A honra dos rejeitados

A honra dos rejeitados

Maiores que a culpa / 17 – Afinal, os caminhos de Saul são poeirentos, como os nossos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 13/05/2018

samuele 17 210x300«Saul: Oh, meus filhos!... – Fui pai. –
Estás só, ó rei; não te resta um
dos teus amigos ou dos teus servos.
– És paga,
do inexorável Deus, terrível ira?»

Vittorio Alfieri, Saul

Em toda a leitura autêntica, o leitor tem uma parte ativa e criativa. Não é espetador das histórias que lê, mas coencenador e ator. Na forma especial de leitura, que é a leitura bíblica, portanto, quem lê recebe a misteriosa – mas real – faculdade de transformar os personagens em pessoas que, como todas as pessoas vivas, crescem, mudam, movimentam-se, fazem encontros inesperados. Acontece, então, que as pessoas bíblicas começam a interagir entre si, a tecer tramas relacionais diferentes das pensadas e queridas pelo primeiro autor. E, assim, a bruxa de En-Dor torna-se amiga do pai do filho pródigo, Jeremias descobre-se irmão de David e Saul torna-se companheiro de caminho e de desventura de Job, como ele lançado no monte de estrume, por um Deus que quer (Saul) ou permite (Job) a sua desventura. Ambos, Saul e Job, atingidos por penas divinas maiores que a sua (possível) culpa, ambos envolvidos pelo silêncio de um Deus mudo que, para eles, não tem palavras de vida – talvez porque, simplesmente, espera as nossas.

David continua a sua guerra, ao lado dos filisteus (I Samuel 29), mas, agora, os chefes, em vésperas do ataque final contra Saul, impedem-no de participar na batalha. Entretanto, os Amalecitas – outro inimigo histórico de Israel e de Saul, e ligados ao seu repúdio por parte de Deus (Cap. 15) – tinham conquistado a cidade de Ciclag, onde se encontravam também a família e a mulher de David, que foram feitas prisioneiras. David, com os seus homens, vai em perseguição dos Amalecitas e, graças a um encontro (providencial) com um escravo egípcio, consegue, com uma emboscada, derrotar o exército inimigo: «David recuperou tudo o que os amalecitas haviam tomado, libertando também as suas duas mulheres» (30, 18). Faz também um bom saque: «tomou todos os rebanhos e manadas» (30, 20). Nem todos os seiscentos homens de David tinham participado na missão, porque duzentos, «demasiado extenuados para poderem atravessar a torrente de Besor» (30, 10b), tinham ficado pelo caminho. Quando David regressou ao acampamento, «todos os malvados e perversos que se encontravam na tropa de David começaram a dizer: “Visto que eles não nos acompanharam, nada lhes daremos do espólio recuperado”» (30, 22). Os “malvados e perversos” nunca deixaram de excluir os mais débeis da distribuição da riqueza. Mas nós, já não atribuímos estas palavras e estes atos aos “malvados e perversos”; louvamo-los, revestimo-los de virtudes e de palavras bonitas como mérito e meritocracia, e, depois, em seu nome, rejeitamos os pobres e os “esgotados”, depois de os ter chamado mandriões e preguiçosos.

Porém, a Bíblia conhece uma outra lógica: «David disse-lhes: “Não façais assim, meus irmãos, com o que o Senhor nos deu… A parte dos que ficaram junto às bagagens será igual à daqueles que foram ao combate”» (30, 23-24). A riqueza é “dom do Senhor”, e esta sua natureza de dom-providência prevalece sobre as razões do mérito/demérito individual (mesmo que, por vezes, existam, são, quase sempre supervalorizados). Por isso, a solidariedade que nasce do ser parte da mesma comunidade está acima da produtividade e da eficácia, porque não somos nós os verdadeiros proprietários da nossa riqueza. Antes de a produzir, recebemos a riqueza como dom. Daqui nasce a solidariedade e a gratidão que deverão acompanhar o nosso olhar reconhecedor sobre as nossas riquezas e as dos outros. Sobre a ideia de riqueza-dom, construímos a democracia, os direitos, as reformas, a assistência pública, a escola universal, os subsídios de desemprego, os impostos e o sistema fiscal, uma sociedade onde os “extenuados” poderão, legitimamente, participar duma quota da riqueza. Verdades antigas e grandes, que a ideologia neo-pelagiana do incentivo e da meritocracia nos fizeram esquecer, no espaço de duas décadas.

Mas, agora, deixamo-nos tocar e ferir pelo último trecho da vida de Saul: «Os filisteus atiraram-se contra Saul e seus filhos, matando Jónatas, Abinadab e Malquichua, filhos de Saul. Toda a violência do combate desabou sobre Saul. Os arqueiros descobriram-no e feriram-no gravemente» (31, 2-3). Então, Saul disse ao seu escudeiro: «“Tira a tua espada e trespassa-me, para que não venham esses incircuncisos, me trespassem e escarneçam de mim”. Mas o escudeiro não o quis fazer, pois se apoderou dele um grande terror» (31, 4). Uma cena descrita sem qualquer condenação moral ou religiosa para Saul. O redator final dos livros de Samuel não lê a morte de Sal como um fim merecido pelas suas culpas. Um olhar bom do texto continua, firme, a acompanhar as tristes sortes do primeiro rei. E dá-lhe uma morte digna e heroica: «Então, Saul tomou a sua espada e atirou-se sobre ela. O escudeiro, vendo que Saul estava morto, arremessou-se ele mesmo sobre a sua espada e morreu junto dele. Assim, morreram naquele dia Saul e os seus três filhos, o seu escudeiro e todos os seus homens» (31, 4-6). Acaba com um suicídio de honra a história deste rei trágico. Não merecia uma morte covarde e não a teve.

