Maiores que a culpa

stdClass Object
(
    [id] => 17395
    [title] => Viver é profissão maravilhosa
    [alias] => viver-e-profissao-maravilhosa
    [introtext] => 

Maiores que a culpa / 3 – Pode-se permanecer justo quando débil. E escutar sem ter ouvido

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/02/2018

Piu grandi della colpa 03 rid «O Mestre disse:
“Quem faz da virtude
uma profissão
é a ruína da virtude”»

Os provérbios de Confúcio

Na terra existem muitas pessoas chamadas que respondem “eis-me aqui”, mesmo se não sabem reconhecer o autor da voz que os chama pelo nome. Ontem, hoje, sempre. Chamados por vozes interiores, diferentes e desconhecidas, que se erguem do amor e da dor do mundo. Nestas vocações, que acontecem todos os dias e em todos os âmbitos do humano, o que conta verdadeiramente é responder. Mas é maravilhoso quando, junto de nós, há um ‘Eli’ que, antes, nos devolve serenos à cama e, depois, nos revela o nome de quem continua a chamar-nos.

[fulltext] =>

“Os filhos de Eli eram filhos de Belial... Quando alguém oferecia um sacrifício, vinha o servo do sacerdote, no momento em que se cozia a carne, com um garfo de três dentes, e metia-o na caldeira, na marmita, na panela ou no tacho; e tudo o que agarrava com ele, tirava-o para o sacerdote” (Samuel 2, 12-14). Além disso, como se estes quinhões sobre os sacrifícios não bastassem, «eles dormiam com as mulheres que prestavam serviço à entrada da tenda da reunião» (2, 22). Mas «o menino Samuel desenvolvia-se em altura e graça» (2, 26). Este quadro, de tons fortes e coloridos, que usa materiais muito antigos, introduz-nos imediatamente no grande tema da Bíblia e da vida: a coexistência da culpa e da graça, a dialética entre templo e profecia. A figura de Eli, sumo-sacerdote do templo de Silo, não está livre de ambivalências. O texto – que é o resultado de diversas tradições e de muitas “mãos” teológicas e políticas – condena, sobretudo, os seus filhos, mas não exonera Eli da culpa («Fazes mais caso dos teus filhos que de mim, engordando-os com o melhor de todas as ofertas»: 2, 29).

A noite do chamamento de Samuel é um episódio grandioso, no qual Eli desempenha uma parte belíssima e determinante. Não é necessário ser moralmente perfeitos para reconhecer o espírito de Deus no mundo nem para dizer a um jovem: «É o Senhor». Pode-se permanecer justo, apesar de débil; pode-se ser honesto ainda que falhe uma parte da alma. Também a partitura de uma vida moralmente equívoca pode conter, no seu interior, períodos esplêndidos. E o mundo está cheio de palavras verdadeiras e estupendas, pronunciadas por pecadores, de ações belíssimas realizadas por quem parecia apenas capaz de maldades – nem sequer Caim conseguiu apagar dos seus filhos a imagem de Elohim.

A vocação de Samuel é preparada por um versículo muito sugestivo: «O Senhor, naquele tempo, falava raras vezes e as visões não eram frequentes» (2, 1). O tempo de Samuel é um tempo avaro de palavra e de visões, também de profecia (que é as duas juntas). Samuel chega para por termo a este silêncio e a este eclipse de Deus. Os profetas, ontem e hoje, são, frequentemente, a “flor do mal”, a resposta da terra à carestia da palavra, das palavras, das visões. Num mundo bíblico, onde a Palavra de Deus é mãe de todas as palavras humanas verdadeiras, a rarefação da palavra de YHWH traduz-se em névoa, fumo vanitas (hevel), de palavras humanas. O Adão não sabe falar se Deus cala; é um homem civil e espiritualmente cego e mudo.

“Samuel repousava no templo de YHWH, onde se encontrava a Arca de Deus. Então YHWH chamou: ‘Samuel!’. Ele respondeu: «Eis-me aqui.» Samuel correu para junto de Eli e disse-lhe: «Aqui estou, pois me chamaste.» Disse-lhe Eli: «Não te chamei, meu filho; volta a deitar-te.» O Senhor chamou de novo: ‘Samuel!’. Este levantou-se e veio dizer a Eli: «Aqui estou, pois me chamaste.» Eli respondeu: «Não te chamei, meu filho; volta a deitar-te»” (3, 3-6). A voz chama duas vezes; Samuel não a reconhece. Chama uma terceira vez: “Samuel levantou-se e foi ter com Eli: «Aqui estou, pois me chamaste.» Compreendeu Eli que era o Senhor quem chamava o menino” (3, 8). Um triálogo, entre os mais belos e profundos de toda a literatura sagrada. Nele encontramos a gramática e a semântica daquele evento antropológico decisivo que são as vocações (religiosas, artísticas, laicas), sobretudo na sua fase auroral e, portanto, crucial. No início, há um jovem que leva inscrito na sua história o próprio destino, desde o primeiro voto feito por sua mãe, Ana. Dormia no templo, ao lado da Arca da Aliança, consagrado, desde pequeno, a Deus e ao seu culto. A religião era o seu ambiente, o templo a sua casa, as palavras sagradas a sua linguagem. No entanto, «Samuel ainda não conhecia YHWH, pois até então nunca se lhe tinha manifestado a sua palavra» (3, 7). O seu tempo era avaro, sabemo-lo. Mas também nos raros tempos de palavras abundantes, não basta estar mergulhados numa vida religiosa para conhecer Deus e a sua palavra. Pode-se passar uma vida inteira nos lugares do sagrado, ser consagrados, usar todos os dias a veste de linho, sem conhecer Deus – como os filhos de Eli, como os tantos profissionais da religião.

Diferentemente, porém, das vocações de Abraão, Isaías, Jeremias, Moisés, encontramos, na chamada de Samuel, um mediador humano, um intermediário, um terceiro que entra em cena. Naquelas outros grandes chamadas bíblicas, Deus revela-se diretamente ou através de um seu anjo (Agar, Maria). Os chamados exprimem dúvidas acerca das suas capacidades para conseguir realizar a missão, mas reconhecem a voz. E, quando a não reconhecem (o «quem és tu?» de Saulo), é a própria voz que diz o seu nome. Samuel, pelo contrário, não reconhece a voz enquanto Eli não lhe revele o nome.

