A aurora da meia-noite

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A aurora da meia-noite / 10 – Reconhecemos os profetas quando se revelam mendicantes de luz

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 25/06/2017

170625 Geremia 10 rid«O Rabi Mendel, um dia, diante do seu mestre, gloriou-se de ver, à noite, o anjo que embrulhava a luz ao chegar a escuridão, e, de manhã, o anjo que embrulhava a escuridão, ao chegar a luz. “Sim”, disse Rabi Elimelec, “também eu o vi, quando era jovem. Mais tarde, estas coisas já não se veem”.»

Martin Buber, Storie e leggende Chassidiche   [Histórias e lendas Chassídicas]

As experiências mais profundas e íntimas são preciosas porque geradas e vividas no segredo impronunciável do coração. Dão-nos uma nova profundidade, fazem-nos vislumbrar uma nova interioridade que não pensávamos possuir quando iniciávamos a travessia do deserto, antes da luta noturna, quando nos tínhamos levantado de manhã cedo para ir, com a lenha e com o filho, para aquele monte tremendo. E, em contrapartida, atravessámos o deserto, combatemos com um anjo, subimos ao monte Moriá e, por vezes, encontrámo-nos com um filho dado, com um nome novo, numa terra prometida ou vimo-la de longe, enquanto aí entravam os nossos filhos. Nas experiências decisivas, ouvimos sons e vozes inarticuladas, que nos escaldam e queimam como o sol, nos dessedentam e banham como a água, que nos tocam, nos acariciam, nos ferem. Mas não falam.

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Os profetas cantam-nos a sua intimidade e as suas experiências mais íntimas, para fazer falar também as nossas. Dão-nos os seus diálogos viscerais, as palavras das solidões, dos combates, das perguntas quase sempre sem respostas. São os grandes especialistas das palavras das profundezas do homem e das profundezas de Deus, dos silêncios do homem e dos silêncios de Deus. Muitos não acreditam que haja um Deus nalguma parte “sobre o sol” e que nos espera no fim da corrida; mas não podemos negar que, “debaixo do sol”, existiram e existem pessoas, os profetas, que fizeram falar Deus no coração do homem. Não podemos negar as aspas de Deus que são os profetas, porque é um facto totalmente humano, totalmente carne e sangue. Podemos discutir o que seja aquele “Deus” de que nos falam e que fazem falar, mas é, sem dúvida, uma realidade concreta, vital, por nada abstrata. Quando as religiões perdem o contacto com o Deus dos profetas, transformam-se em práticas que celebram um Deus abstrato que deixou de falar, mudo como os ídolos.

«Ai de mim, ó mãe, porque me deste à luz! Sou um homem de discórdia e de polémica para toda a terra! Nunca emprestei e ninguém me emprestou; no entanto, todos me maldizem» (Jeremias 15, 10).

Mãe, mamã(e). Não se nomeia o nome da mãe em vão. Se e quando o fazemos, violamos o primeiro mandamento das relações primárias. Desde crianças, “mamã” é a palavra da vida, a que faz viver. Como adultos, e quando já não existe, “mamã” aparece quase sempre acompanhada por “minha” . Mesmo quando surge espontânea, perante uma emoção, se pararmos um momento e olharmos de perto aquele “mãezinha”, damo-nos conta que exprime um sentimento visceral, como quem nos protegeu dentro e fora do seio. Por vezes, porém, “mãezinha” é a última palavra que nos resta no odre das palavras da dor e da angústia. No cárcere, entre os condenados à morte, no último leito da última viagem, também quando mais uma entrevista de emprego correu mal, quando lemos o relatório que gostaríamos de não ler…: “mãezinha!”.

Também este cântico-oração de Jeremias começa em nome da mãe, talvez para voltar à origem do seu nome e da sua vocação. Não começa a sua confissão com: “Meu Deus”, mas chamando a sua mãe. Regressa ao “nascido de mulher”, como todos. Nos tempos das grandes crises, volta-se, naturalmente, à mãe, à procura da origem mais profunda e verdadeira na sua história. Por vezes, também se volta à casa materna, aos lugares da primeira vida, donde aquela voz nos levou para um destino que já não se compreende. Quando a segunda casa parece morrer e evaporar-se no sonho a na vanitas, volta-se à casa da mãe para se encontrar com algo de mais verdadeiro, à procura de uma origem mais radical e verdadeira que a vocacional. No dia da vocação, Jeremias sente que as duas origens – natural e profética – eram uma. («Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei»: 1, 5). Agora, as duas origens separam-se, e a profética desaparece. E o cordão umbilical pode tornar-se o primeiro fio para relançar uma vida desfiada.

Os profetas são homens e mulheres como nós; sempre o são, mas são-no, sobretudo, quando o seu sol diferente se empalidece e ficam terrestres filhos da terra, irmãos e irmãs do adam. Nem sempre e nem todos conseguem seguir e compreender os profetas quando emprestam a sua boca a YHWH, mas todos os podem compreender quando, nus e pobres, se tornam mendicantes de luz, de vida, de mãe, da origem, como nós. Nestes momentos, tomam-nos pela mão e ensinam-nos a profissão de viver debaixo do céu de todos.

Quando escreve e lê, publicamente, estes versículos, Jeremias é um homem adulto. Tinha gasto os melhores anos procurando permanecer fiel à sua vocação, tinha realizado a sua missão com zelo e generosidade («Não te servi com fidelidade? Não intercedi em favor do inimigo junto de ti?: 15, 11). Seguir honestamente o seu chamamento fê-lo viver uma vida de solidão («Nunca me sentei entre os escarnecedores, para com eles me divertir. Forçado pela tua mão, sentei-me solitário»: 15, 17), escarnecido e odiado pelos seus conterrâneos e familiares, amaldiçoado  como e mais que um usurário ou um devedor insolvente. Teve de anunciar ao seu povo um destino de ruina, combater os falsos profetas, consoladores das ilusões. Agora, já não compreende a sua sorte, que lhe aparece triste e profundamente injusta, e combate YHWH a ponto de o acusar de traição: «Serás para mim como um riacho enganador de água inconstante?» (15, 18). Palavras que nos poderiam perturbar ou parecer improváveis e dissonantes da Bíblia se não conhecêssemos Job, o vau noturno de Jaboc, se não conhecêssemos os profetas, a vida, a fé que cantam os seus versos mais altos no campo de batalha, quando lutam com os ideais maiores que se transformaram em inimigos. E, assim, também nesta confissão de Jeremias, no auge da sua luta, encontramos um dos seus versículos mais belos: «Porque se tornou perpétua a minha dor, e não cicatriza a minha chaga, rebelde ao tratamento?» (15, 18).

Estamos perante um dos vértices da autorrevelação da vocação profética e, portanto, de toda a vocação humana autêntica – os livros dos profetas são extraordinários, porque nos mostram um rosto diferente de Deus, mas são-no também porque nos fazem conhecer um rosto esplêndido do homem: a sua capacidade de responder a uma vocação.

Aqui, Jeremias diz-nos que a vocação é uma ferida sempre aberta, que não cicatriza. Diz-nos que a voz boa, que um dia nos revela o que já éramos desde sempre, é também um bisturi que, para nos abrir a nossa natureza mais verdadeira, para nos revelar a nós mesmos, incide profundamente na nossa alma e na nossa carne. É uma circuncisão do coração que, no entanto, se realiza sob o efeito anestésico da luz amorosa que chama e seduz. Depois, seguem-se anos em que o trabalho da voz-cirurgião continua e aprofunda, mesmo se tudo é apenas imensa felicidade: «A tua palavra é a minha alegria, e as delícias do meu coração» (15, 16). Mas o efeito da anestesia esgota-se progressivamente e, um dia, encontramo-nos apenas com a ferida sangrante, sem compreender o sentido da dor e da ferida. Descobre-se apenas uma ferida inútil, um significante sem significado. Sinal mudo. A abertura da alma que, durante muitos anos, fora lugar de encontro e de diálogo com a voz, aparece apenas um corte que dói e que não sara.

É esta transformação da primeira abertura em ferida que marca o início da fase mais fecunda de toda a vocação, da misteriosa e típica produtividade, preciosa e raríssima. O profeta é uma ferida que fala, um espinho perenemente cravado na própria carne, e cada um tem o seu sinal marcado que lhe permite en-sinar a palava. Os falsos profetas, pelo contrário, nunca conheceram o tempo da anestesia ou continuaram a usar os opiáceos para nunca chegarem ao verdadeiro tempo da ferida.

