stdClass Object ( [id] => 17398 [title] => Os pobres anjos dos pobres [alias] => os-pobres-anjos-dos-pobres [introtext] =>A aurora da meia-noite / 24 – Pesam mais as mutilações da alma que as do corpo
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 01/10/2017
«O dever para com o próximo não está confinado apenas aos que vivem ao nosso lado. A estabelecer uma ligação entre o samaritano e o israelita, são os próprios acontecimentos. Encontrando-se naquela situação, ele teve acesso a uma nova proximidade. No nosso mundo, são bem poucos os que não podemos julgar próximos de nós».
Amartya Sen, A ideia de justiça
A laicidade da Bíblia é algo muito sério, mas sempre muito longe da nossa vida de crentes e de “leigos”. O humanismo bíblico é, antes de mais, um discurso sobre a vida, sobre toda a vida, sobretudo a vida humana. A Bíblia fala muito de Deus, mas não nos fala apenas de Deus, porque nos fala, sobretudo, de nós. Porque nos diz que não há apenas Deus na vida: há a vida. O Deus bíblico sabe retrair-se, calar, para deixar espaço para nós. À nossa liberdade e à nossa responsabilidade. Não é um monopolista da nossa vida, não quer um culto contínuo e perpétuo – isto apenas o procuram e obtêm os ídolos. O Deus bíblico é um libertador; não nos liberta dos ídolos para nos subjugar a si – se o fizesse, seria um ídolo perfeito. Acelera processos, não ocupa espaços, nem sequer os sagrados, que frequenta pouco, porque ao templo prefere praça, a casa, a vinha. Mas, sobretudo, gosta de ver o que se passa debaixo do sol, seguir-nos com o olhar de esperança, no exercício pleno da nossa humanidade. Admira-se quando vê as nossas maldades, mas admira-se ainda mais perante a beleza das nossas ações, diante do espetáculo admirável da solidariedade e da fraternidade, sobretudo das solidariedades e fraternidades maravilhosas que começam no coração dos mais pobres e dos marginalizados.
[fulltext] =>«Entretanto, Ébed-Mélec, um eunuco etíope que vivia no palácio real, soube que tinham lançado Jeremias na cisterna… o criado do rei saiu do palácio real e falou ao rei, dizendo: “Ó rei, meu senhor, estes homens procederam mal contra o profeta Jeremias, metendo-o na cisterna. Ele vai certamente morrer de fome, porque já não há mais pão na cidade”. Então o rei respondeu a Ébed-Mélec: “Leva daqui contigo trinta homens e faz com que retirem o profeta Jeremias da cisterna, antes que morra”» (Jeremias 38, 7-10). Foi um eunuco, um etíope – um marginalizado, um estrageiro – a salvar Jeremias da lama e da morte. Não sabemos muito deste salvador. Porém, sabemos que os eunucos eram numerosos, na antiguidade, no Oriente, na Pérsia e, depois, em toda a bacia do Mediterrâneo, Roma incluída. Eram escravos muito procurados e caros no mercado, porque podiam desempenhar papeis especiais e delicados (guardar as mulheres dos haréns, por exemplo). Muitos eram castrados antes da puberdade e acabavam por assumir uma voz e atitudes femininas. Geralmente, eram utilizados para serviços da corte e dos templos. Formas semelhantes dos antigos eunucos permaneceram até tempos recentes (pensa-se no seu uso, na Europa, em coros sagrados, até aos inícios do séc. XX) – há poucas semanas, vi alguns na Índia (os Hijras) pedir esmola nos semáforos: revi neles os eunucos da Bíblia, a sua tristíssima condição de vítimas, e fiquei sem palavras pela admiração e pela sua dor.
Neste episódio do livro de Jeremias impressiona a descrição que Baruc faz da ação do eunuco, delicada e cheia de atenção aos pormenores: «Ébed-Mélec tomou consigo os homens, entrou no vestiário do palácio real e dali tirou pedaços de pano e trapos. E, tomando uma corda, deitou-os abaixo, à cisterna, onde estava Jeremias. Ébed-Mélec, o etíope, disse a Jeremias: “Mete estes pedaços de pano e os trapos debaixo dos teus braços, por baixo das cordas”. E assim fez Jeremias» (38, 11-12). Um pormenor que poderia parecer insignificante e que, no entanto, exprime uma esplêndida humanidade de quem consegue captar o valor daquela ferida, daquele homem mutilado, frequentador de mulheres e que delas tinha assumido a arte da cura, que do seu sofrimento tinha aprendido uma competência sobre o sofrimento do corpo dos outros. Mais uma vez, a salvação de um profeta chega de um marginalizado, de um amaldiçoado, de um estrangeiro, de uma vítima. Mas capaz, porque educado e tornado manso pelo espírito da grande dor, de reconhecer, na algazarra geral, uma voz diferente e, depois, agir e realizar um resgate.
Não são os faraós, os reis, os poderosos, os grandes, os ricos, a salvar os pobres. Ontem e hoje, a primeira salvação das vítimas chega das outras vítimas, pela solidariedade da dor que, quando brota, realiza autênticos milagres e transforma os cárceres e até mesmo os campos de concentração em éden da fraternidade. Naquela confusão e desespero geral, numa Jerusalém onde cada um procurava salvar a própria vida, um homem castrado transforma aquele palácio inquinado por cortesãos e políticos corruptos num paraíso de humanidade. Aquela vítima consegue ver uma outra vítima, o profeta, e encontra recursos para agir, procurando, no caos de uma corte em debandada, também os panos para colocar sob as axilas, para as não ferir.
Provavelmente aquele etíope já conhecia Jeremias, ou talvez não. Somos ignorantes em relação a este pormenor da narração, mas esta ignorância recorda-nos algo de muito importante: a proximidade não é a amizade. Não há necessidade de se conhecer pessoalmente alguém, para se sentir seu próximo. O samaritano do evangelho de Lucas, também ele forasteiro como o etíope de Jeremias, não conhecia pelo nome o homem agredido pelos ladrões, mas viveu aquela proximidade fraterna que não tem necessidade de conhecer nomes, documentos, permissão de estadia; não sabia nem quer saber se aquele homem se encontrava na estrada porque fugia de um conflito, se era inocente ou culpado, ou se era “simplesmente” um migrante económico. Era um homem; era uma vítima. A amizade deve conhecer o nome do outro; a fraternidade não. O homem, ao longo da estrada para Jericó e Jeremias eram homens e eram vítimas. Não há necessidade de mais nada para parar diante de um ferido, socorrê-lo, levá-lo para uma estalagem, cuidar dele, deixar o dinheiro do estalajadeiro. O samaritano e o etíope souberam ser próximos sem ser vizinhos – por geografia, clã, condição social, etnia, religião. A proximidade sem a necessidade da vizinhança é uma das mais belas conquistas morais da humanidade que, em cada dia, é morta e que em cada dia renasce. Nas nossas periferias, nos campos do primeiro acolhimento, onde – ao lado de muitos Sedecias e rufias funcionários da corte – encontramos ainda muitos etíopes com olhos capazes de ver outras vítimas, de as reconhecer porque têm o mesmo cheiro: cheiro humano, o melhor odor da terra; que procuram os panos nos armários para extrair da lama homens e mulheres como eles.
No tempo das ruínas e das deportações, na grande dor das violências extremas, renascem também pedaços de proximidade e, por vezes, de fraternidade. Mas, para a encontrar, temos de a procurar entre as vítimas e os rejeitados que, por vezes, salvaram em si mesmos, guardada pela dor, a capacidade de sentir nas entranhas a dor dos outros e, depois, agir. A primeira pobreza, imensa pobreza, que, frequentemente, o poder e as riquezas geram, é o atrofiamento do músculo do coração que chamamos misericórdia, que primeiro nos impede de ver as vítimas, depois de as sentir verdadeiramente irmãos e irmãs, e, finalmente, de agir. E, quando na vida humana se atrofia este músculo moral, voltamos a Caim, mesmo quando vivemos, cómodos e saciados, em cortes, rodeados por novos servos e eunucos. No nosso mundo, há uma crescente pobreza desta humanidade integral que, infelizmente, nenhum indicador de bem-estar mede, porque não quer medir; e, assim, mergulhamos numa crescente desumanização, talvez nas lamas diferentes das termas e das salas de massagem; e talvez nos convencemos mesmo que os pobres já não existem apenas porque estamos demasiado empobrecidos na alma para ainda os poder ver, ouvir e salvar da lama.
Aquele etíope castrado continha em si toda a humanidade presente naquele palácio decaído e corrompido. E, assim, salvou um profeta e, nele, continua a salvar-nos quando, graças à Bíblia, o descobrimos e o contamos também hoje, e lhe agradecemos. Aquele eunuco viu e salvou o profeta porque tinha permanecido um homem inteiro, íntegro na alma, embora mutilado no corpo. Com as mutilações do corpo pode-se permanecer inteira e autenticamente humanos; as mutilações e automutilações mais graves são as da alma porque a primeira parte que é arrancada é justamente a capacidade espiritual de nos vermos amputados. Jeremias profetizou uma bênção para o etíope Ébed-Mélec; disse, para ele, palavras de salvação: «A Jeremias foi-lhe dirigida a palavra do Senhor, nestes termos: Vai e diz a Ébed-Mélec, o etíope: “Assim fala o Senhor: eis que vou executar contra esta cidade as predições que fiz …. Porém, nesse dia Eu te salvarei e não serás entregue nas mãos dos homens que temes. Com certeza te livrarei, e não cairás morto à espada. Salvarás a tua vida, porque confiaste em mim”» (39, 15-18). Esta é uma forma sublime de reciprocidade, onde as palavras de bênção e de salvação de um profeta se tornam resposta a uma libertação da lama.
Um outro etíope, num outro dia, enquanto lia um outro profeta, fez um outro encontro, E foi o primeiro não judeu a ser batizado pelos apóstolos: «O Anjo do Senhor falou a Filipe e disse-lhe: “Põe-te a caminho e dirige-te para o Sul, pela estrada que desce de Jerusalém para Gaza, a qual se encontra deserta”. Ele pôs-se a caminho e foi para lá. Ora, um etíope, eunuco (…) regressava, na mesma altura, sentado no seu carro, a ler o profeta Isaías (Actos 8, 26-28). Aquele primeiro foi também um último, um outro etíope, um outro eunuco, que o apóstolo encontrou após uma teofania, a uma palavra de um anjo. Todas as teofanias da Bíblia são belíssimas, mas são esplêndidos os relatos dos anjos que se tornam amigos dos pobres: o que aparece a Agar, a escrava escorraçada para o deserto pela patroa ciumenta, o que fez de um eunuco estrangeiro o sinal de uma salvação, finalmente universal. Não sabemos se Lucas quer contar-nos o batismo deste etíope também para nos recordar o outro longínquo etíope, salvador do profeta. Mas podemos imaginá-lo e esperá-lo; não seria estranho, numa Bíblia cheia de improváveis reciprocidades e fraternidades no espaço e no tempo. Mas podemos e queremos pensar que, depois de ter escutado as palavras de Jeremias, também aquele primeiro eunuco etíope, «cheio de alegria, seguiu o seu caminho» (Actos 8, 39).
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/09/2017
Cassandra: «Erro ou acerto no alvo como um arqueiro? Ou talvez seja um falso profeta que bate às portas para vender conversa? Sê minha testemunha e jura que estou reconhecendo as vilanias desta casa, antigas pela fama! (…) Mais uma vez, a terrível canseira de adivinhar verdades me ferve dentro, perturbando-me os seus prelúdios dolorosos”».
Ésquilo, Agamémnon
Quando, na vida, cultivámos uma grande ilusão, a gestão da desilusão é sempre muito complicada e extremamente dolorosa. Porém, se o tempo da ilusão foi vivido com boa-fé e durante muitos anos, quando se sente chegar o possível dia da desilusão, quase sempre preferimos ficar iludidos. Porque chamar a ilusão pelo seu verdadeiro nome significa ter de pronunciar palavras muito dolorosas para as poder dizer até ao fim: fracasso, (auto)engano, imaturidade, manipulação. E talvez bastasse compreender que a desilusão é o único bom florescimento da ilusão e vivê-la como uma passagem abençoada para dar bons frutos e, depois, concluir, na verdade, a nossa viagem debaixo do sol. Na luta entre ilusão e desilusão – a trata-se de autêntica agonia, sobretudo nas pessoas justas e honestas – o êxito depende decididamente de quem está ao nosso lado, na arena.
[fulltext] =>Se, por companheiro, temos um ou mais falsos profetas, permanecemos presos na ilusão, continuamos a negar a realidade, mesmo quando é óbvia e evidente para todos. Porque os falsos profetas são mestres em apresentar os factos contrários à sua ideologia como a última prova a superar para, finalmente, estar prontos para a verdadeira salvação. Se, pelo contrário, na luta, encontramos um profeta verdadeiro, a idade de ilusão pode, finalmente, terminar e a dor, má e opressora, transformar-se no bom trabalho das libertações. Perante o desabamento total e definitivo do que parecera, durante tanto tempo, o caminho mais bonito e verdadeiro na terra e no céu, a única salvação possível é acolher, docilmente, a desilusão. Convidá-la para a mesa, colocar as toalhas e os talheres mais bonitos, abrir o melhor vinho da adega. E fazer festa juntos, convidando os poucos amigos verdadeiros e os pouquíssimos profetas. Sem este jantar de reconciliação, não podemos descobrir, um dia, que aquela vida era verdadeiramente bela, talvez mais bela do que a tínhamos imaginado.
«Jeremias tentou sair de Jerusalém para ir ao território de Benjamim, a fim de escapar dali no meio do povo. Ao chegar à porta de Benjamim, encontrava-se lá o chefe da guarda, chamado Jerias, e prendeu o profeta Jeremias, dizendo: «Então, tu passas para o lado dos caldeus!» Jeremias respondeu: «É mentira! Eu não me passo para os caldeus.» Jerias, porém, não o quis ouvir e, prendendo o profeta, levou-o à presença dos chefes. As autoridades irritaram-se contra Jeremias e, depois de o açoitarem, prenderam-no na casa do escriba Jónatas (…). Jeremias entrou num calaboiço subterrâneo, onde esteve durante muitos dias (Jeremias 37, 11-16). Chegámos ao último período da história de Jeremias, narrado por Baruc. É o ciclo do chamado “martírio de Jeremias”. O seu calvário, a sua paixão. E as analogias vivíssimas com o relato da paixão de outros justos são muitas e importantes. As pancadas, os interrogatórios, os diálogos noturnos secretos, a cisterna e a lama. Podemos conhecer os Evangelhos, a vida, a paixão e a morte de Jesus Cristo sem nunca ter lido a Bíblia, os profetas, Job, Jeremias. Podemos fazê-lo, muitos o fizeram, muitíssimos continuam a fazê-lo. Mas podemos ler os Evangelhos juntamente a toda a “Lei e os Profetas” e, então, aprendemos a conhecer um outro cristianismo, começamos uma outra vida espiritual e, talvez, encontremos um outro Cristo.
Num momento de afrouxamento do torno do cerco dos babilónios, porque empenhados na frente egípcia (37, 11), Jeremias, ainda com liberdade para se movimentar (37, 4), desce da cidade, provavelmente para a aquisição do terreno em Anatot, de que nos fala o grandioso episódio do capítulo 32. É detido e acusado de colaboracionismo com o inimigo e lançado numa cisterna. Como José, um outro justo, o primeiro profeta da história da salvação, também ele acusado pelos irmãos, pelas suas palavras diferentes, pelos seus sonhos proféticos, verdadeiros e incómodos. Também ele salvo e não deixado morrer na cisterna: «O rei Sedecias mandou-o buscar, a fim de o interrogar secretamente no seu palácio. Perguntou-lhe: “Tens, porventura, algum oráculo do Senhor?” Jeremias respondeu-lhe: “Sim, tenho. Serás entregue nas mãos do rei da Babilónia”» (37, 17).
É extraordinária e impressionante a fidelidade de Jeremias à palavra: já o vimos muitas vezes, mas, de cada vez, continua a impressionar-nos e a deixar-nos sem respiração. O rei manda-o chamar ao cárcere, à procura das palavras diferentes do profeta, talvez pensando que a mudança do contexto geopolítico e o regresso do império egípcio teria produzido uma outra profecia e um outro resultado. Com Jeremias, estes jogos não funcionam, nem sequer no desespero geral. E, do fundo da sua cisterna, velho e esgotado, repete ao rei a mesmas palavras de sempre: a única salvação é a rendição, os caldeus voltarão, ocuparão Jerusalém e o templo. Acabou.
Um outro episódio que fala muito e alto, que diz muitas coisas. Entre estas, a ambivalência radical deste rei (e do poder em geral) que, por um lado, parece dar crédito a Jeremias e lhe pede um novo oráculo e, por outro lado, desejaria sugerir a Jeremias que palavras a dizer, certamente diferentes das que Jeremias sempre tinha dito. O rei procura consolações; Jeremias obedece à verdade. Sedecias faz como quem, perante uma escolha determinante, sente necessidade de um “profeta”, que o aconselhe e console, mas não tem a força moral de ir ter com alguém honesto e verdadeiro, porque poderia dar-lhe um conselho incómodo; e, assim, procura, por vezes inconscientemente, um pai espiritual ou um coach espiritual, manipulável, que o aconselhe a escolha que ele, no seu coração, já decidiu fazer. Discernimentos mentirosos, sem amor à verdade, os enganos típicos cultivados sempre pelos falsos profetas. De facto, Jeremias acrescenta: «Onde estão os vossos profetas que vos profetizam, dizendo: 'O rei da Babilónia não virá contra vós e contra esta terra'?» (37, 19). Como quem diz: se queres as habituais mentiras consoladoras, dirige-te aos teus profetas da corte, aos rufias que sempre te disseram o que querias ouvir, e te impeliram para o abismo. Jeremias, pelo contrário, resiste até ao fim, não se torna servo do poder e dos seus fingimentos. Jeremias é grande por muitas coisas, mas é imenso por esta fidelidade sem condições à palavra e à própria dignidade. Perante a derrota, já iminente, do rei e do povo, podia ceder à pietas humana e dizer uma palavra de consolação – como quem, à cabeceira de um inimigo que está a chegar ao fim, lhe diz com amor: “Vais ver que melhorarás”. Nós fazemo-lo; Jeremias não: para nos repetir o valor absoluto da verdade da palavra, em qualquer circunstância, mesmo na mais dramática. Também quando a palavra parece, a alguém, entrar em conflito com as exigências da caridade, Jeremias diz-nos que o único modo de trair, seguramente, a caridade é renunciar a servir a verdade da palavra. Os descontos, os saldos, os leilões, as amnistias… os profetas deixam-nos para os nossos negócios, de ontem e de hoje..
O diálogo secreto, entre o profeta e o rei, continua: «Jeremias disse ainda ao rei Sedecias: “Que delito cometi contra ti, contra os teus ministros e contra este povo, para me meterdes na prisão? Agora, escute-me, majestade; que o rei acolha favoravelmente a minha súplica, e não me faça voltar para a casa do escriba Jónatas, para que não morra lá”. Então, o rei Sedecias ordenou que Jeremias fosse retido no pátio da guarda e que lhe dessem todos os dias uma torta de pão, trazido da rua dos padeiros, enquanto houvesse pão na cidade» (37, 18-21).
Neste diálogo, as palavras de Jeremias não são precedidas por “Assim fala YHWH”, nem por “Oráculo do Senhor”. Encontramo-nos perante um diálogo entre dois homens, entre um soberano e um profeta, entre um rei e um seu prisioneiro. As palavras de Jeremias, no livro de Jeremias, não são todas palavras de YHWH. Existem também muitas palavras apenas de Jeremias, que não são menos belas e importantes – como o relato da sua vocação, das suas provas, os seus cânticos íntimos. Esta oração que, agora, o ancião profeta, esgotado pela prisão, dirige ao rei, não é um gesto profético nem uma ordem de Deus. É apenas uma palavra de Jeremias de Anatot. Uma palavra como as muitas que os sofredores gritam aos poderosos que os podem libertar. Talvez todos os “oráculos” recebidos no decurso da nossa existência tenham formado um capital que gastaremos quando chegarmos ao cimo do nosso Gólgota, onde recordaremos apenas uma das palavras escutadas e ditas e comporemos o nosso salmo de abandono.