É particularmente belo e importante este jogo de vozes, paradigma do bom sucesso de discernimento de espíritos e vocações. Antes de mais, também, Eli tem necessidade de três “chamadas” para reconhecer a natureza da voz. Talvez, conhecendo bem Samuel, tenha reconhecido os sintomas do seu chamamento profético já no primeiro despertar, mas tenha querido esperar. Saber esperar é a primeira arte preciosa dos intérpretes das vozes dos outros (e próprias). Sempre, mas sobretudo nos tempos de carestia de Deus, quando a sua lembrança está distante, e a fome e a sede geram fadas morganáticas e vozes fátuas. No tempo esperado e oportuno, Eli reconhece, na voz que chama Samuel, os sinais da voz de YHWH. O texto não nos diz a “técnica” deste discernimento, mas diz-nos algo de muito importante: Ele sabe reconhecer a voz que chama um outro. O hermeneuta vocacional é alguém que sabe interpretar os sinais de uma voz boa e diferente, no meio das muitas outras vozes da vida. A sua habilidade mais rara e preciosa é, porventura, justamente esta: saber dizer “é o Senhor”, sem poder escutar diretamente a voz. Como José, no Egipto, Eli torna-se intérprete dos “sonhos” dos outros – cada vocação verdadeira começa num sonho, porque o tempo da vigília é muito curto para nos fazer ouvir estas vozes do infinito. Eli não era um profeta; provavelmente nunca ouviu ser chamado por esse nome. Não é preciso ser profeta para acompanhar um profeta; é preciso “apenas” um carisma, experiência e muita honestidade. Eli não conhecia a voz, mas conhecia a palavra de YHWH. Estava familiarizado com os grandes chamamentos da história da salvação. A experiência da palavra permite-lhe reconhecer uma voz que nunca tinha ouvido, mas tinha escutado, narrada no templo e pelos pais, debaixo da tenda. Uma vida gasta na escuta da palavra permitiu-lhe chegar preparado ao encontro mais importante com uma voz que falava a um jovem. Reconhecê-la e, no momento próprio, poder dizer com certeza: “É o Senhor”. Uma vida dedicada ao conhecimento da palavra para poder reconhecer, quando velho, a voz que fala a um jovem, porque a palavra que tinha escutado tantas vezes, lhe ecoa dentro de si como se fosse uma voz. As comunidades, espiritualmente vivas, são feitas de poucos profetas chamados pelo nome e de muitos escutadores de uma palavra que não os chama pelo nome, mas que se torna voz na alma. A palavra permite a muitos não-profetas poder fazer uma experiência semelhante (senão idêntica) à dos profetas chamados pelo nome – esta é uma igualdade verdadeira debaixo do sol, para além da diversidade dos carismas e dos talentos. Permite-o, de modo eminente, a palavra bíblica, mas permite-o também a escuta verdadeira e a convivência séria de qualquer palavra humana grande. E podemos reconhecer os verdadeiros poetas sem ser poetas. Podemos não ser virtuosos, mas reconhecer a virtude nos outros. E teríamos aprendido a maravilhosa profissão do viver. Eli, neste momento, pode dar a Samuel o conselho mais precioso e concluir sua missão: «Vai e volta a deitar-te. Se fores chamado outra vez, responde: “Fala, Senhor; o teu servo (aprendiz) escuta!”» (3, 9).

Finalmente, é muito importante aquele “Se fores chamado». Um acompanhante especialista e honesto pode reconhecer os sinais de uma vocação, pode estar certo da autenticidade da voz que irrompeu na noite, mas não pode saber se voltará a chamar uma quarta vez, vez decisiva. Há pessoas que escutaram três vezes o seu nome, um Eli disse-lhes “é o Senhor”; voltaram a dormir e estão, há anos, adormecidos, à espera do quarto chamamento que não chega. Há outras que, há muito tempo, não dormem mais, porque uma voz verdadeira os chama dentro e não as deixa em paz, mas encontraram, ao longo do caminho, um intérprete desonesto que à pergunta: “Foste tu que me chamaste)?”, respondeu: “Sim; fui eu”, e tornou-se o seu “pai interior”. Outros ainda, têm ao lado um hermeneuta, diferentemente desonesto (e/ou impaciente e/ou inexperiente e/ou sem carisma), que respondeu: “É o Senhor”. Assim, ouvem e seguem uma voz banal e errada a que chamam “o Senhor”, e encontram-se dentro de vidas vocacionais sem vocações. Pouquíssimas manipulações, mais ou menos em boa-fé, são mais devastadoras que as vocacionais. Se Samuel chega, de noite, e nos pergunta: “Chamaste-me?”, se não somos Eli, devemos responder: “Não sou eu quem te chama. Apenas sei que não sou eu. Mas não deixes de escutar”.

Em tempos de carestia de vozes e de visões, há necessidade de Ana e de Samuel. Mas também há muita necessidade da humanidade honesta de Eli: “Voltou Samuel e deitou-se. Veio YHWH, pôs-se junto dele e chamou-o, como das outras vezes: «Samuel! Samuel!» E Samuel respondeu: «Fala, Senhor; o teu servo escuta!»” (3, 10).