Bem no centro da sua luta com YHWH, Jeremias tem um novo encontro com a primeira voz: «Tornar-te-ei, para este povo, como sólida muralha de bronze. Combaterão contra ti, mas não conseguirão vencer-te, porque Eu estarei a teu lado para te proteger e salvar» (15, 20). Se voltarmos ao início do seu livro, apercebemo-nos que, aqui, Jeremias re-escuta as mesmas palavras do primeiro dia (1, 18-19). Por vezes, nas muitas agonias da vida adulta, pode acontecer re-escutar as palavras do chamamento da juventude mas, aquelas palavras re-escutadas não são já anestésico nem fazem cicatrizar a ferida – embora existam muitas pessoas com autêntica vocação profética que se bloqueiam porque quando a anestesia perdeu o seu efeito, passam a vida à espera de bálsamo para curar as próprias feridas, esquecendo-se de curar as feridas dos outros, onde se encontra o único bálsamo para tornar suportáveis e fecundas as próprias, que permanecem sempre abertas.

Apesar desta nova epifania interior, a ferida de Jeremias continuará a sangrar, até ao fim, e gerará alguns dos cânticos mais belos e sublimes da Bíblia. A ferida de Jeremias não podia cicatrizar-se porque, simplesmente, aquela ferida era ele. Se se cicatrizasse, se tivesse usado os diálogos com YHWH para se consolar e se curar, não teríamos, hoje, palavras diferentes com que gritar e rezar nos nossos combates fecundos, não teríamos as suas páginas maiores, não teríamos o seu livro. E não teríamos compreendido a lei fundamental das vocações mais belas: que as fascinantes luzes da infância do espírito são uma anestesia amorosa enquanto se realiza a operação mais importante da vida. Que a ferida é apenas a forma que toma a primeira luz na idade adulta. E que daquela ferida que fala florescerão as nossas palavras mais bonitas e verdadeiras.

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A aurora da meia-noite / 10 – Reconhecemos os profetas quando se revelam mendicantes de luz

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 25/06/2017

170625 Geremia 10 rid«O Rabi Mendel, um dia, diante do seu mestre, gloriou-se de ver, à noite, o anjo que embrulhava a luz ao chegar a escuridão, e, de manhã, o anjo que embrulhava a escuridão, ao chegar a luz. “Sim”, disse Rabi Elimelec, “também eu o vi, quando era jovem. Mais tarde, estas coisas já não se veem”.»

Martin Buber, Storie e leggende Chassidiche   [Histórias e lendas Chassídicas]

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A ferida viva que sabe falar

A aurora da meia-noite / 10 – Reconhecemos os profetas quando se revelam mendicantes de luz por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 25/06/2017 «O Rabi Mendel, um dia, diante do seu mestre, gloriou-se de ver, à noite, o anjo que embrulhava a luz ao chegar a escuridão...
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A aurora da meia-noite / 9 – A semente rompe a crosta, as pétalas dão cor às flores

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/06/2017

170618 Geremia 9 rid«Quase todas as ideias lançadas por Jeremias nesta época ligam-se à lei; quase todas as imagens usadas por ele são tiradas do mesmo património, já secular, da profecia bíblica. Tudo isto não é mais que um exercício, uma aprendizagem»

André Neher, Jeremias

«YHWH ordenou-me: “Vai comprar uma faixa de linho e cinge com ela a tua cintura, mas não a metas na água”. E eu comprei a faixa, de acordo com a palavra de YHWH, e com ela me cingi. Foi-me dirigida, pela segunda vez, a palavra de YHWH: “Toma a faixa que compraste (…) e encaminha-te para as margens do Eufrates, e esconde-a ali na fenda de uma rocha» (Jeremias 13, 1-4).

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Vai. Os profetas recebem ordens de Deus, precisas, pormenorizadas, meticulosas. Palavras que chamam, pelo nome, objetos, rios, pedras. São instruções para desenvolverem uma missão especial, um mapa para uma viagem num território inexplorado, uma execução testamentária. Um mandato para fazer, não só para dizer: a boca dos profetas é o seu corpo. Falam dizendo, falam fazendo. Falam com a boca, com as mãos, com os pés, com as pernas, com a coluna.

A experiência da verdade da palavra de quem fala e a capacidade de a distinguir das não-verdades dos falsos profetas é, porém, um processo lento e, frequentemente, muito longo, que, por vezes, pode durar anos, décadas, até toda a vida de um profeta. O florescimento destas vocações segue um caminho marcado por fases precisas, que o estudo da Bíblia e da vida nos pode ensinar a conhecer e a reconhecer.

No princípio, há uma comunidade onde o profeta nasce, onde convivem más e boas pessoas, verdadeiros e falsos profetas. As comunidades verdadeiras são sempre mistas e espúrias. Uma vocação profética só pode crescer e desenvolver-se dentro de uma ou mais comunidades, a partir da primeira comunidade familiar. Embora nada mais do que a profecia diga individualidade e diálogo pessoal entre dois “tu”, a profecia é também uma prática e, por isso, um assunto social e comunitário. Os profetas são enviados a comunidades concretas, são incarnados na terra e na história de um lugar de um determinado tempo; as suas críticas, cuidados, perguntas estão encastoadas na vivência quotidiana da sua gente.

No interior desta primeira comunidade, realiza-se o primeiro chamamento, a vocação, que é o acontecimento fundamental e absolutamente individual. Porém, após o chamamento, encontramos de novo a comunidade, umas vezes a primeira, outras vezes uma nova comunidade profética, onde o jovem se forma, procura um ou mais mestres, companheiros de vocação. A ideia que os profetas sejam homens solitários, que vêm ao mundo já formados e perfeitos para desenvolver a sua missão ou amestrados apenas por Deus no seu íntimo, pertence às representações artísticas, não à realidade histórica. Na verdadeira formação dos profetas, as vozes e as palavras dos Batistas e dos Ananias são aliadas necessárias da voz de YHWH. Nasce-se profeta, torna-se profeta aprendendo, no tempo, a ser o que se era já no seio materno.

Esta dimensão temporal e diacrónica da vocação profética explica porque os primeiros capítulos do livro de Jeremias não sejam muito originais, apesar de alguns lampejos luminosíssimos de génio. Van Gogh aprendeu a desenhar: no princípio, era já Van Gogh por vocação, mas ainda não conhecia as técnicas da pintura. Nas suas primeiras pinceladas já se antevia o grande génio, mas tivemos de esperar anos, para ver as suas obras de arte. Também Jeremias aprendeu a ser profeta, porque a profecia é carne e sangue, e vive com as suas leis e tempos. E, assim, na primeira fase da sua atividade de jovem profeta, Jeremias começa a conhecer os grandes profetas bíblicos que o tinham precedido, estuda a Torá, a tradição da Aliança, as histórias dos Patriarcas. O jovem profeta procura a sua própria identidade, e começa a descobrir o seu perfil profético específico, que encontrará na maturidade. Então, para compreender e tocar em profundidade os livros proféticos, que se desenrolaram e escreveram no tempo, devemos aprender a esperar, temos de acompanhar o profeta no seu crescimento. A palavra cresce juntamente aos seus escritores, e nós crescemos juntamente aos profetas se sabemos esperá-los. E escritura é mãe, a escritura é esposa; mas a escritura também é filha de quem a sabe esperar enquanto cresce e lhe coloca as perguntas no momento próprio, nem antes nem depois – muitas vezes, não encontramos as respostas na Bíblia porque as fazemos no momento (kairos) errado, fora do tempo.

A charneira entre a fase juvenil e a da maturidade de Jeremias (e dos profetas, em geral), é representada pelo conflito e pela emancipação da primeira comunidade. De facto, no desenvolvimento da sua vocação, Jeremias começa a duvidar, não só da sua família (capítulos 11 e 12), mas também da sua própria comunidade profética. O povo é oprimido pela seca e pela fome, e Jeremias pede a Deus: «Ah! Senhor meu Deus! Os profetas dizem-lhes: “A espada não vos atingirá, não passareis fome; antes, dar-vos-ei paz e segurança neste lugar”» (14, 13). Não estamos ainda na verdadeira luta que Jeremias travará contra os falsos profetas, nos capítulos seguintes da sua vida e do seu livro. Pelo contrário, estas suas palavras sugerem-nos um jovem profeta ainda confuso, que se encontra dentro da comunidade onde cresceu e se preparou e na qual se fia, mas pede a Deus explicações sobre a luta interior que começa a sentir. A luta entre as palavras que lhe nascem dentro e que ouve pronunciar pelos outros profetas.