Nos capítulos do seu martírio, narrados pelo seu escriba Baruc, também Jeremias aparece cada vez mais indefeso, só, em poder dos seus inimigos. As palavras que repete são as que sempre disse: «Assim fala o Senhor: ‘Aquele que ficar nesta cidade morrerá pela espada, pela fome e pela peste; e aquele que sair para se entregar aos caldeus será tomado como despojo, mas terá a vida salva’. Oráculo do Senhor: ‘A cidade será entregue nas mãos do exército do rei da Babilónia, para que a conquiste’» (38, 2-3). Não há outras palavras a dizer. E, assim, os ministros e os generais ainda presos pela ideologia nacionalista e bélica, pedem ao rei para Jeremias ser de novo preso. E o rei Sedecias responde: «Aí o tendes nas vossas mãos, pois o rei nada vos pode recusar» (38, 5). Nesta paixão, não podia faltar Pilatos – quase nunca falta nas paixões verdadeiras dos homens e de Deus: «Tomaram, então, Jeremias e, por meio de cordas, fizeram-no descer à cisterna do príncipe Malquias, que fica no pátio da guarda. Não havia água na cisterna, mas apenas lodo; e Jeremias ficou atolado no lodo» (38, 6).
Jeremias afunda-se no lodo. Nós podemos vê-lo afundar e continuar os nossos afazeres, divertindo-nos com as nossas ilusões. Ou, então, podemos decidir afundar-nos com ele e, na cisterna, esperar uma salvação, mas sem saber se virá um eunuco etíope a salvar-nos. Porque não existem muitos “etíopes” para salvar todos os Jeremias que continuam atolados na lama do mundo.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/09/2017
Cassandra: «Erro ou acerto no alvo como um arqueiro? Ou talvez seja um falso profeta que bate às portas para vender conversa? Sê minha testemunha e jura que estou reconhecendo as vilanias desta casa, antigas pela fama! (…) Mais uma vez, a terrível canseira de adivinhar verdades me ferve dentro, perturbando-me os seus prelúdios dolorosos”».
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Quando, na vida, cultivámos uma grande ilusão, a gestão da desilusão é sempre muito complicada e extremamente dolorosa. Porém, se o tempo da ilusão foi vivido com boa-fé e durante muitos anos, quando se sente chegar o possível dia da desilusão, quase sempre preferimos ficar iludidos. Porque chamar a ilusão pelo seu verdadeiro nome significa ter de pronunciar palavras muito dolorosas para as poder dizer até ao fim: fracasso, (auto)engano, imaturidade, manipulação. E talvez bastasse compreender que a desilusão é o único bom florescimento da ilusão e vivê-la como uma passagem abençoada para dar bons frutos e, depois, concluir, na verdade, a nossa viagem debaixo do sol. Na luta entre ilusão e desilusão – a trata-se de autêntica agonia, sobretudo nas pessoas justas e honestas – o êxito depende decididamente de quem está ao nosso lado, na arena.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 17/09/2017
«Se leio um livro e todo o meu corpo se torna tão frio que nenhum fogo pode aquecer, sei que é poesia».
Emy Dickinson, de uma sua carta
Também a escrita pode ser atividade espiritual. Escreve-se de muitos modos, por muitas razões, escrevem-se coisas muito diferentes. Mas sempre houve e sempre haverá quem escreve, porque ouviu e acolheu uma voz interior. Sabem isto muito bem os poetas, que escrevem para responder a uma voz que fala e chama, e a sua poesia torna-se o fruto de um ‘sim’ a uma incarnação. Dizem-nos que a escrita é segunda porque, primeiro, há o dom de uma voz, de uma palavra, de um espírito. Existem muitas palavras ditas, mesmo palavras grandes e imensas, que não se tornam palavras escritas. Mas não existem escritas grandes e imensas que não sejam, antes, ditas na alma por uma palavra sussurrada. É esta dimensão vocacional e espiritual da palavra escrita que faz com que as outras nossas palavras escritas sem vocação possam ser, misteriosamente, verdadeiras ou, pelo menos, nem sempre nem totalmente falsas.
[fulltext] =>As poucas palavras espirituais são um bem comum para todos, mesmo que o não saibamos. A verdade da palavra de quem escreve, obedecendo a uma voz, dá substância às palavras de todos, salva-nos da vanitas global, radical e absoluta das bisbilhotices, a que estamos condenados quando perdemos o contacto com a escrita vocacional, quando deixamos de ler os poetas. Porque os poetas e os escritores por vocação são o justo encontrado na nossa cidade de palavras, que a salva da destruição. Os meus avós não conheciam a poesia dos poetas, mas as suas palavras dialetais eram verdadeiras, porque filhas da verdade da natureza, da piedade popular; porque eram empastadas de provérbios antigos, de Evangelho, de lengalengas, de canções, de santos e de muita oração, de muitíssimas orações. E, assim, quando uma filha ou um neto recitavam uma poesia dos poetas, aprendida na escola, sabiam intuí-la com o coração, para lá da semântica e da métrica e, por vezes, comoviam-se verdadeiramente, porque ouviam e amavam aquelas palavras, antes de as compreender – e, amando-as, compreendiam-nas, ao menos um pouco. Hoje, perdemos estas outras verdades das palavras. Para nos salvarmos da vanitas das bisbilhotices, restar-nos-iam apenas os poetas escritores, a Bíblia e pouco mais. Falta-nos um pouco de silêncio interior, necessário para ouvir uma voz diferente.
“No quarto ano de Joaquim, filho de Josias, rei de Judá, a palavra do Senhor foi dirigida a Jeremias, nestes termos: «Toma um rolo do livro e escreve nele todos os oráculos que Eu te disse acerca de Israel e de Judá, e de todas as nações»” (Jeremias 36, 1-2). Com esta nova ordem, estamos dentro de um autêntico acontecimento da Bíblia. A palavra, que Jeremias tinha dito e gritado na primeira parte da sua missão profética, torna-se, agora, por uma ordem explícita de Deus, palavra escrita. Jeremias e Baruc dão-nos uma das experiências mais íntimas, preciosas e secretas de toda a Bíblia. Este verbo que se torna rolo é um sinal, um gesto profético como os outros, não menos solene e decisivo que transportar um jugo, destruir uma bilha, não se casar. Porém, para conseguir intuir algo deste acontecimento, temos de voltar àquele mundo médio-oriental, construído sobre a palavra oral e seus relatos, onde o primado não pertencia à palavra escrita, mas à palavra dita. O que era pronunciado com a boca valia mais que o que era escrito porque, para aquelas culturas, não havia nada mais certo e fiável que a voz de uma pessoa. A taxa de verdade da palavra era maior que a da escrita, porque era maior o valor do homem em relação aos seus instrumentos. Nenhum juramento escrito alcançava o valor de um juramento proclamado com a voz – podemos ainda intuí-lo quando pensamos na força do primeiro ‘amo-te’ dito ou do último ‘obrigado’ sussurrado à nossa mãe.
“Jeremias chamou Baruc, filho de Néria, e Baruc escreveu, da parte de Jeremias, no rolo do livro todas as palavras que o Senhor lhe tinha dito. Em seguida, Jeremias deu esta ordem a Baruc: «Estou impossibilitado de me dirigir ao templo do Senhor. Vai, pois, tu, num dia de jejum, e lê o rolo em que escreveste as palavras do Senhor… Talvez eles dirijam súplicas ao Senhor e se convertam dos seus maus caminhos, porque grande é a indignação e grande o furor com que o Senhor ameaça este povo»” (36, 4-7). Jeremias não escreve diretamente as suas palavras (provavelmente poderia tê-lo feito: era de família sacerdotal), mas dita-as ao seu escriba Baruc. Talvez porque, para escrever ‘todas as palavras de IHWH’, uma única pessoa não é suficiente: há necessidade de uma comunidade, pelo menos de um que, primeiro, escuta a palavra dita em voz alta e, depois, a escreve. A escrita é um diálogo, nunca um monólogo; é um acontecimento social, uma ação coletiva, é uma comunidade, uma relação.
Jeremias, depois, não pode dirigir-se pessoalmente ao templo (talvez por razões de impureza ou porque seria preso antes de poder terminar a leitura) e a tradução da palavra em escrita torna possível que seja um outro a ler e a doar a palavra. Está, aqui, explicada uma característica fundamental da palavra, porventura a primeira: uma vez que a palavra oral se torna escrita, emancipa-se da relação necessária com o seu ditador. A escrita liberta a palavra do seu dono, resgata-a, chama-a a uma liberdade diferente. Não é o único instrumento para esta operação (também as culturas orais sabiam incarnar as palavras e libertá-las, através da memória e o relato das tradições), mas é, talvez, a mais forte, tão forte que o ‘escravo’ libertado acaba, muitas vezes, por matar o seu senhor, quando a palavra escrita é manipulada e pervertida.
Aquela primeira leitura solene no templo produz alguns frutos. Miqueias, pessoa amiga íntima do profeta, foi junto dos chefes e “referiu-lhes tudo o que ouvira ler a Baruc do livro, diante do povo” (36, 13). Então, os chefes mandaram dizer a Baruc: “Toma o livro, pelo qual leste diante do povo, e vem ter connosco” (36, 14). Baruc leu-o em frente dos chefes que “ao ouvirem estes oráculos, entreolharam-se, atónitos, e disseram a Baruc: «Devemos comunicar todas estas coisas ao rei»” (26, 16). Os chefes do povo e alguns sacerdotes do tempo levaram a sério as palavras de Jeremias. Coisa que, por seu lado, não fez o rei Joaquim: “O rei estava sentado no palácio de inverno - era o nono mês - e tinha um braseiro aceso na sua frente. À medida que Judi lia três ou quatro colunas, o rei cortava-as com o canivete do escriba e atirava-as às chamas do braseiro até que todo o rolo se queimou no fogo do braseiro… Depois, o rei ordenou que prendessem o escriba Baruc e o profeta Jeremias. Mas o Senhor escondeu-os” (36, 22-26). Nós, hoje, conhecemos o coração do rolo lido por Baruc, e o rei também o conhecia, pois tinha ouvido muitas vezes Jeremias e as suas profecias sobre a destruição de Jerusalém e do templo. Palavra que Joaquim não teria querido escutar e que continua a não querer escutar. O êxito da palavra escrita foi o mesmo da palavra dita. O gesto de queimar o papiro, folha a folha, diz, com uma linguagem nova, quanto Joaquim tinha dito já muitas vezes: as tuas palavras são palha, vanitas, nada. A palavra escrita partilha a mesma sorte que a dita.Mas eis que, entre aquelas chamas e cinzas, nos espera uma outra maravilhosa surpresa. Jeremias, conhecedor das tradições do Norte, da Aliança e do Êxodo, dá-nos um outro paralelismo com um grande episódio da história da primeira salvação. Como YHWH ditou, de novo, a Moisés as Tábuas da Lei, depois que a maldade e a idolatria do seu povo as tinham quebrado, agora, depois da destruição do primeiro rolo, por parte de um rei surdo e infiel, Jeremias receba uma nova ordem: “Toma outro rolo e escreve nele todos os oráculos contidos no primeiro, que foi queimado por Joaquim, rei de Judá” (36, 28).
O texto do livro de Jeremias que a Bíblia conservou e transmitiu é, portanto, a segunda redação da palavra de Jeremias, a ressuscitada das cinzas da primeira. Jeremias ainda estava vivo, livre e, portanto, pode reescrever as palavras que tinha recebido e dito: “Jeremias tomou outro rolo e entregou-o a Baruc, filho de Néria, o escriba, para que escrevesse nele, a ditado de Jeremias, todos os oráculos contidos no rolo lançado ao fogo por Joaquim, rei de Judá” (36, 32). O fogo da queima não venceu o fogo da palavra.
O relato conclui-se com uma simples frase que contém uma mensagem esplêndida. Na segunda edição do rolo: “foram acrescentados muitos oráculos semelhantes” (36, 32). Na primeira edição do rolo de Jeremias havia algumas palavras que, provavelmente, se perderam para sempre; palavras semelhantes, não idênticas, às que ele ditou de novo. O fogo da maldade e da estupidez dos homens deixa sempre as suas marcas – isto é também uma expressão da seriedade e da verdade da história humana. Mas – e isto é verdadeiramente importante – na segunda edição, temos palavras novas que não estavam no primeiro ditado. Talvez aquele fogo tenha gerado a escrita das confissões mais íntimas de Jeremias, as suas orações mais bonitas, o relato do seu chamamento, os seus maravilhosos cânticos desesperados. Talvez: não podemos sabê-lo, mas podemos imaginá-lo, podemos desejar que da ferida gravada na alma de Jeremias, por aquele fogo, tenham florido as suas páginas mais belas (os nossos desejos sobre o que já foi não mudam a história, mas mudam sempre o nosso ‘já’ e o nosso ‘ainda não’).
A nova vida que renasce das cinzas nunca é uma cópia da vida queimada. O corpo ressuscitado não é o primeiro corpo reanimado. O segundo episódio não é uma réplica do primeiro. Quando a primeira escrita da nossa história se esfumou – porque queimado dolosamente por alguém, porque incendiado por autocombustão, ou se se queimou e basta e não sabemos porquê – enquanto estivermos vivos podemos ainda escrever uma outra. Recordando as primeiras palavras e juntando-lhe muitas outras. Estamos vivos e fora da prisão se, frente às cinzas de pedaços da nossa vida ou de toda a vida, nalgum lado encontramos ainda a força, e um amigo escriba, para recomeçar um novo relato. E, no fim, descobrir que era o relato mais belo que não teríamos escrito sem o fogo do braseiro.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 17/09/2017
«Se leio um livro e todo o meu corpo se torna tão frio que nenhum fogo pode aquecer, sei que é poesia».
Emy Dickinson, de uma sua carta
Também a escrita pode ser atividade espiritual. Escreve-se de muitos modos, por muitas razões, escrevem-se coisas muito diferentes. Mas sempre houve e sempre haverá quem escreve, porque ouviu e acolheu uma voz interior. Sabem isto muito bem os poetas, que escrevem para responder a uma voz que fala e chama, e a sua poesia torna-se o fruto de um ‘sim’ a uma incarnação. Dizem-nos que a escrita é segunda porque, primeiro, há o dom de uma voz, de uma palavra, de um espírito. Existem muitas palavras ditas, mesmo palavras grandes e imensas, que não se tornam palavras escritas. Mas não existem escritas grandes e imensas que não sejam, antes, ditas na alma por uma palavra sussurrada. É esta dimensão vocacional e espiritual da palavra escrita que faz com que as outras nossas palavras escritas sem vocação possam ser, misteriosamente, verdadeiras ou, pelo menos, nem sempre nem totalmente falsas.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/09/2017
«Mesmo se a não lês, estás na Bíblia».
E. Canetti, Il cuore segreto dell'orologio [O coração secreto do relógio]
Quando uma comunidade vive uma crise profunda, longa e de resultado incerto, o que está, verdadeiramente, em jogo é a ligação passado-futuro. Porque, se é verdade que é somente um bom futuro que torna bênção o passado, o resgata e o liberta da armadilha da saudade, é também verdade que, sem uma boa história de ontem para contar hoje, não se têm palavras novas para contar e nos recontar um amanhã bom e credível. As crises individuais e coletivas são carestias de futuro e carestias do passado, porque é a amizade entre o passado e o futuro que torna belo e fecundo o presente, em todas as fases da vida. Também quando está próximo o ocaso e a sombra do passado se torna longuíssima, as recordações nos alimentam e nos acompanham sempre, ao presente não basta apenas o passado, por muito grande e estupendo que seja. Devemos esperar uma palavra nova, rever o rosto de uma filha, que também hoje virá, ou esperar ver, finalmente, o rosto de Deus, guardado no desejo de toda uma vida. Para viver bem o tempo da crise é, então, indispensável ter um futuro entusiasmante que floresce de um presente reconciliado com o passado, vivido como dom e promessa, para além das feridas, das desilusões e dos fracassos. É na correta reciprocidade entre raízes e semente, entre bereshit e eskaton, onde se encontra, verdadeiramente, a possibilidade de continuar, agora, a gerar vida e futuro.
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Na antiguidade, as dívidas insolúveis eram coisas muito sérias, mas ainda mais séria e viva era a consciência coletiva e religiosa que aquela escravidão não podia ser para sempre, que uma falha, no plano económico, não se deveria tornar uma condenação vitalícia, que a economia não era a última palavra – uma consciência que nós perdemos. A libertação dos escravos era, portanto, um dos grandes preceitos ligados à instituição do shabbat: no sétimo ano, os escravos deveriam ser libertados. A libertação dos escravos era, portanto, em Israel um sinal e um memorial da grande libertação da escravidão do Egipto, sempre presente e vivíssima no coração coletivo daquele povo. Aquela primeira libertação da escravidão coletiva devia ensinar a Israel que Deus é um libertador, que não quer homens escravos, mas livres, que IHWH é Deus da liberdade. Mas, como também recorda Jeremias, «os vossos pais não me ouviram nem prestaram atenção» (34, 14). E, assim, apesar da Torá, os escravos não eram libertados e muitos hebreus encontravam-se numa longa condição de escravidão e de servilismo, propriedade privada de outros hebreus, usados como instrumentos e coisas, para satisfazer as necessidades dos outros. Este episódio parte, então, de uma condição de profanação generalizada da Aliança e da Lei, que transforma num preceito extraordinário que deveria fazer parte da vida comum do povo.
Do relato, ficamos a saber que, inicialmente, o povo obedece, e os escravos são, efetivamente, libertados. Mas, pouco depois, acontece uma autêntica reviravolta, uma daquelas a que nos está habituando o livro de Jeremias (mas nós não nos devemos habituar). Aqueles libertadores «retomaram os seus escravos e escravas, que tinham libertado, reduzindo-os de novo ao estado de escravidão» (34, 11). Estamos perante um arrependimento ao contrário, uma conversão perversa que anula a primeira conversão boa. O povo que, finalmente, tinha escutado o profeta, muda de ideias e estabelece a originária condição iníqua. Não sabemos a razão deste arrependimento – talvez um afrouxamento do cerco de Nabucodonosor que produziu uma nova onda da ideologia nacionalista e anti-Jeremias. O que sabemos é que aquele pacto de libertação não tinha sido interiorizado pelo povo, tinha permanecido à superfície; e, assim, bastou uma crise ou uma atenuação do medo para violar aquela promessa, a Aliança e a palavra de Jeremias. A boa e correta resolução coletiva não teve força suficiente para durar.
Nos pactos, o elemento crucial é a duração. Posso, sinceramente, sentir-me arrependido e prometer mudar de vida, também o podemos fazer em conjunto, mas só o tempo é a verdadeira prova de que aquela conversão era bastante profunda para durar e, assim, produzir uma verdadeira mudança. Só Deus (e os profetas verdadeiros) podem mudar a realidade das coisas com a palavra, dizendo-a. Também nós podemos e devemos começar uma mudança dizendo-a, dando, um ao outro, palavras sinceras que dizem o desejo e a necessidade de recomeçar. Mas se e até essas palavras não se tornarem ações, factos, coisas, carne, mãos e pernas, podemos, em cada momento, sair à rua e retomar os escravos que tínhamos acabado de libertar. Enquanto o tempo não passar pela nossa carne e pela dos outros, transformando-a, não podemos saber o grau de verdade das palavras que, sinceramente, pronunciámos. A verdade das nossas palavras e das dos outros, só se nos revela quando as tivermos dito também com o suor, os braços, as lágrimas – talvez nunca saibamos se algumas das palavras decisivas da nossa vida eram verdadeiras, mas podemos continuar a esperar que o fossem ou, pelo menos, a desejá-lo.