 baixa/descarrega o artigo em pdf

[checked_out] => 0 [checked_out_time] => 0000-00-00 00:00:00 [catid] => 847 [created] => 2018-02-03 18:08:00 [created_by] => 64 [created_by_alias] => Luigino Bruni [state] => 1 [modified] => 2020-08-11 03:49:12 [modified_by] => 609 [modified_by_name] => Super User [publish_up] => 2018-02-03 19:35:00 [publish_down] => 0000-00-00 00:00:00 [images] => {"image_intro":"","float_intro":"","image_intro_alt":"","image_intro_caption":"","image_fulltext":"","float_fulltext":"","image_fulltext_alt":"","image_fulltext_caption":""} [urls] => {"urla":false,"urlatext":"","targeta":"","urlb":false,"urlbtext":"","targetb":"","urlc":false,"urlctext":"","targetc":""} [attribs] => {"article_layout":"","show_title":"","link_titles":"","show_tags":"","show_intro":"","info_block_position":"","info_block_show_title":"","show_category":"","link_category":"","show_parent_category":"","link_parent_category":"","show_associations":"","show_author":"","link_author":"","show_create_date":"","show_modify_date":"","show_publish_date":"","show_item_navigation":"","show_icons":"","show_print_icon":"","show_email_icon":"","show_vote":"","show_hits":"","show_noauth":"","urls_position":"","alternative_readmore":"","article_page_title":"","show_publishing_options":"","show_article_options":"","show_urls_images_backend":"","show_urls_images_frontend":""} [metadata] => {"robots":"","author":"","rights":"","xreference":""} [metakey] => [metadesc] => La struttura narrativa della vocazione di Samuele, tra i brani più noti e splendidi della Bibbia, ci introduce al mistero delle chiamate e dei processi di accompagnamenti delle vocazioni, dove l’onestà è la risorsa più scarsa e preziosa. Luigino Bruni commenta il libro di Samuele su Avvenire [access] => 1 [hits] => 726 [xreference] => [featured] => 0 [language] => pt-BR [on_img_default] => [readmore] => 10255 [ordering] => 59 [category_title] => BR - Maiores que a culpa [category_route] => commenti-biblici/serie-bibliche/piu-grandi-della-colpa [category_access] => 1 [category_alias] => br-maiores-que-a-culpa [published] => 1 [parents_published] => 1 [lft] => 123 [author] => Luigino Bruni [author_email] => ferrucci.anto@gmail.com [parent_title] => IT - Serie bibliche [parent_id] => 773 [parent_route] => commenti-biblici/serie-bibliche [parent_alias] => serie-bibliche [rating] => 0 [rating_count] => 0 [alternative_readmore] => [layout] => [params] => Joomla\Registry\Registry Object ( [data:protected] => stdClass Object ( [article_layout] => _:default [show_title] => 1 [link_titles] => 1 [show_intro] => 1 [info_block_position] => 0 [info_block_show_title] => 1 [show_category] => 1 [link_category] => 1 [show_parent_category] => 1 [link_parent_category] => 1 [show_associations] => 0 [flags] => 1 [show_author] => 0 [link_author] => 0 [show_create_date] => 1 [show_modify_date] => 0 [show_publish_date] => 1 [show_item_navigation] => 1 [show_vote] => 0 [show_readmore] => 0 [show_readmore_title] => 0 [readmore_limit] => 100 [show_tags] => 1 [show_icons] => 1 [show_print_icon] => 1 [show_email_icon] => 1 [show_hits] => 0 [record_hits] => 1 [show_noauth] => 0 [urls_position] => 1 [captcha] => [show_publishing_options] => 1 [show_article_options] => 1 [save_history] => 1 [history_limit] => 10 [show_urls_images_frontend] => 0 [show_urls_images_backend] => 1 [targeta] => 0 [targetb] => 0 [targetc] => 0 [float_intro] => left [float_fulltext] => left [category_layout] => _:blog [show_category_heading_title_text] => 0 [show_category_title] => 0 [show_description] => 0 [show_description_image] => 0 [maxLevel] => 0 [show_empty_categories] => 0 [show_no_articles] => 1 [show_subcat_desc] => 0 [show_cat_num_articles] => 0 [show_cat_tags] => 1 [show_base_description] => 1 [maxLevelcat] => -1 [show_empty_categories_cat] => 0 [show_subcat_desc_cat] => 0 [show_cat_num_articles_cat] => 0 [num_leading_articles] => 0 [num_intro_articles] => 14 [num_columns] => 2 [num_links] => 0 [multi_column_order] => 1 [show_subcategory_content] => -1 [show_pagination_limit] => 1 [filter_field] => hide [show_headings] => 1 [list_show_date] => 0 [date_format] => [list_show_hits] => 1 [list_show_author] => 1 [list_show_votes] => 0 [list_show_ratings] => 0 [orderby_pri] => none [orderby_sec] => rdate [order_date] => published [show_pagination] => 2 [show_pagination_results] => 1 [show_featured] => show [show_feed_link] => 1 [feed_summary] => 0 [feed_show_readmore] => 0 [sef_advanced] => 1 [sef_ids] => 1 [custom_fields_enable] => 1 [show_page_heading] => 0 [layout_type] => blog [menu_text] => 1 [menu_show] => 1 [secure] => 0 [helixultimatemenulayout] => {"width":600,"menualign":"right","megamenu":0,"showtitle":1,"faicon":"","customclass":"","dropdown":"right","badge":"","badge_position":"","badge_bg_color":"","badge_text_color":"","layout":[]} [helixultimate_enable_page_title] => 1 [helixultimate_page_title_alt] => Più grandi della colpa [helixultimate_page_subtitle] => Commenti Biblici [helixultimate_page_title_heading] => h2 [page_title] => Maiores que a culpa [page_description] => [page_rights] => [robots] => [access-view] => 1 ) [initialized:protected] => 1 [separator] => . ) [displayDate] => 2018-02-03 18:08:00 [tags] => Joomla\CMS\Helper\TagsHelper Object ( [tagsChanged:protected] => [replaceTags:protected] => [typeAlias] => [itemTags] => Array ( ) ) [slug] => 17395:viver-e-profissao-maravilhosa [parent_slug] => 773:serie-bibliche [catslug] => 847:br-maiores-que-a-culpa [event] => stdClass Object ( [afterDisplayTitle] => [beforeDisplayContent] => [afterDisplayContent] => ) [text] =>

Maiores que a culpa / 3 – Pode-se permanecer justo quando débil. E escutar sem ter ouvido

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/02/2018

Piu grandi della colpa 03 rid «O Mestre disse:
“Quem faz da virtude
uma profissão
é a ruína da virtude”»

Os provérbios de Confúcio

Na terra existem muitas pessoas chamadas que respondem “eis-me aqui”, mesmo se não sabem reconhecer o autor da voz que os chama pelo nome. Ontem, hoje, sempre. Chamados por vozes interiores, diferentes e desconhecidas, que se erguem do amor e da dor do mundo. Nestas vocações, que acontecem todos os dias e em todos os âmbitos do humano, o que conta verdadeiramente é responder. Mas é maravilhoso quando, junto de nós, há um ‘Eli’ que, antes, nos devolve serenos à cama e, depois, nos revela o nome de quem continua a chamar-nos.

[jcfields] => Array ( ) [type] => intro [oddeven] => item-odd )

Viver é profissão maravilhosa

Maiores que a culpa / 3 – Pode-se permanecer justo quando débil. E escutar sem ter ouvido por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 04/02/2018 «O Mestre disse: “Quem faz da virtude uma profissão é a ruína da virtude”» Os provérbios de Confúcio Na terra existem muitas pessoas chamadas que...
stdClass Object
(
    [id] => 17396
    [title] => Já cantores do ainda-não
    [alias] => gia-cantori-del-non-ancora-2
    [introtext] => 

Maiores que a culpa/ 2 – O dom dos filhos dados é a gramática da existência

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/01/2018

Piu grandi della colpa 02 rid«Dá-me de comer
dá-me de beber…
Fome é misterioso
chamamento
levanta e baixa aguenta deixa
seguro-te deixo-me.
Dá-me a água,
dá-me a mão
pois estamos
no mesmo mundo
.»

Chandra Livia Candiani, Dammi da mangiare  [Dá-me de comer]

Deus escutou e “recordou-se dela” (1 Samuel 1, 19), como se tinha recordado do seu povo escravo no Egipto, depois da primeira oração coletiva da Bíblia (Êxodo 2, 23). O Deus bíblico é um Deus que sabe escutar a todos, mas, sobretudo, as vítimas. Os ídolos são surdos e mudos porque estão mortos. YHWH está vivo porque tem um ‘ouvido’ e pode escutar e pode ser acordado do seu sono, despertado na sua desatenção, enquanto estamos no barco e há tempestade.

[fulltext] =>

Diante de um Deus que parece surdo e que não responde à nossa oração, a metáfora do sono é a que permite a Deus continuar vivo, a estar lá. Pode-se continuar sempre a rezar no tempo do silêncio de Deus, enquanto acreditamos que apenas está adormecido e que poderá ser acordado pelo nosso lamento. Deixamos de acreditar e, por isso, de rezar, quando nos convencemos que o céu está surdo porque, simplesmente, está vazio. Deus pode estar vivo mesmo quando não responde e a Bíblia diz-nos que devemos tornar-lhe o sono difícil com os nossos gritos. A oração-lamento de Ana consegue acordá-lo e é garantia e esperança para todas as outras orações de mulheres e homens que não conseguem acordar Deus, para todas as pessoas que rezaram como ela, mas sem que as crianças tenham nascido ou tenham sido curadas. Também eles – também nós – podemos, sempre, usar as palavras de Ana, para continuar a acreditar e a esperar. Até ao fim, quando talvez acorde para nos abraçar no último voo confiante, acompanhado pelo último ‘eis-me aqui’. A fé é viva e verdadeira mesmo se é confiança num Deus que dorme, que nós procuramos despertar. Para toda a vida.