Esta etapa é uma etapa crucial das vocações proféticas, sobretudo das maiores – como é a de Jeremias. Podemos compreendê-la se tivermos presente que, em Israel, a profecia era também uma espécie de profissão. Eram centenas, talvez milhares, os nabi (profetas) que giravam pelo país, a contar visões, realizando gestos bizarros e profetizando cenários sombrios e apocalípticos. Tinham um vestuário típico (ex.: o manto) e eram facilmente reconhecidos no meio do povo e em redor do templo. Nem todos estes profetas eram “falsos” ou impostores. A maior parte eram profetas por profissão, que se limitavam a repetir os poucos versículos de Isaías ou de Amós e, com base no seu conhecimento da sabedoria e da tradição profética, conseguiam também dar algum bom conselho ou, até mesmo, encontrar algum ouvinte ou discípulo. Na primeira fase da sua vida, Jeremias terá sido um destes nabi, misturado entre os muitos de quem não temos qualquer sinal. Um dia, porém, aquele profeta, já diferente, começa a compreender que as suas palavras não são como as dos seus “colegas”, porque a voz que lhe fala diz coisas diferentes das que ouve dizer pelos outros: “Mas o Senhor replicou: «Esses profetas falsamente vaticinam em meu nome: não os enviei, não lhes dei ordens, não lhes falei. Visões mentirosas, oráculos vãos, fantasias e enganos do seu coração, eis o que profetizam!»” (14, 14). Jeremias adquire consciência do seu ser profeta diferente. Uma diversidade que, para se projetar com toda a sua força, recorre àquele conjunto de palavras sintetizado na expressão falsa profecia. Sob o ponto de vista histórico, é difícil imaginar que todos os nabi do tempo de Jeremias fossem falsos profetas, inventores e cantores de mentiras, embora Jeremias o escreva. Como em todas as profissões, os bons e os maus profetas terão vivido lado a lado, mesmo no seu tempo.
Aqui, porém, a quest

Aqui, porém, a questão é diferente e muito importante. Não é apenas a Lei a desempenhar a função de pedagogo (São Paulo); ela deve deixar lugar ao Espírito, quando se se torna adultos. Também a comunidade profética é um pedagogo e, se não sabe desaparecer quando a criança atinge a maturidade, impede os jovens de desabrochar. Ao mesmo tempo, a comunidade não pode deixar de combater este desabrochar, como a semente que se opõe à terra que a tinha guardado, que, se não for forçada e furada não produz espiga nem fruto. Há um dia, um momento, em que quem recebeu a vocação profética pode sentir a urgência de deixar a comunidade dos profetas de profissão para se tornar algo de diferente que nem sequer ele/ela conhece ainda. Inicia-se uma nova etapa, totalmente diferente e, quase sempre, só. Este “voo” toma sempre as formas de um julgamento duro nas relações com a comunidade, que pode assumir as mesmas palavras de Jeremias: falsidade e mentira. Na história, nem sempre a falsidade e a mentira da primeira comunidade são reais, mas são reais na experiência subjetiva de quem deve iniciar aquele voo louco.

É assim que nascem as grandes inovações, mesmo as espirituais. Uma destruição criadora que, na experiência, ganha a forma de “destruição” da profecia dos outros para poder “criar” a própria.

Todos os outros colegas profetas de Jeremias não terão sentido nenhuma necessidade de destruir as palavras dos outros, simplesmente porque não tinham nada a criar. A grande inovação profética tem necessidade dos escombros da tradição para construir a própria catedral. Esta é uma outra analogia entre profecia e carisma: ambas inovam “destruindo” as suas instituições e as suas palavras. Mas – e este é um problema decisivo – a par dum verdadeiro profeta que destrói para criar, existem mil falsos ou patifes que destroem e basta.

Quando, numa comunidade profética, um jovem entra em conflito com as palavras dos outros, a ponto de as sentir e chamar “falsas” e “mentira”, é possível que nos encontremos diante do desabrochar de uma vocação profética autêntica que, para poder desenvolver o seu trabalho e a sua missão de salvação não pode deixar de destruir e, depois, criar, ferir a terra para poder florir, conforme a lei inscrita no próprio códice genético espiritual.

Muitas vocações não desabrocham e estragam-se apenas porque não se lhe dá oportunidade de gerar. A comunidade originária não consegue ver a bênção na ferida da sua terra; não pode vê-la. Mas o profeta também pode desabrochar se consegue permanecer dentro deste conflito doloroso até a habitá-lo, se não cede à tentação de voltar à comunidade dos nabi normais e inócuos. Muitos profetas não conseguem florescer porque persistir na destruição criadora é muito doloroso: «Derramem os meus olhos lágrimas noite e dia, sem descanso» (14, 17). Mas, todas as vezes que uma vocação morre soterrada, pétalas coloridíssimas desaparecem do floreio da terra.

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A aurora da meia-noite / 9 – A semente rompe a crosta, as pétalas dão cor às flores

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 18/06/2017

170618 Geremia 9 rid«Quase todas as ideias lançadas por Jeremias nesta época ligam-se à lei; quase todas as imagens usadas por ele são tiradas do mesmo património, já secular, da profecia bíblica. Tudo isto não é mais que um exercício, uma aprendizagem»

André Neher, Jeremias

«YHWH ordenou-me: “Vai comprar uma faixa de linho e cinge com ela a tua cintura, mas não a metas na água”. E eu comprei a faixa, de acordo com a palavra de YHWH, e com ela me cingi. Foi-me dirigida, pela segunda vez, a palavra de YHWH: “Toma a faixa que compraste (…) e encaminha-te para as margens do Eufrates, e esconde-a ali na fenda de uma rocha» (Jeremias 13, 1-4).

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Só a terra ferida gera

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A aurora da meia-noite / 8 – As comunidades que matam os seus profetas ainda ingénuos, morrem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/06/2017

170611 Geremia 8 rid«Deus não se revela ao profeta, como um abstrato absoluto, mas como relação íntima e pessoal»

Abraham Heschel, "Il messaggio dei profeti"

As saudades boas, as capazes de ainda nos falar, são apenas as saudades do futuro, as que sabem lançar o olhar para o presente e para o futuro. Não se regenera uma relação de amor voltando às palavras que ela nos dizia nos tempos felizes, mas sonhando e dizendo palavras de amor que nunca tínhamos dito. Há uma reciprocidade vital e essencial entre o passado e o presente. A promessa da origem dá sentido e verdade às esperanças nos tempos dos exílios e dos desertos; e o cumprimento das promessas de ontem, no hoje, diz-nos que não seguimos uma ilusão.

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«Palavra que o Senhor dirigiu a Jeremias, dizendo: “Escuta as palavras desta aliança e transmite-as aos homens de Judá e aos habitantes de Jerusalém”. (…) “Escutai a minha voz e fazei todas as coisas que vos mando. Então sereis o meu povo, e Eu serei o vosso Deus. Então, ratificarei o juramento que fiz a vossos pais, de lhes entregar uma terra onde corre leite e mel, como hoje se vê”. E eu respondi: “Assim seja, Senhor!”» (Jeremias 11, 1-5). Jeremias é o guardião da memória da Aliança. Porém, uma memória que tem, como ponto de partida, o presente: «Hoje é realidade». A qualidade da vida do amanhã está inscrita na qualidade da vida do presente: nas suas fidelidades-infidelidades, nas suas verdades-ilusões. Os profetas não inventam o futuro, simplesmente o veem já no presente, graças aos seus olhos diferentes. E o presente de Jerusalém é a rotura da Aliança: «Eles, porém, não a escutaram, não atenderam, seguindo obstinadamente as más inclinações dos seus corações» (11, 8).

No coração da grande profecia está encastoada uma pérola de valor inestimável. Se a vida é vivida como vocação – religiosa, civil, artística – nem sempre somos livres na relação com as nossas palavras. A liberdade que experimentamos em 90 ou talvez 99% das nossas palavras, que nos permite atenuar, apagar, adocicar, mitigar as nossas palavras sem trair a sua (e a nossa) verdade, desaparece quando nos encontramos frente a algumas raríssimas palavras, diferentes e especiais. As que devem ser pronunciadas exatamente no único modo possível, sem modificar uma vogal que seja, porque saem da alma já perfeitas e nós podemos e devemos, simplesmente, dizê-las como nos chegam a nós – o primeiro “sim”, o último, a frase precisíssima da qual dependem a dignidade de uma pessoa, a verdade de uma relação, a fidelidade à nossa história, a não-vergonha do nosso coração. Frases e palavras onde as vírgulas contam tanto como os verbos e os adjetivos. Estas palavras diferentes e especiais têm apenas um modo de serem pronunciadas e, se o erramos, erramos tudo; palavras que morrem ao serem transformadas em tagarelice. São as palavras que valem muito, apenas se conseguimos não modificá-las quando a pietas humana por quem temos em frente ou por nós mesmos quereria fazê-lo; e que não valem nada se – por qualquer razão, mesmo as mais nobres e humanas – as corrigimos.

Na vida dos profetas, onde encontramos o arquétipo de toda a vocação autêntica, estas palavras não são raras, como na nossa, porque, muito mais frequentemente que nós, vivem momentos em que não podem fazer outra coisa que obedecer à palavra, às palavras, e, depois, dizê-las. Muitas destas palavras estão guardadas na Bíblia e, por isso, chegaram até nós, para nos ajudar a dizer as nossas poucas palavras especiais e diferentes, que nos esperam, fiéis e pontuais, nas encruzilhadas decisivas da nossa vida.