Mas os arrependimentos perversos mais graves e tremendos são os coletivos, quando uma comunidade, um povo, uma geração inteira, renega as palavras e os gestos que tinha dito nalguns momentos luminosos da própria história. Reerguemos muros que um dia derrubámos, fechamos fronteiras que, um dia, ouvindo uma palavra, tínhamos aberto. Matamos, de novo, crianças, num mar tornado seu inimigo. A este triste episódio de infidelidade, o livro de Jeremias continua, imediatamente, com uma maravilhosa história de sentido oposto. É o relato da fidelidade dos recabitas, que nos mostra também um novo rosto de Jeremias, através do seu inédito gesto profético: «Vai procurar a família dos recabitas. Fala-lhes e leva-os a uma das salas do templo de YHWH e dá-lhes vinho a beber» (35, 2). Os recabitas eram uma comunidade nómada que, a um dado momento da sua história, se tinha unido a Israel e à sua religião. O seu fundador, dois séculos antes deste encontro com Jeremias, tinha estabelecido que aquela comunidade permanecesse nómada, não bebesse vinho, não construísse casas nem cultivasse vinhas – talvez o não cultivar vinhas e não beber vinho fossem dois processos ligados entre si, em comunidades substancialmente autárquicas. Jeremias conhece as suas leis mas, mesmo assim, oferece-lhes taças de vinho: «Eles, porém, responderam: «Não bebemos vinho, porque Jonadab, filho de Recab, nosso pai, assim nos ordenou: 'Jamais bebereis vinho, vós e os vossos filhos. Não construireis casa, não semeareis, não plantareis nem possuireis vinhas» (35, 6-7). Jeremias louva esta comunidade fiel e profetiza o seu futuro e fecundidade: «Assim fala YHWH: não faltarão descendentes de Jonadab, filho de Recab, que estejam sempre na minha presença» (35, 19). As vocações são o sacramento das comunidades fiéis.
Num momento de infidelidade generalizada, é uma comunidade nómada, imigrada na cidade, para procurar fugir duma guerra, não pertencente às doze tribos de Israel, a dar-nos um testemunho de fidelidade, a oferecer uma consolação ao profeta. Este louvor dos recabitas não é, porém, extemporâneo no livro de Jeremias e na Bíblia, que nos narram uma relação ambivalente e geralmente crítico em relação à cidade. O primeiro citadino foi Caim e os primeiros tempos fiéis de Israel são um relato de nómadas e de tendas. Quando, finalmente, Israel habitou na terra da promessa, começou também a contaminação da sua religião, sofreu a influência dos cultos cananeus e cedeu ao sempre presente pecado da idolatria. Para os profetas, Jerusalém é cidade santa, mas também cidade prostituta. Parar, construir casas e plantar vinhas foi o princípio de uma decadência espiritual e identitária do povo, que tinha chegado até à corrupção generalizada que Jeremias está a descrever.
Toda a história de amor começa nómada. Caminha-se, decididos e felizes, atrás de uma voz, em direção ao futuro. Mesmo se atravessamos o deserto, não o vemos, porque o que verdadeiramente vemos e ouvimos é uma voz maravilhosa e uma tenda móvel. Depois, chegamos à terra prometida e paramos, construímos o culto, o templo, e começamos a construção da “casa, da vinha e dos campos”. As culturas e os cultos vizinhos fascinam-nos e seduzem-nos, aquela voz parece-nos cada vez mais longínqua, ténue, confundimo-la com os cânticos encantadores dos ídolos. Uma noite, por vezes, sonhamos com aquele deserto já afastado, o primeiro amor, a tenda pobre, a pureza da primeira voz. Alguém, depois deste sonho veríssimo, desmonta as construções, deixa os campos e as vinhas e recomeça a caminhar num novo deserto, sozinho ou com outros. Outros, permanecem na cidade, como Jeremias, mas recomeçam a cantar o cântico do deserto e da esposa. E dizem-nos que o arameu errante é a condição humana, que a verdadeira promessa não é uma terra mas uma tenda itinerante numa estrada infinita. E, quando encontram um nómada, um migrante ou um vagabundo, descobrem nele uma palavra de salvação e abençoam-no.
Dedicado a Odilon Junior, pioneiro e testemunha da Economia de Comunhão no Brasil e no mundo.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/09/2017
«Mesmo se a não lês, estás na Bíblia».
E. Canetti, Il cuore segreto dell'orologio [O coração secreto do relógio]
Quando uma comunidade vive uma crise profunda, longa e de resultado incerto, o que está, verdadeiramente, em jogo é a ligação passado-futuro. Porque, se é verdade que é somente um bom futuro que torna bênção o passado, o resgata e o liberta da armadilha da saudade, é também verdade que, sem uma boa história de ontem para contar hoje, não se têm palavras novas para contar e nos recontar um amanhã bom e credível. As crises individuais e coletivas são carestias de futuro e carestias do passado, porque é a amizade entre o passado e o futuro que torna belo e fecundo o presente, em todas as fases da vida. Também quando está próximo o ocaso e a sombra do passado se torna longuíssima, as recordações nos alimentam e nos acompanham sempre, ao presente não basta apenas o passado, por muito grande e estupendo que seja. Devemos esperar uma palavra nova, rever o rosto de uma filha, que também hoje virá, ou esperar ver, finalmente, o rosto de Deus, guardado no desejo de toda uma vida. Para viver bem o tempo da crise é, então, indispensável ter um futuro entusiasmante que floresce de um presente reconciliado com o passado, vivido como dom e promessa, para além das feridas, das desilusões e dos fracassos. É na correta reciprocidade entre raízes e semente, entre bereshit e eskaton, onde se encontra, verdadeiramente, a possibilidade de continuar, agora, a gerar vida e futuro.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/09/2017
«Mesmo que soubesse que o fim do mundo é amanhã, ainda iria, hoje, plantar uma macieira».
Martinho Lutero
Depois dos grandes capítulos das consolações, bênçãos e das promessas, depois do anúncio da Nova Aliança, o livro de Jeremias volta à história do tempo do cerco dos babilónios e da iminente conquista e destruição de Jerusalém (ano 587). Dias terríveis, que nos acompanharão até ao fim do livro, onde se cumprem a profecia e a vida do profeta. A narrar-nos os factos e as palavras é Baruc, fiel companheiro e secretário de Jeremias, cujo nome, agora, desaparece do texto. Voltando à história, encontramos Jeremias prisioneiro do rei Sedecias. O tema da acusação já o conhecemos, porque é o coração da sua missão profética: “Porque profetizas desta forma: Assim fala o Senhor: 'Vou entregar esta cidade ao rei da Babilónia, que se apoderará dela'?” (Jeremias 32, 3). Estão, portanto, a realizar-se as profecias de Jeremias, negadas pelos falsos profetas, pelos chefes do povo e pelos sacerdotes do templo.
[fulltext] =>Neste contexto de desespero, deparamo-nos, inesperadamente, com um outro grande episódio: a compra profética de um campo. Seu primo (Hanamiel) oferece-lhe o direito de resgate sobre um campo em Anatot, terra natal do profeta, não distante de Jerusalém. Jeremias compra-o, porque “compreendi que isto era vontade do Senhor” (32, 8). Era um novo gesto profético que, desta vez, toma diretamente as formas e a linguagem da economia. O sinal usa as palavras e as ações de um contrato, de uma compra-venda imobiliária, de uma troca do mercado. Também a bilha, o jugo, o cinto eram artefactos humanos; portanto, fruto do trabalho e da oikonomia humana. Mas, agora, a economia entra, explicitamente, em jogo e, pela primeira vez, a profecia diz palavras económicas, incarna-se no dinheiro, selos, contratos. Onde há uma laicidade mais bela e verdadeira que na Bíblia? A palavra de YHWH torna-se 17 ciclos de prata: “Escrevi, então, o contrato, selei-o, chamei testemunhas e pesei o dinheiro na balança. A seguir, tomei a escritura de venda selada, de acordo com as normas legais, e sua cópia aberta. Entreguei o contrato de venda a Baruc, filho de Néria, filho de Masseias, em presença de Hanamiel, meu primo, das testemunhas signatárias do contrato de venda” (32, 10-12).
Como acontece frequentemente, quando temos que realizar atos decisivos, como o são sempre os gestos proféticos, nos pormenores escondem-se palavras importantes. Jeremias escreve o texto do contrato, redigido em duas cópias na mesma folha de papiro, cortada, em parte, ao meio, de modo a ter juntas as duas cópias. Sela uma – a outra ficava enrolada e aberta para poder ser consultada – chama as testemunhas, pesa o dinheiro na balança (na antiguidade, a unidade de medida da moeda eram unidades de peso). Quer estar seguro que todos compreendam, que nós compreendamos, que fez um contrato verdadeiro, perfeito (“de acordo com as normas legais”: 32, 10), que, aquele campo, ele o comprou de verdade, diante de testemunhas. E, assim, palavras, gestos e objetos que pertenciam ao repertório de poucos técnicos do setor, se tornam um dos sinais mais solenes de toda a profecia bíblica.
Ao ouvir a palavra ‘resgate’, o leitor da Bíblia recorda muitas coisas. O grito de Job que invoca um resgatador/Goel que não chegava ao seu monte de estrume, e que não chegou (cap. 19). Ou a história de Rute, que nos revela um outro pormenor esplêndido destes antigos contratos de resgate: “um homem tirava a sandália e a dava ao outro, para a validade da transação” (Rute 4, 7). Aquela aquisição de Jeremias, porém, lembra, sobretudo, Abraão, o seu contrato para a aquisição de terra, para o túmulo de Sara: “Abraão aceitou as condições de Efron, e pesou-lhe diante dos hititas a prata por ele mencionada, quer dizer, quatrocentos siclos de prata em moeda corrente” (Génesis 23, 16). A Bíblia é também isto, um património de vida comum das mulheres e dos homens, onde um jugo e um contrato contêm a mesma dignidade do Sinai. Onde se encontra uma laicidade mais verdadeira que esta? Esta bela a histórica laicidade da Bíblia é sempre mais rara no nosso tempo, onde muitos acreditam que as palavras e os gestos da economia, do trabalho e dos contratos são demasiado humanos e simples para se descobrir, dentro deles, palavras e gestos proféticos, porque os únicos atos e palavras dignas de Deus devem ser os realizados no templo, por técnicos da religião. E, assim, continuamos a falar dum Deus cada vez mais distante da vida verdadeira das pessoas e – repete-nos Jeremias – também da Bíblia.
Jeremias, Rute e Abraão dizem-nos também que só a morte e uma esposa podem ser acopladas à solenidade e seriedade de um gesto profético que, por esta razão, deve ser descrito e recordado em todos os seus pormenores. E, depois, guardado numa ânfora; guardado, sobretudo, dentro da Bíblia: “E dei esta ordem a Baruc, diante deles, dizendo: ‘Assim fala o Senhor do universo, o Deus de Israel: Toma estes documentos, esta escritura de venda selada e esta cópia aberta, e mete-os numa vasilha de barro, a fim de que se conservem por muito tempo’” (32, 13-14). E conservaram-se durante muito tempo, chegando até nós, hoje.
A obra de arte deste episódio está na explicação que Jeremias dá do seu gesto profético que, sempre que a leio, me comove e me diz palavras novas: “Porque, eis o que diz YHWH, o Deus de Israel: Ainda se hão-de comprar casas, campos e vinhas nesta terra” (32, 15). Um versículo grandioso, um cântico à humanidade – a Bíblia fala muito de Deus mas, sobretudo, fala dos homens e das mulheres e da sua infinita dignidade.
Jerusalém está para ser destruída, o povo exilado. Os campos, as vinhas e todas as atividades económicas já não valem nada. Ninguém vende porque ninguém é tão descuidado a ponto de comprar um campo nas vésperas de um exílio. Talvez os únicos que poderiam adquirir, esperando especular com base no medo, seriam os falsos profetas, convencidos apoiantes da ideologia da inviolabilidade do templo, seguros que YHWH os salvaria do ataque, realizando um grande milagre. Jeremias, pelo contrário, há quarenta anos que profetizava a destruição de Jerusalém e não tem qualquer dúvida que a cidade está à beira da capitulação e da deportação para Babilónia. Os anunciados dias da devastação vão chegar de verdade. E Jeremias compra um campo. Paga-o com ‘dinheiro vivo’, estabelece um contrato perfeito, com o mesmo cuidado de quem, convencido de ter feito um bom negócio, está atento a todos os pormenores. E faz tudo isto para dizer: aqui comprar-se-ão casas, campos e vinhas. Ainda trabalharemos aqui. Esta terra, prometida a nossos pais, apesar de, hoje, ocupada e devastada, permanece a terra da promessa, o lugar da Aliança, onde ainda nos enamoraremos, nos casaremos e geraremos filhos. A destruição da cidade não destrói a palavra que tinha fundado aquela cidade. Não a destrói porque um profeta ainda continua a pronunciá-la. É justamente aqui, nos campos como este que hoje estou a comprar, o lugar onde ainda trabalharemos, faremos contratos, venderemos e compraremos. A aquisição daquele campo não é apenas o resgate dum campo: é o resgate do futuro, que se torna penhor do regresso a casa, de regresso garantido, como garantida é a desventura.
Comprou aquele campo para dizer tudo isto ao rei e ao seu povo, que não acreditavam nele, que o tinham metido na prisão para o matar. Mas para o dizer também a nós que, hoje, lemos as suas palavras. A quem, perante a desventura iminente e certa da própria empresa ou da própria comunidade, quando já tudo fala apenas e realmente de fim e de morte, ouve uma voz que lhe diz: esta destruição e este exílio são verdadeiros e dolorosos, mas também é verdadeiro que voltaremos a viver, a amar, a trabalhar; esta morte não será a última palavra. Esta nossa terra desolada ainda terá um futuro. E, depois, age, faz um ato, porque as palavras de vida nunca são abstratas ou apenas intelectuais: são bezerros de ouro e bezerros gordos, crianças, cruzes de madeira e pedras roladas. O logos que não se torna carne não habita na Bíblia, porque não habita na vida. Os modos de agir são muitos, mas nunca podemos saber quantos ‘campos comprados’ ontem por alguém tornam possível, hoje, o nosso regresso a casa. Alguém que, durante a longa crise, acreditou, resistiu, comprou e nós, hoje, podemos ainda trabalhar naquela empresa. Alguém que hoje, enquanto todos fogem da comunidade, desiludidos e amedrontados, guarda e cuida dum jardim, no segredo do quarto não mata uma planta, faz crescer uma árvore, para dizer que, naquela casa, naquela comunidade, naquela família, a vida continuará e será vida verdadeira – a terra prometida está cheia de jardins e de plantas regadas à noite por quem quer continuar a acreditar, apesar de tudo. Estas coisas, sabem fazê-las os profetas; e, quem faz estas coisas assemelha-se aos profetas, é como eles, é um/uma deles, mesmo que o não saiba – a terra está cheia de profecia. Por vezes, vimos a ter conhecimento dalguns destes gestos, mas são sempre muitos mais os que nunca descobriremos. Como não podemos saber quantos ‘campos’ que nós estamos a adquirir hoje, no tempo da devastação, estão a criar condições espirituais para que, amanhã, alguém possa voltar para os cultivar e continuar a viver.
Jeremias tinha profetizado que o exílio duraria setenta anos. Por isso, sabe bem que o campo que hoje compra não será o terreno que ele, já velho, cultivará amanhã. Aquela terra terá futuro, mas será o futuro das crianças, homens e mulheres, que Jeremias e os seus contemporâneos não conhecerão. A gratuidade é comprar, com contrato perfeito, um campo que alimentará outros. É esta gratuidade que, hoje, pode salvar o planeta e as nossas almas: quando voltaremos a comprar campos que alimentem os nossos bisnetos? “Serão comprados por dinheiro e registados em contratos, selados perante testemunhas, no território de Benjamim, nos arredores de Jerusalém” (32, 44). Não existem palavras maiores e mais verdadeiras que estas, para dizer ‘recomeçar’ no fim do exílio: comprar campos, realizar contratos, adquirir, vender, trabalhar.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/09/2017
«Mesmo que soubesse que o fim do mundo é amanhã, ainda iria, hoje, plantar uma macieira».
Martinho Lutero
Depois dos grandes capítulos das consolações, bênçãos e das promessas, depois do anúncio da Nova Aliança, o livro de Jeremias volta à história do tempo do cerco dos babilónios e da iminente conquista e destruição de Jerusalém (ano 587). Dias terríveis, que nos acompanharão até ao fim do livro, onde se cumprem a profecia e a vida do profeta. A narrar-nos os factos e as palavras é Baruc, fiel companheiro e secretário de Jeremias, cujo nome, agora, desaparece do texto. Voltando à história, encontramos Jeremias prisioneiro do rei Sedecias. O tema da acusação já o conhecemos, porque é o coração da sua missão profética: “Porque profetizas desta forma: Assim fala o Senhor: 'Vou entregar esta cidade ao rei da Babilónia, que se apoderará dela'?” (Jeremias 32, 3). Estão, portanto, a realizar-se as profecias de Jeremias, negadas pelos falsos profetas, pelos chefes do povo e pelos sacerdotes do templo.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 27/08/2017
«Mais tarde, aprendi – e continuo a aprendê-lo agora – que se aprende a crer só no pleno “ser - de cá” da vida. Quando se renunciou completamente a fazer de nós mesmos alguma coisa – um santo, um pecador arrependido ou um homem de igreja, um justo ou um injusto, um doente ou um são – e a isto eu chamo “ser - de cá”».
D. Bonhoeffer, Carta de 21 de Julho de 1944
Talvez não haja maior dom que o dom da esperança. É um bem primário. Podemos estar saciados de mercadorias e de todos os bens do conforto, mas morrer desesperados. Sempre, mas sobretudo quando atravessamos os desertos, a terra prometida aparece inatingível, o exílio infinito. Quem nos dá esperança, verdadeira e não vã, olha primeiro para os olhos do nosso desespero, atravessa-o e fá-lo seu. Luta contra as falsas esperanças, sofre todas as consequências e feridas da luta, resiste à dimensão de pietas humana que leva muitos a cair na tentação de oferecer falsas consolações – a si mesmos e aos outros. Os profetas, do meio da noite, anunciam-nos uma aurora verdadeira, que ainda não vemos, mas que podemos vislumbrar com os seus olhos. Como quando tudo em redor nos diz, desde há muito tempo, apenas morte e vanitas, e um amigo, um dia, nos fala de paraíso. E, desta vez, parece-nos, finalmente, tudo verdadeiro, para além dos paraísos artificiais que nos tinham enganado, na idade da ilusão. E é, finalmente, tudo graça, tudo charis, tudo gratuidade: “Vou curar as tuas chagas e sarar as tuas feridas” (Jeremias 30, 17).
[fulltext] =>Chegámos aos capítulos conhecidos como ‘o livro da consolação’ de Jeremias, um díptico que contém versículos maravilhosos, entre os maiores de Jeremias e da Bíblia. Mas, para os compreender, temos de nos aproximar deles tendo nos olhos e na alma toda a primeira parte do seu livro, as suas desilusões, as suas palavras verdadeiras e duríssimas de desventura. Rever Jeremias traído pelos seus familiares de Anatot; depois, com o jugo no pescoço, com a bilha na mão, preso nas correntes do cárcere do templo. E só depois destes quarenta anos do deserto, chegar às margens do Jordão. Sem o fundo dos capítulos que os precedem, estes cânticos de esperança e de consolação perdem toda a sua força, não nos comovem, não nos penetram na carne, não nos fazem exultar, não se tornam uma nova oração totalmente diferente: “De longe, o Senhor se lhe manifestou: Amei-te com um amor eterno. Por isso, dilatei a misericórdia para contigo. Hei-de reconstruir-te, e serás restaurada, ó donzela de Israel! Ainda te hás-de adornar dos teus tamborins e participar em alegres danças” (31, 3-4).
O anúncio desta nova alegria não nasce do esquecimento dos tempos da dor e da angústia. Esses dias estão sempre presentes e vivíssimos, porque é a verdade da dor de ontem que torna verdadeira e não vã a esperança de hoje: “Ouvem-se, em Ramá, lamentações e amargos gemidos. É Raquel que chora, inconsolável, os seus filhos que já não existem” (31, 15). O choro inconsolável de Raquel, mulher amada de Jacob-Israel, torna mais verdadeira e bela a consolação de Jeremias, porque o aproxima da vida verdadeira de todos: “Tens ainda uma esperança de futuro: os teus filhos voltarão à pátria” (31, 17).
