, em humanidade, muitas das leis inscritas na Bíblia e nos outros livros sagrados. A Bíblia foi usada para justificar as guerras santas e para os genocídios dos infiéis e dos idólatras, porque existem muitas páginas bíblicas que se prestam perfeitamente a este fim. E, assim, no fim da saga de Jeú, lemos: «YHWH disse-lhe: “Já que fizeste o que é agradável aos meus olhos, (…) os teus filhos ocuparão o trono de Israel até à quarta geração”» (2Rs 10, 30). Fazendo o que é agradável aos meus olhos: isto é, o assassinato de Jorão, de Acazias, rei de Judá, de Jesabel e setenta crianças de Acab decapitadas, o extermínio de todos os parentes de Acazias, de todos os fiéis a Jorão, na Samaria, de todos os fiéis e Baal.
Há outros dois temas que cruzam estes capítulos tremendos: o shalom e a lealdade errada. No capítulo 9, a palavra shalom aparece várias vezes. Quanto Jeú foi ao encontro de Jorão, ele encontrava-se em Jesrael a tratar-se, pois fora ferido. Mal o rei o vê, pergunta-lhe: «Está tudo bem, Jeú?», isto é: Jeú, trazes shalom? Jeú responde-lhe: «Como poderá estar tudo bem, enquanto durar a prostituição de Jezabel, tua mãe, e as suas muitas magias?» (9, 22). O que era o shalom, na cultura bíblica? Em hebraico, shalom é uma palavra muito rica. O significado imediato é paz, bem-estar, prosperidade, bem. Mas a palavra remete para o equilíbrio, para o restabelecer uma ordem quebrada, a ponto de algumas variantes (shulam e meshulam) evocarem o pagar. Paz e pagar têm uma raiz comum. Pagar vem de aplacar, fazer a paz, tranquilidade – com a prova de um recibo como ato que afirma que o credor está plenamente satisfeito. De facto, o shalom incorpora uma ideia de justiça como reparação, como restituição e extinção da dívida e do seu desequilíbrio. Não há shalom enquanto uma das duas partes sente um desequilíbrio em seu prejuízo. Eis porque os contratos, as extinções das dívidas, se selam com um aperto de mão de paz, de shalom.
É nesta linha do shalom que se move o caso sangrento de Jeú: foi escolhido por YHWH e pelos seus profetas para repor o equilíbrio em Israel, para fazer “pagar” aos reis idólatras e às suas famílias as suas culpas e, assim, fazer shalom. Jeú, à pergunta sobre o shalom, deve responder:
Como poderá estar tudo bem, enquanto durar a prostituição de Jezabel, tua mãe, e as suas muitas idolatrias? Para haver shalom é preciso restabelecer o equilíbrio quebrado pela corrupção religiosa. É este shalom da religião económica-retributiva que caracteriza muitas páginas bíblicas: débitos e créditos, pagamentos e cobranças, registos escritos e apagados por um Deus-contabilista, que regista tudo, até mil gerações.
É dentro desta lógica que é lido também o episódio severo do assassínio da rainha Jezabel. Já a encontrámos na perseguição aos profetas de YHWH e na vinha de Nabot. Não por acaso, Jeú, depois de ter matado Jorão com uma seta, ordena a um soldado: «Agarra-o e atira-o ao campo de Nabot de Jezrael» (9, 25). A justiça para com Nabot está feita, o shalom está restabelecido. Para que Nabot tenha justiça é preciso pagar um preço, que só pode ser outro sangue que corre na direção contrária. O mesmo discurso para a execução da rainha Jezabel, a verdadeira autora do delito: «Jeú entrou em Jezrael. Jezabel, informada da sua chegada, pintou os olhos, adornou a cabeça e olhou pela janela (…). Jeú levantou os olhos para a janela e disse: “Quem está do meu lado?” Dois ou três eunucos fizeram a Jeú uma profunda reverência. “Atirai-a daí abaixo”, disse ele. Eles atiraram-na e o sangue dela salpicou as paredes e os cavalos e estes esmagaram-na com as patas» (9, 30-33). O sangue de Nabot é pacificado (shalom) pelo da rainha que o tinha mandado matar injustamente. Como se, ontem e hoje, o sangue de um injusto pudesse lavar o derramado por um inocente.
Este episódio, triste e cheio de pietas – é comovente o pormenor da rainha, já não jovem, que se maquilha para se preparar para o encontro que sabe ser determinante, como se quisesse chegar ainda bela e agradável ao encontro com a morte: vemo-lo muitas vezes, nas casas e nos hospitais, e são sempre visões humaníssimas –, faz-nos entrar, embora rapidamente, no outro tema deste ciclo narrativo: a lealdade má.
Aqueles dois ou três eunucos compreendem que o vento político mudou. São a imagem dos colaboradores rufias, que não têm nenhum pejo em atirar a rainha pela janela, em fazer pisar pelos cavalos quem tinham adulado até um segundo antes. O mesmo tema volta num outro gesto tremendo de Jeú. Acab, o marido de Jesabel, «tinha na Samaria setenta filhos. Jeú escreveu cartas e enviou-as à Samaria aos chefes da cidade, aos anciãos e aos preceptores dos filhos de Acab» (10, 1). Na segunda carta, Jeú escreveu: «Se estais do meu lado e quereis obedecer às minhas ordens, cortai as cabeças dos filhos do vosso soberano e trazei-mas a Jezrael, amanhã, a esta mesma hora» (10, 6). A palavra hebraica para “cabeças” é a mesma para “testemunhas”. Na incerteza, aqueles chefes da Samaria, em vez de interpretar a palavra no sentido mais humano e levar aquelas crianças-príncipes ao novo rei, «logo que receberam a carta de Jeú, apanharam os setenta príncipes e mataram-nos. Meteram as cabeças em cestos e mandaram-nas a Jeú, em Jezrael» (10, 7). Outro exemplo de lealdade rufia: para contentar o novo soberano cruel, interpretam as suas palavras no seu sentido mais cruel. Excede-se em maldade como sinal de lealdade e devoção, com a esperança de criar, no chefe, um débito de reconhecimento para usar em seu favor – o rufia, mesmo quando parece agir em favor do chefe, age sempre no seu próprio interesse. Jeú, porém, não compreende aquele gesto excessivo e extremo: «quem degolou todos estes?» (10, 9). Os rufias nem sequer são estimados pelos seus chefes adulados: usam-nos, servem-se deles, mas não os amam nem estimam.
Os homens sempre procuraram associar Deus aos seus cálculos económicos, aos seus shalom de preços e de compensações. Chamaram-no “Senhor dos exércitos”, e continuam a chamá-lo assim, mesmo quando aquele deus já não habita no céu mas é apenas uma pessoa ou uma ideia. Temos uma necessidade invencível de simetrias, de penas que recriem a ordem quebrada. Temos necessidade disso, mas esta nossa necessidade produziu teologias e religiões que constrangeram tanto Deus que o tornaram menos humano que as mulheres e os homens melhores. Um dia, porém, aquele mesmo humanismo bíblico gerou um homem diferente, que nos ensinou um outro shalom, já não ligado aos pagamentos e aos preços, um reino onde a paz não nasce dos equilíbrios mas dos desequilíbrios, onde quem recebe uma desconsideração não se vinga e perdoa setenta vezes sete, onde o amor não compensa débitos e créditos, mas cria-os sempre de novo. Um outro shalom, um outro reino, um outro amor-ágape. Mas fizemos de tudo para meter-lhe dentro as regras dos nossos equilíbrios e dos nossos pagamentos, até a dizer que a sua morte foi o preço pago por aquele filho diferente a um Pai que só podia ser satisfeito por um sangue precioso como só pode ser o sangue de um filho. Teologias da expiação que esqueceram que, sobre a terra, nenhum pai quer o sangue dos filhos e que o céu é, pelo menos, um lugar bonito quanto a terra se o pai celeste não é menos bom que nós. Quando Jesus nos permitiu chamar a Deus “Pai nosso”, também nos disse que, para compreender e conhecer Deus, temos de aprender a ver as mães e os pais.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 27/10/2019
«Uma teoria puramente sacrificial dos evangelhos deve basear-se na Carta aos Hebreus. Mas a Epístola não consegue, creio, captar a verdadeira singularidade da paixão de Cristo e deixa na sombra a absoluta especificidade do Cristianismo»
René Girard, Il capro espiatorio [O bode expiatório]
A relação entre religiões e violência é um grande tema da Bíblia e da vida, que aborda argumentos de extrema atualidade como a meritocracia e a teologia da expiação.
A ideologia do mérito é também ideologia do demérito, os sistemas que premeiam os merecedores devem, necessariamente punir os desmerecedores e toda a mérito-cracia é também uma demérito-fobia. Sem punir quem mereceu as punições não é possível premiar quem mereceu os prémios. Mas assim como somos muito mais capazes de encontrar culpas (nos outros) que méritos, os sistemas meritocráticos superabundam de penas porque, na base de qualquer sistema meritocrático, está um profundo pessimismo antropológico, mesmo quando mascarado com belas palavras sobre virtudes e prémios. Porque, premiando apenas os “vencedores” e quem atinge o cume do monte delicioso (a meritocracia é, necessariamente, hierárquica e posicional), esquece-se que somos todos, em modos diversos, merecedores, que toda a pessoa pode ter – e tem – um seu caminho de excelência que não pode nem deve ser confrontado hierarquicamente com os outros nem medido com indicadores únicos e iguais para todos.
Não é, certamente, uma coincidência que o crescimento da cultura do business, o primeiro veículo da meritocracia, seja, hoje, acompanhado por uma nova época do justicialismo e do aperto das penas. «O profeta Eliseu chamou um dos filhos dos profetas e disse-lhe: “Aperta o teu cinto e parte para Ramot de Guilead com este frasco de óleo. Quando lá chegares, procurarás Jeú (…) tomando o frasco de óleo, derramá-lo-ás sobre a sua cabeça, dizendo: ‘Isto diz YHWH: Eu te consagro rei de Israel’”» (2Rs 9, 1-3).
Em Israel, reinava Jorão. Eliseu reconhece e legitima uma insurreição, consagra e encoraja o que hoje chamamos um golpe de Estado, que o texto nos apresenta também como reforma religiosa javista e anti idolátrica. A saga de Jeú, marcada por cenas de violência brutal, obriga-nos a refletir num grande tema que atravessa toda a Bíblia: a relação entre religião e violência, o paradoxo de um Deus que parece servir-se da violência dos homens para realizar o seu desígnio de salvação. Eliseu, para realizar uma profecia de Elias (1Rs 19, 16), manda um profeta, seu discípulo, consagrar um dos reis mais cínicos e sanguinários de Israel, dá a sua bênção a um homem que, para repor a pureza do culto de YHWH em Israel, se manchará com crimes monstruosos, em “nome do Senhor”. A necessidade radical da justiça divina, que também marca toda a Bíblia – YHWH é um Deus diferente verdadeiro, porque justo – traz consigo uma lei simétrica da retaliação, onde cada um recebe o que mereceu, no bem e no mal. Deus é justo porque premeia os bons e pune os maus.É assim que os homens começaram a formar o sentido de justiça que, depois, escreveu códices e constituições, que superaram, em humanidade, muitas das leis inscritas na Bíblia e nos outros livros sagrados. A Bíblia foi usada para justificar as guerras santas e para os genocídios dos infiéis e dos idólatras, porque existem muitas páginas bíblicas que se prestam perfeitamente a este fim. E, assim, no fim da saga de Jeú, lemos: «YHWH disse-lhe: “Já que fizeste o que é agradável aos meus olhos, (…) os teus filhos ocuparão o trono de Israel até à quarta geração”» (2Rs 10, 30). Fazendo o que é agradável aos meus olhos: isto é, o assassinato de Jorão, de Acazias, rei de Judá, de Jesabel e setenta crianças de Acab decapitadas, o extermínio de todos os parentes de Acazias, de todos os fiéis a Jorão, na Samaria, de todos os fiéis e Baal.
Há outros dois temas que cruzam estes capítulos tremendos: o shalom e a lealdade errada. No capítulo 9, a palavra shalom aparece várias vezes. Quanto Jeú foi ao encontro de Jorão, ele encontrava-se em Jesrael a tratar-se, pois fora ferido. Mal o rei o vê, pergunta-lhe: «Está tudo bem, Jeú?», isto é: Jeú, trazes shalom? Jeú responde-lhe: «Como poderá estar tudo bem, enquanto durar a prostituição de Jezabel, tua mãe, e as suas muitas magias?» (9, 22). O que era o shalom, na cultura bíblica? Em hebraico, shalom é uma palavra muito rica. O significado imediato é paz, bem-estar, prosperidade, bem. Mas a palavra remete para o equilíbrio, para o restabelecer uma ordem quebrada, a ponto de algumas variantes (shulam e meshulam) evocarem o pagar. Paz e pagar têm uma raiz comum. Pagar vem de aplacar, fazer a paz, tranquilidade – com a prova de um recibo como ato que afirma que o credor está plenamente satisfeito. De facto, o shalom incorpora uma ideia de justiça como reparação, como restituição e extinção da dívida e do seu desequilíbrio. Não há shalom enquanto uma das duas partes sente um desequilíbrio em seu prejuízo. Eis porque os contratos, as extinções das dívidas, se selam com um aperto de mão de paz, de shalom.
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Este episódio, triste e cheio de pietas – é comovente o pormenor da rainha, já não jovem, que se maquilha para se preparar para o encontro que sabe ser determinante, como se quisesse chegar ainda bela e agradável ao encontro com a morte: vemo-lo muitas vezes, nas casas e nos hospitais, e são sempre visões humaníssimas –, faz-nos entrar, embora rapidamente, no outro tema deste ciclo narrativo: a lealdade má.