Os filisteus, depois, cortaram a cabeça a Saul e aos seus dois filhos, tiraram-lhe a armadura e fizeram-na circular de cidade em cidade, para «anunciar a boa notícia» nos seus templos (31, 9), e «suspenderam o seu cadáver nos muros de Bet-Chan» (31, 10). Mas os habitantes de Jabés de Guilead, aqueles a quem os Amonitas tinham arrancaram o olho esquerdo e, depois, foram salvos por Saul (cap. 11), ao terem conhecimento dos factos, «marcharam toda a noite. Tiraram das muralhas de Bet-Chan os cadáveres de Saul e dos seus filhos… Recolheram os ossos e enterraram-nos debaixo da tamareira de Jabés. E jejuaram durante sete dias» (31, 12-13). É muito bonita esta homenagem ao bom reconhecimento popular. O povo recorda, conserva uma memória diferente da oficial da política e da religião. E é capaz, apenas para honrar esta memória, de caminhar toda a noite, recuperar o corpo e assegurar ao amigo derrotado uma digna sepultura. Aqui, debaixo da tamareira, onde Saul costumava estar, com a lança cravada na terra, no meio dos seus soldados em pé. Esta é uma expressão verdadeira e profunda da lei da gratidão, inscrita no DNA da alma do povo e das pessoas – nenhuma lei económica explica porque apanhamos o comboio ou o avião para irmos ao funeral de um amigo, mas o dia em que o cálculo individual custos-benefícios não nos deixar fazer estes atos economicamente inconvenientes em relação aos mortos, esquecemos, pouco a pouco, também a gramática da economia e da reciprocidade entre os vivos.

Também David vem a saber – por um amalecita vindo do campo da batalha, que terá, depois, um mau fim – da morte de Saul e de Jónatas: «Então, David rasgou as suas vestes, e todos os que estavam com ele o imitaram. E prantearam, choraram e jejuaram até à tarde, por amor de Saul, de seu filho Jónatas» (2 Samuel 1, 11-12). E é dentro deste luto de David, que encontramos aquele que, para muitos, é o seu cântico mais bonito, O lamento do arco:

«Tombaram os heróis!
Não o conteis em Gat,
nem o descrevais nas ruas de Ascalon…
Saul e Jónatas, amados e gloriosos,
jamais se separaram,
nem na vida nem na morte,
mais velozes do que as águias,
mais fortes do que os leões.
Filhas de Israel, chorai sobre Saul!
Ele vestia-vos de púrpura sumptuosa
e ornava de ouro as vossas vestes.
Tombaram os heróis no campo de batalha!
Jónatas, morto sobre as tuas colinas!
Jónatas, meu irmão, que angústia sofro por ti!
Como eu te amava!
O teu amor era uma maravilha para mim
mais excelente que o das mulheres.
Como tombaram os heróis» (1, 19-27).

Não é preciso acrescentar comentários. Não o conteis... Em grego: euangelizein. Não leveis esta má notícia, não anuncieis este anti-evangelho. Jónatas “amado e glorioso” e Saul, também ele “amado e glorioso”, até ao fim. Se a Bíblia quis conservar este cântico fúnebre (tomado de material muito antigo: o livro dos justos), é para nos dizer algo sobre David (que não subiu ao trono matando o seu rival). Mas também quer dizer-nos algo de importante sobre Saul. Não se entoa um cântico maravilhoso por um rei mau e malvado. A Bíblia sabia que Saul tinha conservado, no drama, uma sua misteriosa inocência e pureza, que lhe mereceram este cântico de David, talvez o mais belo de todos. E, se David pode cantar estas palavras a um rei repudiado e dominado por um espírito mau, mas que permaneceu, de algum modo, sincero, então, também os repudiados e os rejeitados, se permanecerem sinceros num pequeno ângulo do seu coração, são dignos dos salmos de David – e dos nossos. A Bíblia não reserva bênçãos apenas para os abençoados e para os vencedores, mas os seus cânticos mais belos são para os amigos e para as amigas de Saul; portanto, também para nós. Há muitos caminhos para entrar na Bíblia. Alguns estão reservados para quem se sente justo e abençoado, mas são muito poucos. Outros, mais numerosos, são os caminhos de Saul, caminhos populares, poeirentos, tortuosos, escuros, mas onde caminhamos todos.

David tinha começado a sua relação com Saul tocando para ele a harpa e cantando salmos para afastar dele o “espirito mau”, porque Saul encontrava paz ao ouvir as notas e a voz de David. No fim, encontramos um outro cântico de David – o texto diz que David “cantou” este lamento. Toda a história de David e Saul está contida entre dois cânticos, por um cântico que não se interrompeu. A história de Saul não se fecha com a espada que o trespassa, nem com a digna sepultura debaixo de tamareira. Termina com um cântico de David, que é um cântico de ressurreição. Sempre que o cantamos, Saul, também graças a nós, volta a ser o jovem alto e belíssimo, revemo-lo à procura das jumentas perdidas, em êxtase místico no meio dos profetas, ainda dócil sob a mão consagrante de Samuel. Para que a Bíblia continue a viver e a ressurgir, não basta o maravilhoso cântico de David: é preciso também o nosso cântico. Todos os protagonistas da Bíblia são “personagens à procura de autor”, de um leitor que lhes permita voltar a viver, libertando-os das interpretações redutoras dos seus copistas que as religiões oficiais lhes designaram. De um leitor que grite: “Vem para fora”, e os faça sair vivos dos seus sepulcros.

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