A partir desta misteriosa relação entre os profetas e a palavra, é possível intuir algo de uma frase forte e tremenda como esta: «O Senhor disse-me: “Tu, pois, não intercedas por este povo, não rogues, não supliques por ele, porque no tempo da sua desgraça, quando clamarem por mim, Eu não os ouvirei”» (11, 14).

Jeremias não é Abraão que dialoga com Deus e intercede junto dele para evitar a destruição de Sodoma (Génesis 18). Abraão, o primeiro Patriarca, leva a Elohim a voz do povo, é o vértice de uma pirâmide que, da terra, se eleva até Deus. O profeta, pelo contrário, não tem a vocação de falar a Deus do povo, mas a de falar de Deus ao povo. A sua voz é o vértice de uma outra pirâmide que tem a base no céu e se debruça para a terra. Deve interceder junto do povo para que salve Deus: é este o sentido profundo da sua polémica anti-idolátrica. Todo o profeta é isto: uma voz que, do “céu” se debruça para a terra. O seu corpo é todo terra, como qualquer homem e qualquer mulher, mas a sua voz não lhe pertence. É o seu corpo, as suas carnes, o lugar onde se encontram céu e terra, onde se explicam e se consumam a sua vocação, os seus sofrimentos, as suas perseguições. «Os homens de Anatót atentaram contra a minha vida e dizem-me: “cessa de proclamar oráculos em nome do Senhor, se não queres morrer às nossas mãos”» (11, 21).

É a primeira vez que encontramos Jeremias em perigo de morte, por uma conjura contra a sua pessoa orquestrada pelos seus conterrâneos, que também envolve a sua família: «O Senhor disse-me: “Os teus próprios irmãos e a tua família, até esses são desleais para contigo; também eles te caluniam pelas costas. Não te fies neles, mesmo que te dirijam palavras amigas”» (12, 6). Um profeta é desprezado mesmo na sua pátria, em sua casa, entre os seus irmãos. Dentro da sua comunidade. É dali que partem, quase sempre, as conjuras para o eliminar. Jeremias ouve, da parte de Deus, para não se fiar, nem sequer nos parentes mais chegados, para não ouvir as suas palavras (que parecem) boas.

Há uma razão específica, contingente, por detrás deste episódio da vida do profeta, que talvez remonte ao início da sua atividade. O principal crime de que é acusado pelo seu povo era a sua pregação contra o templo, a sua crítica radical aos sacrifícios que ali se realizavam e, sobretudo, à ideologia real do templo e às suas ilusões de salvação («Acaso os teus sacrifícios e as carnes imoladas afastarão de ti as tuas desgraças, para que te glories?»: 11, 15). A família de Jeremias era da estirpe sacerdotal, e a sua crítica feria-lhe a identidade profunda e o papel social.

Mas esta conjura contém uma mensagem de alcance universal. A conjura pode ser uma reação natural contra quem desmascara uma ideologia muito enraizada no povo, e o faz em nome duma autoridade e duma investidura diferente das institucionais. Nunca esqueçamos que os profetas recebem a sua autoridade diretamente, que não é mediada nem ratificada por nenhuma instituição hierárquica. A sua legitimidade moral e espiritual é, por isso, sempre controversa, parcial e imperfeita, e a sua casa está sempre em terrenos que as autoridades consideram abusivos para, depois, podê-la demolir.

Jeremias nasceu e cresceu numa família sacerdotal; é de estirpe sacerdotal e encontra-se, por vocação, a criticar radicalmente a ideologia produzida precisamente pela sua família. É este o destino dos profetas que são chamados a profetizar dentro da comunidade-fé em que cresceram e viveram, que devem – por missão – criticar, pública e duramente, a ideologia gerada, dia após dia, pelos ideais e pela fé da própria comunidade. Jonas foi mandado por Deus a profetizar em Nínive, uma cidade estrangeira. Jeremias, homem de Anatot, profetiza em Anatot.

A Bíblia conhece bem a fraternidade homicida (a de Caim, mas também a dos irmãos de José), como também sabe muito bem que as ideologias-idolatrias são mais fortes que os laços de sangue. Quanto, mesmo em boa-fé, somos capturados por uma ideologia, esta torna-se um senhor tão impiedoso a ponto de poder mandar-nos matar irmãos, filhos, pais. A ideologia-ídolo está sempre à procura de novas vítimas sacrificiais.

No princípio, Jeremias não se apercebe da conjura e, por isso, tinha acreditado nas palavras dos seus amigos/irmãos: «E eu, como manso cordeiro conduzido ao matadouro, ignorava as maquinações tramadas contra mim, dizendo: “Destruamos a árvore no seu vigor; arranquemo-la da terra dos vivos, que o seu nome caia no esquecimento”» (11, 19). Esta primeira mansidão não era uma virtude, mas apenas inexperiência e ignorância. Um dia, porém, Deus revela-lhe a intriga homicida e começa uma nova etapa da sua missão profética. Jeremias compreende que deve mudar radicalmente a sua atitude para com a sua família e a sua comunidade, para poder continuar a desenvolver o mandato recebido e, portanto, não morrer.

Nesse dia, florescerá, em Jeremias, uma nova mansidão, não mais a do cordeiro que era manso, porque ignorante das intenções dos seus carniceiros. É esta a mansidão especial dos profetas que superam a fase da primeira mansidão ingénua, uma nova mansidão que, a quem o observa, aparece muitas vezes como o seu oposto. A sua mansidão é a mansidão da palavra, incompreensível para quem não conhece a Bíblia nem os profetas, nem Cristo. É a mansidão de quem grita pregado em cruzes, para as quais não queria subir, e que se torna manso apenas quando uma palavra, dentro, lho pede.

Muitos profetas verdadeiros bloqueiam-se e não completam a sua missão no mundo porque a mansidão ingénua da primeira fase da sua vocação os conduz, dóceis, ao matadouro e, ali, são mortos. Porque não reconhecem a intriga e são assassinados, justamente pelos seus familiares e amigos. Temos o Livro de Jeremias porque aquele profeta conseguiu compreender que, nas suas costas, se estava a tramar uma conjura, fugiu, continuou a sua obra, escreveu o seu livro. Não é fácil dar-se conta destas armadilhas mortais, precisamente porque se desenrolam dentro de casa. Um dia, uma voz interior adverte-o do perigo; mas nem sempre os profetas melhores conseguem sempre reconhecê-la, porque vem encoberta pela forte voz do sangue, pelos laços espirituais, pela voz dos seus responsáveis, pela voz boa do fundador que encoraja e louva a primeira mansidão. E, assim, a palavra do profeta é coberta, morta, e ele/ela cala-se, não fala mais. Muitas comunidades morrem porque matam os profetas ingénuos e mansos que as poderiam salvar se conseguissem chegar a uma mansidão diferente.

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A aurora da meia-noite / 8 – As comunidades que matam os seus profetas ainda ingénuos, morrem

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 11/06/2017

170611 Geremia 8 rid«Deus não se revela ao profeta, como um abstrato absoluto, mas como relação íntima e pessoal»

Abraham Heschel, "Il messaggio dei profeti"

As saudades boas, as capazes de ainda nos falar, são apenas as saudades do futuro, as que sabem lançar o olhar para o presente e para o futuro. Não se regenera uma relação de amor voltando às palavras que ela nos dizia nos tempos felizes, mas sonhando e dizendo palavras de amor que nunca tínhamos dito. Há uma reciprocidade vital e essencial entre o passado e o presente. A promessa da origem dá sentido e verdade às esperanças nos tempos dos exílios e dos desertos; e o cumprimento das promessas de ontem, no hoje, diz-nos que não seguimos uma ilusão.

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É a mansidão diferente que salva

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A aurora da meia-noite / 7 – Os ídolos não atemorizem nem sejam alibis de presunções

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/06/2017

170604 Geremia 7«Como podia, então, unir-me a este selvagem idólatra, na adoração do seu pedaço de madeira? Mas o que é adorar? Acreditas verdadeiramente, Ismael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – incluídos os pagãos e todos os outros – possa alguma vez ter ciúmes de insignificante pedaço negro de madeira? Impossível! Então, o que é adorar?»