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Os homens sempre procuraram associar Deus aos seus cálculos económicos, aos seus shalom de preços e de compensações. Chamaram-no “Senhor dos exércitos”, e continuam a chamá-lo assim, mesmo quando aquele deus já não habita no céu mas é apenas uma pessoa ou uma ideia. Temos uma necessidade invencível de simetrias, de penas que recriem a ordem quebrada. Temos necessidade disso, mas esta nossa necessidade produziu teologias e religiões que constrangeram tanto Deus que o tornaram menos humano que as mulheres e os homens melhores. Um dia, porém, aquele mesmo humanismo bíblico gerou um homem diferente, que nos ensinou um outro shalom, já não ligado aos pagamentos e aos preços, um reino onde a paz não nasce dos equilíbrios mas dos desequilíbrios, onde quem recebe uma desconsideração não se vinga e perdoa setenta vezes sete, onde o amor não compensa débitos e créditos, mas cria-os sempre de novo. Um outro shalom, um outro reino, um outro amor-ágape. Mas fizemos de tudo para meter-lhe dentro as regras dos nossos equilíbrios e dos nossos pagamentos, até a dizer que a sua morte foi o preço pago por aquele filho diferente a um Pai que só podia ser satisfeito por um sangue precioso como só pode ser o sangue de um filho. Teologias da expiação que esqueceram que, sobre a terra, nenhum pai quer o sangue dos filhos e que o céu é, pelo menos, um lugar bonito quanto a terra se o pai celeste não é menos bom que nós. Quando Jesus nos permitiu chamar a Deus “Pai nosso”, também nos disse que, para compreender e conhecer Deus, temos de aprender a ver as mães e os pais.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 20/10/2019
«Mas se a “compreensão das escrituras” é um carisma, que espécie de carisma é? Onde se coloca na hierarquia dos carismas? A compreensão das escrituras é colocada ao lado dos melhores. E ainda mais alto que o carisma que faz os profetas»
Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia
A profecia fala muito de economia, de bens e de moeda. E também, num episódio tremendo, como só as carestias sabem ser, reencontramos a economia juntamente às mulheres e às crianças.
Há uma relação muito forte e íntima entre guerra e economia. Geralmente, as razões dos negócios contrastam com as das guerras, porque muitos negociantes gostam da paz e da ordem, onde possam fazer melhores lucros. A economia também tem uma vocação de paz – o “doce comércio” dos iluministas. Mas, enquanto existiram e existem ainda hoje negociantes que querem a paz, existem outros que se arriscam muito com as guerras, alguns que as provocam com o objetivo de lucro, outros ainda que fazem dos conflitos o seu business. Na origem das guerras estão grandes interesses económicos, cruzados com o poder e com a loucura dos homens. Economia e empresas justas e equitativas são o primeiro antidoto das guerras, a sua cura preventiva. E sempre que alguém constrói uma economia de paz, entre contratos e trabalhos justos, pratica a justiça nas relações com os trabalhadores, reconhece direitos às pessoas e à terra, está afastando a guerra e as suas dores infinitas.
Também na Bíblia, economia e guerra estão profundamente ligadas entre si. Encontramo-las juntas nas mesmas histórias, dentro das mesmas profecias, nos episódios mais esplêndidos e nos mais tremendos: «Ben-Hadad, rei da Síria, mobilizou todo o seu exército e subiu para sitiar a cidade da Samaria. Uma grande fome alastrou pela cidade e o cerco foi tão apertado que uma cabeça de jumento valia oitenta siclos de prata, e um quarto de cab de excrementos de pomba, cinco siclos de prata (2Rs 6, 24-25).
Samaria é cercada pelos sírios. A primeira linguagem que a Bíblia encontra para mostrar a gravidade do cerco e da carestia é a linguagem dos preços e das mercadorias: a cabeça de um jumento (o jumento era comida normal) e o esterco de pombas usado como sal durante as carestias e a fome. Está aqui também o significado e o valor antropológico e ético da economia e das suas palavras.
Antes da economia de mercado e do capitalismo, mesmo quando a economia ocupava apenas um dia ou poucas horas da semana (e não, como hoje, todas as horas de todos os dias), os homens e as mulheres sabiam mostrar, com os preços, com as moedas e com as mercadorias as coisas mais importantes, falavam de economia para falar de vida e de morte. Durante os períodos da abundância, as palavras são muitas e multiplicam-se; mas, no tempo das vacas magras, também as palavras emagrecem, se reduzem ao osso e, naquele osso, permanece o essencial. A Bíblia recorda-nos que, naquele essencial, está a vida económica, estão os preços. Estão as moedas. Na Bíblia, encontramos a economia nas cenas extremas e opostas: dentro das carestias e dentro da proximidade do Samaritano que, com “duas moedas” associa um comerciante à sua ação. Ontem, hoje, sempre.
Para compreender o verdadeiro valor da economia e das moedas é preciso ir aos lugares dos cercos e das carestias e, ali, ver e compreender que os bens e o dinheiro são úteis verdadeiramente nas pobrezas e aos pobres. Podemos e devemos estudar os “paradoxos da felicidade” e, depois, descobrir, em posse dos dados, que a riqueza económica mostra pouco ou nada de quanto, geralmente, se pensa. Mas, depois, imediatamente, devemos recordar que, se a riqueza serve pouco aos ricos, serve muitíssimo aos pobres e que aquela riqueza supérflua e inútil para quem já tem muita, poderia tornar-se pão essencial nas carestias e nos cercos.
Logo após nos ter falado do exorbitante preço do alimento e do sal durante aquele cerco, os Livros dos Reis contam-nos um episódio tremendo, desesperado e pouco conhecido que, vindo logo após preços e mercadorias, fala-nos, em contraluz, também de economia. Talvez para nos dizer que existe uma linguagem, ainda mais forte e radical que a economia, para nos falar dos efeitos das guerras e das carestias na vida das pessoas: é a linguagem da vida e da morte, da carne e dos filhos: «Um dia em que o rei passeava pela muralha, uma mulher gritou-lhe: “Socorre-me, ó rei, meu senhor!” O rei respondeu-lhe: “Se o Senhor não te salva, com que te poderei eu socorrer? Com o trigo da eira ou o vinho do lagar?” E acrescentou: “Que te aconteceu?” Ela respondeu ao rei: “Esta mulher que aqui vês, disse-me: ‘Dá-me o teu filho para o comermos hoje; amanhã comeremos o meu.’ Cozemos, então, o meu filho e comemo-lo. No dia seguinte, quando eu lhe disse: ‘Dá-me o teu filho, para comermos’, ela escondeu-o”» (6, 26-29).
Não é preciso acrescentar muito a estas palavras. Um conflito entre duas mulheres desesperadas, enlouquecidas pelo desespero da carestia, um contrato louco entre duas mães, um caso parecido ao resolvido pelo primeiro exercício de sabedoria de Salomão (1Rs 3). O “socorre-me”, um SOS lançado por esta mãe, já não diz respeito às mercadorias e ao alimento, como pensava antes o rei (“com o trigo da eira ou o vinho do lagar”); não, o seu grito era grito de carne e de sangue, era um grito de morte. Antes da economia, estão os filhos, a carne, a morte. Estas palavras são anteriores às da economia. Estas cenas não eram assim tão raras na antiguidade, onde por vezes, acontecia, nas grandes carestias, que famílias trocavam os filhos para “cozer”, para evitar, pelo menos, a dor mais absurda: devorar a carne da sua carne.
Hoje, os filhos não já se cozem para não morrer de fome, mas, na pobreza e nos cercos, os filhos e as filhas continuam a ser devorados. Vendem-se a novos exércitos de homens que chegam, de avião, às periferias da América do Sul ou da Ásia, vão às famílias assediadas pela miséria e pela fome, e compram filhas, meninos e meninas para cozer nos quartos escuros dos seus hotéis. Alguma mamã, no último momento, não respeita o contrato, procura escondê-los; a maior parte não consegue. As primeiras vítimas das carestias e das guerras são os meninos, as meninas, as mulheres – recordam-no-lo também os Prémios Nobel da Economia 2019. Combater as guerras e a fome significa salvar, sobretudo, mães, meninos, meninas. Se a economia ajudar a reduzir as guerras e a miséria no mundo, a economia será amiga das mães e das crianças, e todos nós lhe agradeceremos e será “abençoada economia”. Se e quando faz e fizer o contrário, criticá-la-emos e amaldiçoá-la-emos, e fá-lo-emos em nome e com as palavras das mulheres, dos meninos e das meninas – não é por acaso que a crítica mais radical à economia do seculo XXI venha, hoje, de uma rapariga.
«Ao ouvir o que dizia a mulher, o rei rasgou as suas vestes; e, como continuou a passear pela muralha, o povo viu que, por baixo, junto ao corpo, ele usava um tecido de saco» (6, 30). A Bíblia “rasga as suas vestes” perante estes relatos inenarráveis e deixa-nos entrever o cilício (saco) penitencial; nós, pelo contrário, perante as mesmas cenas, não o fazemos, passamos à frente, muito ocupados e preocupados com os nossos negócios.
O profeta Eliseu, com os seus gestos e palavras, acompanha estes capítulos de guerra, de fome, de morte e de economia. Também a sua profecia se insere neste ambiente, pede-lhe emprestadas as palavras: «Ouve a palavra de YHWH: Amanhã, a esta mesma hora, uma medida de flor de farinha ou duas medidas de cevada valerão um siclo, à porta da Samaria» (7, 1). A profecia diz economia. Para profetizar o fim do cerco, da guerra e da carestia, Eliseu não encontra palavras melhores que as da economia e dos preços das mercadorias. Como nós, que para augurar felicidade a um filho desejamos-lhe que possa ter um trabalho digno e verdadeiro, que não se torne indigente, que não passe fome e tenha “shalom” (bem-estar). Estas são as esperanças e as orações de todos, mas são, sobretudo, as esperanças e as orações dos pobres que, tendo sentido na carne, sua e dos seus filhos, o que significa pagar 80 siclos pela cabeça dum jumento, compreendem o profeta que anuncia uma era onde a cevada e a farinha custarão oitenta vezes menos. Só os pobres são os verdadeiros competentes dos preços e do valor dos bens, porque são os especialistas da escassez. E, assim, compreendem também os profetas e a sua linguagem.
É esta a extraordinária laicidade da Bíblia, a que ainda não consegui habituar-me. A profecia é céu, querubins, voz subtil de silêncio, é fogo, nuvem e trovão e é também farinha, cevada, um ciclo. As palavras da profecia são capazes de mudar a história e salvar-nos, enquanto mantiver juntos querubins e cevada, YHWH e siclos. Porque as palavras do céu não se tornam “confort zone” e puro consumismo espiritual e são pronunciadas juntamente à cevada e aos ciclos; e quando as religiões e as igrejas já não usam as palavras da economia para nos falar de Deus e de céu, é porque estão a usar mal cevada, farinha e dinheiro e, por isso, não falam mais disso. A ausência do discurso económico do discurso religioso não é sinal de uma religião mais espiritual, mas mostra apenas uma fé que esqueceu quais são os rostos verdadeiros e as palavras dos pobres, da pobreza e das vítimas da história.
Este breve ciclo de guerras, carestias, profecia, mulheres, crianças e economia encerra-se com uma outra mulher, um outro menino, uma outra economia.
Eliseu tinha dito à mulher a quem tinha ressuscitado o filho (2Rs 4) para ir para terra estrangeira, para junto dos filisteus, porque uma carestia estava para se abater sobre o país. Quando esta mulher, sete anos depois, voltou para casa, já não encontrou os bens que, na sua ausência, tinham sido ocupados por outros. Enquanto Guiezi, o servo de Eliseu, está a contar ao rei o milagre de Eliseu, eis que chega a mulher: «Guiezi exclamou: “Eis, ó rei, meu senhor! Esta é a mulher e este é o seu filho que Eliseu ressuscitou”. O rei interrogou a mulher e ela narrou-lhe o acontecido. Então o rei mandou com ela um eunuco, ao qual disse: “Faz com que lhe seja restituído tudo o que lhe pertence, bem como todos os rendimentos da sua propriedade, desde que a deixou até ao dia de hoje”» (8, 5-6).
O milagre do menino morto e ressuscitado completa-se, agora, com um ato de justiça económica. Os milagres nunca são completos enquanto não mudarem as condições materiais da existência, se permanecem desencarnados, se não se tornam rendas e campos. Nem todos, nem sempre, podemos ressuscitar os filhos. Mas muitos, talvez todos, podemos ressuscitar um pobre, fazer justiça a uma vítima, apagar uma dívida. Se revirmos estes milagres económicos, talvez conseguiremos rever também Deus e os anjos.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 20/10/2019
«Mas se a “compreensão das escrituras” é um carisma, que espécie de carisma é? Onde se coloca na hierarquia dos carismas? A compreensão das escrituras é colocada ao lado dos melhores. E ainda mais alto que o carisma que faz os profetas»
Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia
A profecia fala muito de economia, de bens e de moeda. E também, num episódio tremendo, como só as carestias sabem ser, reencontramos a economia juntamente às mulheres e às crianças.
Há uma relação muito forte e íntima entre guerra e economia. Geralmente, as razões dos negócios contrastam com as das guerras, porque muitos negociantes gostam da paz e da ordem, onde possam fazer melhores lucros. A economia também tem uma vocação de paz – o “doce comércio” dos iluministas. Mas, enquanto existiram e existem ainda hoje negociantes que querem a paz, existem outros que se arriscam muito com as guerras, alguns que as provocam com o objetivo de lucro, outros ainda que fazem dos conflitos o seu business. Na origem das guerras estão grandes interesses económicos, cruzados com o poder e com a loucura dos homens. Economia e empresas justas e equitativas são o primeiro antidoto das guerras, a sua cura preventiva. E sempre que alguém constrói uma economia de paz, entre contratos e trabalhos justos, pratica a justiça nas relações com os trabalhadores, reconhece direitos às pessoas e à terra, está afastando a guerra e as suas dores infinitas.
Também na Bíblia, economia e guerra estão profundamente ligadas entre si. Encontramo-las juntas nas mesmas histórias, dentro das mesmas profecias, nos episódios mais esplêndidos e nos mais tremendos: «Ben-Hadad, rei da Síria, mobilizou todo o seu exército e subiu para sitiar a cidade da Samaria. Uma grande fome alastrou pela cidade e o cerco foi tão apertado que uma cabeça de jumento valia oitenta siclos de prata, e um quarto de cab de excrementos de pomba, cinco siclos de prata (2Rs 6, 24-25).