Depois de ter rezado no templo de Silo, Ana “foi-se embora, comeu e nunca mais houve tristeza em seu rosto”. Elcana “conheceu Ana, sua mulher, que concebeu e, passado o seu tempo, deu à luz um filho, ao qual pôs o nome de Samuel” (1, 19-20). Nascido o menino, o pai dirigiu-se novamente ao templo, para a peregrinação anual, tornada também de agradecimento: “Ana, porém, não foi e disse ao marido: «Só irei quando o menino estiver desmamado; então o levarei para o apresentar ao Senhor e lá ficará para sempre” (1, 22). Os pais, juntamente, confirmam o voto de Ana (“se deres à tua serva um filho varão, eu o consagrarei ao Senhor, por todos os dias da sua vida, e a navalha não passará sobre a sua cabeça”: 1, 11), mas a mãe toma a liberdade de o manter consigo até ao período de desmame (pelo menos três anos). Para esta escolha, Ana não pede autorização, nem ao marido (que, no entanto, o relato no-lo mostra favorável: 1, 23), nem a Deus, porque pertence às fundamentais e intimíssimas escolhas que as mulheres podem fazer sozinhas. As mães (Ana, na língua hitita, significa ‘mãe’) não são as donas dos seus filhos, mas têm a autoridade, natural e sagrada, sobre os seus primeiros passos e sobre a qual, nem a lei nem a religião podem ou devem interferir. Esta foi – e continua a ser – uma riqueza-dom grande e exclusiva das mulheres, que as torna solidárias entre si e semelhantes, antes e para além das grandes diversidades da vida, expressão profunda e fundamental da lei da vida. Chegará, depois, o dia em que esta intimidade, especial e única, mãe-filho, termina. Deve terminar e o filho é gerado uma segunda vez. Nesse dia, é preciso um amor-gratuidade que não está necessariamente presente na primeira geração. As mães geram-nos, dando-nos á luz e, depois, voltam a gerar-nos, perdendo-nos para nos tornar capazes de fazer o nosso dom. Este segundo nascimento assume muitas formas. O texto bíblico não nos descreve as emoções e os sentimentos de Ana – embora, na narração, insira alguns pormenores como este, delicadíssimo, que nos recorda muitas mães que acompanharam e acompanham, com ações semelhantes, os seus filhos dados: “Sua mãe tecia-lhe uma túnica que lhe levava todos os anos” (2, 19), Não só Samuel, Sansão ou Isaac são filhos redados, depois de os ter recebido como dom. Para cada filho, chega o momento em que é ‘dado ao Senhor’ – e, se não chega, há problemas para os filhos e para as mães. Quando os pais – e as mães, de modo diferente e especial – intuem que aquele filho, que tinham recebido como dom, e que, depois, ‘desmamado’ e preparado para a vida, deve ser redado (que os filhos são somente dom e providência, todos o sabemos; mas sabem-nos, sobretudo, as mulheres, os homens e as famílias que não receberam estes dons). Compreendem que os seus filhos não são sua propriedade e que são apenas guardas da sua aurora. Que, portanto, devem deixá-los partir. Isto é também um sinal da gratuidade radical que está na origem da vida e das gerações: “O Senhor ouviu a minha súplica. Por isso, o ofereço ao Senhor” (1, 27-28).

Chegou, portanto, o dia da viagem de Ana com Samuel para o templo de Silo: “Após tê-lo desmamado, tomou-o consigo e, levando também três novilhos, uma medida de farinha e um odre de vinho, conduziu-o ao templo do Senhor em Silo. O menino era ainda muito pequeno” (1, 24). O tom e a atmosfera desta viagem recordam, de perto, a de Abraão para o monte Moriá, para redar um outro filho, dado a uma outra mãe estéril. É no dom dos filhos dados que aprendemos e reaprendemos a gramática da existência debaixo do sol, descobrimos e redescobrimos que toda a vida nos é dada para que a possamos redar, livre e gratuitamente. Até ao fim, quando dermos o espírito que nos foi dado no primeiro dia, e seremos capazes desta última oferta porque fomos exercitados nesta reciprocidade primária durante toda a vida.

E é aqui que encontramos o cântico de Ana, um dos mais bonitos de toda a Bíblia. Um hino maravilhoso, que o escritor bíblico quis inserir depois do dom do filho dado, não quando Ana está grávida ou depois do parto. É o cântico da gratuidade recíproca. Para poder entoar estes cânticos de libertação e de ressurreição, não há condição existencial mais idónea que a de quem recebeu tudo e, depois, redeu tudo. Só os pobres podem cantar o magnificat: “Exulta o meu coração de júbilo no Senhor. Nele se ergue a minha fronte… O arco dos fortes foi quebrado e os fracos foram revestidos de vigor. Os saciados tiveram que ganhar o pão e os famintos foram saciados. Até a estéril foi mãe de sete filhos e a mulher que os tinha numerosos, ficou estéril… O Senhor despoja e enriquece, humilha e exalta. Levanta do pó o mendigo e tira da imundície o pobre, para os sentar com os príncipes e ocupar um trono de glória” (2, 1-8).

O cenário do mundo à volta de Ana não era o que ela descreve no seu cântico. Na sua cidade, nas outras tribos de Israel, nos povos cananeus em redor, no templo de Silo donde eleva o seu louvor. Os pobres permaneciam no esterco, os famintos (não os saciados) procuravam pão e trabalho (sem os encontrar) e não deixavam de ter fome. O seu cântico é, portanto, profético – como os de Isaías, como o Magnificat de Maria (que algum antigo comentador atribuía a Isabel, porque estéril, como Ana). E, como qualquer profecia, é um ‘já’ que indica um ‘ainda não’. O pequeno Samuel é o ‘já’ de Ana, o seu pedaço de terra prometida da qual se pode erguer e vislumbrar, no horizonte, a terra onde corre leite e mel. Alguns ‘ainda não’ de hoje podem tornar-se ‘já’ se há alguém que, agora, tem a força de ver e, depois, cantar os pobres erguidos enquanto são humilhados, saciados enquanto ainda têm fome, ricos derrubados enquanto estão altos e invencíveis. Mas a profecia tem necessidade do seu pequeno ‘já’, de um já-criança; e o já-criança tem necessidade de quem, cantando-o, lhe permite incarnar-se no ‘ainda não’. Muitos pobres, humilhados e famintos, não se erguem e muitos ricos e poderosos não são derrubados porque faltam as experiências do ‘já’ ou porque faltam os cantores do ainda não. O nosso tempo não sofre tanto pela indigência do ‘já’, mas por uma grande pobreza de profetas, os únicos capazes de ver e, depois, cantar que temos necessidade de um ‘ainda não’ maior que nós e, assim, capazes de gerar um presente para os nossos filhos melhor que o nosso – nenhuma geração pode deixar à seguinte uma terra melhor, se mata o ainda-não, se o abaixa demasiado ou o esmaga no próprio ‘já’.