O choro de Raquel e a consolação de Jeremias estão um ao lado da outra, dentro do mesmo cântico. Porque o anúncio da chegada ou regresso de um filho não apaga a dor do filho perdido e as dores verdadeiras e imensas não são inimigas da alegria, mas podem tornar-se os seus amigos mais íntimos. A consolação de Jeremias é mais verdadeira, justamente porque não esquece o choro da Raquel pelos filhos perdidos para sempre. Vê-o, ama-o, assume-o e fá-lo florir em esperança. E, pelo contrário, muitas vezes, deslumbrados pela luz pascal, não conseguimos já ver os muitos que continuam a ser crucificados, já não vemos Raquel que chora, inconsolada. E acreditamos que os pobres tenham acabado porque, simplesmente, já não os vemos, bem protegidos no conforto das nossas casas e nos templos de quem, esquecendo os crucifixos, esquece também os ressuscitados ou os confunde com os fantasmas espetaculares, gerados pelos falsos profetas.
“Levanta sinais, põe postes indicadores, presta atenção ao caminho, à senda que percorres. Volta, donzela de Israel, volta às tuas cidades” (31, 21). O caminho de regresso a casa é, quase sempre, o mesmo caminho que nos conduziu ao exílio. O caminho da escravidão e o da liberdade são o mesmo caminho: apenas a direção é oposta. Basta alterar-lhe o sentido, dar-lhe um significado oposto. Muitas pessoas não regressam mais a casa e perdem-se em carreiros tortuosos alternativos, porque a recordação da dor da viagem para o exílio impede-as de compreender o sentido contrário. Sai-se de uma crise grande, simplesmente mudando o sentido do mesmo caminho que a gerou. Regressa-se à fé perdida fazendo o mesmo caminho que fizemos ao perdê-la, mas em sentido oposto. Regressa-se a casa repercorrendo o caminho que nos levou para fora e, depois, voltando a descobrir que os sinais que nos guiaram na fuga, tinham, no seu verso, outras palavras e outros números, mas que não podíamos ver até termos voltado, percorrendo a estrada em sentido inverso: “Até quando andarás vagabunda, ó filha rebelde?” (31, 22).
Este versículo termina com conclusão inesperada e maravilhosa, que continua a criar problemas aos exegetas: “Eis que o Senhor criou algo de novo sobre a terra: é a esposa que seduzirá o esposo” (31, 22). Frase misteriosa e belíssima, como muitas coisas na vida são belíssimas justamente porque incompletas, abertas, ambivalentes, vivas. Desta abertura ambígua, podemos, então, entrever Jeremias que, sob uma espécie de inspiração criativa, volta, com a mente, aos dias da Criação, ao primeiro sopro do espírito, à luz, às trevas, ao Adão, à mulher, à sua desobediência que gerou aquela palavra tremenda de Eloim: “Depois, disse à mulher: «Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, entre dores darás à luz os filhos. Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te dominará»” (Genesis 3, 16). Os profetas sofreram e continuam a sofrer quando leem esta frase, porque a viram formar famílias, políticas, empresas, religiões; viram-no ontem, continuam a vê-lo hoje ainda muitas vezes. Talvez Jeremias, ao dar-nos a sua esperança no fim da noite, tenha querido incluir também uma promessa de uma relação nova e diferente entre homem e mulher, que ele não podia ver e que nem sequer nós ainda conseguimos ver plenamente. Cada esperança humana plena é também esperança de reciprocidade e de comunhão, de cruzamentos de olhares ao mesmo nível, olhos diferentes e iguais.
Mal estávamos aclimatizados nesta esperança nova e belíssima e, enquanto o capítulo está a chegar ao fim, dá-nos as suas cores mais belas. Ao fim da visão da promessa de regresso a casa, Jeremias, toca um seu ápice poético-profético, e a promessa da salvação floresce nos, justamente famosos, versículos da Nova Aliança. Leiamo-la como no-la deu Jeremias, sem perdermos sequer uma vírgula, deixando-nos ferir aqui e agora: “Dias virão em que firmarei uma nova aliança com a casa de Israel e a casa de Judá. Não será como a aliança que estabeleci com seus pais, quando os tomei pela mão para os fazer sair da terra do Egipto, aliança que eles não cumpriram, embora Eu fosse o seu Deus. Esta será a Aliança que estabelecerei, depois desses dias, com a casa de Israel: Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração” (31, 31-33).
Toda a esperança grande e verdadeira de libertação é também promessa de uma nova aliança. Quanto o primeiro pacto foi traído, ferido, profanado, a promessa de um regresso a casa deve, necessariamente, tornar-se promessa de uma nova aliança. São os momentos decisivos, quando a recordação do primeiro pacto já não basta: é preciso sonhar, juntos, um futuro diferente. Quando saímos de casa e não voltámos mais, quando vimos outro a fazê-lo, para esperar juntos um futuro, não basta recordar os dias do primeiro amor, abrir o álbum do casamento. Há, simplesmente, necessidade de nos vermos juntos amanhã, junto de um outro altar, enquanto trocamos novas palavras, com novas testemunhas, com um novo amor. Ou quando o primeiro pacto que nos levou a esta comunidade se tornou mudo, as primeiras orações um jogo infantil, a primeira história de amor um engano, não seremos salvos sem a promessa de uma nova aliança, se um profeta, um dia, não nos anuncia um outro pacto, outras orações, uma outra vida. A vida não alcança plena maturidade se, da primeira, não se alcança uma nova aliança, mesmo que fosse aquela com o anjo da morte que no-la anuncia enquanto nos abraça. Quando se entra no tempo da nova aliança, o que era exterior torna-se interior, a Lei transforma-se em carne, começa-se a obedecer verdadeiramente à parte melhor de nós.
Mas Jeremias diz-nos ainda algo de mais específico. Esta fase, nova e decisiva, das pessoas e das comunidades não é uma conquista individual e/ou solitária. É aliança, pacto, comunhão. Na nova aliança, só juntos podemos entrar, embora, uma vez dentro, seja a liberdade e o amor de cada um que atingem uma fase novíssima. Os frutos são pessoais, mas a conquista é coletiva. Cada um encontra-se dentro da lei que, ontem, tinha conhecido fora, mas não somos nós os escritores desta nova lei. Sentimo-nos escritos por uma mão que não é a nossa. E nascem a maior reciprocidade e a maior liberdade possíveis, debaixo do sol.
Mas, enquanto estávamos no exílio, não podíamos sabê-lo. Era preciso iniciar o caminho do regresso, reconhecê-lo como o mesmo caminho que nos tinha conduzido à escravidão, continuar a caminhar. E, ao pôr-do-sol, encontrar um profeta que nos anunciou a nova aliança. Acreditámos nele e continuámos a caminhar. Tornámo-nos nova criação, a esperança verdadeira do futuro salvou a dor verdadeira do passado. E, depois, compreendemos – ou, pelo menos, intuímos – que aquela nova aliança não era a última. Mais uma vez, sentimo-nos vivos e recomeçámos a caminhar.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 27/08/2017
«Mais tarde, aprendi – e continuo a aprendê-lo agora – que se aprende a crer só no pleno “ser - de cá” da vida. Quando se renunciou completamente a fazer de nós mesmos alguma coisa – um santo, um pecador arrependido ou um homem de igreja, um justo ou um injusto, um doente ou um são – e a isto eu chamo “ser - de cá”».
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Talvez não haja maior dom que o dom da esperança. É um bem primário. Podemos estar saciados de mercadorias e de todos os bens do conforto, mas morrer desesperados. Sempre, mas sobretudo quando atravessamos os desertos, a terra prometida aparece inatingível, o exílio infinito. Quem nos dá esperança, verdadeira e não vã, olha primeiro para os olhos do nosso desespero, atravessa-o e fá-lo seu. Luta contra as falsas esperanças, sofre todas as consequências e feridas da luta, resiste à dimensão de pietas humana que leva muitos a cair na tentação de oferecer falsas consolações – a si mesmos e aos outros. Os profetas, do meio da noite, anunciam-nos uma aurora verdadeira, que ainda não vemos, mas que podemos vislumbrar com os seus olhos. Como quando tudo em redor nos diz, desde há muito tempo, apenas morte e vanitas, e um amigo, um dia, nos fala de paraíso. E, desta vez, parece-nos, finalmente, tudo verdadeiro, para além dos paraísos artificiais que nos tinham enganado, na idade da ilusão. E é, finalmente, tudo graça, tudo charis, tudo gratuidade: “Vou curar as tuas chagas e sarar as tuas feridas” (Jeremias 30, 17).
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 20/08/2017
«Para os verdadeiros sábios, qualquer lugar do mundo é um exílio. É imaturo o homem que considera agradável apenas a sua pátria. Já é mais forte aquele para quem toda a terra é como o seu solo natal. Mais perfeito é o homem para quem todo o mundo é como uma terra estrangeira».
Hugo de São Vítor, Didascalicon, século XII
‘Arrancar e demolir, arruinar e destruir’ ouve ecoar Jeremias no dia da sua vocação profética. Mas, juntamente a estas palavras, ouve outras duas, diferentes e complementárias: ‘edificar e plantar’ (Jeremias 1, 10). Não basta anunciar cenários assustadores de desgraças para ser um profeta não-falso, porque a terra está cheia de pessoas que pintam, por vezes até mesmo de boa-fé, um presente e um futuro desesperado apenas para granjear o consenso dos muitos desesperados que se alimentam do desespero. Jeremias não ilude os seus conterrâneos, prometendo-lhes um bem-estar e uma paz imaginários; mas, enquanto profetiza esta verdade amarga e incómoda, sabe dizer palavras de esperança verdadeira e sublime.
[fulltext] =>Como a imensa esperança contida na carta que Jeremias enviou aos hebreus deportados na Babilónia. Era endereçada “ao resto dos anciãos no exílio, aos sacerdotes, aos profetas e a todo o povo deportado por Nabucodonosor, de Jerusalém para a Babilónia” (29, 1). Continuando a leitura do texto da carta, encontramos nela algo de inédito e de maravilhoso, que surpreende e comove pela sua altíssima humanidade: “Assim fala YHWH, Deus de Israel, a todos os exilados que fiz deportar de Jerusalém para a Babilónia: ‘Edificai casas e habitai-as; plantai pomares e comei os seus frutos. Casai, gerai filhos e filhas, casai os vossos filhos e filhas, para que tenham filhos e filhas. Multiplicai-vos em vez de diminuir” (29, 4-6). Palavras que nos deixam atordoados pela sua intensa beleza. Nos exílios, não podemos ouvir palavras de esperança mais verdadeiras e altas que estas de Jeremias. Em qualquer exílio.
Quando a vida nos leva para longe de casa, emigrados por livre escolha ou deportados por qualquer império visível ou invisível, podemos viver o exílio como maldição e com raiva ou, então, podemos seguir os conselhos de Jeremias. Podemos construir casas e habitá-las, plantar pomares e trabalhar, amarmo-nos, casar e gerar filhos, e ver os filhos e as filhas dos seus filhos e das suas filhas. Os emigrantes que, sem conhecerem Jeremias, viveram assim os seus ‘exílios’, salvaram-se, fizeram daquele tempo difícil um tempo propício, tornaram-se bênção para quem tinha permanecido na primeira pátria e para os conterrâneos da nova pátria. Construíram uma casa, não uma tenda, porque quiseram habitar naquela terra e não apenas circular nela, espolia-la ou ficar lá.
No dia em que se começa a construir ou se compra uma casa, numa terra estrangeira, começa-se a ser verdadeiros cidadãos daquele país, em virtude do jus soli da lei da terra e da vida. Porque constrói-se uma casa, para dizer futuro, para nos dizer e dizer que, naquela terra, queremos amar, casar, que naqueles quartos conceberemos e faremos crescer filhos e filhas – que, um dia, também poderão perverter-se e odiar, mas podíamos construir apenas uma casa: e fizemo-lo.
Construir uma casa tem, no exílio, o mesmo valor que teve, para Abraão, a aquisição, em terra hitita, de terra para sepultar Sara. Porque construir uma casa ou um túmulo torna também minha a terra do outro, e faz daquela terra garantia do céu. Como Don Lorenzo Milani que, um dia depois de ter chegado a Barbiana, vai à Câmara Municipal e, com 31 anos, compra, para si, um túmulo no cemitério da sua nova paróquia, para dizer que a terra do exílio já se tinha tornado a terra da única vida boa e verdadeira, hoje possível, e por isso da morte de amanhã – que é sempre verdadeira, embora não pareça sempre boa.
Construir casas. Plantar pomares. Trabalhar, portanto. Quando os nossos avós chegavam à América ou à Bélgica, o medo do futuro e a dor do passado começavam a desaparecer não apenas quando começavam a trabalhar. Plantando pomares, construindo casas (de outros), aquela terra tornava-se também sua, fruto da sua con-criação. Um muro ou um túnel nas minas tornavam-se pedaços de terra prometida, graças ao trabalho das suas mãos, que tornava mansa a vida, a língua, o alimento. Dura e mansa. Trabalhando, florescia a solidariedade-fraternidade verdadeira entre trabalhadores, faladores de línguas diferentes que, no entanto, falavam entre si com as mãos e com as lágrimas do trabalho bom e do trabalho mau. E, também nos grandes exílios, das guerras e das prisões, frequentemente a ressurreição começa quando se pode voltar a trabalhar, ou quando se aprende, finalmente, um trabalho verdadeiro. E, também hoje, a amizade com os novos exilados e imigrantes, pode nascer e renascer se e onde conseguimos trabalhar juntos. Irmão trabalho.
Casar-se, gerar filhos e filhas. YHWH tinha pedido a Jeremias para não se casar e para não ter filhos nem filhas (cap. 16) e, assim, não conheceu a alegria de uma mulher, dos filhos e das filhas, durante o seu exílio profético. Mas, como acontece por vezes, quem conhece algo como seu mas que não pode usar para si mesmo, acaba por adquirir uma castidade que lhe permite penetrar a sua natureza mais profunda. Este é um dos autênticos milagres da gratuidade, que apenas os profetas conhecem verdadeiramente e nos sabem explicar: “porque os filhos da desamparada são mais numerosos do que os da mulher casada” (Isaías 54, 1). Multiplicai-vos. Na terra do exílio ressoam as mesmas primeira palavras do Eden (Gn. 1, 28), revive a primeira bênção do Adão. Sempre que nasce uma criança, a terra estrangeira torna-se novo Eden, Abraão volta a ouvir a promessa de uma nova terra e de uma descendência numerosa como as estrelas do céu. Isaac é, mais uma vez, salvo do punhal. A gruta de Belém torna-se o sepulcro vazio de Jerusalém.
É na conclusão que esta primeira carta aos deportados atinge o seu auge profético e, portanto, o seu esplêndido paradoxo: “Procurai o bem [shalom] do país para onde vos exilei e rogai por ele ao Senhor, porque só tereis a lucrar com a sua prosperidade” (29, 7). Pode-se pedir mais a uma profecia? O que é que está ‘para além’ de uma oração elevada a Deus para pedir o shalom dos que te ocuparam, deportaram, arrancaram de casa? ‘Amai os vossos inimigos, orai pelos que vos perseguem’, leremos, quase sete séculos depois, nos evangelhos. E talvez não o teríamos lido – ou lido de modo diferente – se não tivesse existido Jeremias, se não tivessem existido os profetas: “Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias»” (Mt 16, 13-14).
A fé de Israel, a Aliança e a Lei também podem ser vividas no exílio: não é preciso esperar pelo regresso à pátria porque, na Babilónia, não falta nada para viver em plenitude. É isto o que escreve Jeremias e é quanto sabem e devem dizer os profetas verdadeiros. Os quais nos recordam que a única terra prometida é a que estamos a habitar hoje; que também o deserto pode ser já terra prometida se o fazemos florir construindo, trabalhando, amando, gerando filhos e filhas. Nenhum tempo presente deve ser morto na espera do tempo futuro.
E, também desta vez, os profetas acusados e deslegitimados por Jeremias, agem. Chemaías fez chegar “cartas em teu nome a todo o povo de Jerusalém, a todos os sacerdotes, ao sacerdote Sofonias, filho de Masseias” (29, 25). O pedido que Chemaías fez a Sofonias, o sobrevivente do templo, é muito claro: “Qual a razão por que não repreendeste Jeremias de Anatot que profetizava entre vós?” (29, 27), equiparando-o, assim, aos muitos possessos, “homem fanático que se intitula profeta” (29, 26). Sofonias, naturalmente, um homem justo, não obedeceu a Chemaías – também nas corrupções generalizadas e em ‘estruturas de pecado’ se pode encontrar uma pessoa justa. Deu a conhecer a carta a Jeremias, que responde com uma nova carta aos exilados: “Oráculo de YHWH a respeito de Chemaías, de Neelam: ‘Porque Chemaías vos profetizou, sem que Eu o tenha enviado, e vos levou a crer em mentiras’” (29, 31).
Os primeiros inimigos dos verdadeiros profetas são os falsos profetas, os que de má-fé e do de boa-fé, mas devorados pela ideologia, veem no verdadeiro profeta uma grave ameaça para o povo. Muitos dos que tramavam contra Jeremias estavam sinceramente convencidos de estar a combater um inimigo da pátria, um colaboracionista que queria a ruina de Israel. Esta é a terrível força da ideologia: perseguir e matar os profetas e fazê-lo em nome do bem, da verdade, da religião, de Deus. Ontem e hoje. A Bíblia não nos diz que a história reconhece os verdadeiros profetas e os escuta. Ou melhor, diz-nos o contrário e mostra-os, no fim, derrotados. Mas a luta, tenaz e duríssima, entre Jeremias e a falsa profecia, precisamente porque é a história de uma derrota, ama-nos ensinando-nos a gramática da doença ideológica, que acompanha toda a experiência religiosa e ideal (a falsa profecia é ideológica, e a ideologia mais poderosa é uma forma da falsa profecia). Porque a falsa profecia floresce na mesma árvore da profecia verdadeira. Diferentemente do joio, não é fácil reconhecê-la no meio do campo e, assim, comunidades e povos inteiros são alimentados, e continuam a alimentar-se, de ervas daninhas, convencidos de comer trigo muito bom. E, quase sempre, os primeiros comedores de gramão são os falsos profetas, encantados com os próprios encantamentos.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 20/08/2017
«Para os verdadeiros sábios, qualquer lugar do mundo é um exílio. É imaturo o homem que considera agradável apenas a sua pátria. Já é mais forte aquele para quem toda a terra é como o seu solo natal. Mais perfeito é o homem para quem todo o mundo é como uma terra estrangeira».
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‘Arrancar e demolir, arruinar e destruir’ ouve ecoar Jeremias no dia da sua vocação profética. Mas, juntamente a estas palavras, ouve outras duas, diferentes e complementárias: ‘edificar e plantar’ (Jeremias 1, 10). Não basta anunciar cenários assustadores de desgraças para ser um profeta não-falso, porque a terra está cheia de pessoas que pintam, por vezes até mesmo de boa-fé, um presente e um futuro desesperado apenas para granjear o consenso dos muitos desesperados que se alimentam do desespero. Jeremias não ilude os seus conterrâneos, prometendo-lhes um bem-estar e uma paz imaginários; mas, enquanto profetiza esta verdade amarga e incómoda, sabe dizer palavras de esperança verdadeira e sublime.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 13/08/2017
«Não respondas ao insensato segundo a sua loucura, para não seres semelhante a ele.
Responde ao insensato segundo sua loucura, para que ele não se julgue sábio».Provérbios 26, 4-5
Labuta é um dos nomes do trabalho. Travaglio, travail, trabajo, do latim trepalium, era um jugo para animais. Uma trave de madeira armada com cordas e laços. Recordava o braço horizontal duma cruz. Com o tempo, o jugo tornou-se o símbolo de submissão de animais e de pessoas, de escravidão. Os povos conquistaram a liberdade e justiça quebrando jugos de escravidão e libertaram-se destes trabalhos e destas tribulações. Ninguém gosta de ser subjugado, colocado, por outros, debaixo de um jugo. Somente a mensagem subversiva e radical de Jesus de Nazaré podia usar a imagem do jugo para exprimir a ligação entre ele e os seus discípulos: leve e suave, mas sempre um jugo. Talvez, ao usar esta imagem paradoxal, o evangelista pensasse, também aqui, em Jeremias: “A palavra do Senhor foi dirigida a Jeremias, nestes termos: «Isto me disse o Senhor: Faz um laço e um jugo e coloca-os ao pescoço»” (Jeremias 27, 1-2).