Samaria é cercada pelos sírios. A primeira linguagem que a Bíblia encontra para mostrar a gravidade do cerco e da carestia é a linguagem dos preços e das mercadorias: a cabeça de um jumento (o jumento era comida normal) e o esterco de pombas usado como sal durante as carestias e a fome. Está aqui também o significado e o valor antropológico e ético da economia e das suas palavras.
Antes da economia de mercado e do capitalismo, mesmo quando a economia ocupava apenas um dia ou poucas horas da semana (e não, como hoje, todas as horas de todos os dias), os homens e as mulheres sabiam mostrar, com os preços, com as moedas e com as mercadorias as coisas mais importantes, falavam de economia para falar de vida e de morte. Durante os períodos da abundância, as palavras são muitas e multiplicam-se; mas, no tempo das vacas magras, também as palavras emagrecem, se reduzem ao osso e, naquele osso, permanece o essencial. A Bíblia recorda-nos que, naquele essencial, está a vida económica, estão os preços. Estão as moedas. Na Bíblia, encontramos a economia nas cenas extremas e opostas: dentro das carestias e dentro da proximidade do Samaritano que, com “duas moedas” associa um comerciante à sua ação. Ontem, hoje, sempre.
Para compreender o verdadeiro valor da economia e das moedas é preciso ir aos lugares dos cercos e das carestias e, ali, ver e compreender que os bens e o dinheiro são úteis verdadeiramente nas pobrezas e aos pobres. Podemos e devemos estudar os “paradoxos da felicidade” e, depois, descobrir, em posse dos dados, que a riqueza económica mostra pouco ou nada de quanto, geralmente, se pensa. Mas, depois, imediatamente, devemos recordar que, se a riqueza serve pouco aos ricos, serve muitíssimo aos pobres e que aquela riqueza supérflua e inútil para quem já tem muita, poderia tornar-se pão essencial nas carestias e nos cercos.
Logo após nos ter falado do exorbitante preço do alimento e do sal durante aquele cerco, os Livros dos Reis contam-nos um episódio tremendo, desesperado e pouco conhecido que, vindo logo após preços e mercadorias, fala-nos, em contraluz, também de economia. Talvez para nos dizer que existe uma linguagem, ainda mais forte e radical que a economia, para nos falar dos efeitos das guerras e das carestias na vida das pessoas: é a linguagem da vida e da morte, da carne e dos filhos: «Um dia em que o rei passeava pela muralha, uma mulher gritou-lhe: “Socorre-me, ó rei, meu senhor!” O rei respondeu-lhe: “Se o Senhor não te salva, com que te poderei eu socorrer? Com o trigo da eira ou o vinho do lagar?” E acrescentou: “Que te aconteceu?” Ela respondeu ao rei: “Esta mulher que aqui vês, disse-me: ‘Dá-me o teu filho para o comermos hoje; amanhã comeremos o meu.’ Cozemos, então, o meu filho e comemo-lo. No dia seguinte, quando eu lhe disse: ‘Dá-me o teu filho, para comermos’, ela escondeu-o”» (6, 26-29).
Não é preciso acrescentar muito a estas palavras. Um conflito entre duas mulheres desesperadas, enlouquecidas pelo desespero da carestia, um contrato louco entre duas mães, um caso parecido ao resolvido pelo primeiro exercício de sabedoria de Salomão (1Rs 3). O “socorre-me”, um SOS lançado por esta mãe, já não diz respeito às mercadorias e ao alimento, como pensava antes o rei (“com o trigo da eira ou o vinho do lagar”); não, o seu grito era grito de carne e de sangue, era um grito de morte. Antes da economia, estão os filhos, a carne, a morte. Estas palavras são anteriores às da economia. Estas cenas não eram assim tão raras na antiguidade, onde por vezes, acontecia, nas grandes carestias, que famílias trocavam os filhos para “cozer”, para evitar, pelo menos, a dor mais absurda: devorar a carne da sua carne.
Hoje, os filhos não já se cozem para não morrer de fome, mas, na pobreza e nos cercos, os filhos e as filhas continuam a ser devorados. Vendem-se a novos exércitos de homens que chegam, de avião, às periferias da América do Sul ou da Ásia, vão às famílias assediadas pela miséria e pela fome, e compram filhas, meninos e meninas para cozer nos quartos escuros dos seus hotéis. Alguma mamã, no último momento, não respeita o contrato, procura escondê-los; a maior parte não consegue. As primeiras vítimas das carestias e das guerras são os meninos, as meninas, as mulheres – recordam-no-lo também os Prémios Nobel da Economia 2019. Combater as guerras e a fome significa salvar, sobretudo, mães, meninos, meninas. Se a economia ajudar a reduzir as guerras e a miséria no mundo, a economia será amiga das mães e das crianças, e todos nós lhe agradeceremos e será “abençoada economia”. Se e quando faz e fizer o contrário, criticá-la-emos e amaldiçoá-la-emos, e fá-lo-emos em nome e com as palavras das mulheres, dos meninos e das meninas – não é por acaso que a crítica mais radical à economia do seculo XXI venha, hoje, de uma rapariga.
«Ao ouvir o que dizia a mulher, o rei rasgou as suas vestes; e, como continuou a passear pela muralha, o povo viu que, por baixo, junto ao corpo, ele usava um tecido de saco» (6, 30). A Bíblia “rasga as suas vestes” perante estes relatos inenarráveis e deixa-nos entrever o cilício (saco) penitencial; nós, pelo contrário, perante as mesmas cenas, não o fazemos, passamos à frente, muito ocupados e preocupados com os nossos negócios.
O profeta Eliseu, com os seus gestos e palavras, acompanha estes capítulos de guerra, de fome, de morte e de economia. Também a sua profecia se insere neste ambiente, pede-lhe emprestadas as palavras: «Ouve a palavra de YHWH: Amanhã, a esta mesma hora, uma medida de flor de farinha ou duas medidas de cevada valerão um siclo, à porta da Samaria» (7, 1). A profecia diz economia. Para profetizar o fim do cerco, da guerra e da carestia, Eliseu não encontra palavras melhores que as da economia e dos preços das mercadorias. Como nós, que para augurar felicidade a um filho desejamos-lhe que possa ter um trabalho digno e verdadeiro, que não se torne indigente, que não passe fome e tenha “shalom” (bem-estar). Estas são as esperanças e as orações de todos, mas são, sobretudo, as esperanças e as orações dos pobres que, tendo sentido na carne, sua e dos seus filhos, o que significa pagar 80 siclos pela cabeça dum jumento, compreendem o profeta que anuncia uma era onde a cevada e a farinha custarão oitenta vezes menos. Só os pobres são os verdadeiros competentes dos preços e do valor dos bens, porque são os especialistas da escassez. E, assim, compreendem também os profetas e a sua linguagem.
É esta a extraordinária laicidade da Bíblia, a que ainda não consegui habituar-me. A profecia é céu, querubins, voz subtil de silêncio, é fogo, nuvem e trovão e é também farinha, cevada, um ciclo. As palavras da profecia são capazes de mudar a história e salvar-nos, enquanto mantiver juntos querubins e cevada, YHWH e siclos. Porque as palavras do céu não se tornam “confort zone” e puro consumismo espiritual e são pronunciadas juntamente à cevada e aos ciclos; e quando as religiões e as igrejas já não usam as palavras da economia para nos falar de Deus e de céu, é porque estão a usar mal cevada, farinha e dinheiro e, por isso, não falam mais disso. A ausência do discurso económico do discurso religioso não é sinal de uma religião mais espiritual, mas mostra apenas uma fé que esqueceu quais são os rostos verdadeiros e as palavras dos pobres, da pobreza e das vítimas da história.
Este breve ciclo de guerras, carestias, profecia, mulheres, crianças e economia encerra-se com uma outra mulher, um outro menino, uma outra economia.
Eliseu tinha dito à mulher a quem tinha ressuscitado o filho (2Rs 4) para ir para terra estrangeira, para junto dos filisteus, porque uma carestia estava para se abater sobre o país. Quando esta mulher, sete anos depois, voltou para casa, já não encontrou os bens que, na sua ausência, tinham sido ocupados por outros. Enquanto Guiezi, o servo de Eliseu, está a contar ao rei o milagre de Eliseu, eis que chega a mulher: «Guiezi exclamou: “Eis, ó rei, meu senhor! Esta é a mulher e este é o seu filho que Eliseu ressuscitou”. O rei interrogou a mulher e ela narrou-lhe o acontecido. Então o rei mandou com ela um eunuco, ao qual disse: “Faz com que lhe seja restituído tudo o que lhe pertence, bem como todos os rendimentos da sua propriedade, desde que a deixou até ao dia de hoje”» (8, 5-6).
O milagre do menino morto e ressuscitado completa-se, agora, com um ato de justiça económica. Os milagres nunca são completos enquanto não mudarem as condições materiais da existência, se permanecem desencarnados, se não se tornam rendas e campos. Nem todos, nem sempre, podemos ressuscitar os filhos. Mas muitos, talvez todos, podemos ressuscitar um pobre, fazer justiça a uma vítima, apagar uma dívida. Se revirmos estes milagres económicos, talvez conseguiremos rever também Deus e os anjos.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 13/10/2019
"Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman"
Evangelho de Lucas 4, 27
A bênção de um estrangeiro leproso dá-nos palavras importantes sobre a lógica do dom, mas também sobre as escolhas de quem vive “em terra de exílio”. Mas o relato da “salvação concedida aos sírios”, neste nosso hoje, também se torna oração…
Servo. Servus isto é, escravo. Também na Bíblia se encontram muitos servos. Para o escritor antigo, estas palavras eram as palavras normais da vida, porque os servos e os escravos eram parte normal do seu mundo. Para nós, não. Nós não podemos encontrar estas palavras e seguir para diante. Como o Samaritano, temos de parar e sentir misericórdia e depois debruçarmo-nos. Somos testemunhas e herdeiros de milénios de amor e de dor para procurar eliminar estas palavras do nosso vocabulário e do nosso coração – ainda o não conseguimos completamente e em toda a parte. E a Bíblia ajudou-nos a apagar essas palavras que ela mesma tinha escrito. «Naaman, general dos exércitos do rei da Síria, gozava de grande prestígio diante do seu amo e era muito estimado, porque, por meio dele, YHWH salvou a Síria; era um homem robusto e valente, mas leproso» (2Rs 5, 1). Com a história de Naaman, um homem ilustre do povo sírio, encontramos um dos trechos em que a Bíblia se supera a si mesma. YHWH tinha concedido a salvação aos sírios, a um povo diferente e inimigo de Israel. Num período da história, ainda dominado pela ideia dos deuses nacionais, pela religião étnica, em Israel escreveram-se páginas que anunciavam uma religião universal e inclusiva. Aquele povo começou a compreender que as orações das pessoas podiam ser verdadeiras se eram também as orações dos outros; que o seu Deus podia ser “Pai nosso” apenas se aquele “nosso” abarcava a todos.
Naaman é um homem doente, é um leproso. Quando, na Bíblia, encontramos um leproso, o coração salta para os evangelhos e, depois, retoma o curso e chega a Rivotorto de Assis. Ali, encontra Francisco e o seu beijo ao leproso, que marca uma etapa determinante da sua vida e da história espiritual da Europa. Isto é a Bíblia: uma viagem ética e espiritual no tempo e dentro do homem, que começa e recomeça em cada página sua. «Ora tendo os sírios feito uma incursão no território de Israel, levaram consigo uma jovem donzela, que ficou ao serviço da mulher de Naaman. Ela disse à sua senhora: “Ah, se o meu amo fosse ter com o profeta que vive na Samaria, certamente ficava curado da lepra!”» (5, 2-3). Naaman acredita na sua serva, fala ao seu rei que lhe escreve uma carta de apresentação para o rei de Israel. Com esta carta na mão, Naaman parte: «O rei de Israel rasgou as suas vestes e exclamou: “Sou eu, porventura, um deus que possa dar a morte ou a vida…? Reparai e vede como ele busca pretextos contra mim”» (5, 7). Os dois reis não se entendem. O discurso entre uma menina serva, um doente e um profeta não podia ser interpretado pela lógica dos poderosos – quantas guerras e quanta dor teríamos poupado se raciocinássemos como as meninas, como os doentes e como os profetas.
Mas Eliseu mandou dizer ao rei: «Porque rasgaste as tuas vestes? Que ele venha ter comigo e saberá que há um profeta em Israel» (5, 8). Naaman, o sírio, dirige-se a Eliseu, que lhe envia um seu assistente que lhe diz: «Vai, lava-te sete vezes no Jordão e a tua carne ficará limpa» (5, 10). Mas Naaman considera esta solução demasiado simples. Tinha feito aquela viagem apenas para se banhar num rio? Onde estão os ritos, os gestos, as palavras e as mãos do curador? Naaman protesta contra esta solução demasiado simples. Baseado no que acontecia com os curadores do seu país, tinha uma ideia do protocolo da sua cura e recusa aquela oferta de Eliseu, porque demasiado ordinária. Não é raro que recusemos a solução de um problema porque nos aparece demasiado simples. Não a vemos, porque a procuramos nos efeitos especiais e nos fenómenos extraordinários (5, 11). Mas, também aqui, outros servos, trazem uma bênção: «Mas os seus servos aproximaram-se dele e disseram-lhe: “Meu pai, mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado’”» (5, 13). É o bom senso dos simples que sabe ver soluções fáceis, quando os “grandes” procuram soluções complicadas, inexistentes. Naaman cura-se: «Ele desceu ao Jordão e lavou-se sete vezes e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo» (5, 14). Com esta cura, começa a sua conversão religiosa: «Voltou, então, ao homem de Deus com toda a sua comitiva; entrou, apresentou-se diante dele e disse: “Reconheço agora que não há outro Deus em toda a Terra, senão o de Israel. Aceita este presente [berakà] do teu servo”» (5, 15).