Ana, Maria, os profetas, mantendo viva a promessa sem a recompor, ajudam-nos a não confundir os rios da Babilónia com o Jordão e, enquanto cantam o seu Magnificat, convidam-nos a perguntar à sentinela: quanto tempo falta para o dia? Enquanto tivermos energias, no coração e na mente, para cantar estes magnificat e enquanto permanecermos suficientemente pobres para os cantar com verdade e dignidade, podemos sempre esperar que a noite termine e que a aurora nos surpreenda. A noite torna-se infinita quando deixamos de cantar com Ana, quando as não-ressurreições – nossas e das vítimas – nos convencem que não há aurora, que não há sentinela, que não há mais nada a perguntar nem um Deus para acordar. A Bíblia guardou-nos a possibilidade do magnificat, mas não o pode cantar em vez de nós: para os entoar há necessidade da nossa voz e, antes, da nossa fé que aquelas palavras podem existir, dentro das nossas noites.

Porque também nestas noites infinitas podemos deparar-nos, talvez por acaso, com o hino de Ana. E, sem lhe pedir autorização, pedir emprestadas as suas palavras para recomeçar a rezar, a cantar, a esperar. Não há oração mais bonita que a sussurrada por quem, um dia, encontrou as suas palavras perdidas nas palavras da Bíblia. Sentiu que foram escritas apenas para ele, para ela; que estão ali, a esperar-nos, pleno dom, no tempo infinito de advento. E a palavra continua a tornar-se carne.

 baixa/descarrega o artigo em pdf

[checked_out] => 0 [checked_out_time] => 0000-00-00 00:00:00 [catid] => 847 [created] => 2018-01-27 18:08:00 [created_by] => 64 [created_by_alias] => Luigino Bruni [state] => 1 [modified] => 2020-08-11 03:49:12 [modified_by] => 609 [modified_by_name] => Super User [publish_up] => 2018-01-27 19:35:00 [publish_down] => 0000-00-00 00:00:00 [images] => {"image_intro":"","float_intro":"","image_intro_alt":"","image_intro_caption":"","image_fulltext":"","float_fulltext":"","image_fulltext_alt":"","image_fulltext_caption":""} [urls] => {"urla":false,"urlatext":"","targeta":"","urlb":false,"urlbtext":"","targetb":"","urlc":false,"urlctext":"","targetc":""} [attribs] => {"article_layout":"","show_title":"","link_titles":"","show_tags":"","show_intro":"","info_block_position":"","info_block_show_title":"","show_category":"","link_category":"","show_parent_category":"","link_parent_category":"","show_associations":"","show_author":"","link_author":"","show_create_date":"","show_modify_date":"","show_publish_date":"","show_item_navigation":"","show_icons":"","show_print_icon":"","show_email_icon":"","show_vote":"","show_hits":"","show_noauth":"","urls_position":"","alternative_readmore":"","article_page_title":"","show_publishing_options":"","show_article_options":"","show_urls_images_backend":"","show_urls_images_frontend":""} [metadata] => {"robots":"","author":"","rights":"","xreference":""} [metakey] => [metadesc] => Il canto di Anna, è anche il canto delle madri che generano e rigenerano i loro figli-doni. Abbiamo un infinito bisogno di voci che innalzino Magnificat nei quali continuano a credere nel mezzo delle nostre notti. Luigino Bruni commenta il libro di Samuele su Avvenire [access] => 1 [hits] => 706 [xreference] => [featured] => 0 [language] => pt-BR [on_img_default] => [readmore] => 9734 [ordering] => 60 [category_title] => BR - Maiores que a culpa [category_route] => commenti-biblici/serie-bibliche/piu-grandi-della-colpa [category_access] => 1 [category_alias] => br-maiores-que-a-culpa [published] => 1 [parents_published] => 1 [lft] => 123 [author] => Luigino Bruni [author_email] => ferrucci.anto@gmail.com [parent_title] => IT - Serie bibliche [parent_id] => 773 [parent_route] => commenti-biblici/serie-bibliche [parent_alias] => serie-bibliche [rating] => 0 [rating_count] => 0 [alternative_readmore] => [layout] => [params] => Joomla\Registry\Registry Object ( [data:protected] => stdClass Object ( [article_layout] => _:default [show_title] => 1 [link_titles] => 1 [show_intro] => 1 [info_block_position] => 0 [info_block_show_title] => 1 [show_category] => 1 [link_category] => 1 [show_parent_category] => 1 [link_parent_category] => 1 [show_associations] => 0 [flags] => 1 [show_author] => 0 [link_author] => 0 [show_create_date] => 1 [show_modify_date] => 0 [show_publish_date] => 1 [show_item_navigation] => 1 [show_vote] => 0 [show_readmore] => 0 [show_readmore_title] => 0 [readmore_limit] => 100 [show_tags] => 1 [show_icons] => 1 [show_print_icon] => 1 [show_email_icon] => 1 [show_hits] => 0 [record_hits] => 1 [show_noauth] => 0 [urls_position] => 1 [captcha] => [show_publishing_options] => 1 [show_article_options] => 1 [save_history] => 1 [history_limit] => 10 [show_urls_images_frontend] => 0 [show_urls_images_backend] => 1 [targeta] => 0 [targetb] => 0 [targetc] => 0 [float_intro] => left [float_fulltext] => left [category_layout] => _:blog [show_category_heading_title_text] => 0 [show_category_title] => 0 [show_description] => 0 [show_description_image] => 0 [maxLevel] => 0 [show_empty_categories] => 0 [show_no_articles] => 1 [show_subcat_desc] => 0 [show_cat_num_articles] => 0 [show_cat_tags] => 1 [show_base_description] => 1 [maxLevelcat] => -1 [show_empty_categories_cat] => 0 [show_subcat_desc_cat] => 0 [show_cat_num_articles_cat] => 0 [num_leading_articles] => 0 [num_intro_articles] => 14 [num_columns] => 2 [num_links] => 0 [multi_column_order] => 1 [show_subcategory_content] => -1 [show_pagination_limit] => 1 [filter_field] => hide [show_headings] => 1 [list_show_date] => 0 [date_format] => [list_show_hits] => 1 [list_show_author] => 1 [list_show_votes] => 0 [list_show_ratings] => 0 [orderby_pri] => none [orderby_sec] => rdate [order_date] => published [show_pagination] => 2 [show_pagination_results] => 1 [show_featured] => show [show_feed_link] => 1 [feed_summary] => 0 [feed_show_readmore] => 0 [sef_advanced] => 1 [sef_ids] => 1 [custom_fields_enable] => 1 [show_page_heading] => 0 [layout_type] => blog [menu_text] => 1 [menu_show] => 1 [secure] => 0 [helixultimatemenulayout] => {"width":600,"menualign":"right","megamenu":0,"showtitle":1,"faicon":"","customclass":"","dropdown":"right","badge":"","badge_position":"","badge_bg_color":"","badge_text_color":"","layout":[]} [helixultimate_enable_page_title] => 1 [helixultimate_page_title_alt] => Più grandi della colpa [helixultimate_page_subtitle] => Commenti Biblici [helixultimate_page_title_heading] => h2 [page_title] => Maiores que a culpa [page_description] => [page_rights] => [robots] => [access-view] => 1 ) [initialized:protected] => 1 [separator] => . ) [displayDate] => 2018-01-27 18:08:00 [tags] => Joomla\CMS\Helper\TagsHelper Object ( [tagsChanged:protected] => [replaceTags:protected] => [typeAlias] => [itemTags] => Array ( ) ) [slug] => 17396:gia-cantori-del-non-ancora-2 [parent_slug] => 773:serie-bibliche [catslug] => 847:br-maiores-que-a-culpa [event] => stdClass Object ( [afterDisplayTitle] => [beforeDisplayContent] => [afterDisplayContent] => ) [text] =>

Maiores que a culpa/ 2 – O dom dos filhos dados é a gramática da existência

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/01/2018

Piu grandi della colpa 02 rid«Dá-me de comer
dá-me de beber…
Fome é misterioso
chamamento
levanta e baixa aguenta deixa
seguro-te deixo-me.
Dá-me a água,
dá-me a mão
pois estamos
no mesmo mundo
.»