[fulltext] =>Jeremias recebe uma outra palavra incarnada, um verbo de YHWH, que fala com a carne do profeta. Não se trata de técnicas retóricas nem, muito menos, instrumentos para chocar e, depois, seduzir o público. São palavras de YHWH, como as outras, como a bilha, o cinto, os cestos de figos, como o andar nu de Isaías, o dormir de lado de Ezequiel. Baruc, o fiel cronista de Jeremias, apresenta também a explicação daquele gesto (“Agora entreguei todas estas terras ao meu servo Nabucodonosor, rei da Babilónia… Todas estas nações o servirão, assim como ao seu filho”: 27, 5-7), mas talvez para aqueles homens antigos, avessos às muitas linguagens não-verbais, fosse já tudo claríssimo quando viram chegar o profeta com o jugo.
Tinham vindo a Jerusalém representantes dos povos vizinhos, para tentar uma aliança e fazer guerra a Babilónia, sustentados por ilusões nacionalistas dos seus “profetas, adivinhos, sonhadores, astrólogos e feiticeiros, os quais vos disseram: ‘Não sereis vassalos do rei da Babilónia!’ Porque são mentiras que vos profetizam” (27, 9-10). Jeremias continua a sua batalha contra as ilusões produzidas por profissionais da mentira.
O confronto-choque com a falsa profecia atinge um auge no capítulo seguinte, que é também um dos vértices dramáticos de todo o livro, quando Jeremias é publicamente confrontado e desafiado por outro profeta: Hananias, um representante dos profetas da salvação e da ideologia nacionalista do templo: “Hananias, filho de Azur, profeta de Guibeon, no templo do Senhor e na presença dos sacerdotes e de todo o povo, falou-me nos seguintes termos: «Assim fala o YHWH, Deus de Israel: ‘Vou quebrar o jugo do rei da Babilónia! Dentro de dois anos, farei voltar a este lugar todos os objetos do templo … e todos os exilados de Judá que foram para a Babilónia, porque vou quebrar o jugo do rei da Babilónia’»” (28, 1-4).
Depois dos muitos ataques a Jeremias que já encontrámos, agora é um outro profeta a enfrentá-lo, um ‘colega’ atuante, como ele, em Jerusalém, provavelmente uma figura com algum relevo entre os profetas da cidade. É Baruc, que narra o episódio, a chamar-lhe ‘profeta’. Hananias, para o povo, é, portanto, um profeta como o é Jeremias, ambos estão acreditados como profetas junto do povo e dos sacerdotes. Nós não sabemos, no início do relato, se Hananias é um profeta verdadeiro ou falso. Certamente não o sabiam os seus contemporâneos e nós não o devemos saber. Se queremos deixar-nos tocar na carne por estas palavras, devemos descer à liça com Jeremias, vê-lo lutar com Hananias, e descobrir, com ele, qual dos dois e porquê é o profeta verdadeiro.
Antes de mais, há algo de não óbvio e importante: a estrutura do discurso de Hananias é idêntica à de Jeremias. Também ele começa com a fórmula profética ‘assim fala o Senhor’ e também chama Deus com o nome da Aliança (YHWH). O conteúdo, porém, é oposto ao de Jeremias – nenhuma submissão a Babilónia. Perante o povo e o templo, os dois profetas aparecem como dois concorrentes, vendedores do mesmo ‘produto’, com uma diferença decisiva: o de Jeremias tinha um preço altíssimo, ao passo que o de Hananias era oferecido gratuitamente. Os profetas verdadeiros sabem manter os preços altos, sem ceder nada ao pedido de desconto e de saldos por parte do povo, porque o dumping profético é a morte da profecia verdadeira.
O primeiro lance teatral é a primeira resposta de Jeremias: “O profeta Jeremias respondeu «Ámen! Que o Senhor o permita! Realize o Senhor a tua profecia»” (28, 6). A sua primeira palavra é ‘ámen’ que, neste contexto, significa ‘talvez seja como tu dizes’. Jeremias não ama a paz e a liberdade menos que Hananias e que o povo, mas não pode proferir ilusões para consolar. Continua, portanto, com um discurso complexo, que esconde algo de muito importante: “Os profetas que nos precederam a mim e a ti, anunciaram a numerosos países e a poderosos reinos, guerra, fome e peste. Quanto ao profeta que profetiza a paz (shalom), somente quando se realizar o seu oráculo é que se poderá saber se ele é realmente um enviado do Senhor.» (27, 8-9). Jeremias apresenta como testemunha a antiga tradição profética, os que ‘nos precederam a ti e a mim’ (outro reconhecimento de Hananias como profeta) e recorda que aqueles profetas foram profetas da desgraça, e eram profetas verdadeiros. Nalguma rara ocasião, os profetas também profetizaram a salvação, mas foi a realização histórica da sua profecia que garantiu a verdade da sua palavra. Quer dizer: é muito mais fácil ser um profeta verdadeiro quem profetiza ‘guerras, fome e peste’ que quem profetiza bem-estar e paz. A profecia da desgraça é mais provável que seja autêntica, e podemo-lo afirmar ex ante, antes dos acontecimentos previstos. A profecia da salvação só pode ser validada ex post. Porquê? A explicação pode encontrar-se na gratuidade da profecia verdadeira.
Quando um profeta anuncia desgraças e dores, sobretudo aos ‘reinos poderosos’, só recebe perseguições e sofrimentos, porque – estamos a vê-lo – os chefes e o povo não gostam dos profetas da desgraça. Ao passo que, quando um profeta prevê, para o povo, o bem-estar e a paz que deseja, é muito provável que esta profecia produza consenso, sucesso, poder e riqueza, tentações sempre muito fortes, por vezes invencíveis, em todo os tempos. Por isso, é muito mais plausível que seja um verdadeiro profeta quem anuncia o que nem os chefes e nem o povo querem ouvir. Um raciocínio de uma força sapiencial extraordinária. Não temos garantias certas que o profeta da desgraça não seja falso (ou doido) – sobre estas coisas demasiado grandes, a certeza não existe. Não tendo incentivos para profetizar, mas apenas custos, é mais provável que a profecia da desgraça seja autêntica.
A mensagem chegou clara e forte a Hananias (e, provavelmente, também ao povo que assistia, no templo). A reação foi um outro lance teatral, imprevisível e impressionante: “Então, o profeta Hananias retirou o jugo do pescoço do profeta Jeremias e, partindo-o, exclamou na presença de todo o povo: «Oráculo do Senhor: ‘Assim, decorridos dois anos, quebrarei o jugo de Nabucodonosor, rei da Babilónia e retirá-lo-ei do pescoço de todas as nações!’»” (28, 10-11). Um gesto violento e espetacular, que deveria aparecer como uma clamorosa vitória do duelo e um sinal claríssimo para compreender de que lado estava o oráculo autêntico.
Neste momento, o texto mostra-nos Jeremias confuso e indefeso. Estava habituado às perseguições e às derrotas. Desta vez, porém, a dificuldade que encontra é de outra natureza. Um outro profeta, em nome do seu próprio Deus, arrogando-se da mesma autoridade profética, com uma ação igual e contrária, quebra o símbolo de Jeremias, nega o conteúdo da sua profecia e propõe um outro de sinal contrário. Mas há algo de mais profundo a considerar. O leitor da Bíblia e os contemporâneos de Jeremias sabem que Hananias se referia diretamente à autêntica tradição da Aliança. Na Torá, nos salmos, encontramos muitas referências (Gn 27, 40; Salmo 18) ao jugo quebrado por YHWH, para libertar o seu povo da escravidão: “Eu sou YHWH, que vos fez sair da terra do Egipto, para que não continuásseis a ser escravos; quebrei as cadeias do vosso jugo” (Lv 26, 13). Mas Hananias encontrava um grande apoio, sobretudo, em Isaías que, cerca de cem anos antes, tinha obtido de Deus a miraculosa libertação de Jerusalém dos assírios. Por isso, a convicção da inviolabilidade do templo e da cidade baseava-se num grande milagre por parte de um grande profeta. A verdade histórica de ontem, mais antiga e, portanto, mais autorizada, tinha-se tornado, no entanto, ideologia, porque impedia de acolher a palavra de um outro profeta que, num momento histórico diferente, apresentava uma coisa verdadeira e diferente. Cai-se na ideologia sempre que a verdade de ontem eclipsa a verdade diferente de hoje, porque se torna ídolo. Hananias, talvez de boa-fé, estava a transviar o seu povo, levando-o para o massacre, não em nome de um falso profeta nem de deuses estrangeiros: estava a fazê-lo em nome da tradição e de um milagre verdadeiro de um profeta verdadeiro. Usava o passado para matar o futuro. As ideologias, religiosas ou laicas, mais poderosas e infalsificáveis não são as infundadas, mas as fundadíssimas em palavras e factos verdadeiros de ontem que emudecem e cegam as palavras e os factos verdadeiros de hoje.
Jeremias não responde ao gesto de Hananias. Permanece mudo. Quebrar e profanar o sinal do profeta é o maior ultraje. O gesto é uma palavra-carne e não existe um outro gesto para responder à sua destruição: não se substitui uma carne por outra, nem um filho por outro. Se, na Bíblia, as palavras proferidas são um ‘para sempre’, o gesto profético é o ‘para sempre do para sempre’. Depois de um gesto profanado, o profeta só pode calar-se. Para dizer novas palavras, é preciso que o dono diga uma nova palavra de Deus e, se ou enquanto não chega o profeta, fica mudo e derrotado: “Então, o profeta Jeremias retirou-se” (28, 11). Esta é uma forma admirável de mansidão e de humildade de coração que, nos profetas, acompanha e alimenta a sua extraordinária força.
YHWH enviou uma nova palavra e Jeremias responde a Hananias: “Escuta a minha voz, Hananias! O Senhor não te enviou. És tu que levas o povo a crer na mentira!” (28, 15). Hananias morreu dentro de um ano e, depois desta fugaz passagem, desaparece da Bíblia. Mas, no meio do livro de Jeremias, Hananias recorda-nos sempre o perigo de todas as ideologias da tradição, que matam os profetas verdadeiros de hoje, em nome dos verdadeiros de ontem.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 13/08/2017
«Não respondas ao insensato segundo a sua loucura, para não seres semelhante a ele.
Responde ao insensato segundo sua loucura, para que ele não se julgue sábio».Provérbios 26, 4-5
Labuta é um dos nomes do trabalho. Travaglio, travail, trabajo, do latim trepalium, era um jugo para animais. Uma trave de madeira armada com cordas e laços. Recordava o braço horizontal duma cruz. Com o tempo, o jugo tornou-se o símbolo de submissão de animais e de pessoas, de escravidão. Os povos conquistaram a liberdade e justiça quebrando jugos de escravidão e libertaram-se destes trabalhos e destas tribulações. Ninguém gosta de ser subjugado, colocado, por outros, debaixo de um jugo. Somente a mensagem subversiva e radical de Jesus de Nazaré podia usar a imagem do jugo para exprimir a ligação entre ele e os seus discípulos: leve e suave, mas sempre um jugo. Talvez, ao usar esta imagem paradoxal, o evangelista pensasse, também aqui, em Jeremias: “A palavra do Senhor foi dirigida a Jeremias, nestes termos: «Isto me disse o Senhor: Faz um laço e um jugo e coloca-os ao pescoço»” (Jeremias 27, 1-2).
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 06/08/2017
«Uma vez, Rabbi Mosche Kobryn disse: ‘Vejo que todas as palavras que eu disse não encontraram nem sequer um que as tenha escutado com o coração. As palavras que saem do coração vão, na verdade, para o coração; mas, se não encontram nenhum, então, ao homem que as disse, Deus concede a graça de elas não ficarem a vaguear, mas que regressem todas ao coração donde saíram’… Algum tempo depois da sua morte, um amigo disse: ‘Se tivesse tido a quem falar, ainda viveria’»
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche [Histórias e lendas chassídicas]
Embora cada profeta tenha a sua personalidade única e o seu nome próprio, a profecia é uma experiência coletiva. Forma uma comunidade, uma tradição e, quem chega, continua o mesmo percurso, combate as mesmas batalhas, dá novas palavras à mesma voz. Cada profeta verdadeiro é gerado pelos profetas que o precederam e alimenta os profetas que virão depois dele. Esta cadeia geradora espiritual é a raiz da fidelidade à palavra porque cada profeta sabe que está a escrever um capítulo de um livro que será completado por outros/as e, se àquele capítulo, faltam palavras, ou se tem palavras parciais ou emendadas, quem continuar a escrita encontrará entre mãos um material adulterado, não terá à disposição palavras necessárias para escrever as próprias, e o final será mais pobre e errado.
[fulltext] =>A fidelidade dos profetas à palavra faz-nos compreender uma verdade de alcance mais universal, que diz respeito a todas as gerações e todas as palavras. A arte e a poesia de hoje alimentam-se da fidelidade à sua palavra dos artistas e dos poetas de ontem e, se um poeta trai a sua palavra, empobrece a poesia de amanhã. Quando um pai perde ou trai a sua palavra e a que herdou, os filhos têm, nas suas mãos, palavras mais míseras ou falsas para escrever a sua vida – por detrás de vidas mal escritas dos nossos filhos está, frequentemente, a traição das nossas palavras. As comunidades perdem-se quando, na transmissão/tradição, alguém trai a primeira palavra carismática. As travessias dos desertos das palavras traídas não conduzem a nenhuma terra prometida, porque o mapa que conduz do Egipto a Canaã só pode ser escrito com sinais e palavras fiéis.
“O Senhor mostrou-me dois cestos de figos, postos diante do templo do Senhor. Já então Nabucodonosor, rei da Babilónia, tinha levado cativos, de Jerusalém para a Babilónia, Jeconias, filho de Joaquim, rei de Judá, juntamente com os chefes de Judá, os carpinteiros e serralheiros. Um dos cestos continha ótimos figos, como são os da primeira colheita; o outro, porém, tinha figos maus, que não se podiam comer, de tão maus que eram” (Jeremias, 24, 1-2). Estamos perante uma nova visão de Jeremias, de que Javé lhe revelou, imediatamente, o significado: “Assim como olhei para estes figos bons, assim também olharei favoravelmente para os desterrados de Judá… Dar-lhes-ei um coração para que me conheçam… à semelhança do que acontece aos figos maus… desprezarei Sedecias, rei de Judá, os seus chefes e o resto de Jerusalém, que ficaram nesta terra e os refugiados na terra do Egipto” (24, 5-8).
A teologia do ‘resto’ é o centro da profecia bíblica, porque mostra a natureza profunda do humanismo bíblico e da sua típica salvação. O grande, o forte, o muito, são as características dos impérios, do faraó, dos exércitos, que são lugares onde Deus não está e o homem é negado. Também na Bíblia e, muitas vezes, na tradição profética, encontramos uma alma que ligou a salvação à força e ao ‘Senhor dos exércitos’; mas, juntamente a esta, encontramos uma outra, que não profetizava um messias vitorioso que aparecia no horizonte, montado num cavalo branco, mas esperava o servo sofredor, um emanuel, um menino numa manjedoura. Sem os profetas verdadeiros, as comunidades, mesmo as nascidas dos carismas espirituais mais puros, transformam-se rapidamente em impérios à procura de conquistas, de adeptos e de poder, e esquecem-se da verdade pobre do pequeno resto. E extinguem-se.
Também encontramos, em Jeremias, a tradição do ‘resto’, mas a grandeza deste profeta faz-nos descobrir-lhe uma dimensão verdadeiramente profunda e subversiva; o ‘resto’ não se encontra entre os que permaneceram na pátria, escapados à primeira deportação, mas entre os exilados em Babilónia. O cesto bom é o cesto roubado. Esta não é apenas uma leitura sapiencial das vicissitudes presentes e futuras de Jerusalém e de Judá, nem apenas uma crítica à corrupção dos sacerdotes e dos profetas. Aqui está também uma grande mensagem que diz respeito à lógica da salvação das comunidades e das pessoas. O observador, que se encontrava, naqueles dias, em Israel, que tinha visto ser deportada e exilada uma parte significativa do povo, obrigado a viver no meio de uma nação tirana e idólatra, sem templo, profetas e sacerdotes, mesmo que tivesse acreditado na profecia do ‘resto’, tê-lo-ia colocado na parte do povo que tinha ficado, porque ainda podia rezar no templo, celebrar o Shabbat e porque tinha os seus guias espirituais e religiosos. Jeremias, pelo contrário, diz que o ‘resto’ que se salvará e continuará a Aliança, se encontra entre os deportados, rodeado pelas procissões dos deuses estrangeiros, altíssimos e brilhantes, sem o aparato religioso e os guardas de YHWH. A salvação virá, não de quem permaneceu dentro da religião e do templo, mas de quem foi conduzido para fora e para longe, para uma terra idólatra.
Tantas vezes, aconteceu – e continua a acontecer – que alguém parte, deixa, é levado para fora, com violência, por alguém ou por alguma coisa mais forte e, quem permanece, lê tudo como desventura. E, depois, no exílio, começa uma salvação, que voltará, um dia, como uma bênção. Alguém deixa uma comunidade, uma casa, um instituto; quem fica vê esta partida como maldição e o ficar como uma bênção. Depois, a história continua e, dentro da maldição, desabrocha uma estupenda flor do mal. Quem, no tempo de Jeremias, tinha ficado, protegido pela ideologia dos falsos profetas e dos sacerdotes do ‘templo’, não sabia que, naquela longínqua periferia, sob a terra da dor, estava a amadurecer algo de novo, de fiel e de verdadeiro, que, um dia, salvaria também os seus filhos. Algumas vezes, uma parte do nosso coração parte, deixa-nos, é levada para fora de casa e a parte que fica chora o abandono. Mas pode acontecer que, justamente o que tinha fugido para uma terra estrangeira, comece a gerar uma misteriosa salvação; volta e salva quanto tinha ficado em casa e se tinha, entretanto, corrompido pelas ideologias e pelos falsos profetas. Há reinos onde, num chiqueiro, se pode iniciar o banquete do vitelo gordo, onde as bolotas florescem em grãos de mostarda. As fidelidades mais verdadeiras são as improváveis. As muito lineares e óbvias produzem, frequentemente, os sentimentos e as palavras do irmão mais velho que permaneceu ‘fiel’ na casa do pai.
Mas, se lermos estes versículos de Jeremias dentro de toda a tradição bíblica, podemos fazer outras descobertas. Examinemos a Torá e, no fim do Génesis, encontramos um amigo de Jeremias: José. Também ele, um irmão deportado e escravo, sem família e sem pai, com irmãos corrompidos e traidores, torna-se, naquela longínqua terra do faraó, um ‘resto’ de salvação para todos. A salvação não estava na terra do pai Jacob e entre os altares do seu Deus. Estava longe, no meio das pirâmides, nos cárceres imperiais, na solidão, florescia dentro dum sonho.
Mas a Jeremias não basta contar a parábola dos dois cestos. Poucos versículos mais à frente, profetiza também a destruição da cidade e do templo: “Isto diz o Senhor: … farei a esta casa o que fiz a Silo” (26, 5-6). As previsíveis consequências desta profecia não se fizeram esperar: “Os sacerdotes, os profetas e todo o povo ouviram Jeremias pronunciar estas palavras no templo. … lançaram-se sobre ele, exclamando: «À morte! Porque profetizas, em nome do Senhor, este oráculo: “Acontecerá a este templo o mesmo que sucedeu a Silo e esta cidade será transformada em deserto, sem habitantes?” (26, 7-9). Mas, desta vez, a condenação não foi executada, porque ‘alguns anciãos do país’, tomaram a palavra na assembleia e disseram: “Miqueias de Moréchet, que profetizava no tempo de Ezequias, rei de Judá, assim falou ao povo: «Isto diz o Senhor do universo: Sião será lavrada como terra de lavoura, Jerusalém será reduzida a um montão de ruínas, e o monte do templo será um bosque». Porventura, Ezequias, rei de Judá, e o povo de Judá, condenaram-no à morte? … Mas nós tornámo-nos responsáveis por uma grande desgraça» (26, 18-19).
Neste episódio, narrado por Baruc, estão escondidas algumas pérolas. Entre o povo, havia ainda alguns anciãos, que tinham permanecido fiéis à tradição da Aliança e capazes de ouvir e acreditar nos profetas. Os verdadeiros inimigos de Jeremias e dos profetas eram os chefes, os falsos profetas e os sacerdotes. Repete-se a antiga e contante tensão-conflito entre carisma e instituição, e entre periferia e centro do império (nem Jeremias nem Miqueias eram de Jerusalém). Estes anciãos, portanto, salvam Jeremias, citando um profeta anterior (Miqueias). Temos aqui um raro e esplêndido testemunho que nos revela uma lei geral e fundamental da Bíblia: os profetas verdadeiros recordam-se um ao outro, salvam-se mutuamente, ainda que quem salva tenha vivido cem anos antes. E o salvado faz reviver o salvador.