Naaman, homem rico, quer dar um presente a Eliseu, como sinal de gratidão e de bênção: «Eliseu respondeu: “Por YHWH, o Deus vivo a quem sirvo, juro que nada aceitarei”. E, apesar das instâncias de Naaman, ele continuou a recusar» (5, 16). Num outro rio (o Jaboc), a ferida (não curada) gerou uma bênção (berakà). Aqui, a ferida é curada, mas o curador não aceita a bênção. Porquê esta recusa? Eliseu marca o início de uma nova forma de profecia, a espiritual, num contexto médio-oriental onde o profetismo era uma profissão, marcado por ganhos e comércios. Aqui, Eliseu quer distinguir-se da profecia comercial dos “filhos dos profetas”. A sua profecia é toda graça, charis, gratuidade. Não curou por interesse, mas por vocação. Também a profecia, como todos os dons, vive dentro de relações de reciprocidade. Mas, sobretudo no início, quando se deve marcar uma descontinuidade (quando começa uma vocação, nasce uma nova relação, se funda uma nova realidade…) a reciprocidade, necessária nas relações ordinárias, pode ser um obstáculo, porque, sendo diferente, a sua natureza de dar-receber torna-a demasiado semelhante a um contrato comercial. Então, em determinados momentos fundadores e extraordinários, o dom diz o que é, dizendo não à reciprocidade normal que, quase sempre, o acompanha. Diz “não” para dizer “sim” a algo de mais profundo; porque pode ser-se dom verdadeiro mesmo sem a reciprocidade, não há dom verdadeiro sem gratuidade. Como quando damos o nosso primeiro presente a uma pessoa com quem nos preocupamos muito e não queremos nenhuma outra recompensa que não seja a alegria impressa nos olhos de quem nos olha agradecido, porque, qualquer outra “coisa” reduziria a riqueza e a beleza daquele presente. Eliseu, para dizer que a sua profecia é toda e só graça, renuncia também à reciprocidade.
«Então, Naaman disse: “Já que não aceitas, permite ao menos que se dê ao teu servo uma quantidade de terra deste país, tanta quanta possam carregar duas mulas. Pois doravante o teu servo não oferecerá mais holocaustos nem sacrifícios a outros deuses, mas somente a YHWH”» (5, 17). Aquele “não” a um dom gerou outros dons. Com um pormenor interessante e inesperado: Naaman encontra uma recusa de Eliseu e aquela recusa faz-lhe pedir mais alguma coisa (a terra: o adamah). Aqui, um presente sem reciprocidade produz um outro presente por parte de quem já era “credor”. E não apenas por razões de culto (construir um altar). Estas coisas estranhas são comuns nas dinâmicas sociais do dom, onde o “débito” criado por um dom não se restitui com um contra-dom, mas com um novo dom por parte de quem já tinha dado. Se não fosse assim, a vida seria bastante semelhante a um mercado e perderíamos os espetáculos morais mais belos das mulheres e dos homens. Esta lógica do dom escapa completamente a Guiezi, o servo de Eliseu, que seguirá Naaman para obter, com engano, uma parte dos presentes não aceites por Eliseu (5, 20-27). Antes de se despedir de Eliseu, Naaman diz-lhe algo que nos escancara um novo horizonte: «Quando o meu soberano entrar no templo de Rimon para adorar, apoiando-se no meu braço e eu também me prostrar no templo de Rimon» (5, 18). Naaman era um alto funcionário na Síria; para realizar o seu trabalho tinha de acompanhar o rei ao templo do deus Rimon. Agora, que se converteu, poderá continuar a desempenhar este trabalho? Como juntar a nova fé com a antiga profissão? Naaman sente-se pressionado numa dupla lealdade: a do seu trabalho, à sua vida normal, à sua pátria e a lealdade à sua nova fé. Agora, sabe que Rimon não é o verdadeiro Deus, ele quer honrar somente YHWH; mas a sua vida continua na mesma sociedade de antes.
A história conheceu soluções diferentes para este conflito. Alguns sentem que a segunda nova lealdade não é compatível com a primeira. Deixam os postos de trabalho, país, família e mudam a vida religiosa e a vida civil. As duas lealdades reduzem-se a uma só. Aqui, Eliseu dá, pelo contrário, uma resposta surpreendente: «Shalom»: vai em paz (5, 19). Mas como? O profeta, o paladino da coerência extrema, a todo o custo, diz ao novo convertido para não se preocupar com esta dupla lealdade? Quanto mais uma pessoa é coerente com os seus valores e princípios, mais tolerante é com as escolhas dos outros. A própria coerência não se torna um jugo a colocar sobre os outros. Pelo contrário, são os “doutores da lei” e os “escribas” que impõem aos outros pesos que eles próprios não querem transportar. Os profetas verdadeiros são mestres de misericórdia, de humanidade, de compaixão e levam os seus pesos pesados para não os fazer transportar aos outros. Arrastam eles próprios as cruzes e dizem palavras de amor aos outros crucificados.
Os profetas não cedem um centímetro aos compromissos, na sua vida e, depois, sabem que as mulheres e os homens que trabalham, porque têm de mandar os filhos à escola, têm de viver entre muitas duplas lealdades. Têm da trabalhar nos bancos, nos escritórios e nas empresas que nem sempre são o que o seu Deus quereria que fossem, que têm, por vezes, de se inclinar diante dos falsos deuses, juntamente aos seus chefes. E interrogam-se todos os dias: como viver como fiel em “terra estrangeira”? Homens e mulheres que sabem que o que fazem não é a vida que quereriam e deveriam levar, e até procuram novos trabalhos que quase nunca chegam; e enquanto e até que têm de trabalhar naqueles bancos e naquelas empresas, apenas podem procurar trabalhar bem, o melhor que podem, e oferecer, com suavidade, o braço aos seus “patrões”. Seguem em frente, todos os dias, com a lealdade espiritual que é a mesma lealdade para com a família que devem cuidar com o seu salário. A todas estas pessoas que não têm a possibilidade de escolher os bancos e as empresas onde trabalhar, a estes fiéis no exílio, Eliseu e a Bíblia repetem ainda: “Shalom”, vai em paz, vive esta dupla lealdade. Por fim, é particularmente belo e comovente que o nosso comentário do Livro dos Reis nos tenha levado, hoje, a encontrar a bênção do Sírio, a ler que Deus tenha «concedido a salvação aos sírios». Que esta frase se torne oração.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 13/10/2019
"Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman"
Evangelho de Lucas 4, 27
A bênção de um estrangeiro leproso dá-nos palavras importantes sobre a lógica do dom, mas também sobre as escolhas de quem vive “em terra de exílio”. Mas o relato da “salvação concedida aos sírios”, neste nosso hoje, também se torna oração…
Servo. Servus isto é, escravo. Também na Bíblia se encontram muitos servos. Para o escritor antigo, estas palavras eram as palavras normais da vida, porque os servos e os escravos eram parte normal do seu mundo. Para nós, não. Nós não podemos encontrar estas palavras e seguir para diante. Como o Samaritano, temos de parar e sentir misericórdia e depois debruçarmo-nos. Somos testemunhas e herdeiros de milénios de amor e de dor para procurar eliminar estas palavras do nosso vocabulário e do nosso coração – ainda o não conseguimos completamente e em toda a parte. E a Bíblia ajudou-nos a apagar essas palavras que ela mesma tinha escrito. «Naaman, general dos exércitos do rei da Síria, gozava de grande prestígio diante do seu amo e era muito estimado, porque, por meio dele, YHWH salvou a Síria; era um homem robusto e valente, mas leproso» (2Rs 5, 1). Com a história de Naaman, um homem ilustre do povo sírio, encontramos um dos trechos em que a Bíblia se supera a si mesma. YHWH tinha concedido a salvação aos sírios, a um povo diferente e inimigo de Israel. Num período da história, ainda dominado pela ideia dos deuses nacionais, pela religião étnica, em Israel escreveram-se páginas que anunciavam uma religião universal e inclusiva. Aquele povo começou a compreender que as orações das pessoas podiam ser verdadeiras se eram também as orações dos outros; que o seu Deus podia ser “Pai nosso” apenas se aquele “nosso” abarcava a todos.
Naaman é um homem doente, é um leproso. Quando, na Bíblia, encontramos um leproso, o coração salta para os evangelhos e, depois, retoma o curso e chega a Rivotorto de Assis. Ali, encontra Francisco e o seu beijo ao leproso, que marca uma etapa determinante da sua vida e da história espiritual da Europa. Isto é a Bíblia: uma viagem ética e espiritual no tempo e dentro do homem, que começa e recomeça em cada página sua. «Ora tendo os sírios feito uma incursão no território de Israel, levaram consigo uma jovem donzela, que ficou ao serviço da mulher de Naaman. Ela disse à sua senhora: “Ah, se o meu amo fosse ter com o profeta que vive na Samaria, certamente ficava curado da lepra!”» (5, 2-3). Naaman acredita na sua serva, fala ao seu rei que lhe escreve uma carta de apresentação para o rei de Israel. Com esta carta na mão, Naaman parte: «O rei de Israel rasgou as suas vestes e exclamou: “Sou eu, porventura, um deus que possa dar a morte ou a vida…? Reparai e vede como ele busca pretextos contra mim”» (5, 7). Os dois reis não se entendem. O discurso entre uma menina serva, um doente e um profeta não podia ser interpretado pela lógica dos poderosos – quantas guerras e quanta dor teríamos poupado se raciocinássemos como as meninas, como os doentes e como os profetas.
Mas Eliseu mandou dizer ao rei: «Porque rasgaste as tuas vestes? Que ele venha ter comigo e saberá que há um profeta em Israel» (5, 8). Naaman, o sírio, dirige-se a Eliseu, que lhe envia um seu assistente que lhe diz: «Vai, lava-te sete vezes no Jordão e a tua carne ficará limpa» (5, 10). Mas Naaman considera esta solução demasiado simples. Tinha feito aquela viagem apenas para se banhar num rio? Onde estão os ritos, os gestos, as palavras e as mãos do curador? Naaman protesta contra esta solução demasiado simples. Baseado no que acontecia com os curadores do seu país, tinha uma ideia do protocolo da sua cura e recusa aquela oferta de Eliseu, porque demasiado ordinária. Não é raro que recusemos a solução de um problema porque nos aparece demasiado simples. Não a vemos, porque a procuramos nos efeitos especiais e nos fenómenos extraordinários (5, 11). Mas, também aqui, outros servos, trazem uma bênção: «Mas os seus servos aproximaram-se dele e disseram-lhe: “Meu pai, mesmo que o profeta te tivesse mandado uma coisa difícil, não a deverias fazer? Quanto mais agora, ao dizer-te: ‘Lava-te e ficarás curado’”» (5, 13). É o bom senso dos simples que sabe ver soluções fáceis, quando os “grandes” procuram soluções complicadas, inexistentes. Naaman cura-se: «Ele desceu ao Jordão e lavou-se sete vezes e a sua carne tornou-se como a de uma criança e ficou limpo» (5, 14). Com esta cura, começa a sua conversão religiosa: «Voltou, então, ao homem de Deus com toda a sua comitiva; entrou, apresentou-se diante dele e disse: “Reconheço agora que não há outro Deus em toda a Terra, senão o de Israel. Aceita este presente [berakà] do teu servo”» (5, 15).
Naaman, homem rico, quer dar um presente a Eliseu, como sinal de gratidão e de bênção: «Eliseu respondeu: “Por YHWH, o Deus vivo a quem sirvo, juro que nada aceitarei”. E, apesar das instâncias de Naaman, ele continuou a recusar» (5, 16). Num outro rio (o Jaboc), a ferida (não curada) gerou uma bênção (berakà). Aqui, a ferida é curada, mas o curador não aceita a bênção. Porquê esta recusa? Eliseu marca o início de uma nova forma de profecia, a espiritual, num contexto médio-oriental onde o profetismo era uma profissão, marcado por ganhos e comércios. Aqui, Eliseu quer distinguir-se da profecia comercial dos “filhos dos profetas”. A sua profecia é toda graça, charis, gratuidade. Não curou por interesse, mas por vocação. Também a profecia, como todos os dons, vive dentro de relações de reciprocidade. Mas, sobretudo no início, quando se deve marcar uma descontinuidade (quando começa uma vocação, nasce uma nova relação, se funda uma nova realidade…) a reciprocidade, necessária nas relações ordinárias, pode ser um obstáculo, porque, sendo diferente, a sua natureza de dar-receber torna-a demasiado semelhante a um contrato comercial. Então, em determinados momentos fundadores e extraordinários, o dom diz o que é, dizendo não à reciprocidade normal que, quase sempre, o acompanha. Diz “não” para dizer “sim” a algo de mais profundo; porque pode ser-se dom verdadeiro mesmo sem a reciprocidade, não há dom verdadeiro sem gratuidade. Como quando damos o nosso primeiro presente a uma pessoa com quem nos preocupamos muito e não queremos nenhuma outra recompensa que não seja a alegria impressa nos olhos de quem nos olha agradecido, porque, qualquer outra “coisa” reduziria a riqueza e a beleza daquele presente. Eliseu, para dizer que a sua profecia é toda e só graça, renuncia também à reciprocidade.
«Então, Naaman disse: “Já que não aceitas, permite ao menos que se dê ao teu servo uma quantidade de terra deste país, tanta quanta possam carregar duas mulas. Pois doravante o teu servo não oferecerá mais holocaustos nem sacrifícios a outros deuses, mas somente a YHWH”» (5, 17). Aquele “não” a um dom gerou outros dons. Com um pormenor interessante e inesperado: Naaman encontra uma recusa de Eliseu e aquela recusa faz-lhe pedir mais alguma coisa (a terra: o adamah). Aqui, um presente sem reciprocidade produz um outro presente por parte de quem já era “credor”. E não apenas por razões de culto (construir um altar). Estas coisas estranhas são comuns nas dinâmicas sociais do dom, onde o “débito” criado por um dom não se restitui com um contra-dom, mas com um novo dom por parte de quem já tinha dado. Se não fosse assim, a vida seria bastante semelhante a um mercado e perderíamos os espetáculos morais mais belos das mulheres e dos homens. Esta lógica do dom escapa completamente a Guiezi, o servo de Eliseu, que seguirá Naaman para obter, com engano, uma parte dos presentes não aceites por Eliseu (5, 20-27). Antes de se despedir de Eliseu, Naaman diz-lhe algo que nos escancara um novo horizonte: «Quando o meu soberano entrar no templo de Rimon para adorar, apoiando-se no meu braço e eu também me prostrar no templo de Rimon» (5, 18). Naaman era um alto funcionário na Síria; para realizar o seu trabalho tinha de acompanhar o rei ao templo do deus Rimon. Agora, que se converteu, poderá continuar a desempenhar este trabalho? Como juntar a nova fé com a antiga profissão? Naaman sente-se pressionado numa dupla lealdade: a do seu trabalho, à sua vida normal, à sua pátria e a lealdade à sua nova fé. Agora, sabe que Rimon não é o verdadeiro Deus, ele quer honrar somente YHWH; mas a sua vida continua na mesma sociedade de antes.