Chandra Livia Candiani, Dammi da mangiare  [Dá-me de comer]

Deus escutou e “recordou-se dela” (1 Samuel 1, 19), como se tinha recordado do seu povo escravo no Egipto, depois da primeira oração coletiva da Bíblia (Êxodo 2, 23). O Deus bíblico é um Deus que sabe escutar a todos, mas, sobretudo, as vítimas. Os ídolos são surdos e mudos porque estão mortos. YHWH está vivo porque tem um ‘ouvido’ e pode escutar e pode ser acordado do seu sono, despertado na sua desatenção, enquanto estamos no barco e há tempestade.

[jcfields] => Array ( ) [type] => intro [oddeven] => item-even )

Já cantores do ainda-não

Maiores que a culpa/ 2 – O dom dos filhos dados é a gramática da existência por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 28/01/2018 «Dá-me de comer dá-me de beber… Fome é misterioso chamamento levanta e baixa aguenta deixa seguro-te deixo-me. Dá-me a água, dá-me a mão pois estamos no mesmo m...
stdClass Object
(
    [id] => 17397
    [title] => A grande oração das mulheres
    [alias] => a-grande-oracao-das-mulheres
    [introtext] => 

Maiores que a culpa / 1 – As palavras sem fôlego das vítimas valem mais que todas

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/01/2018

Piu grandi della colpa 01 rid«A Bíblia conhece o lamento. O lamento é um momento extremamente crítico na relação com Deus, enquanto Deus não console o homem e o homem não console Deus. Profecia e liturgia transportam os lamentos para a frente e para trás, entre o céu e a terra»

Paolo De Benedetti, La chiamata di Samuele e altre letture [A chamada de Samuel e outras leituras]

Começamos a leitura e o comentário dos dois livros de Samuel. E começa o tempo de uma alegria nova, a que, talvez, só o contacto interior com o imenso texto bíblico consegue, por vezes, dar. Sobretudo no início, no sábado da espera, naquela alegria matinal que inunda a alma, antes de saber se e quais palavras nascerão deste novo encontro com as palavras in-finitas da Bíblia. Antes de saber se e como seremos capazes de as tornar um discurso sobre o nosso tempo, sobre os nossos reinos, prantos, vocações, traições, orações.

[fulltext] =>

Samuel é um texto que contém personagens e episódios, entre os mais populares e estupendos da Bíblia, da história de Israel, da literatura, da piedade popular. De todas as palavras que o génio humano soube escrever. Basta pronunciar apenas um nome: David, nomear apenas uma cidade: Belém. Se aqueles longínquos escritores não tivessem guardado e transmitido estas histórias, Miguel Ângelo, Bernini, Alfieri teriam menos palavras à disposição para embelezar o mundo. E estaríamos, todos, mais pobres.

Porém, para abordarmos estes textos e receber a sua bênção, há necessidade de um exercício e de uma ascese específica intencional. É preciso provar ser capaz de não ter medo das impurezas, das mestiçagens, das contaminações, dos pecados. De olhar de frente os delitos que, frequentemente, acontecem nas áreas fronteiriças e nos lugares inseguros e escuros que são os cruzamentos das estradas, as suas cruzes, os seus crucificados. Não se encontra David sem sentir na carne da nossa alma a sua pietas para com Saul, a sua paixão malvada por Bersabé, o seu grito de dor depois da parábola do profeta Natã. Os personagens da Bíblia – como e mais que os de todas as obras-primas narrativas – só nos mudarão se se incarnam em nós. Se morremos com Urias, o hitita, se entramos desesperados e cheios de esperança no templo com Ana, se com e como ela nos lamentamos, choramos, pedimos uma criança que ponha termo à nossa esterilidade e, depois, mulheres e homens, geremos o filho da promessa. Se, depois, voltamos, com Ana e o seu filho Samuel, ao templo, e cantamos com ela o seu magnificat e, um outro dia, o cantamos de novo com Isabel, a estéril, e com Maria. Se, numa noite, ouvimos a chamar-nos três vezes pelo nome, não reconhecemos a voz que nos chama e um amigo nos diz: “É o Senhor”. Nós acreditamos e pronunciamos a palavra maravilhosa: “Eis-me aqui”.

Os livros de Samuel são povoados por homens e mulheres que não são nem piores nem melhores que nós, que os lemos: são, exatamente, como nós. Imensos, fiéis e infinitos, como nós; e, como nós, frágeis, infiéis e pecadores. Talvez a mensagem humana e ética mais alta que podemos encontrar na Bíblia é a humildade verdadeira daqueles antigos escritores hebreus que quiseram colocar como alicerces da sua história sagrada, como colunas da sua história com o Deus mais elevado e verdadeiro, homens e mulheres de carne e osso. Sara, Rebeca, Jacob, o enganador, os fundadores das tribos de Israel, vendedores por lucro do irmão sonhador. Moisés homicida, Arão construtor do bezerro de ouro. David assassino e imagem do Messias. A Bíblia não teve medo dos homens e das mulheres completos e, assim, dá-nos a sua palavra mais bonita: se queres encontrar Deus na terra, deves frequentar a terra suja e maculada das mulheres e dos homens verdadeiros.

Samuel é um livro integrado numa paisagem epocal da “história teológica” de Israel, entre o fim do tempo dos Juízes e o nascimento da monarquia (que a cronologia clássica coloca à volta do ano 1000 a.C.). É um livro sobre a fronteira, um livro de fronteira. A própria figura de Samuel é uma fronteira e uma passagem. Samuel é o último Juiz e consagrador do primeiro Rei; é primícia de uma nova profecia em Israel e no mundo, mas também herdeiro da arcaica figura do vidente-xamã, muito comum nos povos cananeus e no Egipto.  Promíscuo e mestiço como todas as fronteiras, fim e princípio, ocaso e aurora, vau, lutador noturno, Jacob e Israel.

A extraordinária beleza narrativa e espiritual destes livros depende também, decididamente, da presença de muitos outros protagonistas, magistralmente descritos. Entre estes, estão muitas mulheres, muitas orações de mulheres, muita dor, muitas vítimas, muitíssima beleza.

