Maiores que a culpa / 9 – O trabalho nunca é um obstáculo às nossas vocações
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 18/03/2018
«Uma vez, Rabbi Bunam rezou numa pousada. Mais tarde, disse aos discípulos: “Às vezes, julga-se que não seja possível rezar num lugar e procura-se outro. Mas esta não é a atitude correta. Porque o lugar abandonado queixa-se: porque não quiseste fazer as tuas orações em cima de mim? Se havia algo que te perturbava, isso era precisamente o sinal que tinhas a obrigação de me redimir”»
Martin Buber, Storie e leggende Chassidiche [Histórias e lendas cassídicas]
O declínio de Saul cruza-se com a subida de David, estrela luminosíssima na Bíblia, talvez a mais luminosa no Antigo Testamento. É o personagem de quem conhecemos melhor o coração – uma palavra que, não por acaso, faz a sua aparição já no primeiro relato da sua vocação («o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração»: Samuel 16, 7).
Abraão e Moisés são figuras imensas na Bíblia, ainda mais centrais na história da salvação. Deles, conhecemos as façanhas, as palavras, sobretudo a fé, e estas são suficientes para fazer deles as colunas do povo e da aliança. O coração de Abraão ou de Moisés, porém, não o conhecemos ou conhecemo-lo muito pouco. O Sinai e o Monte Moriá são lugares de grandes diálogos, talvez os maiores de todos, mas o que, verdadeiramente, acontece na alma de Moisés e de Abraão, o texto não no-lo diz. Deixa-no-lo imaginar e, também por isto, os escritores e os artistas, ao longo dos séculos, puderam “completar” as histórias íntimas destes homens de Deus que, no texto bíblico, apenas eram sugeridas ou sussurradas.
De David, a Bíblia faz-nos entrar na sua interioridade, nas suas emoções, nos seus sentimentos e nas suas tragédias. Por isso, a narração da sua história dá-nos páginas das mais emocionantes e sublimes da literatura antiga, e David torna-se um rei muito amado apesar de mais pecador e “pequeno” que outros personagens bíblicos. David assemelha-se a Jeremias: ambos chamados enquanto jovens, ambos seduzidos no coração, ambos grandes pelas suas façanhas e seus gestos, mas amados, sobretudo, pelas páginas dos seus diários da alma, pelos seus cânticos e salmos intimíssimos do coração. Com David, o som, o canto e a amizade tornam-se palavra de Deus e os sentimentos humanos adquirem direitos de cidadania no coração da Bíblia, que é o grande códice da nossa civilização, não só e nem tanto porque nos fala de modo diferente de Deus, mas porque nos fala diversamente dos homens e das mulheres, porque nos fala diversamente de nós, para nos dizer quem somos.
«YHWH disse a Samuel: “Até quando chorarás Saul, tendo-o Eu rejeitado para que não reine em Israel? Enche o teu chifre de óleo e vai. Quero enviar-te a Jessé de Belém, pois escolhi um rei entre os seus filhos”» (1 Samuel 16, 1). A nova palavra de Deus para Samuel começa com uma referência a Saul. Samuel chora por Saul rejeitado. O texto não nos diz porque chora Samuel. No entanto, podemos pensar que Samuel tenha vivido com sofrimento o repúdio de Saul por parte de YHWH. Tinha-o procurado e consagrado; tinha-o beijado e, depois, tinha participado na alegria da festa da sua entronização. O fracasso de Saul fora também o fracasso de Samuel, como acontece na vida, quando o insucesso de quem escolhemos para desempenhar uma tarefa se torna também o nosso insucesso. Quem se encontra a orientar uma comunidade ou uma organização sabe que não é possível desprender-se dos fracassos das pessoas em quem nos confiámos. Mesmo se a responsabilidade objetiva do insucesso não for nossa, o pacto que criou aquela missão é uma reciprocidade incarnada. E, como em todos os pactos, o fracasso do outro é também o meu fracasso. É verdade que Samuel, juiz e profeta, agia a falava sob o comando de YHWH. Mas o profeta honesto, no momento em que pronuncia a palavra recebida, torna-se pessoalmente solidário com a palavra que diz. Sempre, mas sobretudo quando as coisas correm mal.
O pranto de Samuel pelo repúdio de Saul, que faz após os seus gritos («Samuel entristeceu-se e clamou ao Senhor durante toda a noite» 15, 11), repete-nos também a misteriosa e maravilhosa dinâmica da palavra e da profecia na Bíblia. A profecia vive de um duplo pacto de fidelidade: entre Deus e o profeta e entre o profeta e a palavra. No momento em que Samuel age e fala, fundado na palavra recebida, começa uma solidariedade-fidelidade entre o profeta e a palavra que pronuncia, que chega mesmo ao dever ético de sentir na sua carne a dor por uma palavra que não se cumpre, por razões que ele não pode controlar. O profeta não é uma máquina, não é um mediador indiferente entre Deus e o mundo. É, pelo contrário, um canal vivo e incarnado; e, quando a palavra o atravessa para alcançar a terra e se tornar eficaz, ele torna-se parte das histórias e das ações que aquela palavra opera e acompanha as suas sortes. Um Samuel que não chorasse por uma palavra de YHWH que deu errado, não seria um profeta responsável, mas simplesmente um falso profeta, que não sofre pelo fracasso das suas palavras proferidas, porque essas palavras eram apenas vanitas, fumo, fake news. A unção de Saul nascera de uma palavra autêntica e, enquanto tal, tinha operado, fora performativa, tinha mudado a realidade, para sempre. «Tornar-te-ás outro homem» (10, 6), tinha dito Samuel a Saul, no dia da unção. Se aquela palavra era verdadeira, foi uma palavra eficaz. Deus muda de ideia e/ou Saul peca, mas é o pranto de Samuel a dizer-nos que as palavras não são vento, e que Samuel era um profeta honesto. A mostrar-nos o imenso valor da palavra e das palavras na Bíblia – e na vida.