A história conheceu soluções diferentes para este conflito. Alguns sentem que a segunda nova lealdade não é compatível com a primeira. Deixam os postos de trabalho, país, família e mudam a vida religiosa e a vida civil. As duas lealdades reduzem-se a uma só. Aqui, Eliseu dá, pelo contrário, uma resposta surpreendente: «Shalom»: vai em paz (5, 19). Mas como? O profeta, o paladino da coerência extrema, a todo o custo, diz ao novo convertido para não se preocupar com esta dupla lealdade? Quanto mais uma pessoa é coerente com os seus valores e princípios, mais tolerante é com as escolhas dos outros. A própria coerência não se torna um jugo a colocar sobre os outros. Pelo contrário, são os “doutores da lei” e os “escribas” que impõem aos outros pesos que eles próprios não querem transportar. Os profetas verdadeiros são mestres de misericórdia, de humanidade, de compaixão e levam os seus pesos pesados para não os fazer transportar aos outros. Arrastam eles próprios as cruzes e dizem palavras de amor aos outros crucificados.
Os profetas não cedem um centímetro aos compromissos, na sua vida e, depois, sabem que as mulheres e os homens que trabalham, porque têm de mandar os filhos à escola, têm de viver entre muitas duplas lealdades. Têm da trabalhar nos bancos, nos escritórios e nas empresas que nem sempre são o que o seu Deus quereria que fossem, que têm, por vezes, de se inclinar diante dos falsos deuses, juntamente aos seus chefes. E interrogam-se todos os dias: como viver como fiel em “terra estrangeira”? Homens e mulheres que sabem que o que fazem não é a vida que quereriam e deveriam levar, e até procuram novos trabalhos que quase nunca chegam; e enquanto e até que têm de trabalhar naqueles bancos e naquelas empresas, apenas podem procurar trabalhar bem, o melhor que podem, e oferecer, com suavidade, o braço aos seus “patrões”. Seguem em frente, todos os dias, com a lealdade espiritual que é a mesma lealdade para com a família que devem cuidar com o seu salário. A todas estas pessoas que não têm a possibilidade de escolher os bancos e as empresas onde trabalhar, a estes fiéis no exílio, Eliseu e a Bíblia repetem ainda: “Shalom”, vai em paz, vive esta dupla lealdade. Por fim, é particularmente belo e comovente que o nosso comentário do Livro dos Reis nos tenha levado, hoje, a encontrar a bênção do Sírio, a ler que Deus tenha «concedido a salvação aos sírios». Que esta frase se torne oração.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 05/10/2019
“Fica a saber, caríssima, que o fim da minha vida já está próximo. Por isso, apressa-te a vir a Santa Maria dos Anjos… Peço-te também que me tragas daqueles doces que costumavas dar-me quando estava doente, em Roma.”
Carta de S. Francisco a "Frei" Jacopa, Fonti Francescane 253-255Os milagres de Eliseu são grandes narrativas sobre a vida e sobre a morte e revelam-nos novos trechos da gramática do talento feminino e do dever dos profetas.
Sobre a terra não há maior dom que um filho. Quando um filho morre, fazemos a experiência do maior engano. E se vivemos aquele dom como dom de Deus, a sua morte põe em crise a fé, vivemos o engano como engano de Deus. Com os filhos, morremos também nós, morre a fé, morre Deus. Por vezes, conseguimos ressurgir e, juntamente connosco, ressurge fé, ressurge Deus. Não gostamos muito da imagem do crucifixo porque o Gólgota é pão quotidiano, ao passo que os Monte Tabor são demasiado poucos.
[fulltext] =>Após uma nova guerra entre Israel e Moab (2Rs 3). Eliseu regressa como profeta do povo, das mulheres e das crianças: «Uma mulher suplicou a Eliseu, dizendo: “Meu marido, teu servo, morreu... Mas eis que agora vem o credor tomar os meus dois filhos para os fazer seus escravos”» (4, 1-2). No mundo antigo os credores tomavam também os filhos dos devedores insolventes para os fazer escravos. Isto também acontecia em Israel, mas os hebreus queriam que, no povo diferente de YHWH, também o devedor insolvente pudesse ser tratado de modo diferente: «Estará contigo como um jornaleiro, como um inquilino» (Levítico 25, 40). E, depois, no ano sabático, os escravos por causa das dívidas, deviam voltar à liberdade: «servirá em tua casa até ao ano do Jubileu. Então, sairá da tua casa, assim como os seus filhos» (Lv 25, 40-41).
Eliseu multiplica a sua ânfora de azeite e diz à mulher: «Vai e vende esse azeite para pagar a tua dívida» (2Rs 4, 7). Pela Lei, os escravos deviam esperar sete anos para serem libertos; para os profetas, porém, os escravos devem ser libertos aqui e agora. Os profetas são os libertadores de escravos. Para eles, nem sequer a Lei de Moisés é suficiente para uma vida verdadeiramente digna. A Lei de Moisés sobre os devedores, diferente mais humana, não teria nascido sem a profecia de Israel. Mas a profecia nunca é satisfeita pelas leis, porque nenhuma lei humana pode estar à altura da terra prometida. A única lei que agrada aos profetas é a que ainda não escrevemos. A lei do reino dos Céus é a lei do ainda-não: «Certo dia, ao atravessar Chuném, veio ao encontro de Eliseu uma mulher ilustre e convidou-o a comer em sua casa. E sempre que por ali passava, ia lá tomar a sua refeição» (4, 8). Esta mulher “ilustre” gostava do profeta, “convidando-o” para comer na sua casa bonita. A mulher disse ao marido: «Preparemos-lhe um pequeno quarto sobre o terraço, com uma cama, uma mesa, uma cadeira e uma lâmpada, para que ele ali se possa recolher» (4, 10). Esta família, não só mata a fome a Eliseu, mas também constrói-lhe um pequeno apartamento onde possa “recolher-se”. A primeira Betânia da Bíblia.
Há pessoas que, por vocação especial e preciosa, sabem captar uma necessidade de fraternidade e de humanidade típica dos profetas e a satisfazem. Talvez não façam muitas outras coisas “piedosas” na sua existência, mas este quarto, mantido sempre pronto, perfumado e limpo, para o profeta-amigo que passa, é suficiente para dar um bom sentido à sua vida. Pode-se ser justo fazendo bem uma única coisa na vida. Estas pessoas compreendem que, para o profeta, nenhum hotel de cinco estrelas é melhor que aquele quarto preparado, no “terraço”. Por vezes, perdemos muitas “penúltimas ceias”, na companhia dos profetas, porque não compreendemos o valor destes pequenos quartos de tijolo, o valor espiritualíssimo duma mesa, de uma cama, de uma cadeira e de uma lâmpada no alto das casas dos amigos. Há alguns que continuaram a caminhar durante anos, sem morrer, porque tinham um único amigo que sabia conservar um quarto pronto e preparar uma ceia. Francisco, amante dos pobres e dos leprosos, no fim da vida, deseja os “biscoitos” de Frate Jacopa, uma sua amiga fidalga romana. Nem todos os ricos merecem os “ai de vós” do Evangelho. Existem alguns que fazem parte do povo das bem-aventuranças. Seria demasiado “pobre” um Reino dos Céus sem a presença de algum rico que usa os seus bens para “receber” os profetas. Toda a hospitalidade é sagrada; todo o hóspede acolhido traz uma bênção. Mas a hospitalidade dos profetas transforma a nossa casa num cantinho do paraíso; enche-a de anjos, de maná, de leite e mel – quem acolheu e acolhe profetas sabe-o muito bem.
«Um dia, passando Eliseu por Chuném, recolheu ao quarto para dormir» - como é bonito ver um profeta a dormir! Poder-se-ia construir um quarto só para isto! Eliseu disse a Guiezi, seu servo para chamar a mulher chunamita. E pergunta-lhe: «Que posso fazer por ti, em reconhecimento do desvelo com que nos tens tratado? Queres que fale por ti ao rei ou ao general do exército?» (4, 11-13). Em Eliseu, nasce a reciprocidade, gerada pela hospitalidade da mulher. Mas engana-se no primeiro contra-dom: «Ela respondeu: “Eu vivo em paz no meio do meu povo”» (4, 13). Aquela mulher não precisa de bens materiais, de prestígio, de poder. Estes não são, quase nunca, os bens das mulheres, sobretudo quando não estão na indigência e “vivem bem”. Eliseu compreende e pergunta a Guiezi: «Que se pode fazer por ela?» Respondeu Guiezi: «Infelizmente, ela não tem filhos e o seu marido é idoso» (4, 14). O bem primário das mulheres é a vida. Eliseu mandou chamar a mulher: «Por este tempo, no próximo ano, acariciarás um filho». Mas ela respondeu: «Não, meu senhor, não zombes da tua escrava, ó homem de Deus!» (4, 16).
Estamos de novo nos carvalhos de Mambré. O hóspede anuncia à mulher o bem maior, já não esperado, porque não podia ser esperado (o marido era velho). Aqui, a mulher, como Sara, não acredita imediatamente na promessa inatural daquele homem. Ela, porém, não ri, e diz algo de tremendamente sério, porque diz respeito à intimidade e ao segredo maior da mulher: “não zombes da tua escrava”. As mulheres nunca brincam com a vida e com os filhos. Mas, também aqui, o impossível realiza-se: «A mulher concebeu e deu à luz um filho» (4, 17). A criança cresceu e «um dia, indo ter com seu pai, que andava com os ceifadores, disse-lhe: “Ai a minha cabeça! Ai a minha cabeça!” E o pai disse para o criado: “Leva-o à sua mãe”» (4, 18-19). Passam os anos. O menino está doente e o pai envia-o à mãe e às suas mãos mais afáveis – quantas vezes o vemos, quantas vezes o fazemos. Mas o menino morre. A sua morte oferece-nos uma das cenas mais belas da Bíblia, revela-nos um outro trecho da gramática bíblica sobre o talento das mulheres: «A mãe deitou o menino na cama do homem de Deus» (4, 21). O menino está morto, mas a mãe não acredita nisso. E intui que a vida tem a ver com aquele profeta hóspede. Eliseu encontra-se no Monte Carmelo, mas a mãe, na espera, deita-o na cama do profeta, o único lugar onde pousar aquele filho. Chamou o marido: «vou depressa a casa do homem de Deus, e volto». Ele respondeu-lhe: «Porque vais ter com ele hoje? Não é a Lua-nova, nem Sábado». Ela disse-lhe: «Tem calma!» (4, 23).
IlO marido não compreende. Pensa que o profeta seja um homem do culto, a quem se dirigir apenas nos dias de festa. Pelo contrário, a mulher sabe que, se há uma possibilidade de salvar o seu filho, esta se chama Eliseu. Belíssimo aquele “tem calma” (ou “passa bem; adeus”), que assinala uma outra grande diferença entre a mulher e o marido, na gestão daquela crise. O homem parece bloqueado, confuso, resignado. A mulher age, com pressa, sabendo muitíssimo bem o que deve fazer. Parte e ordena ao seu servo: «Conduz a burra depressa, e não me detenhas no caminho». Eliseu vê-a ao longe. O seu servo pergunta-lhe: «Como estás?» Ela respondeu: «Bem!» (4, 24-26). De facto, não está bem, mas não quer perder tempo a falar com o embaixador. Só as mulheres conhecem os tempos e os ritmos da vida, nas grandes crises, onde só conta chegar depressa ao objetivo. São mestras de bens relacionais e de palavras: sabem passar horas, entretidas, em diálogos, apenas pelo gosto de conversar; mas, quando está em jogo a vida, tornam-se capazes de cálculos custo-benefício perfeitos e implacáveis. Ela só quer salvar o filho e, por isso, que apenas Eliseu, imediatamente. Não se perde em tagarelices e elogios; não é a altura da cortesia com os mordomos. Lança-se aos pés de Eliseu e pronuncia uma frase estupenda que só as mulheres podem dizer: «Pedi eu, porventura, algum filho ao meu senhor? Não te disse que não zombasses de mim?» (4, 28).
É o centro dramático do encontro. A mulher critica Eliseu por a ter enganado, de a ter iludido com um filho dado e tirado, de ter zombado dela. Existe, nas mulheres, uma autoridade da vida que gera palavras de uma força única e infinita. Ouvi mulheres a pronunciar, gritando, repreensões, aos homens e a Deus, de uma dureza inaudita, mas mais forte era, em quem assistia á cena, a certeza de estar a viver algo de maravilhoso. Nestes momentos, um insulto ou uma praga têm o perfume suave de um salmo. Este berro da mulher Sunamita é das orações mais verdadeiras e belas de toda a Bíblia, que permanece belíssima e veríssima, mesmo sem saber (porque ainda o não sabemos) se o filho ressuscitará. Eliseu manda o seu servo junto do menino. A mãe compreende que a possível salvação está na pessoa do profeta. Protesta novamente e diz a Eliseu: «não te deixarei!» Então, «Eliseu levantou-se e seguiu-a» (4, 30). Eliseu continua o seu seguimento – o seguimento é maduro quando sabe alternar o acompanhamento do mestre e do discípulo.
