Profecia é história / 22 – A Bíblia pede para entrar nas suas histórias, escolhendo de que lado estar
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 03/11/2019
«Porque assim encontraram escrito na sua Lei: estabelecer acima de vós o rei (Dt 17, 15) e não uma rainha»
David Franco-Mendes, Il castigo di Atalia
A triste história da rainha Atália oferece-nos a oportunidade de refletir sobre muitas páginas suas (e da vivência humana) que não foram escritas pelas vítimas. E sobre a necessidade de salvar, antes de mais, as e os que não têm voz.
As comunidades ideais nascem, frequentemente, da obra e da palavra dos profetas. Movimentos carismáticos, congregações religiosas, mas também movimentos políticos, culturais, associações, nascem porque uma ou mais pessoas, com dons proféticos, as geraram e as fizeram crescer. À volta destas pessoas “especiais”, depois, reúnem-se outras pessoas, chamadas pela mesma voz, que reconhecem, nos fundadores, um papel diferente e único, e tendem a conformar-se às suas personalidades carismáticas. Estas comunidades fundadas por profetas não são, porém, as únicas comunidades ideais ou espirituais. Há outras que nascem à volta de um pacto e uma regra. São estas realidades coletivas que não são geradas por profetas, mas por uma regra, vivida e transmitida de geração em geração.
O movimento espiritual da segunda metade do século XX, conheceu quase exclusivamente comunidades fundadas por profetas, ao passo que, nos séculos anteriores, as comunidades espirituais se constituíam, mais habitualmente, à volta de regras. Aqui, a personalidade e o carisma do fundador eram importantes, mas muito mais o era a regra, porque permitia que, da personalidade do fundador, se passasse ao equilíbrio e à sustentabilidade da vida comunitária, a ponto de, frequentemente, as regras comunitárias serem tomadas de regras antigas, já existentes (beneditinos, agostinianos…). Nestas comunidades-regra, o modelo, a exemplaridade, não é formado pela pessoa do profeta, mas pela regra, que não coincide com a vida de ninguém, mas inspira ou modela a vida de todos. Quando um novo membro chega a estas comunidades, o pacto e a promessa consistem em conformar a sua vida à regra comunitária, não em imitar o fundador ou o líder carismático como, de facto, acontece nas comunidades-profeta. A história mostra-nos que as comunidades-regra são mais resilientes e duradouras que as comunidades-profeta.
«Atália, mãe de Acazias, ao ver seu filho morto, decidiu exterminar toda a descendência real. Joseba, porém, filha do rei Jorão e irmã de Acazias, tomou Joás, filho de Acazias, e livrou-o do massacre dos filhos do rei, escondendo-o, com a sua ama-de-leite, no quarto de dormir.
Ocultaram-no, assim, de Atália, de modo que pôde escapar à morte. Esteve seis anos escondido com Joseba no templo de YHWH, no tempo em que Atália reinava no país» (2Rs 11, 1-3). O segundo livro dos Reis, depois do ciclo do rei sanguinário Jeú, muda para o Reino do Sul (Judá) e mostra-nos uma rainha, sanguinária como Jezabel, que o texto hebraico (massorético) nos apresenta como sua mãe (8, 18). Atália, mulher da dinastia do Norte, interrompe a sucessão davídica em Judá. Esta é retomada graças a um menino salvo da morte por uma outra mulher. A grande história da salvação está dependurada no fragilíssimo fio de um menino – como Moisés, como o Emanuel, como Jesus. Este menino torna-se o objeto e o sujeito de uma insurreição contra a rainha Atália, orquestrada por Joiadá, um sacerdote do templo de Jerusalém.
A rainha Atália percebe que, no templo, está a acontecer algo de importante. Dirige-se para lá e compreende: «Atália rasgou as vestes, gritando: “Conspiração! Conspiração!”» (11, 14). O sacerdote Joiadá revela imediatamente as suas intenções. Manda os seus homens segui-la até sua casa: «Agarraram-na e ao chegarem ao palácio real, pelo caminho da entrada dos cavalos, ali a mataram» (11, 16).