Herman Melville, "Moby Dick"

A profecia é uma crítica radical das religiões e dos cultos. De todas as religiões e de todos os cultos, que têm uma tendência intrínseca em transformar-se em práticas idolátricas. Também e sobretudo pela revelação bíblica, uma crítica sistemática e tremenda, para evitar que a palavra bíblica se torne uma simples religião – uma fé que se torna só religião já é culto idolátrico. A Bíblia é muito mais que um livro sagrado de uma religião, também porque recolheu e conservou no seu seio os livros dos profetas que, juntamente a Job e Qohélet, as impediram de se tornar um objeto idolátrico. Então, os profetas, esvaziando o mundo religioso dos ídolos, procuram libertar-nos a paisagem dos nossos artefactos religiosos para nos criar um ambiente em que, talvez, possamos ouvir apenas uma voz nua. São os grandes libertadores dos deuses que enchem a terra e as nossas almas.

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A primeira passagem que aparece em frente de quem começa um caminho de fé é, então, o a-teismo, a libertação dos muitos tótemes e feitiços que enchem a nossa existência. Os profetas sabem que a condição natural do homem não é o ateísmo, mas a idolatria, a produção sistemática e cada vez mais sofisticada de artefactos materiais e ideais para adorar e aos quais, depois, se escraviza, procurando falsas e fáceis salvações. Porque, se o Deus bíblico se torna simplesmente um outro ídolo, a acrescentar ao nosso panteão, não pode fazer que aumentar a nossa escravidão. O Deus bíblico consegue ser diferente dos outros ídolos apenas num templo vazio porque, num dado momento, foi esvaziado.

E assim, para nos fazer compreender a diferença entre a idolatria e a sua fé, o profeta tem de realizar um trabalho de limpeza espiritual e levar-nos às encostas do Horeb onde, “existia apenas uma voz”. Enquanto nos entretemos com os brinquedos religiosos que nos ofereceram os familiares ou que aprendemos a construir com as nossas mãos, não se pode iniciar nenhuma vida autenticamente espiritual – a juventude é o momento propício para começar um verdadeiro caminho de fé porque se é livre dos deuses errados. Está aqui quase toda a necessidade da profecia em toda a época e em todo o lugar porque, sem estar preso pela sua força desmascaradora e devoradora da ‘madeira’ que nos circunda, dialogamos toda a vida com artefactos, mesmo quando lhes chamamos Deus ou Jesus.

Por isso, paradoxalmente (a Bíblia é um grande e único paradoxo vital e só dentro deste paradoxo se abre), o ateu honesto encontra-se numa condição existencial mais apta que aquela em que se encontra o homem religioso, para poder iniciar uma experiência autêntica da fé bíblica, porque, na sua terra desolada e vazia, é mais fácil poder ouvir uma voz subtil de silêncio. Mas, infelizmente, muitos dos que parecem e se creem ateus são fiéis devotos dalguma ideologia, ou adoradores perpétuos do maior ídolo: o próprio eu.

É neste nível que se reconhece o alcance universal da palavra profética, que fala e ama todos, dentro e fora das religiões, porque o universo idolátrico é muito mais vasto do que aquele explicitamente religioso. A todos, os verdadeiros profetas repetem, aqui e agora, com a sua forte ternura: “não temais”. «Não imiteis o procedimento dos pagãos, nem temais os sinais celestes, como temem os pagãos. De facto, a religião desses povos não é nada. É apenas madeira cortada na floresta, obra trabalhada pelo cinzel do artista» (Jeremias 10, 2-3). Nada melhor que a luta idolátrica nos revela a natureza libertadora dos profetas. Libertação dos ídolos e libertação do medo pelos ídolos que criámos. Os ídolos são um nada, repete-nos Jeremias; mas, se nós lhe atribuímos alguma existência ou consistência, tornam-se alguma coisa, e este alguma coisa mete-nos medo. Ontem e hoje, o homem idólatra é sempre um homem medroso. Tem, sobretudo, medo da morte, porque intui que aqueles objetos fabricados não são vivos, não podem afugentar a morte e, assim, recordam-na a cada momento e, em cada momento mete mais medo, porque se torna mais próxima.

No capítulo 10 – um texto complexo pela longa redação que conheceu, mas fundamental na economia de todo o livro de Jeremias – o profeta dá-nos uma verdadeira teoria da natureza e do desenvolvimento da idolatria, em comunidades e pessoas que tinham uma fé não idolátrica. No início da conversão aos ídolos, encontramos o fascínio pela “conduta”, pelo “caminho” das outras nações, pelos seus estilos de vida. Os cultos dos outros povos tornam-se, progressivamente, mais interessantes, atraentes, sedutores que os nossos. Um interesse, uma atração-sedução que nunca serão apenas assuntos religiosos, porque agem a nível muito mais geral e profundo. As procissões dos grandes, altos e vistosos deuses babilónicos, assírios ou egípcios, fascinavam os hebreus porque eram expressões de uma cultura “vencedora”, eram os sinais daquelas grandes potências políticas e culturais. As potências políticas e militares tornam-se impérios quando a sua cultura e a sua religião começam a ser desejadas e imitadas pelos povos derrotados. E tornam-se impérios perfeitos e invencíveis quando os seus símbolos e os seus valores são interiorizados pelos novos súbditos. Encontra-se precisamente nesta sedução da alma uma razão profunda da crítica impiedosa que os profetas dirigem às divindades dos povos. Sabem, por vocação, que nenhuma ocupação política, nenhuma deportação nos reduz totalmente a escravos enquanto não começamos a adorar os nossos deuses, enquanto os seus símbolos não marcam a nossa alma.

Depois, uma vez seduzidos, os novos adoradores tornam-se fabricantes artesãos dos seus novos ídolos. O Deus bíblico é único e, portanto, irreproduzível. Os ídolos não: podem e devem ser reproduzidos, multiplicados, construídos em série, tornar-se produtos de consumo de massa. De facto, os adoradores, depois de terem cortado as árvores no bosque, depois de ter matado a árvore viva para fazer dela um objeto morto (na origem do totem está esta violência, que o homem antigo sentia e compreendia muito melhor que nós), «adornam-nos com prata e com ouro; fixam-nos com pregos e a golpes de martelo para que não se movam» (10, 4). E os comércios proliferam porque, ontem e hoje, não há uma mercadoria que os homens amem mais que os ídolos.

De facto, Jeremias fez a experiência de uma voz verdadeira, sentiu-se chamar pelo nome por algo vivo. Devia parecer-lhe imenso o contraste entre o seu Deus diferente e os pedaços de madeira esculpidos, pintados e decorados que estavam a encher o seu país: «Ninguém há semelhante a ti, Senhor!» (10, 6). Os ídolos «não sabem falar; devem ser conduzidos, pois não caminham. Não os temais, pois não podem fazer mal, nem podem fazer bem» (10, 5). São simplesmente inócuos, vazio, sopro, nada, hevel: «Eles são néscios e insensatos e os seus ensinamentos não passam de um pedaço de madeira… São apenas nada, obras ridículas (10, 8. 15). Neste contexto ecoa forte a famosa e genial definição de ídolo: «Os ídolos assemelham-se a espantalhos num campo de pepinos» (10, 5).

Mas é precisamente aqui que devemos começar um novo discurso. Jeremias diz, canta, repete, a diferença de YHWH também porque o encontro que Israel estava a fazer com novos e antigos povos, com muitos deuses de madeira terá, porventura, insinuado também no profeta a pergunta: e se também o nosso Deus fosse, na realidade, sopro e vazio como todos os outros ídolos? O desmascaramento da nulidade da idolatria põe em crise também a fé não idólatra, porque o desgosto pelos adoradores do nada faz vacilar também a própria fé que se crê diferente.

Quando, por vocação ou por dom, um abençoado dia, se consegue compreender que a maior parte dos cultos que vemos à nossa volta são formas mais ou menos sofisticadas de idolatria e de ilusão, um nada banal, consolador, revestido e decorado de várias formas, a primeira experiência é o nascimento de uma insistente pergunta interior: mas porque é que a minha fé deverá ser diferente das outras ilusões? Será verdade que «O Senhor, porém, é verdadeiramente Deus, Deus vivo» (10, 10)? Ou, então, aquela voz que escutei era apenas um som de um madeiro morto? Uma pergunta honesta, que cresce e se torna inevitável. E, assim, muitas pessoas perdem a sua fé boa perante a descoberta do engano da fé-idolatria dos outros, que arrasta também a própria, que parece muito semelhante à errada e enganadora. Esta pergunta, nos profetas, torna-se fortíssima e, para a exorcizar, chegam a dizer palavras duríssimas sobre os deuses dos outros, negando também que aquelas adorações dos pedaços de madeira ou dos astros possam conter algo de autêntico. Qualquer sopro do espírito verdadeiro que sopra onde quer. Também os profetas têm, de modo diferente, medo dos ídolos.