«Havia em Ramataim um homem de Suf, nas montanhas de Efraim, chamado Elcana… Tinha duas mulheres, uma chamada Ana e outra Penina. Esta tinha filhos; Ana, porém, não tinha nenhum» (1 Samuel 1, 1-2). O livro abre com uma rivalidade entre mulheres, um conflito entre duas esposas: «A sua rival afligia-a duramente, humilhando-a, por o Senhor a ter feito estéril. (…) Penina zombava dela. Ana chorava e não comia» (1, 6-7). Ana (“a fascinante”) e Penina (“a fecunda”), duas mulheres com duas belezas diferentes. Mas, naquele mundo antigo, a fecundidade vencia a beleza e a mulher estéril era humilhada pela vida, pela comunidade e pela religião («YHWH tinha tornado estéril o seio»). A beleza do corpo e do coração vinham depois da “beleza” do seio. Os filhos são o primeiro paraíso da Bíblia, a sua vida eterna, a verdade da Promessa e da Aliança. Nos seus rostos resplandece a imagem do Deus diferente e único. Para que o homem bíblico possa decifrar a imagem de YHWH na terra, não basta olhar para Adão nem para Eva. Deve vê-la num filho; toda a criança é um Emanuel (Deus connosco).

Um humanismo esplêndido e fascinante, mas que complicou, durante milénios, a compreensão da verdade e da dignidade das mulheres, de todas as mulheres, antes e independentemente do seu ser mães na carne. Nestes primeiros versículos de Samuel encontramos, portanto, um eco do grito de todas as mulheres oprimidas e mortificadas, num mundo de homens que, por vezes, as amavam, mas, geralmente, não as compreendiam, mesmo quando eram fecundas e fascinantes. Mas a Bíblia, por vezes, consegue perfurar o tempo e dar-nos frases que nos surpreendem, que não deveriam existir, mas existem. A profecia da Bíblia não é um monopólio dos profetas. Toda a Bíblia está orvalhada dela e emerge quando uma página se eleva do seu tempo com a sua ideia de Deus, de homem e de mulher, e nos descreve um outro Deus que ainda não existe, um homem e uma mulher maiores que a sua culpa, do seu mundo e da sua religião. E são as páginas mais bonitas, verdadeiramente infinitas. Como estas palavras de Elcana: «Ana, porque choras? Porque não comes? Porque estás triste? Não valho para ti tanto como dez filhos?» (1, 8). Palavras maravilhosas, que ainda hoje são repetidas, ao derramar lagrimas amalgamadas, nas casas de muitos casais que se amam com um amor que as lágrimas tornam capaz de generatividades diferentes.

A relação rival e antagonista que, frequentemente, encontramos na Bíblia, não é um exclusivo dos homens. A sabedoria antropológica da Bíblia diz-nos que também as mulheres têm a sua rivalidade (Sara e Agar, Raquel e Lia…), que está ligada à geração. Os homens, geralmente irmãos, lutam pela primogenitura e pelo poder; as mulheres competem pela vida e não são irmãs. A dizer-nos que a diversidade da mulher, o seu talento especial e, em muitas coisas, maiores que a dos machos, não a exonera desta típica doença do viver juntos; e que, embora sendo verdadeiramente diferentes, as mulheres e os homens são verdadeiramente iguais, semelhantes, parecidos, espelho, ezer-kenegdo um da outra.

A rivalidade, também aqui, é acompanhada de uma outra constante do humanismo bíblico: a predileção: «Todos os anos, este homem subia da sua cidade a Silo, para adorar o Senhor do universo e oferecer-lhe um sacrifício… Cada vez que Elcana oferecia um sacrifício, dava a porção correspondente à sua mulher Penina, bem como aos seus filhos e filhas. Mas dava uma porção dupla a Ana, porque a amava mais, embora o Senhor a tivesse tornado estéril» (1, 3-5).

A predileção e o amor sincero do seu marido não são, porém, suficientes para a consolar. Ana deixa o banquete sacrificial e dirige-se ao templo de Silo, onde trabalhava Eli, o sumo-sacerdote: «Ana, profundamente amargurada, orou ao Senhor e chorou copiosas lágrimas» (1, 10). Um lamento, um pranto-oração por um filho. Orava no coração, numa intimidade que, também aqui, o homem Eli não compreende: «Ana, porém, falava só para si e apenas movia os lábios, sem se lhe ouvir palavra alguma. Eli julga-a ébria (…). Ana respondeu: «Não é assim, meu senhor; a verdade é que sou uma mulher de espírito atribulado; não bebi vinho nem álcool; apenas estava a desabafar as minhas mágoas na presença do Senhor. (…) Só a grandeza da minha dor e da minha aflição é que me fez falar» (1, 13-16). Certas dores e certas angústias – de todos mas, sobretudo, das mulheres – não se podem dizer em voz alta. Porque a vida tirou todo o fôlego. Mas a Bíblia quis registar estas palavras sussurradas para que acompanhem as nossas. E, assim, guardou-nos as palavras estranguladas mais íntimas das vítimas, dos escravos, dos servos, as palavras mais belas de todas as orações: “Lembra-te de mim… não me esqueças” (1,11).

Não existem orações mais humanas e verdadeiras que um “lembra-te de mim, ó Deus” e “não me esqueças”. São as primeiras palavras de todos mas, sobretudo, das vítimas, dos pobres, dos esmagados pela vida e pelos poderosos. “Escuta e recorda, Israel” que o teu Deus te libertou do Egipto, é apenas uma parte da vida e da fé. Antes deste “recorda” dirigido a Israel, que abre o primeiro mandamento da Lei (Dt 6, 5) está o “recorda” gritado a Deus, pelas vítimas, que abre o primeiro mandamento da vida.

Sobre a terra, todos os dias, se elevam muitos “Lembra-te de mim, ó Deus” pronunciados e gritados pelos pobres e oprimidos que não conhecem o nome de Deus, que o esqueceram, que nunca rezaram antes daquele grito dirigido ao céu. Mais verdadeiros e belos que todos os salmos de David. Muitas pessoas aprendem a rezar pelo “excesso de dor”, gritando: “Lembra-te de mim”, “Lembra-te do meu menino”, “não te esqueças do meu irmão”. Muitas pessoas, muitos homens. Sobretudo, muitas mulheres, que mantêm viva a oração da terra com os seus muitos “lembra-te “ e “não te esqueças”.