Para a teologia e para a economia do relato, a história da sanguinária Atália conclui-se aqui. A ordem é restabelecida; Joás, um (alegado) sucessor de David, reina de novo em Jerusalém. A escola sacerdotal, que organizou a última versão do Livro dos Reis, alcançou o seu objetivo teológico e narrativo. Mas nós não nos podemos quedar aqui. Se queremos tentar um olhar menos ideológico sobre aqueles tristes séculos, demasiado longínquos, temos de escavar mais profundamente o texto.
Não são as vítimas a contar a história. Os desprezados, os escorraçados, os expulsos não conseguem dar a sua versão dos factos. No mundo antigo, não eram as mulheres a escrever os relatos de que eram protagonistas ou comparsas. E, se elas os tivessem escrito, ter-nos-iam contado coisas diversas, muito diferentes das que lemos. Porque, quando os homens contam histórias de poder, onde os protagonistas são as mulheres, quase sempre projetam nelas as suas próprias dinâmicas, doenças, palavras que as mulheres reais não gostam e não querem, a não ser quando obrigadas a serem como os homens. As mulheres que tiveram e têm papéis de poder e de responsabilidade, em organizações essencialmente masculinas, conhecem estas típicas resistência e dor que, por vezes, se torna tão intensa e longa a ponto de as levar a deixar aqueles papéis de comando. Ainda hoje, nas instituições e nas empresas, existem muito poucas mulheres, não só porque elas não conseguem chegar às funções de comando, administradas e geridas por homens; são poucas porque algumas, que poderiam, não querem chegar a esses lugares estranhos e hostis, e porque algumas, entre as poucas que lá chegaram, fogem por causa da muita dor. As boas batalhas do feminismo, de hoje e de amanhã, deverão concentrar-se não só nas quotas de mulheres, nos lugares de poder, mas na transformação antropológica e relacional destes lugares, pensados e habitados só por homens, em lugares vivíveis e possíveis também para as mulheres. Este trabalho, que requer um grande investimento cultural e teórico nas ciências económicas e administrativas, está a tornar-se cada dia mais urgente.
Antes de mais, o nome: Atália significa “YHWH é exaltado”. Diferentemente de Jezabel, Atália não é uma idólatra. Portanto, não é difícil apurar que a estrutura narrativa da história de Atália é construída artificialmente para a tornar muito semelhante à de sua “mãe”, Jezabel. É um relato “ao espelho”. Como Jezabel tinha exterminado os profetas de YHWH, Atália extermina a família real; ali, um profeta, Abdias tinha escondido e salvo cem profetas do extermínio de Jezabel (1Rs 18, 13), aqui, uma mulher (Joseba) escondeu e salvou um menino do massacre de Atália; Jezabel inclinou-se à janela para ver o novo rei usurpador (Jeú) e é morta, Atália aparece no templo (“olhou”) e, também ela, é morta. Portanto, não estaremos a forçar muito o sentido do texto bíblico se dissermos que a crueldade de Atália é, essencialmente, uma crueldade “teológica”, uma maldade construída literariamente por quem tinha como intenção principal restabelecer a continuidade davídica, fechando o parêntesis representado pela rainha estrangeira do Norte, da família de Omeri, inimiga. Atália era uma mulher do norte, tornada rainha em consequência de alianças políticas. Foi a única mulher a ser rainha, na história do Reino de Israel. Era viúva e o seu filho tinha sido assassinado por um rei usurpador do Norte. Nós nunca poderemos imaginar como poderia ser a vida de uma mulher, rainha e viúva, num mundo de homens. Quantas e quais pressões, ameaças, os olhares violentos, as chantagens. Se aquelas páginas dos Livros dos Reis tivessem sido escritas por Atália ou alguma irmã sua, talvez nos tivessem relatado que Atália não matou nenhum menino, porque o massacre dos inocentes são uma especialidade típica dos homens e das suas fantasias literárias.
