Maiores que a culpa / 6 – O entusiasmo profético acende-se na vida ordinária
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 25/02/2018
«Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão,
os vossos jovens terão visões
e os vossos anciãos terão sonhos»
Livro de Joel
A consagração de Saul, o primeiro rei de Israel, realiza-se, mais uma vez, dentro dos afazeres normais da vida. Saul afastou-se de casa à procura das jumentas perdidas, animais precisos para a economia do tempo. Durante esta normal missão de trabalho, o extraordinário irrompe na sua vida. Saul tinha saído de casa para ir trabalhar e voltou a casa ‘ungido do senhor’. Partiu procurando jumentas que não encontrou; encontrou, porém, uma vocação, uma missão, um destino que não procurava. Isto é um dos episódios maiores de serendipitismo, que não explica apenas porque sem ir pessoalmente à livraria nunca descobriremos os livros mais importantes que não procurávamos, que nos esperavam ali, ao lado dos menos importantes que procurávamos, mas que nos faz intuir algo da lógica profunda da vida espiritual. Os bens maiores da vida são os que não compramos, porque não estão à venda, os que não procuramos porque ainda não sabemos que existem, os que recebemos porque, simplesmente, somos amados.
“Havia um homem da tribo de Benjamim chamado Quis, filho de Abiel, filho de Seror, filho de Becorat, filho de Afia, filho de um benjaminita, que era um guerreiro forte e valente. Tinha um filho chamado Saul, mancebo de bela presença. Não havia em Israel outro mais belo do que ele; sobressaía entre todos dos ombros para cima. Tendo-se perdido as jumentas de Quis, pai de Saul, disse ele ao filho: «Toma um criado contigo e vai procurar as jumentas.» Atravessaram a montanha … sem nada encontrar. Saul disse ao criado: «Vem, regressemos...» Respondeu-lhe o criado: «Nesta cidade há um homem de Deus... Vamos lá, pois talvez ele nos diga o caminho que devemos seguir»” (1 Samuel 9, 1-6). Saul é eleito também pelo seu aspeto físico: forte, o mais belo, o mais alto. Mas pertence à tribo de Benjamim, a mais pequena, a que em Guibeá se tinham manchado com um dos crimes mais hediondos de toda a Bíblia (Juízes 19) – uma ambivalência que marcará até ao fim o destino de Saul.
Saul escuta o conselho do seu assistente. Mas pergunta-lhe: “Está bem, vamos; mas que presente levaremos ao homem de Deus? Os nossos alforges estão vazios e não temos dinheiro para lhe dar. Que nos resta?» Respondeu novamente o criado: «Tenho aqui um quarto de siclo de prata; dá-lo-ei ao homem de Deus para que nos mostre o caminho»” (9, 7-8). Regressa, aqui, o grande tema do dom, que está a marcar estes primeiros capítulos de Samuel. Do contexto, compreende-se que o dom que preocupa Saul tem muito pouco de gratuidade e assemelha-se muito ao preço a pagar em troca de um serviço. A zona do dom e a da troca sempre se cruzaram, chegando, por vezes, a sobrepor-se. O dom gratuito e totalmente desinteressado é uma invenção recente que, quase sempre, existe nos livros dos estudiosos ou nalgum ângulo da nossa alma, onde são guardadas as recordações preciosas e eternas da primeira infância. Na realidade, o dom é a primeira linguagem da reciprocidade, é um sinal de interesse por alguém ou por alguma coisa. O desinteresse (ausência de interesse) não faz parte da semântica do dom.
A continuação do relato revela-nos a natureza específica daquele dom: “Antigamente, em Israel, todo aquele que ia consultar a Deus, costumava dizer assim: «Vinde, vamos ao vidente.» Chamava-se, então, «vidente» ao que hoje se chama «profeta»” (9, 9). O nascimento da profecia, em Israel, foi um processo longo e, por isso, complexo e ambivalente. Videntes, magos, adivinhos, eram muito comuns em todo o mundo antigo e desempenhavam funções diferentes e importantes (cura de doenças, interpretação de sonhos, leitura de sinais, libertação dos espíritos maus, previsões de acontecimentos, conselhos aos reis…). A sua profissão era (quase) como as outras e, por isso, para usufruir dos seus serviços era preciso pagar um preço; mas sendo habitantes do território sagrado, para interagir com os videntes, recorria-se ao registo da oferta ou do dom. Uma linguagem mais própria do que a da linguagem comercial porque, quando o homem antigo entrava em relação com o sagrado, pensava que aquele especial do ut des não fosse uma troca de valores equivalentes, porque o que se recebia (ou era recebido) em troca valia muito mais que o que era ‘pago’ (como nunca alguém acreditou que o ‘valor’ de uma missa fossem os dez euro ‘pagos’ ao sacerdote). O excesso do dom está ainda muito presente no nosso tempo. Todos sabemos (se pensarmos bem) que o valor de quanto damos, num mês, à nossa empresa é muto mais que o salário que recebemos. A profecia, em Israel, partiu das antigas figuras dos viventes e dos adivinhos e, progressivamente, separou-se, como fenómeno único e extraordinário. Samuel conserva ainda vestígios da antiga figura do vidente, mas, nele, está também a semente da nova profecia que gerará, séculos depois, Isaías e Jeremias. De facto, é significativo que quando Saul chega junto de Samuel, desaparece do relato qualquer referência ao preço a pagar ao ‘vidente’, a dizer-nos que na relação com este vidente-profeta há algo de diferente e de novo, em relação ao dom-troca com os adivinhos.