O capítulo conclui-se com uma narração que nos chega pela boca de um daqueles anciãos justos: “Houve também um profeta, chamado Urias, … que proferia oráculos em nome do Senhor contra a cidade e o país. Anunciava os mesmos flagelos que Jeremias… O rei Joaquim procurou meios de o condenar à morte. Urias, informado do que se passava, teve medo e fugiu, refugiando-se no Egipto. Mas Joaquim enviou ao Egipto Elnatan, filho de Acbor, acompanhado de uma escolta. Urias, foi então trazido do Egipto e entregue ao rei, que o mandou degolar” (26, 20-23).
Os profetas verdadeiros, em Israel, eram mais que aqueles de quem a Bíblia conserva as palavras. A palavra de YHWH é mais abundante do que as palavras da Bíblia e a Bíblia é maior que a soma das palavras que contém. Urias é imagem dos muitos irmãos mudos dos profetas que, ontem e hoje, não escrevem livros e que, talvez, esperam um ‘ancião do país’ que os veja, faça falar a sua vida e o seu sangue, enriquecendo a família profética da terra.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 06/08/2017
«Uma vez, Rabbi Mosche Kobryn disse: ‘Vejo que todas as palavras que eu disse não encontraram nem sequer um que as tenha escutado com o coração. As palavras que saem do coração vão, na verdade, para o coração; mas, se não encontram nenhum, então, ao homem que as disse, Deus concede a graça de elas não ficarem a vaguear, mas que regressem todas ao coração donde saíram’… Algum tempo depois da sua morte, um amigo disse: ‘Se tivesse tido a quem falar, ainda viveria’»
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche [Histórias e lendas chassídicas]
Embora cada profeta tenha a sua personalidade única e o seu nome próprio, a profecia é uma experiência coletiva. Forma uma comunidade, uma tradição e, quem chega, continua o mesmo percurso, combate as mesmas batalhas, dá novas palavras à mesma voz. Cada profeta verdadeiro é gerado pelos profetas que o precederam e alimenta os profetas que virão depois dele. Esta cadeia geradora espiritual é a raiz da fidelidade à palavra porque cada profeta sabe que está a escrever um capítulo de um livro que será completado por outros/as e, se àquele capítulo, faltam palavras, ou se tem palavras parciais ou emendadas, quem continuar a escrita encontrará entre mãos um material adulterado, não terá à disposição palavras necessárias para escrever as próprias, e o final será mais pobre e errado.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 30/07/2017
«Da imagem tensa / espreito o instante / com iminência de espera - / e não espero ninguém: na sombra acendida / espio o sino / que, impercetível difunde / um pólen sonoro – / e não espero ninguém:
entre quatro muros / pasmados de espaço / mais que um deserto / não espero ninguém:
mas deve vir / virá, se resisto, / a florescer não visto, / virá de improviso, /quando menos o sinto:
virá quase perdão / de quanto faz morrer, / virá a dar-me a certeza / do seu e meu tesouro,
virá como restauro / das minhas e suas penas. / virá, talvez já venha / o seu sussurro»Clemente Rebora, Dall’imagine tesa [Da imagem tensa]
A falsa profecia, em boa-fé, talvez seja a mais abundante debaixo do sol e entre as mais perigosas. Sempre existiram e ainda existem falsos profetas de má-fé, que não são voz de nenhuma voz e sabem-no muito bem. Mas também há falsos profetas, em boa-fé, que não são voz de nenhuma voz e não o sabem, e confundem a “voz de Deus” com as próprias fantasias, emoções e pensamentos. Os falsos profetas não são todos rufias e impostores; entre eles, existem também pessoas autoconvencidas de serem profetas sem o ser.
[fulltext] =>As comunidades, os movimentos, as organizações movidas por um ideal, abundam de falsos profetas em boa-fé, que se encontram a todos os níveis e em todas as listas de governo, até mesmo entre os fundadores. Mais: a sua boa-fé subjetiva só torna mais difícil o exercício de discernimento dos espíritos de quem está à sua volta, porque a sinceridade dos sentimentos cria, normalmente, um “efeito de cortina” que impede de ver a vaidade das suas palavras. E torna impopular e difícil o papel dos profetas verdadeiros, que procuram, por vocação, identificar esta espécie de falsa profecia, porque, quase sempre, o povo toma a defesa dos falsos profetas em boa-fé, confundido pelas suas emoções genuínas. São muitíssimo comuns os enganos produzidos por autoenganos, ratoeiras perfeitas das quais é muito difícil sair porque a boa-fé dos enganadores e dos enganados reforçam-se uma à outra. Como salvar-se?
Jeremias tinha acabado de profetizar o fim de Israel e a ruina dos seus reis corruptos, recorrendo a tons cada vez mais fortes e duros - «Por isso, assim fala o Senhor, a respeito de Joaquim, filho de Josias, rei de Judá: “Não o lamentarão (…) A sua sepultura será como a do asno”» (Jeremias 22, 18-19) – e é imediatamente surpreendido com o anúncio de uma grande esperança: «Reunirei o que restar das minhas ovelhas espalhadas pelas terras em que as exilei, e fá-las-ei voltar às suas pastagens, onde crescerão e se multiplicarão. (…) e nenhuma delas se perderá» (23, 3-4). Os profetas verdadeiros são assim: hoje anunciam a morte, amanhã a vida, porque são boca de uma outra boca que não comandam nem controlam.
No capítulo 23 do seu livro, Jeremias atinge o auge do seu ensino sobre a falsa profecia. Já falou dela várias vezes, mas agora, com o passar dos anos, o profeta atinge uma síntese grandiosa e dá-nos uma autêntica obra de arte espiritual e antropológica, talvez insuperável. Só um verdadeiro profeta é capaz de reconhecer e desmascarar os falsos profetas: «Vi a impiedade entre os profetas da Samaria; profetizaram em nome de Baal e desencaminharam o meu povo, Israel. Nos profetas de Jerusalém vi coisas horríveis: adultério e hipocrisia; fortalecem o braço dos maus, para que nenhum se converta da sua maldade» (23, 13-14). Encontramos aqui, imediatamente, uma nota interessante: a profecia em nome de outros deuses (Baal), mais comum no Reino do Norte (Samaria), onde eram mais frequentes as contaminações dos cultos, parece menos grave que a dos profetas do templo de Jerusalém que, embora profetizem (frequentemente) em nome do Deus da Aliança (YHWH), estão completamente estragados e pervertidos. A primeira estratégia que se usa para os desmascarar, a mais usada em qualquer tempo, é incriminar a sua conduta moral perversa: não podem ser profetas verdadeiros porque a sua vida concreta mostra o oposto das palavras da boca.
Mas a estratégia moral, sozinha, não é suficiente para identificar a falsa profecia, porque sempre existiram – e existem – profetas com condutas morais dúbias que diziam – e dizem – palavras verdadeiras. A moralidade do instrumento da voz pode ser um indício, mas nunca é o experimentum crucis para provar a falsidade de uma palavra profética. O profeta não é escolhido porque é melhor e mais honesto que os outros: quase sempre tem a moralidade média do seu povo, umas vezes é melhor, outras vezes é pior. Não é a coerência moral da sua conduta a primeira e mais convincente demonstração da verdade que diz – antes, muitas vezes, mostrar aos outros a moralidade da própria pessoa como prova da verdade das próprias palavras é indício certo de falsa profecia. A maior dificuldade que tem de enfrentar quem se encontra frente a palavras proféticas, pronunciadas por quem se revelou moralmente corrupto, é compreender se aquela conduta moral indigna é sintoma de falsa profecia ou apenas fragilidade e/ou pecado do instrumento da voz. Tarefa enorme que, geralmente, acaba em condenação, mas que, por vezes, depende do discernimento veloz e confuso da perturbação dos sentimentos e do coração. Os profetas, como todos os homens e mulheres, têm debilidades, doenças, às vezes neuroses, que convivem com a sua vocação; influenciam-na – e, por vezes, bastante – mas permanecem coisas diferentes, embora quase sempre acabemos por tornar a vocação apenas um assunto ético.
De facto, Jeremias, depois da acusação moral, passa a um plano diferente, mais complexo, mas mais profundo, que toca diretamente o cerne da questão, ou seja, da vocação profética: «Não queirais ouvir as palavras dos profetas, que vos transmitem vãs esperanças. Proclamam as suas próprias visões, que não procedem da boca de YHWH» (23, 16). Encontramos aqui um outro ponto decisivo da fenomenologia da profecia: os falsos profetas anunciam apenas «fantasias do seu coração» e «não quanto vem da boca de YHWH». Aqui, Jeremias mostra-nos algo de novo: falsos profetas, que podem estar em boa-fé, mas que anunciam simplesmente as suas ideias privadas, convencidos, talvez sinceramente, de dizer palavras de Deus. Alguns versículos depois, Jeremias mostra-nos também uma variante desta forma de falsa profecia, a sonhadora: «Escutai o que disseram os profetas, que em meu nome profetizavam mentiras e diziam: “Tive um sonho! Tive um sonho!” Até quando há-de haver profetas que vaticinam a mentira, que profetizam os desvarios do seu coração?» (23, 25-26). Para compreender este juízo de Jeremias, devemos colocá-lo naquele mundo do Médio Oriente, habitado por uma grande quantidade de intérpretes de sonhos, adivinhos, arúspices, magos que, frequentemente, eram considerados pelo povo como profetas – uma forma típica de sofrimento dos profetas verdadeiros é serem equiparados a muitos patifes que o povo considera seus colegas: «O profeta que tem um sonho conte-o como um sonho! Mas, a quem for dirigida a minha palavra, reproduza-a fielmente!» (23, 28). Também aqui temos que lidar com pessoas que confundem as «fantasias do seu coração» com a voz diferente de YHWH quando as duas coisas são distintas e devem permanecer bem distintas.
É cada vez mais claro que o que conta para Jeremias não é tanto nem apenas a boa ou a má fé, nem apenas a moralidade ou imoralidade das pessoas que se declaram ou são declaradas profetas. O que é, então, verdadeiramente importante, o que é que vem em primeiro lugar de tudo o resto? Jeremias, ao longo do seu livro já nos forneceu alguns critérios para o discernimento da profecia; mas, agora, vai levar-nos ao cerne da questão. Jeremias diz-nos que, na realidade, o critério é apenas um, mas é tão simples que poderia não nos satisfazer: os falsos profetas – de qualquer tempo – são-no porque não têm a vocação profética: «Não enviei estes profetas, e eles vieram a correr; não lhes falei, e eles profetizaram» (23, 21). Tudo muito simples, tudo muito complexo. Mas, acerca da vocação é a única pergunta verdadeiramente importante quando se quer distinguir (e é preciso fazê-lo sempre) a verdadeira da falsa profecia, em todas as suas muitas formas, na vida do espírito, mas também na arte, na ciência, nas profissões, nas famílias. Pode-se ser um franciscano mais ou menos criativo e bom mas, antes é preciso ser franciscano, isto é, ter recebido a mesma vocação de Francisco. Um artista pode ser grande, pequeno, imenso; mas, antes, tem de ser artista, isto é, ter recebido uma vocação de artista. Nenhuma moralidade, nenhuma boa-fé pode substituir a ausência (e a essência) da vocação. Não sabemos dizer o que, verdadeiramente, seja esta vocação, e devemos aceitar conviver com esta ignorância, sobre os outros e sobre nós, que está na origem das maiores surpresas e das maiores dores.
Jeremias diz-nos, porém, algo de importante: o elemento essencial para reconhecer uma vocação autêntica é a consciência de alteridade, isto é, a consciência que, antes e, diferente, das outras vozes que habitam na alma, há uma outra voz ou, pelo menos, o seu sussurro. Estar conscientes que aquela voz, mesmo muito íntima e presente nalgum lugar desde o seio materno, não é a sua voz. Que há um outro que fala, a quem Jeremias chama YHWH, outros profetas dão-lhe outro nome e outros não lhe dão qualquer nome, mas sabem que existe e fala: «Será que Eu sou Deus só ao perto e não sou Deus ao longe?» (23, 23). Uma voz que vem e vai, que desaparece e volta, que é sempre dom e surpresa, até ao fim. Uma alteridade que convive com a experiência da maior intimidade das vísceras. É o próximo e o distante juntamente que fazem o profeta. O profeta que perde a intimidade da palavra (o «Deus ao perto») não tem profundidade, poesia, paixão; mas se o profeta perde a alteridade e a transcendência da voz (o «Deus ao longe»), apenas pode contar as suas fantasias e sonhos e tornar-se, ele próprio, a fonte das palavras que diz. Alguns profetas, nascidos verdadeiros, tornam-se falsos porque consomem a “separação” entre a sua voz e a outra voz e, um dia, o primeiro diálogo das vozes torna-se canto a solo.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 30/07/2017
«Da imagem tensa / espreito o instante / com iminência de espera - / e não espero ninguém: na sombra acendida / espio o sino / que, impercetível difunde / um pólen sonoro – / e não espero ninguém:
entre quatro muros / pasmados de espaço / mais que um deserto / não espero ninguém:
mas deve vir / virá, se resisto, / a florescer não visto, / virá de improviso, /quando menos o sinto:
virá quase perdão / de quanto faz morrer, / virá a dar-me a certeza / do seu e meu tesouro,
virá como restauro / das minhas e suas penas. / virá, talvez já venha / o seu sussurro»Clemente Rebora, Dall’imagine tesa [Da imagem tensa]
A falsa profecia, em boa-fé, talvez seja a mais abundante debaixo do sol e entre as mais perigosas. Sempre existiram e ainda existem falsos profetas de má-fé, que não são voz de nenhuma voz e sabem-no muito bem. Mas também há falsos profetas, em boa-fé, que não são voz de nenhuma voz e não o sabem, e confundem a “voz de Deus” com as próprias fantasias, emoções e pensamentos. Os falsos profetas não são todos rufias e impostores; entre eles, existem também pessoas autoconvencidas de serem profetas sem o ser.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 23/07/2017
«Irmão ateu, nobremente pensativo, à procura de um Deus que eu não sei dar-te, atravessamos, juntos, o deserto. De deserto em deserto, vamos para lá da floresta dos fiéis, livres e nus, para o nu Ser e, lá, onde a palavra morre, tenha fim o nosso caminho»
Davide Maria Turoldo, Canti Ultimi
A vida poderia ser contada como a história das suas crises. A Bíblia está cheia destas histórias, mas não nos damos conta delas porque, nos textos bíblicos, procuramos verdades, palavras religiosas, consolações. E, assim, perdemos as páginas maiores da Bíblia, que se abrem quando conseguimos chegar aos homens e mulheres que estão por detrás das palavras de YHWH, àqueles seres humanos completos que as pronunciaram. A palavra bíblica não nos muda enquanto não nos deixamos tocar na carne pelos seus homens e pelas suas mulheres, enquanto não lhes dermos permissão de entrar nos lugares mais íntimos da nossa alma e de entrar em nós como pessoas concretas, com um nome e uma história, com as suas feridas, as dúvidas e as maldições. Demasiadas vezes, a Bíblia salva pouco ou nada porque permitimos que nos toque pouco ou nada. Por vezes, um personagem bíblico consegue forçar a entrada, infiltrar-se no buraco da casa que ficou aberto, por engano. O personagem torna-se pessoa mais real e concreta que os nossos amigos e que os nossos filhos. Baralha-nos a decoração dos interiores e dos quartos de dormir. Depois, se quem entra é Jeremias, a casa fica em grande confusão e, talvez, no caos completo, possamos voltar pobres das coisas e de Deus e, finalmente, sentir pairar o espírito que, nas casas com as portas fechadas e nos templos guardados e protegidos, não consegue soprar. Há demasiadas pessoas que permanecem fora do horizonte espiritual do mundo porque, quando vêm ao nosso encontro, entram numa casa com as janelas fechadas e demasiado cheia de coisas bem ordenadas, com um oxigénio insuficiente para poder respirar.
[fulltext] =>«Palavra que YHWH dirigiu a Jeremias, quando o rei Sedecias lhe enviou Pachiur, (…) e o sacerdote Sofonias, (…) a dizer-lhe: “Consulta YHWH em nosso nome porque Nabucodonosor, rei da Babilónia, está-nos a fazer guerra. Talvez YHWH renove connosco os seus milagres, fazendo com que o inimigo se afaste de nós» (Jeremias 21, 1-2).
Desde o princípio, Jeremias anunciou constantemente a descida do inimigo, a ocupação do país, a chegada de uma grande desgraça. Mas os chefes e os sacerdotes não quiseram escutá-lo, enfeitiçados pelos falsos profetas acreditaram que o templo era inexpugnável e Jerusalém invencível. Agora, anos depois, Nabucodonosor está a chegar às portas da cidade e começa o assédio; mas os chefes do povo, capturados pela ideologia nacionalista, continuam ainda a pensar que se salvarão, que YHWH, por fim, cumprirá «um dos seus muitos prodígios». Jeremias continua a dizer e a repetir exatamente o oposto de quanto o povo quer escutar. Não pode fazer outar coisa; não é dono das palavras que diz.
Não concede nada aos sentimentos e profetiza, implacável, a desgraça total, iminente, do povo que ama. É esta força-frágil que o torna radicalmente fiel à palavra, mesmo quando a tragicidade do momento histórico poderia ter gerado aquela pietas humana e atenuado a dureza das palavras, aclarado as cores do cenário sombrio. Nós tê-lo-íamos feito e fazemo-lo, mas os profetas verdadeiros não. Jeremias profetiza a única escolha possível e boa: a rendição, aceitar a derrota, o fracasso, acordar e admitir o fim da ilusão: «Os que ficarem na cidade morrerão pela espada, pela fome ou pela peste; o que sair para se entregar aos caldeus, que vos sitiam, viverá, e a sua vida ser-lhe-á deixada como despojo» (21, 9). Mas, apesar do inimigo já estar à volta das muralhas, os chefes continuam iludidos e a não lhe dar crédito: «Vós dizeis: “Quem nos virá atacar? E quem penetrará nos nossos refúgios?”» (21, 13).
Aqui, podemos compreender o valor enorme daquele amigo – profeta ou não – que tem a coragem de anunciar a rendição, quando os falsos profetas e as ilusões nos cegam. De quem nos diz que apenas devemos levar os livros ao tribunal, deixando ir embora quem tanto amámos, vender a escola da comunidade que encerra a herança dos dias do primeiro amor, render-nos ao anjo da morte para o poder abraçar como amigo bom. E, depois, ouvir ressoar dentro: «Bem-aventurados os mansos». Mas as pessoas e as comunidades têm uma resistência invencível em acreditar na palavra que pede a rendição, porque amamos demasiado as ilusões e as falsas consolações. E, assim, enquanto a derrota é evidente a todos, nós, aconselhados frequentemente por falsos profetas, continuamos a enganar-nos, a investir energias nas lutas erradas, quando, pelo contrário, só um “ámen” nos poderia salvar verdadeiramente.
Mas o oráculo não-rufia de Jeremias ao seu rei não acaba aqui. Jeremias profetiza e anuncia não só que YHWH, desta vez (diferentemente de quanto tinha acontecido com os Assírios, por intercessão de Isaías), não intervirá, mas se voltará “contra” Jerusalém: «Jeremias respondeu-lhes: «Assim direis a Sedecias: “Oráculo do Senhor (…): E então combaterei contra vós com todas as forças do meu braço vigoroso, com furor, indignação e cólera…”» (21, 3-5).
O Deu da Aliança, da promessa, do Sinai e da Lei, não intervém e coloca-se do lado do inimigo. Como pode ser? Mas YHWH não se tinha revelado muitas vezes, ao seu povo, como o Deus fiel?