Não devemos, portanto, ler hoje a crítica radical que Jeremias e os profetas dirigem aos ídolos como uma negação de qualquer verdade de todas as fés diferentes da bíblica. Se o fizéssemos, não captaríamos a natureza do fenómeno religioso nem o espirito profundo das palavras de Jeremias. Dois milénios e meio de história das religiões e de cristianismo reforçaram e confirmaram o valor espiritual e humano da polémica anti-idolátrica de Jeremias: as nossas cidades capitalistas só de consumo são cada vez mais semelhantes a Babilónia a e Nínive e a transmutação idolátrica das antigas fés é cada dia mais evidente. Ao mesmo tempo, aprendemos que nem todos os deuses diferentes do nosso são ídolos e espantalhos e que nos pedaços de madeira colorida pode existir menos nulidade e estupidez que as presentes nos nossos objetos hipertecnológicos, cada vez mais idolatrados. E que, talvez, o espírito de Deus que habita, misteriosa mas verdadeiramente, no coração de todo o homem e de toda a mulher, pode reconhecer o seu próprio sopro, mesmo num tronco duma árvore. Os profetas e a Bíblia crescem com a nossa vida e aprendem coisas novas, graças à nossa leitura honesta e generosa das suas antigas e esplêndidas palavras.

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A aurora da meia-noite / 7 – Os ídolos não atemorizem nem sejam alibis de presunções

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/06/2017

170604 Geremia 7«Como podia, então, unir-me a este selvagem idólatra, na adoração do seu pedaço de madeira? Mas o que é adorar? Acreditas verdadeiramente, Ismael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – incluídos os pagãos e todos os outros – possa alguma vez ter ciúmes de insignificante pedaço negro de madeira? Impossível! Então, o que é adorar?»

Herman Melville, "Moby Dick"

A profecia é uma crítica radical das religiões e dos cultos. De todas as religiões e de todos os cultos, que têm uma tendência intrínseca em transformar-se em práticas idolátricas. Também e sobretudo pela revelação bíblica, uma crítica sistemática e tremenda, para evitar que a palavra bíblica se torne uma simples religião – uma fé que se torna só religião já é culto idolátrico. A Bíblia é muito mais que um livro sagrado de uma religião, também porque recolheu e conservou no seu seio os livros dos profetas que, juntamente a Job e Qohélet, as impediram de se tornar um objeto idolátrico. Então, os profetas, esvaziando o mundo religioso dos ídolos, procuram libertar-nos a paisagem dos nossos artefactos religiosos para nos criar um ambiente em que, talvez, possamos ouvir apenas uma voz nua. São os grandes libertadores dos deuses que enchem a terra e as nossas almas.

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Não à banalidade do nada

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A aurora da meia-noite / 6 – As mentiras dos escribas são gaiola também para a boa-fé

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/05/2017

170528 geremia 6 rid«Jeremias compreende que o precioso poder do diálogo que lhe foi dado é, na realidade, poder de oração»

André Neher, Geremia

No princípio de toda a história de amor há um maravilhoso encontro entre “interior” e “exterior”. Nas histórias pessoais e nas coletivas. Encontramos, um dia, uma pessoa e sentimos que já estava presente na nossa alma sem que o soubéssemos. Enquanto a conhecemos, reconhecemo-la. Se assim não fosse, não nos ligaríamos a ninguém com um pacto que contém um “para sempre”. Algo de semelhante acontece também nas histórias de amor onde o outro que encontramos não é um homem nem uma mulher, mas uma realidade espiritual ou ideal. A voz que nos chama é, simultaneamente, exterior e intimíssima; reconhecemo-la porque já estava dentro de nós.

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Por vezes, estes encontros espirituais tornam-se experiências coletivas e, assim, o primeiro acontecimento gera não só famílias, mas também comunidades, movimentos, organizações, fés, religiões. Também a fé bíblica nasceu assim: uma primeira voz, uma pessoa que responde, depois uma família, outras pessoas, outras famílias, uma comunidade, um povo. Uma religião. A passagem da primeira voz-diálogo pessoal à religião é sempre muito delicada e extremamente arriscada. A primeira experiência espiritual fundadora rapidamente se traduz em culto, teologia, dogmas, práticas religiosas, catecismo, manuais para os confessores. Um processo natural que se ativa com o objetivo de guardar, transmitir e universalizar a experiência espiritual dos primeiros tempos. É um processo, porém que, apesar da boa-fé de quem o inicia, acaba por aprisionar a primeira voz na gaiola de ferro preparada para ela. As ideias que fazemos de Deus impedem-no de ser diferente das nossas ideias. E, assim, se criam classes sociais inteiras e profissões que, de muitas formas, querem assegurar-se e assegurar-nos que Deus entre exatamente no interior das vestes que, dia a dia, lhe prepararam perfeitamente à sua medida. Uma medida que, depois, inevitavelmente, se torna a bitola para verificar a ortodoxia própria e a heresia dos outros. As palavras ditas tornam-se palavra escrita, e os senhores da pena tendem a transformar-se em senhores da palavra e, depois, em senhores de quem pronunciou a palavra. E a voz deixa de falar. Mas uma comunidade, uma igreja, um ideal, uma fé, vivem verdadeiramente se os fiéis dão à primeira voz a liberdade de continuar a falar todos os dias, a chamá-los pelo nome, a surpreendê-los com palavras que ainda não tinha dito e que ninguém esperava. Mas esta liberdade é difícil e incómoda e, por isso, quase nunca se encontra nas igrejas e nos templos.

Acontecem processos semelhantes, em diferentes formas e graus, também nas comunidades espirituais e nos movimentos, gerados por uma inicial experiência carismática. Também aqui, com o passar do tempo, as comunidades produzem, inevitavelmente, no seu interior, “escribas” e “doutores da lei” para conservar e transmitir o carisma original. Estes tornam-se os hermeneutas da primeira voz e acabam por impedi-la de continuar a falar e dizer coisas novas, juntamente com as antigas. E se a voz não diz coisas novas, também não falam mais, e tudo se cala. Desaparecem as vocações porque não há nenhuma voz viva a chamá-las hoje: as recordações e os escritos de ontem não são capazes de chamar a ninguém pelo nome.

Os profetas são ainda o único remédio eficaz para esta grave doença das experiências espirituais coletivas, religiosas e laicais. Porque o profeta é alguém que, por vocação específica, cultiva um diálogo, misterioso mas realíssimo, com a própria voz que estava na origem da experiência fundadora. E, assim, podemos gritar com toda a força: “Como podeis dizer: 'Somos sábios, a Lei do Senhor está connosco', se a pena mentirosa dos doutores da Lei transformou a Lei em mentira? Os sábios serão confundidos, ficarão consternados e cobertos de vergonha” (8, 8-9). Os profetas são o eterno presente do primeiro dia. A profecia desafia a voz tornada palavra escrita para a “testar” com a voz oral originária.

Há, porém, um problema grande e crucial que toca o coração da experiência profética: também os falsos profetas se arrogam desta mesma função de hermeneutas e ensaiadores da palavra. Por isso, os primeiros inimigos dos profetas são os falsos-profetas e vice-versa. Os falsos profetas “confundem” e “capturam” porque os chefes do povo têm uma tendência irresistível para acreditar na sua exegese rufia, que os tranquiliza e confirma no seu poder: «Tratam, à toa, as feridas do meu povo, dizendo: 'Paz! Paz!' Mas não há paz. Deveriam envergonhar-se pelo seu proceder abominável, mas eles não se envergonham, nem sequer sabem corar» (8, 11-12). Não mais se envergonhar, não conseguir corar é uma grave pobreza: enquanto conseguem envergonhar-se, está viva a experiência do regresso.

Jeremias continua a sofrer com os sofrimentos do seu povo, desviado pelos sacerdotes, escribas e doutores, prisioneiros das ideologias consoladoras dos falsos profetas, uma dor donde florescem alguns dos seus versículos mais belos: «Sofro com as feridas do meu povo; tudo me parece tenebroso; apoderou-se de mim a desolação. Porventura não haverá bálsamo em Guilead? Não se poderá encontrar lá nenhum médico? Porque não cicatriza a ferida da filha do meu povo? Oh! tivesse eu na minha cabeça um manancial, e nos meus olhos uma fonte de lágrimas! Dia e noite choraria as chagas do meu povo» (8, 21-23). A ferida da filha do meu povo – expressão maravilhosa, toda assente no delicado e forte registo feminino, que só os grandes profetas nos podem dar. “Não haverá, nalgum lugar distante, um remédio para a curar”: uma oração-lamento que, às vezes, repetimos também nós, diante da doença incurável duma filha, de uma mãe. Mas Jeremias sabe que aquele bálsamo miraculoso não existe e que a ferida não se curará. A corrupção do povo é demasiado geral e profunda, que já «se está demasiado cansado para voltar atrás» (9, 4). Quando a corrupção continua durante muito tempo, produz um grande cansaço moral, e permanece-se no erro por falta de energia espiritual para se levantar e voltar para casa.