Chega, finalmente, a hora do encontro: “Eis que ao entrarem, Samuel vinha ao seu encontro, pois ia subir ao lugar alto. Ora no dia anterior à chegada de Saul, YHWH tinha revelado ao ouvido de Samuel: «Amanhã, a esta mesma hora, enviar-te-ei um homem da terra de Benjamim, e tu o ungirás como chefe do meu povo de Israel»” (9, 14-16). Está aqui um pormenor que nos mostra uma diferença essencial entre Samuel e os videntes: YHWH tinha revelado “ao ouvido” de Samuel. A nova era da profecia é marcada por uma mudança de sentido: da vista passa ao ouvido. O vidente ‘vê’, o profeta ‘escuta’ um Deus diferente que não se vê. Com a profecia, o Deus dos patriarcas e de Moisés torna-se uma voz. As antigas teofanias (a nuvem, o fogo…), ainda muito semelhantes às dos outros povos, dão lugar, progressivamente, a uma voz. Algo de maravilhoso, que nós, hoje, já não conseguimos compreender, submersos por demasiadas vozes e demasiadas visões, mas que continua a fascinar-nos e a comover-nos e que, por vezes, se transforma em oração: quando reaprenderemos a escutar aquela voz diferente? E quem nos ensinará a reconhecê-la?
Samuel tem uma segunda ‘audição profética’ (“Quando Samuel viu Saul, o Senhor disse-lhe: «Este é o homem de quem te falei»: 9, 17) e, depois, convida Saul para a sua mesa, onde lhe reserva um tratamento especial, oferecendo-lhe para comer a melhor parte do animal que fora sacrificado (9, 24). Assim, entramos no coração do relato: “Ao romper da aurora … Saul levantou-se e saíram ele e Samuel para fora da cidade. Ao descerem para a periferia da cidade, Samuel disse a Saul: «Diz ao criado que vá adiante de nós.» Ele passou. «Mas tu, detém-te aqui, pois quero comunicar-te hoje o que disse o Senhor»” (9, 26-27). E na periferia da cidade, “Samuel tomou então um frasco de óleo, derramou-o sobre a cabeça de Saul e beijou-o, dizendo: «O Senhor ungiu-te príncipe sobre a sua herança»” (10, 1). Nos bairros periféricos acontecem coisas extraordinárias. É belíssima esta normalidade que rodeia a eleição de Saul, como se a Bíblia tivesse querido responder ao pedido de um rei consagrado, dessacralizando e normalizando o ambiente em que se desenrola a cena: duas jumentas, um criado, um almoço, um caminho de periferia. Como Moisés, Gedeão, Amós, os pescadores da Galileia, como Maria de Nazaré, que é visitada pelo anjo Gabriel na sua casa enquanto, provavelmente, estava a realizar as habituais tarefas domésticas. Para as teofanias, não há jugares mais aptos que um barco, uma cozinha, uma mata, uma viagem para trazer para casa as jumentas ou que uma travessia noturna dum rio, do deserto, da estrada para Damasco, de uma igrejinha arruinada nos arredores de Assis.
Saul retoma o caminho de casa mas, em Guibeá, “veio ao seu encontro um coro de profetas; o espírito do Senhor apoderou-se de Saul e ele pôs-se a profetizar no meio deles. Todos os que antes o haviam conhecido, vendo-o profetizar com os profetas, perguntavam uns aos outros: «Que aconteceu ao filho de Quis? Porventura também Saul está entre os profetas?»” (10, 10-12). Saul vive uma experiência de exaltação profética, semelhante àquela de que falam os Atos dos Apóstolos, no dia de Pentecostes (2,13); e também em Guibeá, como acontecerá, mil anos mais tarde, em Jerusalém (“Estão cheios de vinho doce”), quem observava a cena pensava que Saul estava fora de si.
O texto acabara de nos dizer algo de importante: “Logo que Saul voltou as costas e se separou de Samuel, Deus transformou-lhe o coração” (10, 9). O encontro com Samuel e a sua unção tinham mudado alguma coisa no íntimo de Saul, tinham-lhe mudado o coração. Isto é, tinha acontecido algo que lhe tinha mudado a pessoa, não só as suas emoções e os seus sentimentos. E quando a Bíblia nos quer exprimir os efeitos de uma mudança de coração, faz ‘profetizar’ os seus personagens, coloca-lhes dentro um entusiasmo profético. Associa-os, temporariamente, à vocação profética que, naquele humanismo, é a condição humana mais próxima de Deus – o que mostra a estima que a Bíblia tem pelos profetas.
Não somos todos profetas, nem todos temos a vocação de receber audições divinas ao ouvido da alma. Mas muitos – talvez todos – se estamos abertos à voz os profetas e da vida, podemos, pelo menos, fazer uma experiência de entusiasmo profético. Talvez no dia do casamento ou naquele em que, finalmente, compreendemos quem somos verdadeiramente, ou, quando ela partiu, compreendemos que era tudo e só amor, e começámos a entoar o cântico mais belo de um entusiasmo do espírito. Poucos momentos, mas infinitos.
Também aquela experiência de Saul durou ‘pouco tempo: “Saul acabou de profetizar e foi para o lugar alto” (10, 13). Mas a Bíblia conservou aquele breve momento extraordinário, também para nos recordar que a profecia que experimentou Saul, pode ser para todos. Também nós podemos esperar fazer algum pedaço de caminho em companhia do maravilhoso ‘coro de profetas’. Também nós podemos sair da casa para ir simplesmente para trabalhar e, nas periferias da cidade, encontrar uma vocação, uma incumbência, um destino.
baixa/descarrega o artigo em pdf