Nestes acontecimentos, podemos, então, captar algo de muito importante da gramática bíblica dos pactos e da fidelidade. A primeira interpretação que se oferece a quem lê a história de traições e de idolatria narrada por Jeremias é de um Deus que se movimenta dentro de um registo de reciprocidade, que parece muito semelhante à reciprocidade dos contratos: o povo não respeitou o pacto, prostituiu-se com outros deuses, e Deus rescinde o contrato e aplica as sanções previstas em caso de incumprimento. Também a leitura de Jeremias sugere esta interpretação, e nós levamo-la a sério – é sempre importante e obrigatório levar a sério a mensagem que emerge da leitura primeira e imediata de um texto bíblico (e de qualquer testo).
Há também uma mensagem contida nesta primeira leitura, simples e imediata. A experiência que Israel faz de YHWH é a de um Deus fiel, porque é um Deus de palavra. Os ídolos não fazem alianças, não as rescindem, não aplicam as sanções do pacto, porque simplesmente são pedaços de madeira, mudos e mortos. O Deus bíblico é um Deus vivo, é fiel porque é vivo e, por isso, se é vivo, respeita, também Ele, os pactos que realizou com o povo. Israel e, depois, o cristianismo e todo o Ocidente, aprendeu a conhecer a seriedade dos pactos humanos, e também os contratos, porque fez a experiência de um Deus que é o primeiro a respeitá-los. A Aliança tem um compromisso bilateral e permanece aliança verdadeira enquanto a fidelidade de um é a pré-condição da fidelidade do outro. Através da voz dos profetas, portanto, o Deus bíblico ensinou-nos que o primeiro a levar a sério os pactos é o próprio Deus, e que todas as infidelidades têm consequências muito graves. Somente um Deus sério e fiável podia ser o fundamento de uma civilização de pessoas capazes de manter os seus pactos e as suas promessas e de serem responsáveis pelas consequências dos pactos violados, das promessas não mantidas, das mentiras sobre as nossas relações primárias.
O Deus bíblico – sabemo-lo – não conhece apenas a reciprocidade condicional dos pactos; também é capaz de outros amores, até à incondicionalidade do ágape. Mas, se Deus nos tivesse revelado um amor-ágape que salta e esquece o amor dos pactos e das promessas, a sua palavra não poderia tornar-se a base espiritual e moral da vida dos homens e das mulheres, onde o amor passa, antes de mais, pela fidelidade condicional aos pactos e às promessas recíprocas. As dos casamentos, das sociedades e das empresas, das comunidades, que vivem de muitas relações mas, primeiro, vivem daquele amor laico e muito sério, que se manifesta nas palavras loucas e de aliança, que são palavras verdadeiras, porque feitas de reciprocidade, que vivem a alimentam a vida, porque são condicionais, enquanto as repetimos juntos, e acabam quando termina a reciprocidade. Sabemos também que existem muitos casamentos, empresas e comunidades que não morrem porque uma pessoa decide ir em frente e não desistir, apesar das infidelidades dos outros. Mas antes, há a reciprocidade quotidiana das alianças, que é o cimento da nossa sociedade, sem a qual as nossas fidelidades-sem-reciprocidade não poderão ser, sequer, compreendidas e dispersar-se-iam no vazio das nossas palavras-nada. É a verdade dos pactos e dos contratos que torna imensa a não-reciprocidade do ágape.
A Bíblia – Antigo e Novo Testamento – revelou-nos um Deus capaz de ir para além do registo da reciprocidade. Ensinou-nos a perdoar setenta vezes sete, revelou-nos um rosto de Deus que dá a sua vida pelos inimigos e pelos ingratos. Mas a tudo isto chamou também aliança, embora nova aliança. E também pacto. Também reciprocidade: totalmente nova, mas ainda e sempre reciprocidade. O deus-sem-reciprocidade é um faraó que, totalmente separado, indiferente e desligado dos seus súbditos, decide-lhe a vida e a morte. O Deus bíblico não é um Deus indiferente à nossa reciprocidade; é capaz de superar o pacto, mas permanece um Deus de pactos. Não poderemos compreender o Pai misericordioso se, ontem e hoje, não tivermos feito a experiência da dor, da raiva, do abandono que nos provocam os filhos pródigos que quebraram o pacto e nos deixaram. É esta dor pela não-reciprocidade que nos pode revelar o valor de um Deus diferente que nos espera no limiar esquecido da reciprocidade – e ali podemos encontrar razões e força para continuar a esperar os nossos filhos, maridos, companheiros infiéis da comunidade. Obrigado, Jeremias, porque, custe o que custar, nos mostraste o rosto de um Deus afável, porque fiel às promessas. Sem a consumação total daquela primeira aliança, sem descobrir o valor que a reciprocidade tem para Deus, não teríamos compreendido a nova aliança. Os nossos pactos e contratos seriam aviltados e esvaziados. Não teríamos compreendido a reciprocidade extraordinária que, um dia, chamámos Trindade. E não teríamos compreendido a gratuidade verdadeira, o ágape, que pode resplandecer em toda a sua beleza de paraíso só quando aprendermos o valor da fidelidade aos nossos pactos e às nossas alianças.
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A vida poderia ser contada como a história das suas crises. A Bíblia está cheia destas histórias, mas não nos damos conta delas porque, nos textos bíblicos, procuramos verdades, palavras religiosas, consolações. E, assim, perdemos as páginas maiores da Bíblia, que se abrem quando conseguimos chegar aos homens e mulheres que estão por detrás das palavras de YHWH, àqueles seres humanos completos que as pronunciaram. A palavra bíblica não nos muda enquanto não nos deixamos tocar na carne pelos seus homens e pelas suas mulheres, enquanto não lhes dermos permissão de entrar nos lugares mais íntimos da nossa alma e de entrar em nós como pessoas concretas, com um nome e uma história, com as suas feridas, as dúvidas e as maldições. Demasiadas vezes, a Bíblia salva pouco ou nada porque permitimos que nos toque pouco ou nada. Por vezes, um personagem bíblico consegue forçar a entrada, infiltrar-se no buraco da casa que ficou aberto, por engano. O personagem torna-se pessoa mais real e concreta que os nossos amigos e que os nossos filhos. Baralha-nos a decoração dos interiores e dos quartos de dormir. Depois, se quem entra é Jeremias, a casa fica em grande confusão e, talvez, no caos completo, possamos voltar pobres das coisas e de Deus e, finalmente, sentir pairar o espírito que, nas casas com as portas fechadas e nos templos guardados e protegidos, não consegue soprar. Há demasiadas pessoas que permanecem fora do horizonte espiritual do mundo porque, quando vêm ao nosso encontro, entram numa casa com as janelas fechadas e demasiado cheia de coisas bem ordenadas, com um oxigénio insuficiente para poder respirar.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 16/07/2017
«A minha alma refugia-se no Antigo Testamento e em Shakespeare. Lá, pelo menos, sente-se alguma coisa: lá, são homens que falam. Lá, odeia-se!; lá, ama-se, mata-se o inimigo, amaldiçoam-se os descendentes, por todas as gerações; lá, peca-se.»
Soren Kierkegaard, citado em Scipio Slataper, Ibsen
O livro de Jeremias marca um novo estádio da consciência humana, um salto no processo de humanização, uma verdadeira inovação antropológica e espiritual. Todo o seu livro, sobretudo as suas confissões. E, se lhe permitirmos entrar no íntimo da nossa consciência e estivermos dispostos a suportar os seus altos custos, aquela antiga inovação pode ainda realizar-se, aqui e agora.
Desde o primeiro capítulo do seu livro, Jeremias alternou o conteúdo da sua missão profética com as suas confissões íntimas, revelando-nos a sua alma, as suas esperanças, as suas angústias. Agora, no auge do seu diário interior, chegamos aos capítulos 19 e 20, onde os factos narrados e a sua poesia atingem um pico absoluto.
[fulltext] =>Aqui, o profeta e o homem de Anatot cruzam-se profundamente, a palavra de YHWH e a de Jeremias fundem-se uma na outra, formando um enredo de vida e de poesia que representa um autêntico património da humanidade. Devemos, portanto, aproximar-nos destes capítulos, tirando as sandálias antes de escutar a voz que provem desta sarça ardente diferente onde a arder não está um arbusto, mas os ossos de Jeremias.
No início deste díptico maravilhoso, encontramos um outro gesto, entre os muitos célebres e fortes da Bíblia. Estamos ainda dentro da cena laicíssima da oficina do oleiro, quando encontramos uma nova ordem: Jeremias recebe a ordem de Deus para comprar uma bilha e se dirigir ao “vale dos cacos”, uma lixeira da cidade (Jeremias, 19, 1-2). Somos conduzidos para fora da cidade, num ambiente que, para o leitor habituado à leitura bíblica, recorda imediatamente Job, também ele conduzido por Deus e pela vida ao monte de lixo mais célebre da Bíblia. Jeremias compra uma bilha ao oleiro, leva consigo as testemunhas mais autorizadas do povo, e explica, com as suas palavras, o sentido daquela ida à lixeira da cidade: Deus mandará sobre Israel uma grande desgraça, porque se prostituiu com cultos cananeus e com os seus sacrifícios de crianças (10, 3-9). Depois, YHWH acrescenta: “Então, na presença dos que forem contigo, quebrarás a bilha, exclamando: «Quebrarei este povo e a cidade como se parte um vaso de barro»” (19, 10-11).
Tudo é claro e forte, e claras e fortes foram as consequências, como nos conta Baruc, o secretário amigo de Jeremias que, aqui, entra no livro e não mais sairá dele: “Ora, o sacerdote Pachiur, filho de Émer, superintendente do templo de YHWH, ouviu o profeta Jeremias pronunciar este oráculo. Pachiur mandou espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão, que estava na porta superior de Benjamim, junto do templo de YHWH” (20, 1-2). Aquela bilha quebrada faz precipitar a situação: não só calúnias e conjuras; agora, Jeremias é flagelado e torturado. A obediência à ordem de quebrar a bilha em mil pedaços marcou uma viragem na vida e na carne de Jeremias. Não compreenderemos o seu cântico do capítulo 20, talvez o mais célebre – e mais equivocado – de todo o livro, se, enquanto o lemos, não virmos Jeremias com a bilha na mão e, depois, na prisão. É a partir dali que entoa o seu de profundis mais bonito, que deveremos cantar apenas juntamente aos muitos profetas que continuam a ser torturados, presos, mortos apenas por serem fiéis à voz da sua consciência: Jeremias canta também para eles: “Seduziste-me, YHWH, e eu me deixei seduzir! Tu me dominaste e venceste. Sou objeto de contínua irrisão, e todos escarnecem de mim” (20, 7).
Não devemos dar nem sequer um milímetro de espaço ao sentimentalismo e ao romantismo que são, frequentemente, aplicados a estes versículos tremendos. Aqui, a “sedução” de que fala Jeremias é a do adulto que atrai uma pessoa menor, de um forte que encanta e engana uma criança, para abusar dela. O contexto dramático e o verbo hebraico escolhido não deixam margem a equívocos; tudo é claro e simples: Jeremias, do fundo do seu cárcere, acusa Deus de o ter enganado, na idade do entusiasmo da juventude, e de lhe ter – simplesmente – arruinado a existência. Palavras fortes, que podem ser compreendidas apenas por quem, para seguir um chamamento, saboreou algum bocado da mesma noite de Jeremias. São palavras adultas, e só assim são maravilhosas, porque nos abrem ao tremendum das vocações verdadeiras.
Sem os depósitos do lixo, os cepos e as torturas dos chefes das comunidades, não se compreendem as vocações: se se vê apenas a antecâmara, se se permanece apenas no invólucro do pacote, fica-se encantado nos primeiros minutos da aurora da vida espiritual. Quem quis compreender as vocações proféticas verdadeiras foi sempre entre os cacos, nos cárceres, nos exílios, e é ali que devemos voltar, também hoje, se queremos encontrar os profetas. Mas, como quem se encontra nestes lugares não faz discursos espirituais, nem sermões, nem milagres nem visões, está mudo e, quando diz algumas poucas palavras, frequentemente amaldiçoa Deus e a vida – e só com estas palavras, para nós incompreensíveis, sabem, por vezes, rezar –, as vocações verdadeiras permanecem escondidas e estranhas, ou as confundimos com quem fala muito de Deus e de religião, embora com fundo musical e imagens de pôr-do-sol avermelhados. E, assim, fica-se fora da profecia verdadeira e desesperada, a única que pode salvar: “Maldito seja o dia em que eu nasci! Não seja abençoado o dia em que minha mãe me deu à luz! … Porque saí do seu seio? Somente para contemplar tormentos e misérias, e consumir os meus dias na confusão?” (20, 14-18). Não existem, debaixo do sol, palavras vocacionais maiores que estas. Podem ser equiparadas apenas a alguns salmos, a Qohélet, à paixão de Marcos e às palavras irmãs de Job/Jó.
Mas este capítulo vinte diz-nos ainda algo de mais íntimo sobre a natureza e mistério de uma vocação. De facto, no coração da sua confissão, encontramos estas palavras: “A mim mesmo dizia: «Não pensarei nele mais! Não falarei mais em seu nome!» Mas, no meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos” (20, 9).
“A mim mesmo dizia”: Jeremias diz-nos ter pensado calar a voz, não mais emprestar o próprio corpo e a própria boca, retirar-se, deixar a sua missão profética, deitar a manto às urtigas. Como ele diz, pensou seriamente, experimentou verdadeiramente mudar de vida; não foi apenas uma tentação que ficou no mundo dos pensamentos. Mas, enquanto procurava fugir – e talvez fugisse mesmo – deu-se conta que não conseguia: a vocação era os seus ossos e a sua carne, que continuavam a arder. E é neste momento que o profeta sente um novo cansaço, que é algo de diferente do esgotamento físico e moral: “Esforçava-me por contê-lo, mas não podia” (20, 9). É a experiência do cerco, do torno que agarra e aperta, que não deixa escapatória. Se é verdade que nada mais que uma vocação diz liberdade porque, seguindo a voz se descobre que se está a seguir o que é mais íntimo que os próprios ossos, Jeremias diz-nos ainda uma outra coisa: que não há nada menos livre que uma vocação verdadeira, porque não há um caminho de fuga, porque não se foge da própria medula.
É este o drama verdadeiro de quem, na vida, encontra uma voz verdadeira. Chega o dia em que se apercebe que a vida que está a fazer não é a que pensava na juventude. Tudo lhe fala apenas deste engano que o levou a fazer escolhas que hoje sente como violência e exagero por parte de Deus, das pessoas que, em seu nome, o seduziram, dos ideais idealizados em que acreditou na idade da inocência. E começa-se a sonhar e a pensar palavras diferentes das sugeridas pela voz, palavras novas nas quais se acredita mais, palavras próprias que parecem mais sinceras que aquelas que nos ouvem dizer e repetir por vocação.
A prova que Jeremias está a atravessar não é, portanto, devida simplesmente às perseguições, às cadeias, às torturas. É muito mais profunda e terrível. Um profeta não grita contra Deus e contra a vida enquanto acredita na verdade da sua história e da sua missão: não é o martírio que põe em crise uma vocação; até por vezes a exalta e a realiza. Aqui, a prova de Jeremias é de outro tipo: já não acredita na verdade do início, sente-se dentro de uma história de engano e de embuste. Faz a experiência de um jovem plagiado por uma ideologia ou por uma seita que, a um dado momento, acorda e só quereria fugir para voltar à vida verdadeira, abandonada por ter acreditado em mentiras, ilusões, falsas promessas.
Perdemos quase tudo da força desta imensa confissão de Jeremias se não a lemos em toda a sua radical nudez e no seu escândalo. Jeremias não põe em dúvida a verdade da voz que lhe fala e que lhe tinha falado no primeiro dia – outros profetas fizeram-no e fazem-no. Mas discute a verdade da sua missão e da sua vida, que sente totalmente inútil e errada. E quer escapar, agarrar o que lhe resta da vida. Mas é aqui que se abre um dos paradoxos mais esplêndidos da vida e do seu mistério: enquanto foge da ilusão, faz a experiência mais íntima que se pode fazer nesta terra: descobre uma outra verdade escondida dentro dos seus ossos. A voz parece-lhe verdadeira, justamente quando a quer calar: é tão verdadeira que é impossível fugir. É sentir arder nos ossos a voz do primeiro dia que diz, num outro dia adulto da vida, que quanto tínhamos encontrado era tão verdadeiro que é impossível fugir-lhe, como é impossível fugir à verdade dos ossos e da medula. Mas, antes de fugir, não o podíamos saber.
Não sabemos como Jeremias superou a crise; não no-lo diz. Talvez porque as crises não se superam; entram no miolo da vida, alimentam-na e mudam-na para sempre.
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Soren Kierkegaard, citado em Scipio Slataper, Ibsen
O livro de Jeremias marca um novo estádio da consciência humana, um salto no processo de humanização, uma verdadeira inovação antropológica e espiritual. Todo o seu livro, sobretudo as suas confissões. E, se lhe permitirmos entrar no íntimo da nossa consciência e estivermos dispostos a suportar os seus altos custos, aquela antiga inovação pode ainda realizar-se, aqui e agora.
Desde o primeiro capítulo do seu livro, Jeremias alternou o conteúdo da sua missão profética com as suas confissões íntimas, revelando-nos a sua alma, as suas esperanças, as suas angústias. Agora, no auge do seu diário interior, chegamos aos capítulos 19 e 20, onde os factos narrados e a sua poesia atingem um pico absoluto.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 09/07/2017
«O trabalho físico constitui um contacto específico com a beleza do mundo e um contacto de uma plenitude tal que nada de equivalente se pode encontrar noutro lugar».
Simone Weil, Attesa di Dio [Espera de Deus]
Para compreender a profecia e os profetas bíblicos precisamos de uma laicidade que já não temos. De facto, não há nada mais leigo que um profeta, porque, mesmo quando fala de Deus, diz, sempre e só, vida, história, lágrimas, esperanças, quotidiano, trabalho. Os discursos dos profetas eram acerca de homens e mulheres que, em redor, todos podiam e deviam compreender sem serem especialistas em teologia. É esta a sua laicidade, se verdadeiramente queremos usar um termo que seria, para eles, totalmente incompreensível porque, o que para nós é leigo, era, para eles, simplesmente vida, toda a vida. A primeira, e por vezes decisiva, dificuldade para compreender a Bíblia e os profetas encontra-se na própria palavra: “Deus”. Quando encontramos esta palavra, encontramos, inevitavelmente, um conceito carregado com milénios de cultura, de cristianismo, de teologia, de filosofia e, depois, pela modernidade, os seus ateísmos, a ciência, a psicanálise e, assim, tornamos incompreensíveis o Deus dos profetas e a palavra destes, que tiveram necessidade da pobreza do Sinai, dos tijolos do Egipto, de liberdade essencial da tenda do arameu errante – eis porque os melhores ouvintes da Bíblia sempre foram, e ainda são, as crianças: é preciso a sua liberdade e pobreza para entrar neste Reino.
[fulltext] =>«Ei-los que me interpelam: “Onde está a palavra do Senhor? Que ela se realize agora!” Eu, porém, jamais te incitei a enviar-lhes a desgraça, e não desejei o dia da catástrofe. Bem conheces as palavras que me saíram da boca, porque elas estão na tua presença» (Jeremias 17, 15-16). Seguindo Jeremias, na evolução do seu livro e da sua vocação, entramos, aqui, numa nova etapa e numa outra dimensão da sua imensa profecia. Os inimigos continuam a contestá-lo e a armar-lhe ciladas e, agora, começam a usar os factos para negar a veracidade da sua profecia de desventura. O tempo passa, a destruição anunciada por Jeremias não chega. A história parece dar razão às ideologias ilusórias dos falsos profetas, vendedores de consolações. Mais ainda: acusam-no de ser um produtor de cenários funestos, de ser um inimigo do povo, ao qual está augurando maldições inventadas por ele próprio para confundir a sua gente. Esta é uma sorte que Jeremias partilha com tantos homens e mulheres que se encontram, por fidelidade à sua consciência, a anunciar o declínio em tempo de sucesso, o ocaso ao meio dia. Primeiramente, estes são taxados de derrotismo e acusados de serem profetas de desventura. E depois, quando o cenário funesto se verifica realmente, acabam por serem acusados de serem eles a causa da tragédia e tornam-se o bode expiatório do mal que, apenas honestamente, tinham anunciado. Este é um mecanismo tão parvo quanto comum nas comunidades que sofrem de ideologia, como era Jerusalém, no tempo de Jeremias. A ideologia é, por sua natureza, infalsificável e os factos que vão em direção contrária à predita pela fé ideológica, são, sistematicamente, reinterpretados e manipulados, nunca usados para a auto-subversão das certezas reveladas falsas.