A Bíblia, sabemo-lo e dissemo-lo muitas vezes, conhece páginas esplêndidas sobre as mulheres. A história de Atália, porém, não está entre elas. Aquela rainha do Norte foi, com toda a probabilidade, eliminada por uma conjura dos sacerdotes do templo – e não é de excluir que aquele grito “conspiração, conspiração” sejam as poucas palavras originais conservadas no texto. Atália era uma pessoa incómoda em Judá, porque originária do Norte e ainda mais porque mulher. Também pode dar-se que Atália tenha mudado e se tenha pervertido pelo poder, a ponto de se tornar como os reis homens e, assim, ordenar o massacre dos inocentes. Não o creio, e penso até que devemos ler esta história de Atália com a mesma pietas com que se lê a história de uma vítima, não com o desdém com que lemos as vicissitudes dos carrascos. Porque a Bíblia não é um livro de relatos históricos. É um texto que nos pede sempre para entrar nas histórias que lemos, fazer as nossas escolhas, dizer de que lado queremos estar. Geralmente, quase todos estão da parte dos redatores do texto e, por isso, com o sacerdote Joiadá e, com ele, condenamos Atália, a sanguinária. Quase todos.
Jean Racine, na sua esplêndida tragédia Athalie (1691), faz aparecer a Atália, em sonho, o pequeno Joás, que a trespassa com uma espada. Um seu conselheiro, sabendo do sonho, impele Atália a matar o menino. Mas ela chama o pequeno, fala com ele, fica impressionada com a sua inteligência e não o mata. Aquela clemência, aquela pietas de mãe em relação com uma criança, decretou, mais tarde, a sua morte. Por vezes, são os artistas, sobretudo os maiores, a dar à Bíblia e aos seus personagens a humanidade que os seus redatores nem sempre possuem. E, se queremos salvar a Bíblia das suas páginas menos luminosas e, por vezes, escuríssimas, devemos lê-la na companhia dos artistas que, sem moralismos, a ajudaram a tornar-se melhor.
Antes e depois da morte de Atalia, o sacerdote Joiadá celebra a aliança restabelecida e fá-lo em duas fases. Antes da morte de Atália, «Joiadá trouxe para fora o filho do rei, pôs-lhe o diadema na cabeça e entregou-lhe o documento da aliança. Proclamaram-no rei, ungiram-no e todos o aplaudiram, gritando: “Viva o rei!”» (11, 12). Ao menino, consagrado rei, é entregue o “testemunho” (edut), talvez uma cópia da Lei de Moisés, o sacramento da aliança e da promessa. Na cena não estão os profetas, nem está Eliseu; tudo se desenrola no templo, sob a bandeira da aliança.
Na Bíblia, os momentos fundacionais são, frequentemente, marcados pela ação dos profetas. Por vezes, porém, como neste caso, é um pacto que consagra algumas passagens determinantes da vida do povo e das comunidades, a começar pela Aliança com YHWH, celebrada por Abraão e por Moisés. Depois, após o assassinato de Atália, «Joiadá fez uma aliança com YHWH, o rei e o povo, segundo a qual o povo devia ser o povo do Senhor. Fez também uma aliança entre o rei e o povo» (11, 17). O novo pacto está concluido. E este pacto, para o escritor, é mais importamte que o sangue de Atália, é mais importante que tudo.
«Todo o povo da terra se alegrou e a cidade ficou em paz. Atália tinha sido morta à espada no palácio real» (11, 20). A cidade «ficou em paz». Mas não podemos «ficar em paz» diante de uma mulher «morta à espada no palácio real». Não nos bastam a teologia e a economia do relato. Temos o dever conseguir salvar Atália. Porque, se não fazemos este exercício espiritual enquanto lemos estas páginas, dificilmente conseguiremos salvar as muitas Atálias que continuam a ser condenadas, apenas porque mulheres, apenas porque vítimas.
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