Eis então que, desta ferida, se nos abre um outro cenário empolgante, um buraco num panorama novo e grande: «Quem me dera ter no deserto um albergue de viajantes! Abandonaria o meu povo, e afastar-me-ia para longe dele, pois são todos uma legião de adúlteros, um bando de traidores» (9, 1). A desconfiança e a mentira reinam soberanas («Cada um de vós guarde-se do seu amigo. Nem mesmo no irmão vos deveis fiar, porque todo o irmão procura suplantar o irmão, e todo o amigo calunia o seu amigo»: 9, 3). Uma perversidade radical que leva Jeremias à renúncia e ao desejo de fuga, de ir para o deserto porque não aguenta mais, entre o seu povo.

Este é um novo modo do mal-estar do profeta, diferente da dor pela ferida que lhe provoca a “ferida da filha do seu povo”. É uma espécie de enjoo e de desgosto que nasce por estar no meio de um povo que renegou a Aliança e se perverteu. Jeremias não fugirá mas, neste versículo diz-nos que sentiu forte a tentação de o fazer – e senti-la-á fortíssima novamente. E, assim, revela-nos uma outra dimensão íntima da profecia.

Quando um profeta se encontra dentro duma comunidade que perdeu o sentido da primeira voz, chega, pontual, o momento em que sente um desejo irreprimível de fugir para o deserto, de escapulir-se do seu povo. Só a proximidade física com aquelas pessoas, as suas palavras falsas, os cultos, as orações e, sobretudo, a ideologia, causam-lhe enjoo e desgosto, mal-estar físico. Nestes momentos, ao sofrimento por ver a “filha do seu povo” ferida e começar a morrer, junta-se a dor de se sentir totalmente estranho, de estar simplesmente na casa errada e desejar, desesperadamente, uma outra. Quando a ideologia drogou todo o povo, quando as palavras verdadeiras do profeta não produzem nada, é a alma e o corpo que se revoltam e apenas querem ir embora, fugir de casa, dispostos a viver debaixo de qualquer “abrigo”, numa barraca ou até mesmo debaixo de uma ponte, deixando aquele lugar de mentira, cada vez mais semelhante à escravidão do Egipto.

Muitos profetas, quando atravessam estes momentos, acabam por deixar a sua missão, porque o desejo do deserto torna-se tão forte que se torna invencível. O enjoo torna-se insuportável, envolve alma e corpo, e a comunidade torna-se um cárcere do qual, um dia, conseguem, finalmente, escapar. E não voltam mais. Para muitos profetas verdadeiros, esta típica dor moral marca o fim da sua experiência profética.

Jeremias, pelo contrário, permaneceu, não fugiu para o deserto, continuou a falar, inutilmente, ao seu povo, transformando a sua dor em lamento e lágrimas doadas: «Procurai chamar carpideiras. Que venham! Mandai buscar as mais hábeis! (…) Derramem lágrimas os nossos olhos, vertam pranto as nossas pálpebras. Porque de Sião ouve-se um grito de dor: Que desolação! Que vergonha! Expulsam-nos das nossas terras, lançam-nos fora das nossas casas!» (9, 16-18).

A voz do profeta torna-se, assim, a voz do povo que não chora pela própria ruina e deveria chorar. O seu povo não é capaz de chorar porque, iludida pelas ideologias consoladoras, não está consciente do desastre que está para vir. O profeta decide chorar por eles, empresta as suas lágrimas ao seu povo que, se pudesse chorar já estaria no caminho da salvação. O lamento pelo povo torna-se o canto de amor do profeta, o único bálsamo para a ferida da filha. Não foge, permanece; e, para não morrer, chora em vez do seu povo que não chora. É esta a origem mais verdadeira e bela da oração: chorar por quem não sabe chorar, gritar por quem não pode gritar, viver por quem desistiu de viver.

Muitos povos e comunidades salvaram-se – e continuam a salvar-se – pelas lamentações substitutas dos profetas que, apesar do enjoo, não fugiram e permaneceram fiéis no seu posto de vigia. Aquelas lágrimas não salvaram Jerusalém da destruição e do exílio, mas podem sempre salvar-nos das nossas destruições e dos nossos exílios. Podem dar-nos uma boa razão para permanecer em casa e, das nossas lágrimas, destilar bálsamo para a filha do povo ferida.

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A aurora da meia-noite / 6 – As mentiras dos escribas são gaiola também para a boa-fé

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/05/2017

170528 geremia 6 rid«Jeremias compreende que o precioso poder do diálogo que lhe foi dado é, na realidade, poder de oração»

André Neher, Geremia

No princípio de toda a história de amor há um maravilhoso encontro entre “interior” e “exterior”. Nas histórias pessoais e nas coletivas. Encontramos, um dia, uma pessoa e sentimos que já estava presente na nossa alma sem que o soubéssemos. Enquanto a conhecemos, reconhecemo-la. Se assim não fosse, não nos ligaríamos a ninguém com um pacto que contém um “para sempre”. Algo de semelhante acontece também nas histórias de amor onde o outro que encontramos não é um homem nem uma mulher, mas uma realidade espiritual ou ideal. A voz que nos chama é, simultaneamente, exterior e intimíssima; reconhecemo-la porque já estava dentro de nós.

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A tentação de vestir Deus

A aurora da meia-noite / 6 – As mentiras dos escribas são gaiola também para a boa-fé por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 28/05/2017 «Jeremias compreende que o precioso poder do diálogo que lhe foi dado é, na realidade, poder de oraç&...
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A aurora da meia-noite / 5 – Permanecer fortes para não manipular a realidade e não usar Deus

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/05/2017

170521 Geremia 05 rid“«E a multidão exultava, estalando os dedos. Zaratustra, pelo contrário, entristeceu-se e disse ao seu coração: “Não me compreendem: eu sou a boca para estas orelhas. Agora, olham-me e riem; e, enquanto riem, continuam a odiar-me. Há gelo no seu riso»”.

Friedrich Nietzsche, "Assim falou Zaratustra"

O Deus bíblico não fala na primeira pessoa, na terra; as suas palavras chegam até nós apenas como palavras de homens e mulheres. Quem desce do Sinai, com as Tábuas da Lei, é Moisés, um homem. A ele, YHWH fala na tenda da reunião, só com ele dialoga “face a face”, e diz-lhes palavras que, depois, o povo pode conhecer. Se queremos escutar a palavra de Deus no mundo, devemos, apenas e simplesmente, aprender a escutar homens e mulheres como nós. É uma palavra que se comunica enquanto olhamos olhos à mesma altura dos nossos. Não a encontramos nem acima nem abaixo: só frente a nós. O homem é o lugar onde Deus sabe falar aos homens. Somente homens e mulheres podem fazer ressurgir, em cada dia, a Bíblia e os Evangelhos, dizendo as palavras “sai para fora”. Sem pessoas que as chamam pelo nome, aqui e agora, também as palavras bíblicas permanecem mortas nos seus sepulcros.

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Os profetas são homens e mulheres que continuam a falar de Deus ao mundo – mesmo quando não o sabem ou quando não lhe chamam Deus. Mas nós não os conseguimos encontrar porque os procuramos no lugar errado. Infelizmente, pensamos que habitem apenas nos templos, nos santuários, que nos falem de Deus com a linguagem que nós pensamos que deva falar um deus que se respeite; que sejam instruídos, teólogos, peritos em liturgia ou, pelo menos, na catequese. Procuramo-los entre os profetas profissionais e, assim, quase só encontramos falsos profetas, em contínua busca de clientes para as suas mercadorias. Pelo contrário, os verdadeiros profetas quase nunca estão nos lugares onde queríamos que estivessem, não desempenham a profissão profética ou não assumem os seus traços e gestos típicos. Porque quase todos habitam nas periferias do império, não frequentam os templos, raramente usam linguagens religiosas (por vezes, nem as conhecem nem são atraídos por elas) e são, quase sempre, pobres e desprezados: pastores de rebanhos, um irmão jovem e sonhador, um menino na manjedoura. Sendo voz humana, a voz dos profetas é sempre mestiça, impura, imperfeita e, por isso, não a reconhecemos como voz de Deus, porque pensamos que esta deveria ser pura e incontaminada, exatamente como a dos falsos profetas.

Tudo isto faz da fé não-falsa algo de infinitamente laical, quotidiano, humilde. E, por isso, algo de maravilhoso, embora muito difícil de compreender e de viver, porque gostamos de fés espetaculares, visionárias, extraordinárias. Não nos agrada que o espírito de Deus nos toque a alma enquanto lavamos a loiça, arrumamos o quarto, quando ensinamos aritmética na escola, quando realizamos no escritório o trabalho habitual. Não; a vida verdadeira não nos basta; agrada-nos iludir-nos com as vidas sensacionais vendidas nas bancas dos falsos profetas. E, assim, no fim das nossas peregrinações, encontramos Baal a esperar-nos nos templos e nas igrejas, para nos escravizar mais uma vez.