Eliseu entrou em casa. Encontrou o rapaz morto estendido na sua cama, rezou e «pôs a sua boca sobre a boca dele, os seus olhos sobre os olhos dele, as suas mãos sobre as mãos dele. E encostado, assim, sobre o menino, o corpo do menino foi aquecendo… O menino espirrou sete vezes e abriu os olhos» (4, 34-36). E, depois, disse à mãe: «Toma o teu filho» (4, 37). O filho é dado à mulher pela segunda vez. Não é a ressurreição do filho, o fim feliz da história, a tornar verdadeiro o grito de protesto daquela mulher, mas é a verdade do grito a tornar verdadeiro o final desta história e das nossas, quando os filhos permanecem mortos e os nossos gritos permanecem verdadeiros. Esta mulher Chunamita permanece na Bíblia sem nome. Talvez para que cada mãe, suspensa entre a morte e uma ressurreição esperada, possa lá colocar o seu.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 05/10/2019
“Fica a saber, caríssima, que o fim da minha vida já está próximo. Por isso, apressa-te a vir a Santa Maria dos Anjos… Peço-te também que me tragas daqueles doces que costumavas dar-me quando estava doente, em Roma.”
Carta de S. Francisco a "Frei" Jacopa, Fonti Francescane 253-255Os milagres de Eliseu são grandes narrativas sobre a vida e sobre a morte e revelam-nos novos trechos da gramática do talento feminino e do dever dos profetas.
Sobre a terra não há maior dom que um filho. Quando um filho morre, fazemos a experiência do maior engano. E se vivemos aquele dom como dom de Deus, a sua morte põe em crise a fé, vivemos o engano como engano de Deus. Com os filhos, morremos também nós, morre a fé, morre Deus. Por vezes, conseguimos ressurgir e, juntamente connosco, ressurge fé, ressurge Deus. Não gostamos muito da imagem do crucifixo porque o Gólgota é pão quotidiano, ao passo que os Monte Tabor são demasiado poucos.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 29/09/2019
«O anjo da morte lamentava-se com o Senhor, porque a transladação de Elias teria desencadeado protestos de todos os seres humanos, que não conseguem derrotar a morte»
Zohar, Il libro dello splendore
O desaparecimento de Elias no carro de fogo e o início do ciclo de Eliseu revela-nos uma dimensão essencial da profecia e da sua continuação: cada um é dom, tanto o pai como o discípulo.
As vocações dos profetas são acontecimentos misteriosos. Regra geral, o profeta é chamado diretamente por Deus, a sua vocação acontece dentro duma teofania, por vezes acompanhada de visão de anjos e de vozes. Nem sempre é assim. Há profetas autênticos que não ouviram nenhuma voz de Deus que os chamava pelo nome, que não viram os anjos. Ouviram apenas um “sussurro de silêncio” ou o grito dos pobres – e partiram. Outras vezes, é um outro profeta a chamá-los. Encontravam-se ao longo do Mar da Galileia, estavam a puxar as redes. Passou um homem diferente, talvez um profeta, chamou-os, deixaram a água e tornaram-se caminhantes da terra. Também Eliseu foi chamado por Elias. Os discípulos do Nazareno e de Eliseu não viram, diferentemente de Isaías e Ezequiel, o céu aberto. Viram um homem, ouviram apenas a voz de um homem, e, naquela voz humana, não faltava nada para deixar tudo. Estes são os chamamentos típicos dos discípulos dos profetas, quando a vocação começa com uma voz humana. Por vezes, à voz dos profetas, junta-se a de Deus; outras vezes não; permanece apenas a voz de um homem, de uma mulher. Eliseu sabia que Elias era profeta de YHWH; sabia que, seguindo Elias, seguiria Deus; mas, a chamá-lo, foi Elias, não o Deus de Elias. A Eliseu bastou aquela voz humana para deixar tudo e começar uma vida nova. Um chamamento que se repetiu muitas vezes na história, que se renova em cada dia, quando a fé ganha a forma da confiança numa voz humana.
[fulltext] =>«Elias partiu dali [do Horeb] e encontrou Eliseu, filho de Chafat, que andava a lavrar com doze juntas de bois diante dele; ele próprio conduzia a duodécima junta. Elias aproximou-se e lançou o seu manto sobre ele. Eliseu deixou logo os seus bois, correu atrás de Elias» (1Rs 19, 19-20). Os seguimentos proféticos são corridas velozes. Eliseu é chamado enquanto lavrava; portanto, empoeirado, suado, com os pés enlameados. Chega-lhe a vocação. Como economista e, por isso, observador e amante de trabalho e de empresa, experimento sempre uma emoção quando me deparo com uma das muitas cenas bíblicas, onde a vocação acontece durante o trabalho. «Enquanto, no barco, consertavam as redes», «Palavra de Amós, que era criador de ovelhas». Na Bíblia, não há lugar mais “religioso” para as vocações que um campo lavrado, não há objetos mais sagrados que uma junta de bois, porque, nas liturgias vocacionais, também o cheiro do estrume pode ser incenso suave. Aqui, encontra-se uma das raízes mais profundas do humanismo bíblico, que libertou a voz de Elohim dos recintos do sagrado e do religioso. E, assim, a 10 de Setembro de 1946, aquela mesma voz livre pode chamar Anjezë, no comboio entre Calcutá e Darjeeling. Naquele meio poeirento e profano, “nasce” Madre Teresa de Calcutá: a voz não esperou que a jovem freira chegasse ao retiro espiritual para onde se dirigia; para a chamar não pensou que a capela daquele centro fosse um lugar mais apto que um vagão de comboio/trem.
Elias passa junto de Eliseu e lançou-lhe sobre os ombros o seu manto. Naquele mundo, o manto era o primeiro símbolo do profeta, mas também era algo mais. No início do Segundo Livro dos Reis, também Elias é reconhecido por Acazias, o sucessor de Acab, pelo seu manto: «“Qual era o aspeto desse homem que se encontrou convosco e vos falou desse modo?” Responderam-lhe: “Era um homem vestido com um manto de peles, que trazia um cinto de couro em volta dos rins”. O rei disse: “É Elias”» (2Rs 1, 7-8). A Bíblia é atravessada por muitos mantos. Os filhos de Noé, com o seu manto, cobriram a nudez do pai embriagado; a Lei de Moisés manda restituir, antes da noite, ao devedor insolvente, o seu manto tomado como penhor; David encontra Saúl e, em vez de o matar, corta-lhe apenas uma tira do seu manto; e foi um manto vermelho que foi posto aos ombros de Jesus, diante de Pilatos, no início da sua paixão: o Ecce Homo não tinha apenas a túnica; tinha também o manto – ambos recebidos, ambos dados. «Quando o Senhor quis arrebatar Elias ao céu, num redemoinho, Elias e Eliseu partiram de Guilgal. Elias disse a Eliseu: “Fica aqui porque o Senhor envia-me a Betel”. Mas Eliseu respondeu-lhe: “Pela vida de YHWH e pela tua vida, juro que não te deixarei”» (2Rs 2, 1-2). Elias tenta, por três vezes, deixar Eliseu (em Jerico e no Jordão), mas Eliseu impede-o. Nestas linhas, lemos o maravilhoso diálogo entre Noemi e Rute, entre Jesus e Pedro, sobre o amor e o rebanho.
Nas suas primeiras fugas no deserto, Elias tinha conseguido estar só. Quando se refugiou, cansado e amedrontado, à sombra do junípero, antes de partir tinha deixado em Bercheba o seu “servo” e tinha ficado só (1Rs 19, 3). Agora, enquanto se prepara para a sua “morte”, Eliseu, pelo contrário, não o deixa só. Está aqui a diferença determinante entre um servo e um discípulo. O servo obedece, não discute, não protesta. O discípulo não; não o pode fazer: «Pela vida de YHWH e pela tua vida». Em certas provas decisivas – como a última – os profetas queriam estar sós. São sugados na alma por uma misteriosa vertigem de dor e de amor. Nalgumas viagens, todos procuramos a solidão, mas, frequentemente, os afetos naturais são o antídoto precioso que nos impede de colapsar nas solidões. Os profetas não têm estes antídotos-dons naturais. Mas os discípulos podem ser isso se permanecem e não se tornam servos. Se o profeta tem à volta apenas “servos”, encontra-se a enfrentar estas noites sem fraternidade e companhia, numa dor não-necessária, que se acrescenta a muitas dores inevitáveis. O discípulo é também esta companhia extrema do profeta, uma presença tenaz que segue o profeta em lugares onde ninguém consegue penetrar. Eis porque, se o profeta é um grande dom para o discípulo, talvez o maior sobre esta terra, também o discípulo é um dom para o profeta, talvez o maior.
Nesta estranha fuga de Elias, nesta sua última milha, acompanhado, fazem a aparição os misteriosos “filhos dos profetas”, que falam, com Eliseu: «Os filhos dos profetas que estavam em Betel saíram ao encontro de Eliseu e disseram-lhe: “Não sabes que o Senhor vai levar hoje o teu amo por sobre a tua cabeça?” Ele respondeu: “Sim, eu sei. Calai-vos!”» (2Rs 2, 3). Estes “filhos dos profetas” eram comunidades de profetas, que viviam nos arredores das cidades, frequentemente em santuários. É provável que também Eliseu vivesse numa destas comunidades, fosse um dos “filhos”. Também ele, porventura, “sabe” o que o espera, mas Eliseu não quer escutar os dados e a notícia: “Calai-vos”. Talvez os filhos dos profetas lhe terão sugerido o desejo-ordem de solidão de Elias. Mas Eliseu é diferente. Era parte de uma comunidade de filhos mas, embora permanecendo filho e, por isso, irmão, Eliseu é o discípulo e o herdeiro. De facto, «seguiram-nos cinquenta filhos dos profetas, que pararam ao longe, voltados para eles, enquanto Elias e Eliseu se detinham na margem do Jordão» (2, 7). Os filhos dos profetas param na margem, o discípulo continua o caminho. E é à volta da herança que se desenrola o último encontro entre Elias e Eliseu. Mal os dois passaram o Jordão, «Elias disse a Eliseu: “Pede o que quiseres, antes que eu seja separado de ti. Que posso fazer por ti?” Eliseu respondeu: “Seja-me concedida uma porção dupla do teu espírito”» (2, 9). A dupla parte era a parte da herança que passava do pai ao primogénito. Eliseu está a pedir para ser o herdeiro de Elias – nada menos! Elias responde: «Pedes uma coisa difícil. No entanto, se me vires quando estiver a ser arrebatado de junto de ti, terás aquilo que pedes; mas, se não me vires, não o terás» (2, 10). É uma coisa difícil, mas possível, se for capaz de ver Elias enquanto desaparece. A possibilidade de se tornar herdeiro primogénito de Elias está na capacidade de Eliseu de manter o olhar até ao fim, de resistir diante do seu desaparecimento.
«Continuando o seu caminho, entretidos a conversar, eis que, de repente, um carro de fogo e uns cavalos de fogo os separaram um do outro, e Elias subiu ao céu num redemoinho. Eliseu viu tudo isto e exclamou: “Meu pai, meu pai! Carro e condutor de Israel!”» (2, 11-12). Eliseu olha e grita: “Meu pai!” Eliseu é o filho, o herdeiro. Olhou até ao fim. O herdeiro deve saber ver o desaparecimento do profeta. E, depois, tornar-se pai, recolher a herança. No mundo antigo, a herança tornava-se eficaz só depois da morte do pai. Eliseu pode tornar-se o herdeiro se aceita aquela “morte”. Deve aceitar que o pai desapareça, tornar-se adulto e continuar a caminhada. Toda a vocação profética adulta começa aceitando a morte do pai. Eliseu torna-se herdeiro e profeta ao mesmo tempo em que consegue ver, de frente, o desaparecimento de Elias, até ao fim. Mas a primeira – e talvez a única – preocupação do discípulo-filho de um profeta é tornar-se pai e profeta permanecendo sempre discípulo e filho. E, aqui, descobrimos algo de importante na relação profeta-discípulo-herdeiro. Eliseu pede para se tornar o herdeiro. Por vezes, a herança profética pode ser pedida e dada, pode ser o fruto de um chamamento interior do herdeiro – é o que acontece, frequentemente, com os reformadores de comunidades. Mas o que mais interessa é que a herança tem a ver com o espírito. Eliseu não pede o manto; pede o espírito. O manto não faz o profeta; é o espírito a fazê-lo herdeiro do profeta e, assim, fazê-lo também profeta. Estamos perante uma revolução na profecia bíblica. Depois de Eliseu, continuará a profecia como profissão, como status social, marcado pelo manto. Mas, agora, ao lado do profetismo institucional, começa uma profecia nova, a do espírito, que marcará uma época inédita e extraordinária: a de Isaías, Jeremias, Ezequiel.
Mas há algo mais. Ao herdeiro, não passa todo o espírito. A herança é apenas de dois terços. Na época da profecia espiritual, o primogénito que recebe o manto do profeta não herdava todo o espírito do fundador. Recebe uma porção dupla, mas não a quota inteira. O herdeiro do profeta não tem mais a totalidade do espírito. Tem uma parte, uma parte abundante, mas não o todo. Porque uma parte da herança passa aos outros herdeiros, aos outros “filhos” dos profetas. O herdeiro dos profetas é o primogénito, mas não é filho único. Depois do desaparecimento do profeta, nenhum homem possui, sozinho, todo o espírito. Para herdar os três terços, é preciso toda a comunidade.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 29/09/2019
«O anjo da morte lamentava-se com o Senhor, porque a transladação de Elias teria desencadeado protestos de todos os seres humanos, que não conseguem derrotar a morte»
Zohar, Il libro dello splendore
O desaparecimento de Elias no carro de fogo e o início do ciclo de Eliseu revela-nos uma dimensão essencial da profecia e da sua continuação: cada um é dom, tanto o pai como o discípulo.