Jeremias sabe ter profetizado na verdade, mas esta sua confissão faz-nos vislumbrar uma dúvida, e abre-nos também um rasgão na sua interioridade. O profeta não é homem da certeza. A dúvida é o seu pão quotidiano. A ausência de dúvidas é o primeiro sinal que revela a falsa profecia.
No capítulo seguinte, descobrimos que o ataque a Jeremias assume novas formas: «Eles disseram: “Vinde e tramemos uma conspiração contra Jeremias, porque não nos faltará a lei se faltar um sacerdote, nem o conselho se faltar um sábio, nem a palavra divina por falta de um profeta! Vinde, vamos difamá-lo, e não prestemos atenção às suas palavras!”» (18, 18). Os sacerdotes, os sábios e os profetas estão adotando uma nova estratégia para desarmar a ação de Jeremias: querem usar contra ele as palavras da sua própria profecia. A figura de Jeremias estava a tornar-se cada vez mais imponente em Jerusalém. A eliminação física – como a tentada, anos antes, pelos seus familiares, em Anatot – seria, agora, imprudente e talvez contraproducente. Há necessidade de uma ação mais sofisticada e, assim, os perseguidores de Jeremias mudam o plano de ação. Começam a segui-lo e a observá-lo com estrema atenção para procurar, nas suas palavras, uma contradição, um vulnus, um erro, uma frase contra o templo, uma crítica aos sacrifícios ordenados por Moisés ou a um preceito da Torá para, depois, usar num processo contra a sua pessoa e contra a sua ação. Jeremias está consciente de estar vulnerável nesta frente. Os profetas são imprudentes, não são politically correct, não são conhecedores de todos os segredos e truques da Lei. Até agora, nas palavras de Jeremias, encontrámos palavras e ataques contra a religião do templo que, se escutadas por um doutor da lei e levados a um tribunal, teriam produzido os mesmos pontos de acusação que, alguns séculos mais tarde, levarão à acusação e à condenação de Jesus de Nazaré. Jeremias começa a estar consciente que, entre os que, no templo ou nas praças, se reúnem para o ouvir, estão os ‘infiltrados’ que o seguem apenas para o encurralar. Muitas pessoas, chegadas a este ponto, começam a autocensurar-se, a retirar dos seus discursos todas as referências perigosas, a eliminar as palavras que possam condená-lo. Mas Jeremias não o fez; continuou o seu canto imprudente e livre que, assim, pode chegar até nós. Se tivesse prevalecido a virtude da prudência, se tivesse querido salvar a vida, teríamos perdido um património de palavras de imenso valor. A prudência nem sempre é uma virtude. Para os profetas nunca o é, porque põem a liberdade imprudente da palavra à frente da prudência das suas palavras. Com uma conduta prudente, muitos mártires não teriam sido mortos, muitos profetas teriam evitado perseguições e sofrimentos, mas a sua vida teria sido menos verdadeira e o nosso mundo seria pior. A ética bíblica não é a ética das virtudes.
Mas, nestas perseguições, cada vez mais sofisticadas, podemos ainda descobrir algo mais. Sobretudo, Jeremias diz-nos que os seus inimigos são os sacerdotes, os teólogos e os intelectuais, isto é, a elite do país. Jeremias não é atacado apenas pelos seus “colegas” profetas, mas por toda a classe dirigente. Este é um dado que nos revela, em contraluz, quão grande era o peso da profecia em Israel. Um só profeta é capaz de minar todo o edifício político e religioso. Só um povo talvez corrupto, mas alicerçado originariamente na palavra, pode levar tão a sério um profeta. Hoje, muitos “irmãos de Jeremias” continuam a profetizar nos nossos impérios, mas já ninguém se apercebe disso. A força e a seriedade da perseguição a Jeremias mostram, no paradoxo, a estima que o povo de Israel tinha pela profecia. Uma civilização que não compreende os profetas não os persegue, porque, simplesmente, os ignora. A história da profecia, em Israel, pode mostrar-nos algo de importante. Enquanto houver conflito entre elite dominante e profeta, entre carisma e profecia, ainda estamos em comunidades que fazem nascer e sabem reconhecer os profetas e, por isso, podem sempre salvar-se. A presença de Jeremias e dos outros profetas do exílio babilónico foram também o grande sinal que Israel não fora abandonada por YHWH: é Jeremias, combatido e rejeitado pelo povo, o sacramento da Aliança no tempo da corrupção e da apostasia. Enquanto, numa comunidade pervertida, houver um profeta que fala, ainda há uma possibilidade de futuro.
Finalmente, entalada entre duas conjuras, encontramos a maravilhosa cena do oleiro: «Palavra que o Senhor dirigiu a Jeremias, nestes termos: “Vai e desce à casa do oleiro, e ali escutarás a minha palavra”. Fui, então, à casa do oleiro, e encontrei-o a trabalhar ao torno. Quando o vaso que estava a modelar não lhe saía bem, retomava o barro com as mãos e fazia outro, como bem lhe parecia» (18, 1-4).
Deus fala a Jeremias dentro da oficina de um artesão. Jeremias tinha proclamado a palavra de YHWH, no templo; aí tinha recebido a objeção dos seus conterrâneos, aí tinham surgido as suas dúvidas em relação à veracidade das suas palavras. Mas a luz para dissipar aquelas dúvidas chega-lhe fora do templo, ao passar diante de uma humilde e leiga oficina artesanal. Está a atravessar uma fase delicada da sua vida; a polémica dura dos seus opositores estava a fazer entrar em crise a verdade da sua profecia e vocação, e Deus fala-lhe com as mãos diligentes e sujas dum artesão. E, assim, a Bíblia dá-nos um dos cânticos mais belos sobre o trabalho humano e da sua teologia das mãos. Aquele artesão tinha emprestado a Deus as suas mãos para O fazer falar. E é ali, no meio do pó e do barulho do torno, que Jeremias compreende o sentido do atraso da manifestação da sua profecia: «Como o barro nas suas mãos, assim sois vós nas minhas, casa de Israel - oráculo do Senhor. Em dado momento, anuncio a uma nação ou a um reino que o vou arrancar e destruir. Mas, se esta nação, contra a qual me pronunciei, se afastar do mal que cometeu, também Eu me arrependerei do mal com que resolvi castigá-la» (18, 6-8). O aspeto mais importante deste episódio, não é a interpretação que Jeremias dá à ação do oleiro, mas o simples facto que Deus falou, utilizando o trabalho mudo de um artesão.
Num tempo de crise e de transformação do trabalho, não podemos deixar de acolher, hoje, esta palavra de bênção do trabalho que nos chega através de Jeremias. O trabalho humano é também um lugar de teofanias, para quem trabalha e para quem vê os outros trabalhar. E, enquanto continuamos a procurar a resposta às nossas dúvidas no templo, ou quando deixámos de as procurar, Deus espera-nos numa oficina, manobrando o torno do seu banco de trabalho.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 09/07/2017
«O trabalho físico constitui um contacto específico com a beleza do mundo e um contacto de uma plenitude tal que nada de equivalente se pode encontrar noutro lugar».
Simone Weil, Attesa di Dio [Espera de Deus]
Para compreender a profecia e os profetas bíblicos precisamos de uma laicidade que já não temos. De facto, não há nada mais leigo que um profeta, porque, mesmo quando fala de Deus, diz, sempre e só, vida, história, lágrimas, esperanças, quotidiano, trabalho. Os discursos dos profetas eram acerca de homens e mulheres que, em redor, todos podiam e deviam compreender sem serem especialistas em teologia. É esta a sua laicidade, se verdadeiramente queremos usar um termo que seria, para eles, totalmente incompreensível porque, o que para nós é leigo, era, para eles, simplesmente vida, toda a vida. A primeira, e por vezes decisiva, dificuldade para compreender a Bíblia e os profetas encontra-se na própria palavra: “Deus”. Quando encontramos esta palavra, encontramos, inevitavelmente, um conceito carregado com milénios de cultura, de cristianismo, de teologia, de filosofia e, depois, pela modernidade, os seus ateísmos, a ciência, a psicanálise e, assim, tornamos incompreensíveis o Deus dos profetas e a palavra destes, que tiveram necessidade da pobreza do Sinai, dos tijolos do Egipto, de liberdade essencial da tenda do arameu errante – eis porque os melhores ouvintes da Bíblia sempre foram, e ainda são, as crianças: é preciso a sua liberdade e pobreza para entrar neste Reino.
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por Luigino Bruni
publicato em Avvenire em 02/07/2017
«Quem ler a Bíblia não poderá evitar a impressão que, com a chegada de Jeremias, é como se um dique tivesse cedido num ponto decisivo. Sente-se algo de novo, uma dimensão de dor, até então desconhecida».»
Gerhard Von Rad, Teologia dell’antico testamento
«Foi-me dirigida a palavra de YHWH, nestes termos: “Não tomarás mulher, nem terás filhos nem filhas nesta terra”» (Jeremias 16, 1-2). Eis uma outra reviravolta narrativa e espiritual do cântico e da vida de Jeremias, esplêndida e tremenda. Jeremias, por vocação, não terá mulher, e não terá nem filhos nem filhas. A dupla ordem marca e reforça as duas solidões radicais de Jeremias: deverá viver sem mulher e viver sem filhos e sem filhas (a alegria, o esplendor e as dores que nos dão as meninas e as filhas não são substitutos daquelas dos meninos e dos filhos, e vice-versa). Nesta procissão – mulher, filhos, filhas – podemos ler, talvez, um olhar concreto, não genérico, sobre as alegrias diferentes e também concretas que ele não conhecerá, por especial vocação.
[fulltext] =>Outros profetas bíblicos viveram experiências semelhantes à de Jeremias. As vidas de Isaías e Oseias foram sinais totais, globais, palavras feitas símbolo-carne. As suas vocações tinham coenvolvido profundamente a sua família. Isaías chama a seu filho: “um resto voltará” e o coração da sua profecia torna-se o nome do filho. Oseias recebe a ordem de se casar com uma prostituta e, também aqui, para dizer-ser uma mensagem ao povo: prostituístes-vos com outros deuses. Factos e ações tremendas, quando a dor e o tormento se tornam muito grandes e as únicas palavras, mesmo as imensas dos profetas, já não bastam.
A Jeremias, pelo contrário, a voz pede-lhe algo ainda mais radical: ser sinal e presságio renunciando completamente às coisas mais abençoadas e sagradas. No seu mundo, a escolha de não se casar e não ter filhos era um ato escandaloso e, sobretudo, sem qualquer sentido. Em hebraico, até nem há a palavra para dizer “celibato”. Era simplesmente uma loucura, uma estupidez, ridículo. A ponto de este pedido a Jeremias não ter equivalente no Antigo Testamento.
Para intuir algo do paradoxo daquela ordem, são precisas toda a Bíblia e a experiência de toda uma vida. Temos de voltar a Abraão, à promessa de filhos numerosos como as estrelas do céu. À esterilidade de Sara, a Agar e Ismael e, depois, a Isaac, a Raquel e Lia, a Job, à Aliança, ao Cântico dos Cânticos e à linguagem nupcial na Bíblia, muito amada e utilizada também por Jeremias. Neste mundo, a primeira bênção é a bênção dos filhos e das filhas; nenhuma terra é a terra da promessa se não há, pelo menos, uma criança nossa para a habitar e se alimentar do seu pão e do seu mel. No humanismo bíblico, o único paraíso desejado é poder continuar a viver nos filhos e na sua memória, por muitas gerações. A outra vida melhor, em que se espera, não é a nossa no céu, mas a dos filhos na terra. E, depois, deveremos voltar aos primeiros capítulos do Génesis. Àquele adam, criado “macho e fêmea”, que, juntos, mostram verdadeiramente a imagem de Deus, a única lícita na terra, tão bela que todas as outras deturpam a imagem de Elohim porque deturpam a imagem do adam. E quando aquele primeiro homem, ao acordar do torpor, se cruzou, pela primeira vez, com olhos como os seus e talvez tenha entoado a primeira canção da terra: “Agora sim, agora sim…”, encontrei finalmente um ezer kenegdò: olhos nos olhos, olhos como os meus, embora diferentes. A mulher chega como dom e resposta a uma das primeiríssimas frases da antropologia bíblica: “Não é bom que o adam esteja só”.
Então, neste grande capítulo do livro e da história de Jeremias, Deus pede-lhe para voltar à solidão triste da aurora do mundo, anterior ao “dois ou mais”. Jeremias deve, por uma palavra de YHWH, desmentir e negar uma das suas palavras mais belas e eternas. Aquele “não é bom” aplica-se a todo o humano, mas não a Jeremias.
E a admiração não termina aqui: «Disse, ainda, YHWH: «Não entres na casa onde haja luto, para chorar com os seus moradores» (16, 5). Participar nos funerais, chorar, visitar a família do defunto no longo tempo de luto eram práticas sociais primárias, que criavam e reforçavam os laços sociais, acresciam a solidariedade e a fraternidade. Não cumprir estas práticas significava isolar-se e ser visto pelos outros como pessoa bizarra e inimiga. Mas o elenco das proibições de Jeremias ainda não estava completo: «Não entrarás, igualmente, na casa em que houver uma festa para te sentares à mesa com os convivas» (16, 8). Deus quer, portanto, para ele uma vida em total solidão: sem família, sem filhos, sem amigos, sem festa, sem comunidade, sem consolações. Porquê? O texto dá-nos a sua interpretação: Jeremias deve antecipar com o seu corpo, com as suas relações sociais, com a sua carne, a situação que, em breve, será a de todo o povo, que está para ser deportado, onde acabarão os banquetes e as festas, onde nem sequer poderão sepultar adequadamente os mortos nem celebrar os ritos do luto. Tem de se tornar símbolo incarnado.
Mas esta explicação não basta. Que sentido tem incarnar uma ruina total, antecipando, com a própria vida, a desventura que será de todo o povo? E que adiantava ser um sinal, se ninguém o compreende, e o escarnecem e ridicularizam? Não esqueçamos que o sentido global do livro de Jeremias não sugere que o objetivo dos sinais fortes seja a conversão do povo. Não nos pode satisfazer pensar que o objetivo do livro de Jeremias poderá ser uma leitura teológica ex-post dos acontecimentos desastrosos da deportação de Babilónia que, para salvar a justiça de Deus, atira toda a culpa da desventura para a corrupção e idolatria do povo. É muito pouco, demasiado simples, não à altura do seu livro.
Convém, então, deixar falar este capítulo XVI, fazê-lo entrar, hoje, na nossa vida, e entrar em diálogo com Jeremias, tornando-nos seus contemporâneos. E se nos pusermos, nus e livres, frente a este capítulo, podemos, talvez, vislumbrar entre a névoa, algumas dimensões paradoxais, mas verdadeiras e essenciais, que se encontram em muitas vidas vividas como vocação.
No dia em que Jeremias recebeu o seu chamamento, não sabia que chegaria o momento deste segundo chamamento (no relato da sua vocação, no primeiro capítulo, não há nenhuma alusão a não se casar). Hoje, pelo contrário, quando alguém responde a uma vocação religiosa, por vezes, sabe imediatamente que não se casará e não terá filhos e filhas. Mas, também hoje, no dia do chamamento, quando se é envolvido pelo deslumbramento da voz, embora saibamos, em abstrato, ter de renunciar a mulher/marido, filhos e filhas, ainda não renunciamos, na realidade, a nada de real – embora muitas vocações se encravem porque, por medo, se fixam na primeira renúncia abstrata e não conhecem a fecundidade que só a renúncia concreta obtém. Mas, quando a vida funciona, é muito provável que chegue o dia do capítulo XVI de Jeremias, quando a ideia abstrata se torna concreta e se incarna. Chega quando se conhece um homem que poderia tornar-se, verdadeiramente, um marido; quando, um dia, diante de um menino, se sente na carne a pobreza da paternidade que faltou, de ser rodeado por centenas de filhos e filhas, mas os nossos não existem e poderiam existir. Aí, não no dia do primeiro encanto luminoso, dez ou trinta anos antes, chega-nos, clara e forte a palavra: “Não tomarás mulher, nem terás filhos nem filhas”. E pode-se responder, ainda e diversamente: sim.
Quando se segue, verdadeiramente, uma vocação e não se renuncia a viver a vida pela deceção ou pela ilusão, mais cedo ou mais tarde chega, quase inevitavelmente, a etapa do capítulo XVI. Tornamo-nos como Jeremias, mas não nos damos conta, porque o processo é lento e longo. Encontramo-nos a incarnar mensagens de que não somos donos. Podemos revoltar-nos ou, então, dizer “sim” e emprestar o corpo e a vida para escrever um capítulo de um livro de que não conhecemos o enredo nem, muito menos, o final. No seu mundo e no seu tempo, Jeremias não podia compreender o sentido daquelas coisas tremendas que a voz lhe pedia. O livro de Jeremias oferece-nos algumas interpretações, mas o homem Jeremias de Anatot terá tido muito menos interpretações que os redatores finais do seu livro; até talvez não tivesse nenhuma. Apenas ouviu, claríssima, uma voz que lhe pedia algo de paradoxal, e disse: “está bem”. Os símbolos não desempenham a sua missão porque conhecem o próprio significado: por vezes, têm algum clarão de sentido, mas quase nunca o símbolo é bom hermeneuta de si mesmo. Os grandes símbolos da Bíblia e da vida de cada um nunca são explicados e revelados de uma vez para sempre e, por isso, continuam a falar e a explicar, no tempo e em todo o tempo. Não somos nós, no nosso mundo e no nosso tempo, os melhores intérpretes dos símbolos que somos chamados a ser.
A Bíblia é revelação também porque, por vezes, tira o véu que separa o sentido das suas palavras do das nossas experiências mais importantes. Tira-o, durante algum tempo, e, depois, volta a colocá-lo, re-velando-as, para guardar a intimidade dos seus grandes relatos de amor e de dor e para guardar o mistério do nosso coração. Não é necessário conhecer e explicar todo o sentido e todos os sentidos das ordens paradoxais do capítulo XVI, porque as suas palavras continuarão a cantar até que os seus significados sejam mais numerosos e maiores que as nossas perguntas e que as nossas respostas. A Bíblia regenera até que os nossos sentidos sejam supérfluos em relação às nossas interpretações.
A paisagem da terra encontrada não é o da terra prometida. Muitas coisas que pensávamos que houvesse, não existem – não há a comunidade que imaginávamos, mas apenas a que temos; não há a felicidade que procurávamos, para que, vivendo, compreendamos que é demasiado pouco. Mas encontrámos muitas surpresas, como o dom de descobrir a beleza onde todos veem coisas e pessoas feias, uma profunda e sóbria fraternidade com a terra, com os animais, com as plantas, com o desabrochar uma flor numa solidão não escolhida e docilmente acolhida. Uma vocação está viva enquanto permanecer bastante livre para atualizar continuamente a primeira terra prometida. E, quando compreende que está próximo o desaparecimento do último elemento sobrevivente da paisagem sonhada, sabe entoar o cântico da grande bênção.
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por Luigino Bruni
publicato em Avvenire em 02/07/2017
«Quem ler a Bíblia não poderá evitar a impressão que, com a chegada de Jeremias, é como se um dique tivesse cedido num ponto decisivo. Sente-se algo de novo, uma dimensão de dor, até então desconhecida».»
Gerhard Von Rad, Teologia dell’antico testamento
«Foi-me dirigida a palavra de YHWH, nestes termos: “Não tomarás mulher, nem terás filhos nem filhas nesta terra”» (Jeremias 16, 1-2). Eis uma outra reviravolta narrativa e espiritual do cântico e da vida de Jeremias, esplêndida e tremenda. Jeremias, por vocação, não terá mulher, e não terá nem filhos nem filhas. A dupla ordem marca e reforça as duas solidões radicais de Jeremias: deverá viver sem mulher e viver sem filhos e sem filhas (a alegria, o esplendor e as dores que nos dão as meninas e as filhas não são substitutos daquelas dos meninos e dos filhos, e vice-versa). Nesta procissão – mulher, filhos, filhas – podemos ler, talvez, um olhar concreto, não genérico, sobre as alegrias diferentes e também concretas que ele não conhecerá, por especial vocação.
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