Samuel parte, vai ter com Jessé, em Belém: «Logo que entraram, Samuel viu Eliab e pensou consigo: “Certamente é este o ungido do Senhor”. Mas o Senhor disse a Samuel: «Que te não impressione o seu belo aspeto, nem a sua alta estatura”» (16, 6-7). Samuel aparece-nos ainda confuso, numa cena que recorda, de perto, o chamamento de Saul à procura das jumentas perdidas. De facto, fica impressionado pelo aspeto e pela estatura do primogénito de Jessé (Eliab) (bonito e alto). Jessé apresenta todos os sete filhos, mas «Samuel disse: “O Senhor não escolheu nenhum deles”» (16, 10). Eis aqui a viragem narrativa: «Samuel acrescentou: “Estão aqui todos os teus filhos?” Jessé respondeu: «Resta ainda o mais novo, que anda a apascentar as ovelhas”. Samuel ordenou a Jessé: “Manda buscá-lo”» (16, 11). O oitavo filho, o ausente, o pastor, chega junto de Samuel e de toda a sua família: «era louro, de belos olhos e de aparência formosa. Disse YHWH: “Ei-lo, unge-o: é esse”. Samuel tomou o chifre de óleo e ungiu-o na presença dos seus irmãos. E, a partir daquele dia, o espírito do Senhor apoderou-se de David» (16, 12-13).
Uma cena esplêndida, que deveria ser ainda mais rica de pormenores nas primeiras narrações antigas (já perdidas). O mérito, na Bíblia, é algo de radicalmente diferente da nossa meritocracia. Impressionam alguns pormenores que assumem valor teológico e antropológico. A estrutura narrativa do texto mostra-nos um diálogo entre YHWH e Samuel, onde até Deus tem necessidade de ver o rosto de David, antes de dizer a Samuel: “unge-o: é esse”. A Bíblia é, com certeza, um humanismo da palavra, mas é também um humanismo do olhar e dos olhos. Do primeiro olhar de Elohim sobre Adão, quando vê que “era coisa muito boa”, ao segundo olhar entre dois humanos, finalmente “olhos-nos-olhos”, ao olhar entre Jesus e o homem rico: “olhando-o, amou-o”. David é o mais novo dos irmãos. Seu pai Jessé nem sequer o tinha convidado para o banquete sacrificial, dada a sua jovem idade que não lhe permitia participar nos sacrifícios. Estamos, portanto, dentro de um outro grande episódio, talvez o maior de todos, da economia da pequenez que atravessa toda a Bíblia e representa uma sua alma profundíssima.
A Aliança, a libertação, a conquista e a proteção da terra, a profecia, vivem de um diálogo vital e fecundíssimo entre força e debilidade, grandeza e pequenez, lei e liberdade, instituição e carisma, templo e profecia. São a trama e a urdidura da história da salvação que só juntas permitem ver as formas, as cores e a beleza do desígnio da humanidade. Mas, nos momentos determinantes desta história, a Bíblia mostra-nos que a co-essencialidade destes dois princípios não chega a negar a existência do primado que pertence à oikonomia da salvação. A de Abel, a das mulheres estéreis e mães, de José, de Amós e de Jeremias, de David, de Belém, das bem-aventuranças, do Gólgota. A lógica da economia da pequenez nasce diretamente da ideia de Deus, de pessoa e de relações contidas na Bíblia. Diz-nos que YHWH é uma “subtil voz do silêncio”, o seu tempo é um tempo vazio. É uma voz, não se vê nem se toca, que se escolhe como aliado, o mais pequeno entre os pequenos, que se torna criança, e que depois deixa o seu filho e os nossos filhos dependurados numa cruz. Mas também nos diz que a vida espiritual da pessoa desabrocha verdadeiramente no dia em que se começa a intuir que a salvação se encontra no que é tão pequeno que nem sequer é “convidado para o banquete”, nos fracassos de ontem, nas feridas da alma, nas perguntas que mandámos embora, nos pecados e nos limites que não queremos ver. Tomar a sério esta economia da pequenez leva-nos a olhar o mundo de outro modo. A procurar os reis de amanhã entre os rejeitados e os pobres de hoje, a levar muito a sério os jovens e as crianças, a encontrar méritos onde a oikonomia da grandeza apenas sabe ver deméritos.
Há um último pormenor, tão humilde a ponto de ficar, frequentemente, no fundo do relato. Enquanto Samuel passa em revista os seus irmãos, David está “pastoreando o rebanho”. Na sua família, era o único rapaz que, naquele momento, estava a trabalhar (talvez com as irmãs e a mãe que podemos imaginar, por sua vez, no trabalho). Estava a guardar o rebanho, como Moisés, no Monte Horeb. O trabalho não é um obstáculo aos nossos chamamentos maiores, porque, simplesmente, as vocações e as teofanias mais importantes e verdadeiras acontecem enquanto “guardamos o rebanho”. Um cântico estupendo à laicidade e ao trabalho. Para descobrir a nossa vocação e também o nosso lugar no mundo, não podemos fazer nada melhor que trabalhar.
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