As vocações dos profetas são acontecimentos misteriosos. Regra geral, o profeta é chamado diretamente por Deus, a sua vocação acontece dentro duma teofania, por vezes acompanhada de visão de anjos e de vozes. Nem sempre é assim. Há profetas autênticos que não ouviram nenhuma voz de Deus que os chamava pelo nome, que não viram os anjos. Ouviram apenas um “sussurro de silêncio” ou o grito dos pobres – e partiram. Outras vezes, é um outro profeta a chamá-los. Encontravam-se ao longo do Mar da Galileia, estavam a puxar as redes. Passou um homem diferente, talvez um profeta, chamou-os, deixaram a água e tornaram-se caminhantes da terra. Também Eliseu foi chamado por Elias. Os discípulos do Nazareno e de Eliseu não viram, diferentemente de Isaías e Ezequiel, o céu aberto. Viram um homem, ouviram apenas a voz de um homem, e, naquela voz humana, não faltava nada para deixar tudo. Estes são os chamamentos típicos dos discípulos dos profetas, quando a vocação começa com uma voz humana. Por vezes, à voz dos profetas, junta-se a de Deus; outras vezes não; permanece apenas a voz de um homem, de uma mulher. Eliseu sabia que Elias era profeta de YHWH; sabia que, seguindo Elias, seguiria Deus; mas, a chamá-lo, foi Elias, não o Deus de Elias. A Eliseu bastou aquela voz humana para deixar tudo e começar uma vida nova. Um chamamento que se repetiu muitas vezes na história, que se renova em cada dia, quando a fé ganha a forma da confiança numa voz humana.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 22/09/2019
«O nome de Elias, como anjo, é Sandalfon, entre os maiores e mais terríveis de todo o grupo, com a missão de entrelaçar, para o Senhor, coroas com as orações e de oferecer sacrifícios no santuário invisível, dado que o Templo foi destruído apenas na aparência e continua a existir.»
Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei, VI
A distinção entre verdadeira e falsa profecia atravessa toda a Bíblia. Este relato traz novos elementos à compreensão dos profetas e da sua função, ontem e hoje.
A profecia bíblica, apesar de única, dá-nos um paradigma para compreender melhor alguns fenómenos determinantes nas nossas sociedades e comunidades. Mudam as formas, os modos, as palavras, mas, ainda hoje, existem profetas falsos e são legiões; profetas verdadeiros que, em boa-fé, dizem asneiras, outros honestos que dizem, frequentemente, palavras verdadeiras, mas nem sempre. E, sobretudo, existem poderosos que, embora reconhecendo as palavras verdadeiras dos profetas, não as escutam. E morrem. «Passaram-se três anos sem haver guerras entre a Síria e Israel. No terceiro ano, Josafat, rei de Judá, foi visitar o rei de Israel. Este... disse a Josafat: “Queres tu vir comigo fazer guerra a Ramot de Guilead?” Josafat respondeu ao rei de Israel: “Eu farei o que tu fizeres» (1Rs 22, 1-4). Depois do parêntesis (maravilhoso) da vinha de Nabot, eis-nos de novo no contexto bélico, aberto no capítulo 20. Josafat, rei de Judá, dirige-se ao Norte, em visita política. Acab propõe-lhe que o ajude numa guerra de conquista de territórios ocupados pelos arameus (Ramot de Guilead). Josafat aceita, mas pede a Acab para, antes, consultar os profetas (22, 5). Consultar o próprio Deus antes de iniciar um projeto militar era muito comum no mundo antigo. Israel encontra-se ainda numa zona intermédia entre o xamanismo arcaico e o profetismo mais maduro dos séculos seguintes: «Então o rei de Israel convocou os profetas, cerca de quatrocentos homens, e perguntou-lhes: “Posso ir fazer guerra a Ramot de Guilead, ou devo renunciar a isso?” Eles responderam-lhe: “Vai! O Senhor a entregará nas mãos do rei”» (2, 6).
[fulltext] =>Quatrocentos profetas de YHWH. Um número notável, que nos recorda os de Baal (450), degolados por Elias, no Monte Carmelo. Na Bíblia, os reis e o poder não têm relação fácil com os profetas. Têm necessidade deles, mas têm medo dos profetas verdadeiros, porque livres e imprevisíveis. A opinião dos profetas é totalmente a favor da guerra: 100% favoráveis. Mas, o humanismo bíblico não gosta da unanimidade. A ausência do contraditório é um mau sinal. Porque Deus fala na diversidade e na sinfonia das vozes. A monotonia destes acordes indica, quase sempre, um engano. Esta unanimidade faz desconfiar também Josafat, naturalmente mais especialista da vida e de Deus e pede uma outra opinião: «Josafat disse: “Não há por aí qualquer outro profeta do Senhor, a quem pudéssemos consultar?”» (22, 7). Acab responde a Josafat: «Há realmente um homem… mas eu detesto-o, pois ele nunca me profetiza o bem, senão somente desgraças. É Miqueias, filho de Jímela» (22, 8). Acab odeia Miqueias. Os reis detestam os profetas da desventura (da sua), mesmo quando são verdadeiros e honestos. Aqui, encontramos um eco de Jeremias, que se encontrará a partilhar a mesma sorte de Miqueias. Josafat consegue obter que Miqueias seja chamado à corte. É interessante o diálogo entre o eunuco e Miqueias: «O mensageiro que tinha ido chamar Miqueias dizia-lhe: “… Que o teu oráculo seja, como o deles, anunciador de boas novas”. Mas Miqueias respondeu: “Pela vida de YHWH! Eu direi apenas aquilo que YHWH me disser”» (22, 13-14). Como muitos colaboradores rufias, ao funcionário não interessa a verdade; quer apenas secundar o seu chefe. Uma cena muito comum que, no relato, serve para tornar explícito que Miqueias é um profeta verdadeiro.
Mas eis o primeiro golpe de teatro: Miqueias, cuja fama de profeta da desgraça é de nós conhecida, finta-nos: «Apresentou-se, então, ao rei, que lhe disse: “Miqueias, devemos ir atacar Ramot de Guilead ou não?”. “Vai – respondeu Miqueias; serás vencedor, porque o Senhor a vai entregar nas mãos do rei”» (2, 15). Miqueias dá a mesma reposta dos quatrocentos profetas, não rompe a unanimidade. Um segundo golpe de teatro: Acab, em vez de exultar perante aquela que será a primeira profecia “favorável” produzida por Miqueias, exclama: «Quantas vezes é preciso conjurar-te a que não me digas senão a verdade, em nome de YHWH?» (22, 16). Uma pergunta bizarra e importante. Acab mostra uma estranha honestidade. Pressente que aquela palavra de Miqueias não é verdadeira, embora lhe conviesse. Existem poderosos que embora (como veremos) não escutem os profetas verdadeiros, sabem reconhecer quando dizem a verdade. Muitos chefes têm um faro especial ou “carisma” de discernimento, um dom que lhes permite fazer carreira e que os torna fascinantes. O talento do discernimento dos espíritos permite-lhe, frequentemente, compreender rapidamente as pessoas que têm à frente, de reconhecerem também os profetas verdadeiros dos falsos. Mas – diz-nos a Bíblia – não basta o talento natural para pôr em prática o conteúdo das palavras verdadeiras. Um dos “pecados” mais comuns de pessoas com grandes dotes está em não seguirem a verdade que reconhecem – talvez os misteriosos “pecados contra o espírito” de que fala o Evangelho sejam, precisamente, estes. Ao mesmo tempo, aquele intuito natural pode, paradoxalmente, ajudar o profeta verdadeiro.
De facto, perante a objeção de Acab, Miqueias muda a resposta e diz a verdade: «Ele respondeu-lhe: “Eu vejo todo o Israel espalhado pelas montanhas, qual rebanho sem pastor”» (22, 17). É uma clara profecia de paz, o oposto da dos quatrocentos profetas. Não sabemos porque Miqueias responde com uma mentira à primeira pergunta de Acab – talvez não acreditasse na escuta de Acab, estava desconfiado, por ironia, por medo. Aqui, a Bíblia quer sugerir-nos algo de alcance muito mais geral, muito importante também na vida de muitas organizações e comunidades. Não nos diz apenas que também um rei mau pode fazer uma pergunta boa, nem que também um rei infiel pode ajudar um profeta a ser fiel à sua verdade. Diz-nos mais. Sugere-nos que, se um responsável, em momentos de crise e de escolhas difíceis, quer compreender a escolha acertada a fazer, deve estar muito desconfiado do consenso unânime; deve procurar mais. Se todos estão de acordo, deve ser muito expedito e procurar um Miqueias nas redondezas. E se, depois, por intuito, sabe que tem diante um profeta verdadeiro, não se deve contentar com a primeira resposta, sobretudo se se assemelha à dada por todos os outros. Porque esta pode ser uma resposta falsa dada por um profeta verdadeiro. Deve aprender a repetir a pergunta, mesmo quando “detesta” a pessoa e a resposta. Nestas coisas, repetita iuvant. Jesus teria de perguntar três vezes a Pedro se o amava, para ter uma das respostas mais belas sobre a amizade. E se esta pergunta dupla a soube fazer um rei mau, podemos fazê-la também nós.
Nesta altura, Miqueias continua a sua profecia e oferece-nos um terceiro golpe de teatro: «Eu vi YHWH, sentado no seu trono, rodeado de todo o exército celeste à sua direita e à sua esquerda. YHWH disse: “Quem seduzirá Acab, a fim de que ele suba e morra em Ramot de Guilead?” Mas cada um respondia a seu modo. Então, surgiu um espírito, apresentou-se diante de YHWH e disse: “Eu irei seduzi-lo… Irei, e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus profetas”. Disse-lhe YHWH: “Enganá-lo-ás e conseguirás seduzi-lo; vai e faz como disseste”. E YHWH pôs um espírito de mentira na boca de todos os teus profetas» (22, 19-23). Miqueias revela ao rei algo de surpreendente, que recorda o desafio entre Deus e o “satan”, no prólogo do livro de Job. Aqueles quatrocentos profetas, portanto, não são falsos profetas: apenas estão enganados e a enganá-los está um dos “espíritos” de Deus. Estupendo! É a primeira vez que, na Bíblia, encontramos profetas enganados pelo próprio Deus. O Deus bíblico é complicado. Há um espírito da sua corte que lhe pede permissão para enganar todos os quatrocentos profetas. Naqueles textos arcaicos, dentro do Deus verdadeiro, habitavam também espíritos maus e enganadores; YHWH era maior que os seus espíritos bons e honestos sozinhos – que combaterão com Jacob, num vau noturno, que procurarão matar Moisés enquanto descia do Sinai, que pregarão um Filho na cruz (“Meu Deus, meu Deus, porque…?”). O Deus bíblico induz em tentação, com certeza. Este episódio continua a revelar-nos novos trechos da gramática da profecia. Não nos mostram apenas duas categorias de profetas: verdadeiros e falsos. Existem falsos profetas que sabem que são falsos e dizem coisas falsas; há alguns verdadeiros que dizem apenas coisas verdadeiras. Sabíamo-lo. Mas, agora, descobrimos que também existem profetas verdadeiros que dizem, intencionalmente, coisas falsas (o primeiro Miqueias) e outros verdadeiros que dizem, de boa-fé, mentiras, porque enganados, inclusive, por Deus. Como é difícil reconhecer os profetas?
Acab reconhece um profeta verdadeiro, dialoga, ajuda-o a ser honesto, mas, no fim, não o escutou: «O rei de Israel subiu com Josafat, rei de Judá, a Ramot de Guilead» (22, 29). Sabia que a palavra de Miqueias era verdadeira, sabia que Deus tinha estabelecido que aquela guerra estava perdida. Mas, apesar de tudo isto, Acab partiu. Nem sequer a visão do céu aberto converteu Acab. É misteriosa esta desobediência de Acab, que é tremenda porque nos recorda, muito de perto, muitas das nossas. Sabemos, porque uma palavra verdadeira nos diz que a ação que estamos a realizar não é a que deveríamos fazer. Mas nós tomamos o caminho errado, sabendo que é o caminho errado. Sabíamos que devíamos ficar em casa e, pelo contrário, partimos. Acabamos a guardar porcos e não nos levantamos para voltar para casa. Também Acab morreu numa batalha (22, 35). Mas, apesar do seu fracasso, permanece o valor daquela pergunta dupla – a Bíblia é grande também porque nos sabe dar palavras de vida, encastoadas em palavras mortas; antes de morrer, Acab, com aquela pergunta tenaz, escreveu uma linha de luz no seu testamento, deixou-nos um pedaço de verdade num mar de mentira (e se fosse apenas uma linha verdadeira, escrita na nossa vida, a salvar-nos?).
Aquela palavra verdadeira custou a Miqueias a bofetada de um seu “colega”, Sedecias, um dos quatrocentos, e, depois, o cárcere (22, 24-27). Como Jeremias, como todos os seus irmãos de ontem, de hoje, de sempre. Como Elias, também um só profeta contra uma multidão. E, também agora, a palavra verdadeira vence, mesmo se Miqueias “morre”. De facto, a Bíblia deixa Miqueias na prisão, esquece-o aí. Depois deste diálogo, sai de cena para sempre. Mas um redator posterior quis despedir-se dele pondo-lhe na boca as mesmas palavras, ditas, séculos depois, por um outro profeta Miqueias, o último dos profetas bíblicos. Também nós o queremos saudar com aquelas estupendas palavras: «Povos todos, escutai!” (22, 28). Escutemos todos Miqueias, não esqueçamos os muitos profetas verdadeiros esbofeteados e encarcerados apenas porque foram fiéis a uma palavra verdadeira e incómoda.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 22/09/2019
«O nome de Elias, como anjo, é Sandalfon, entre os maiores e mais terríveis de todo o grupo, com a missão de entrelaçar, para o Senhor, coroas com as orações e de oferecer sacrifícios no santuário invisível, dado que o Templo foi destruído apenas na aparência e continua a existir.»
Louis Ginzberg, Le leggende degli ebrei, VI
A distinção entre verdadeira e falsa profecia atravessa toda a Bíblia. Este relato traz novos elementos à compreensão dos profetas e da sua função, ontem e hoje.