baixa/descarrega o artigo em pdf

[checked_out] => 0 [checked_out_time] => 0000-00-00 00:00:00 [catid] => 847 [created] => 2018-01-20 18:08:35 [created_by] => 64 [created_by_alias] => Luigino Bruni [state] => 1 [modified] => 2020-08-11 03:49:12 [modified_by] => 609 [modified_by_name] => Super User [publish_up] => 2018-01-20 19:35:13 [publish_down] => 0000-00-00 00:00:00 [images] => {"image_intro":"","float_intro":"","image_intro_alt":"","image_intro_caption":"","image_fulltext":"","float_fulltext":"","image_fulltext_alt":"","image_fulltext_caption":""} [urls] => {"urla":false,"urlatext":"","targeta":"","urlb":false,"urlbtext":"","targetb":"","urlc":false,"urlctext":"","targetc":""} [attribs] => {"article_layout":"","show_title":"","link_titles":"","show_tags":"","show_intro":"","info_block_position":"","info_block_show_title":"","show_category":"","link_category":"","show_parent_category":"","link_parent_category":"","show_associations":"","show_author":"","link_author":"","show_create_date":"","show_modify_date":"","show_publish_date":"","show_item_navigation":"","show_icons":"","show_print_icon":"","show_email_icon":"","show_vote":"","show_hits":"","show_noauth":"","urls_position":"","alternative_readmore":"","article_page_title":"","show_publishing_options":"","show_article_options":"","show_urls_images_backend":"","show_urls_images_frontend":""} [metadata] => {"robots":"","author":"","rights":"","xreference":""} [metakey] => [metadesc] => Inizia oggi il commento ai Libri di Samuele. Una riflessione sul nostro tempo, sulle colpe e corruzioni nostre, di tutti, di sempre. Ma soprattutto sulla grande forza e dignità degli uomini, e delle donne. Di Anna e delle sue e nostre sorelle che popolano questi libri biblici. Luigino Bruni su Avvenire [access] => 1 [hits] => 794 [xreference] => [featured] => 0 [language] => pt-BR [on_img_default] => [readmore] => 10242 [ordering] => 61 [category_title] => BR - Maiores que a culpa [category_route] => commenti-biblici/serie-bibliche/piu-grandi-della-colpa [category_access] => 1 [category_alias] => br-maiores-que-a-culpa [published] => 1 [parents_published] => 1 [lft] => 123 [author] => Luigino Bruni [author_email] => ferrucci.anto@gmail.com [parent_title] => IT - Serie bibliche [parent_id] => 773 [parent_route] => commenti-biblici/serie-bibliche [parent_alias] => serie-bibliche [rating] => 0 [rating_count] => 0 [alternative_readmore] => [layout] => [params] => Joomla\Registry\Registry Object ( [data:protected] => stdClass Object ( [article_layout] => _:default [show_title] => 1 [link_titles] => 1 [show_intro] => 1 [info_block_position] => 0 [info_block_show_title] => 1 [show_category] => 1 [link_category] => 1 [show_parent_category] => 1 [link_parent_category] => 1 [show_associations] => 0 [flags] => 1 [show_author] => 0 [link_author] => 0 [show_create_date] => 1 [show_modify_date] => 0 [show_publish_date] => 1 [show_item_navigation] => 1 [show_vote] => 0 [show_readmore] => 0 [show_readmore_title] => 0 [readmore_limit] => 100 [show_tags] => 1 [show_icons] => 1 [show_print_icon] => 1 [show_email_icon] => 1 [show_hits] => 0 [record_hits] => 1 [show_noauth] => 0 [urls_position] => 1 [captcha] => [show_publishing_options] => 1 [show_article_options] => 1 [save_history] => 1 [history_limit] => 10 [show_urls_images_frontend] => 0 [show_urls_images_backend] => 1 [targeta] => 0 [targetb] => 0 [targetc] => 0 [float_intro] => left [float_fulltext] => left [category_layout] => _:blog [show_category_heading_title_text] => 0 [show_category_title] => 0 [show_description] => 0 [show_description_image] => 0 [maxLevel] => 0 [show_empty_categories] => 0 [show_no_articles] => 1 [show_subcat_desc] => 0 [show_cat_num_articles] => 0 [show_cat_tags] => 1 [show_base_description] => 1 [maxLevelcat] => -1 [show_empty_categories_cat] => 0 [show_subcat_desc_cat] => 0 [show_cat_num_articles_cat] => 0 [num_leading_articles] => 0 [num_intro_articles] => 14 [num_columns] => 2 [num_links] => 0 [multi_column_order] => 1 [show_subcategory_content] => -1 [show_pagination_limit] => 1 [filter_field] => hide [show_headings] => 1 [list_show_date] => 0 [date_format] => [list_show_hits] => 1 [list_show_author] => 1 [list_show_votes] => 0 [list_show_ratings] => 0 [orderby_pri] => none [orderby_sec] => rdate [order_date] => published [show_pagination] => 2 [show_pagination_results] => 1 [show_featured] => show [show_feed_link] => 1 [feed_summary] => 0 [feed_show_readmore] => 0 [sef_advanced] => 1 [sef_ids] => 1 [custom_fields_enable] => 1 [show_page_heading] => 0 [layout_type] => blog [menu_text] => 1 [menu_show] => 1 [secure] => 0 [helixultimatemenulayout] => {"width":600,"menualign":"right","megamenu":0,"showtitle":1,"faicon":"","customclass":"","dropdown":"right","badge":"","badge_position":"","badge_bg_color":"","badge_text_color":"","layout":[]} [helixultimate_enable_page_title] => 1 [helixultimate_page_title_alt] => Più grandi della colpa [helixultimate_page_subtitle] => Commenti Biblici [helixultimate_page_title_heading] => h2 [page_title] => Maiores que a culpa [page_description] => [page_rights] => [robots] => [access-view] => 1 ) [initialized:protected] => 1 [separator] => . ) [displayDate] => 2018-01-20 18:08:35 [tags] => Joomla\CMS\Helper\TagsHelper Object ( [tagsChanged:protected] => [replaceTags:protected] => [typeAlias] => [itemTags] => Array ( ) ) [slug] => 17397:a-grande-oracao-das-mulheres [parent_slug] => 773:serie-bibliche [catslug] => 847:br-maiores-que-a-culpa [event] => stdClass Object ( [afterDisplayTitle] => [beforeDisplayContent] => [afterDisplayContent] => ) [text] =>

Maiores que a culpa / 1 – As palavras sem fôlego das vítimas valem mais que todas

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/01/2018

Piu grandi della colpa 01 rid«A Bíblia conhece o lamento. O lamento é um momento extremamente crítico na relação com Deus, enquanto Deus não console o homem e o homem não console Deus. Profecia e liturgia transportam os lamentos para a frente e para trás, entre o céu e a terra»

Paolo De Benedetti, La chiamata di Samuele e altre letture [A chamada de Samuel e outras leituras]

Começamos a leitura e o comentário dos dois livros de Samuel. E começa o tempo de uma alegria nova, a que, talvez, só o contacto interior com o imenso texto bíblico consegue, por vezes, dar. Sobretudo no início, no sábado da espera, naquela alegria matinal que inunda a alma, antes de saber se e quais palavras nascerão deste novo encontro com as palavras in-finitas da Bíblia. Antes de saber se e como seremos capazes de as tornar um discurso sobre o nosso tempo, sobre os nossos reinos, prantos, vocações, traições, orações.

[jcfields] => Array ( ) [type] => intro [oddeven] => item-odd )

A grande oração das mulheres

Maiores que a culpa / 1 – As palavras sem fôlego das vítimas valem mais que todas por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 21/01/2018 «A Bíblia conhece o lamento. O lamento é um momento extremamente crítico na relação com Deus, enquanto Deus não console o homem e o homem não console Deus...