A profecia bíblica, apesar de única, dá-nos um paradigma para compreender melhor alguns fenómenos determinantes nas nossas sociedades e comunidades. Mudam as formas, os modos, as palavras, mas, ainda hoje, existem profetas falsos e são legiões; profetas verdadeiros que, em boa-fé, dizem asneiras, outros honestos que dizem, frequentemente, palavras verdadeiras, mas nem sempre. E, sobretudo, existem poderosos que, embora reconhecendo as palavras verdadeiras dos profetas, não as escutam. E morrem. «Passaram-se três anos sem haver guerras entre a Síria e Israel. No terceiro ano, Josafat, rei de Judá, foi visitar o rei de Israel. Este... disse a Josafat: “Queres tu vir comigo fazer guerra a Ramot de Guilead?” Josafat respondeu ao rei de Israel: “Eu farei o que tu fizeres» (1Rs 22, 1-4). Depois do parêntesis (maravilhoso) da vinha de Nabot, eis-nos de novo no contexto bélico, aberto no capítulo 20. Josafat, rei de Judá, dirige-se ao Norte, em visita política. Acab propõe-lhe que o ajude numa guerra de conquista de territórios ocupados pelos arameus (Ramot de Guilead). Josafat aceita, mas pede a Acab para, antes, consultar os profetas (22, 5). Consultar o próprio Deus antes de iniciar um projeto militar era muito comum no mundo antigo. Israel encontra-se ainda numa zona intermédia entre o xamanismo arcaico e o profetismo mais maduro dos séculos seguintes: «Então o rei de Israel convocou os profetas, cerca de quatrocentos homens, e perguntou-lhes: “Posso ir fazer guerra a Ramot de Guilead, ou devo renunciar a isso?” Eles responderam-lhe: “Vai! O Senhor a entregará nas mãos do rei”» (2, 6).
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 15/09/2019
«Não nasceu só um Acab; mas, o que é pior, Acab nasce em cada dia e, neste mundo, jamais morre. Nabot não foi apenas morto. Em cada dia, Nabot é humilhado. Em cada dia é pisado»
Ambrogio, A vinha de Nabot
A vinha de Nabot, um dos episódios mais tremendos e conhecidos da Bíblia, é uma lápide que nos pede para pararmos e cuidarmos desta vítima de quem se julga deus. Para aprender que nem tudo é negociável.
Na Bíblia, e na grande literatura, encontram-se, de vez em quando, páginas que têm a mesma força moral que uma lápide. As histórias de Urias, o hitita, da filha de Jefté, de Agar, Dina, Rispa, Tamar, Job, Abel, o servo de YHWH, o crucificado. Frequentemente, passamos adiante, à procura de páginas mais edificantes. No entanto, alguém experimenta misericórdia. Para, recolhe-se, recorda, reza, chora, cuida delas. A história de Nabot e da sua vinha é uma destas páginas-lápide, um monumento erigido a uma vítima inocente. A vinha de Nabot é um exercício ético, social, económico, espiritual que, durante séculos, gerou sentimentos morais, leis, constituições. Ensinou-nos a indignação, fez-nos gritar “não é justo!”, “ah, malvado, malvada”, “tem de haver justiça neste mundo”, “porquê, Deus? Onde estás?”, “nunca mais”. Melhorou o homem, melhorou Deus.
[fulltext] =>«Nabot de Jezrael tinha uma vinha junto ao palácio de Acab, rei da Samaria. Disse então Acab a Nabot: “Cede-me a tua vinha para que eu a transforme em horta, pois fica junto da minha casa. Dar-te-ei em troca uma vinha melhor; ou, se te convier, pagar-te-ei o seu valor em dinheiro”. Nabot disse a Acab: “Por YHWH! Seria um sacrilégio ceder-te a herança de meus pais!”» (1Rs 21, 1-3). Acab vê a terra de Nabot, deseja-a, quer tê-la para fazer uma horta. Fala com Nabot e propõe-lhe um contrato. Um contrato aparentemente justo e vantajoso, ao preço corrente. Mas Nabot rejeita, em nome de um valor diferente do económico: aquela vinha é herança dos pais. A Lei de Moisés tinha uma legislação especial para a terra: «Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra pertence-me» (Lv 25, 23). A terra não era uma mercadoria como as outras. Se alienada, por necessidades económicas, podia ser resgatada por um parente (goel), e, no ano jubilar, voltava ao antigo proprietário. A terra herdada da família estava, pois, sujeita a vínculos maiores. Nabot respeita YHWH e a sua Lei e não aceita a oferta, Porém, o rei anuncia-lhe a vontade de mudar o destino do uso daquele terreno – quer desmantelar a vinha para plantar uma horta. Na Bíblia, a vinha não é um terreno qualquer. É símbolo profético da aliança (Isaías), é imagem do povo de Israel. Por estas razões – e talvez por outras – Nabot não aceita o dinheiro do rei. Não vende, não cede, decide que aquela terra não está à venda. Aquele bem é, para ele, inalienável, é um valor não negociável. Não vendendo, diz que a sua dignidade não está à venda.
«Acab voltou para casa triste e irritado, pelo facto de Nabot lhe ter dito: “Não te darei a herança de meus pais”. Deitou-se na cama, voltou o rosto para a parede e não quis mais comer» (21, 4). O rei Acab, perante aquela recusa, tem uma reação, no mínimo, exagerada. Estava num estado depressivo que recorda o de Elias debaixo do junípero (cap. 19).
A Bíblia também conhece as depressões erradas. A crise de Elias, gerada pela perseguição de Jezabel, foi causa de dois encontros com o anjo e, depois, do sussurro do Horeb. Esta depressão de Acab, originada por uma recusa legítima, só produzirá mentira e morte. Quem, por missão ou por vocação, se encontra a ajudar pessoas em crise tem de, absolutamente, distinguir a depressão de Elias da de Acab. Têm uma fenomenologia semelhante mas, a natureza, as razões e as consequências são completamente diferentes. Se, no lugar da mulher de Acab, tivesse estado um conselheiro honesto, este ter-lhe-ia sugerido aceitar a realidade da recusa, elaborar o seu (pequeno) luto e encontrar um outro lugar para a sua horta. Mas, infelizmente para ele (e para Nabot), junto de Acab temos a sua mulher Jezabel, a figura mais turva desta história: «Sua esposa veio ter com ele e perguntou-lhe: “Por que razão estás assim irritado e não queres comer?”» Acab conta a recusa de Nabot. Então Jezabel disse: «Não és tu o rei de Israel? Levanta-te, come, não te aflijas! Eu mesma te darei a vinha de Nabot de Jezrael» (21, 5-7).
Nestas palavras da rainha, revemos Herodíade, Lady Macbeth e outras mulheres de poderosos que, nas frequentes inversões de papéis, tomam seguramente nas mãos a situação e procuram, rapidamente, uma solução para os maridos débeis. Uma Abigail, ao contrário, um comandante Joab, no feminino. Jezabel, talvez para salvar a honra do marido («Não és tu o rei de Israel?»), em nome duma conceção de poder muito diferente do querido por YHWH, para os seus reis, encontra a pior porta de saída: «Escreveu cartas em nome de Acab, selando-as com o selo real, e enviou-as aos anciãos e aos magistrados da cidade, concidadãos de Nabot. Nelas lhes dizia: “Proclamai um jejum e fazei sentar Nabot na primeira fila da assembleia. Fazei vir à sua presença dois homens malvados que o acusem dizendo: ‘Tu blasfemaste contra Deus e contra o rei!’ Levai-o, depois, para fora da cidade e apedrejai-o até ele morrer”» (21, 8-10).
Com um único ato, viola três mandamentos da Lei – não matar, não desejar as coisas dos outros, não dizer falsos testemunhos. Uma imagem nítida da pior face do poder, que nunca desapareceu da terra.
Nestas páginas, revive o pecado de David com Betsabé, o dos dois anciãos que procuraram violentar Susana e todos os pecados e delitos dos poderosos que interpretam o seu poder como eliminação das barreiras que separa a sua parte do todo. O vício mais profundo e tremendo do poder é pensar que não existe nenhum limite intransponível, que tudo se torna possível. A Bíblia combateu esta ideia de poder. A sua polémica com a monarquia é uma crítica sistemática desta ideia de poder como omnipotência, que se torna, indiretamente, crítica à idolatria; porque, sempre que um poderoso se comporta como omnipotente, autoproclama-se deus. Eis porque Jezabel é idólatra, mata os profetas de YHWH e mata Nabot que tinha ousado pôr um limite ao seu poder e ao do seu marido.
Nabot, dizendo o seu não, tinha dito a Acab: tu não és Deus. É esta a luta mais verdadeira entre poder absoluto e Deus. Os poderes absolutos combatem as religiões porque querem ser deus. E matam profetas e homens justos porque eles negam a sua divindade – Nabot, no Antigo Testamento, revive também João Batista e, um e outro, dizem-nos que a verdadeira razão da sua morte não é de tipo ético nem económico, mas teológico, porque se opõem à omnipotência dos poderosos que, por isso, os matam.
Neste relato impressiona, porém, a cumplicidade dos “anciãos e magistrados da cidade, silenciosos diante da carta da rainha que, explicitamente, contém pecados e delitos – «Os anciãos e os magistrados, concidadãos de Nabot, fizeram o que lhes mandara Jezabel» (21, 11). Aqueles magistrados e anciãos, que até ao momento antes de receberem a carta e depois de porem em prática as suas recomendações podiam ser pessoas de bem (e, provavelmente, eram), no momento em que executaram aquela ordem tornaram-se, imediatamente, cúmplices e culpados, a par de Jezabel. Quantas vezes o vimos e o vemos. A Bíblia, sublinhando esta cumplicidade, diz-nos que, quem obedece a ordens erradas dos poderosos, partilha da sua culpa. Se é verdade que quem ajuda os profetas tem a mesma recompensa do profeta (como a viúva com Elias), também é verdade que quem ajuda um poderoso assassino partilha da sua culpa.
A Bíblia está coroada por muitos, esplêndidos “sim”; os dos profetas, o de Maria. Sem estes “sim”, não teríamos a história da salvação, não teríamos vocações, não teríamos algumas das coisas mais sublimes debaixo do sol. Nabot, porém, recorda-nos o grande valor do não e o desvalor dos sim errados. Este relato está ensombrado por muitos sim perversos e iluminado apenas por um não correto. Quantas pessoas se salvam a si mesmas porque têm a força de pronunciar um não. Poderiam dizer sim, a virtude da prudência e o cálculo custos-benefícios impeliriam a vender aquele campo. Veem claramente noventa e nove razões para vender e encontram uma única razão imprudente para dizer não. Mas aquela única razão é de uma outra categoria, voa numa outra trajetória, tem um outro timbre de voz na alma. Se tivessem faltado os “não” de muitos Nabot da história, se faltassem os “não” dos Nabot presentes, ainda hoje, no meio de nós, a terra seria um lugar indigno onde viver. Os “não” do Nabot são o fermento e o sal da terra; sem eles, teríamos apenas pão ázimo e insípido.
Nabot foi morto: «Vieram então os dois malvados… depuseram contra ele perante o povo, dizendo: “Nabot blasfemou contra Deus e contra o rei!” Fizeram-no sair da cidade, apedrejaram-no e ele morreu» (21, 13). Eis a lápide.
Enquanto Acab desce à vinha para se apoderar dela, o profeta Elias recebe esta palavra de Deus: «Desce e vai ter com Acab… está agora a descer para se apossar da vinha de Nabot. Diz-lhe: Assim fala YHWH: ‘Cometeste um homicídio e agora vais ainda apoderar-te do alheio?’ Acrescentarás ainda: ‘No mesmo lugar onde os cães lamberam o sangue de Nabot, hão-de lamber também o teu!’» (21, 18-19).
Os profetas também são isto: num mundo, onde Nabot continua a ser morto, onde ninguém denuncia os delitos, porque todos cúmplices e corréus, eles – Elias e Natan –, por vocação, gritam: “Assassinaste”. Missão maravilhosa. Mas Nabot está morto. A palavra de Elias e a punição que YHWH promete para Acab, sua mulher e sua família não conseguem ressuscitar Nabot. Permanece a sua lápide, que ali está para nós e continua a chamar-nos.
Jeremias, numa das suas páginas mais belas, dá uma grande mensagem profética ao comprar um campo; aqui, Nabot, dá-nos uma outra grande mensagem, recusando-se a vender um campo. Também hoje, existem contratos que salvam e existem não-contratos que salvam ainda mais. O nosso capitalismo, durante demasiado tempo, conseguiu comprar toda a vinha desejada, a troco de dinheiro. Não encontrou Nabot a dizer-lhe não. E o nosso planeta está a mudar de destino. Salvar-nos-emos se formos capazes de fazer do nosso tempo o tempo de Nabot. Se aprendermos depressa a dizer não aos novos poderosos que hoje, mais que nunca, como dinheiro infinito, se sentem omnipotentes. Porque toda a terra é herança: «Nabot disse a Acab: “Por YHWH! Seria um sacrilégio ceder-te a herança de meus pais!”».
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por Luigino Bruni
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Ambrogio, A vinha de Nabot
A vinha de Nabot, um dos episódios mais tremendos e conhecidos da Bíblia, é uma lápide que nos pede para pararmos e cuidarmos desta vítima de quem se julga deus. Para aprender que nem tudo é negociável.
Na Bíblia, e na grande literatura, encontram-se, de vez em quando, páginas que têm a mesma força moral que uma lápide. As histórias de Urias, o hitita, da filha de Jefté, de Agar, Dina, Rispa, Tamar, Job, Abel, o servo de YHWH, o crucificado. Frequentemente, passamos adiante, à procura de páginas mais edificantes. No entanto, alguém experimenta misericórdia. Para, recolhe-se, recorda, reza, chora, cuida delas. A história de Nabot e da sua vinha é uma destas páginas-lápide, um monumento erigido a uma vítima inocente. A vinha de Nabot é um exercício ético, social, económico, espiritual que, durante séculos, gerou sentimentos morais, leis, constituições. Ensinou-nos a indignação, fez-nos gritar “não é justo!”, “ah, malvado, malvada”, “tem de haver justiça neste mundo”, “porquê, Deus? Onde estás?”, “nunca mais”. Melhorou o homem, melhorou Deus.
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