«Nomeio-te como examinador sagaz do meu povo para que conheças e examines o seu proceder. (…) O fole sopra, e o chumbo consumiu-se pelo fogo. Em vão fundiram e refundiram; as escórias, porém, não se desprenderam. Este povo será chamado 'Prata de refugo'» (Jeremias 6, 27-30). No fim do primeiro período da atividade profética de Jeremias (ano 609), o profeta descreve o seu fracasso total com a linguagem da indústria da prata, arte muito antiga e desenvolvida no Próximo Oriente. O chumbo que continha quantidade de prata, durante o processo conhecido como copelação, era tratado com fogo, a temperaturas muito altas; depois, graças à entrada de ar, por meio do fole, a prata separava-se das escórias impuras que eram deitadas fora. O ensaiador devia vigiar o sucesso do processo, ensaiando a pureza do metal nobre que saía do cadinho – porque nem sempre a operação de separação resultava, por causa da excessiva impureza que permanecia na prata.

A metáfora de Jeremias é radical. O chumbo permanece intacto no cadinho; o chumbo saiu do fogo e do fole como tinha entrado. Nenhum grama de prata: apenas chumbo. O fracasso da sua missão é absoluto: o fole da sua palavra soprou forte mas, do chumbo, não saiu nada de nobre: chumbo antes, chumbo depois; a ação do artesão foi totalmente vã.

Os profetas não têm medo de anunciar o fracasso da sua ação – os falsos profetas, pelo contrário, só falam de sucessos. O profeta é o humilde acionador do fole e o honesto inspetor da pureza do metal. Emprega todas as suas forças para que o fole produza a maior quantidade possível de ar. Portanto, a sua ação não tem nada de passivo, porque o profeta não é um médium: pode acionar o fole com mais ou menos energia, e também pode deixar de mover os seus braços – tentação sempre presente e forte. Depois, quando aquele artesão de prata arruma, esgotado, o fole e analisa o metal, apenas pode anotar que o metal puro não chegou. É esta a dupla e difícil missão do profeta: manobrador incansável do fole e honesto inspetor do metal. Não pode mudar a história; apenas a pode registar, mesmo que não lhe agrade e o faça sofrer. E é no meio deste duplo esforço dos braços que movem o fole e da alma que deve resistir à tentação de mudar os resultados para agradar ao povo, que vive e amadurece a verdadeira profecia. Esforçar-se até ao esgotamento para produzir ar e permanecer forte até à morte para não manipular a realidade que sai do cadinho. Os profetas verdadeiros tornam-se falsos profetas ou porque não se cansam suficientemente no fole ou porque manipulam os resultados e não dizem a triste verdade que não quer ser escutada. Os piores são, portanto, os que não sopram ar para poder dizer que a prata não se separou do chumbo e poder amaldiçoá-lo. Os verdadeiros profetas, pelo contrário, frente ao chumbo intacto, vivem sempre na dúvida que a prata não tenha chegado porque não ativaram o fole com força suficiente – porque enquanto inspecionam o metal, sentem um outro Inspetor que inspeciona o seu coração, e têm sempre a sensação (ou certeza) que também do seu cadinho só saia chumbo: mas não deixam de soprar com o fole, até ao fim.

Desta experiência de insucesso total, floresce, como flor do deserto, o grande discurso de Jeremias sobre o templo, palavras extraordinárias que só podiam desabrochar de um grande e acolhido fracasso: «A palavra do Senhor foi dirigida a Jeremias, nestes termos: “Coloca-te à porta do templo do Senhor e proclama aí este discurso”» (7, 1). Jeremias grita: «Eis que vos enganais a vós mesmos, confiando em palavras vãs, que de nada vos servirão. Roubais, matais, cometeis adultérios, jurais falso, ofereceis incenso a Baal e procurais deuses que vos são desconhecidos; e depois, vindes apresentar-vos diante de mim, neste templo… e exclamais: 'Estamos salvos!' Mas seguidamente voltais a cometer todas essas abominações» (7, 8-10).

Os profetas são críticos dos templos e inimigos dos sacrifícios. Sabem, com extrema clareza, que, por detrás dos sacríficos, se esconde o verdadeiro inimigo da fé verdadeira. O Deus de Abraão, que revelou o seu nome a Moisés, tinha-se mostrado como um Deus diferente porque tinha dado ao povo uma outra relação, uma outra fé, liberta da lógica económica dos sacrifícios, uma promessa de uma outra felicidade: “Não falei aos vossos pais e nada lhes prescrevi no dia em que os fiz sair da terra do Egipto, a respeito de holocaustos e sacrifícios. A única ordem que lhes dei foi esta: «Ouvi a minha voz… a fim de que sejais felizes” (7, 22-23). Os sacrifícios não são apenas tolos; são extremamente prejudiciais, porque enganam e alimentam a infidelidade e os pecados do povo. De facto, os sacrifícios são preços pagos para comprar a possibilidade de pecar novamente, transformando todos os pecados em mercadoria adquirível no mercado religioso. É neste contexto que se compreende a frase tornada célebre, graças aos evangelhos: “Porventura, este templo, onde o meu nome é invocado, é a vossos olhos, um covil de ladrões?” (7, 11). Não são os comerciantes a serem chamados ladrões (como às vezes se ouve dizer), mas todo o povo, que é vilão porque continua a cometer os crimes mais graves, com a ilusão de os poder expiar e re-expiar, oferecendo sacrifícios no templo. É a religião económica e sacrificial que transforma imediatamente o templo num covil, onde os delinquentes se refugiam. Foi esta mesma polémica contra a religião comercial-sacrificial que levou Jesus de Nazaré, séculos depois de Jeremias, a criticar o templo e os seus comércios religiosos.

Sem os profetas, todas as religiões se transformam em comércios de ofertas, votos, orações e penitências que quereriam cobrir as nossas maldades: sempre o fizemos e continuamos a fazê-lo. Quanto mais hediondos forem os pecados, mais alto se torna o preço da expiação, até sacrificar os nossos filhos para poder dizer “estamos salvos”: «Levantaram o lugar alto de Tofet, no vale de Ben-Hinom, para lá oferecerem em sacrifício os seus filhos e as suas filhas, coisa que não mandei nem me passou pela mente» (7, 31). Ontem, hoje, talvez amanhã.

Os profetas, especialistas de Deus e da humanidade, dão-nos, ainda, uma grande verdade. A idolatria aninha-se dentro dos templos e das igrejas porque, sem o martelo da profecia, são as religiões que se tornam, inevitavelmente, os primeiros inimigos do Deus que professam. Os sacrifícios idólatras não são apenas os oferecidos a Baal mas também – e sobretudo – os oferecidos a YHWH, que se torna um dos muitos estúpidos Baal, quando o precipitamos dentro da lógica económica dos sacrifícios.

Toda a pessoa, também a mais honesta e verdadeira, que, quando começa uma experiência de fé, seguindo uma voz, acaba por construir o seu culto, bloqueia Deus e os ideais verdadeiros em coisas mortas que se chamam práticas religiosas, profissões, status, comunidade, movimento. Impede Deus – ou os próprios desejos maiores – de se tornar algo diferente da ideia que se fez dele. Ama de tal modo os seus sonhos mais belos que não quer acordar mais. Sem os profetas, as promessas espirituais de juventude tornam-se, na idade adulta, banais cultos idolátricos. Os profetas não nos libertam apenas dos ídolos; libertam-nos também da nossa ideia de Deus, dos nossos cultos, das nossas ilusões religiosas. E, depois, fazem-nos caminhar, pobres e livres, nas periferias do império, também à procura duma gruta, de um menino, de uma mãe, de um carpinteiro.

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A aurora da meia-noite / 5 – Permanecer fortes para não manipular a realidade e não usar Deus

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/05/2017

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O Deus bíblico não fala na primeira pessoa, na terra; as suas palavras chegam até nós apenas como palavras de homens e mulheres. Quem desce do Sinai, com as Tábuas da Lei, é Moisés, um homem. A ele, YHWH fala na tenda da reunião, só com ele dialoga “face a face”, e diz-lhes palavras que, depois, o povo pode conhecer. Se queremos escutar a palavra de Deus no mundo, devemos, apenas e simplesmente, aprender a escutar homens e mulheres como nós. É uma palavra que se comunica enquanto olhamos olhos à mesma altura dos nossos. Não a encontramos nem acima nem abaixo: só frente a nós. O homem é o lugar onde Deus sabe falar aos homens. Somente homens e mulheres podem fazer ressurgir, em cada dia, a Bíblia e os Evangelhos, dizendo as palavras “sai para fora”. Sem pessoas que as chamam pelo nome, aqui e agora, também as palavras bíblicas permanecem mortas nos seus sepulcros.

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A tenacidade honesta do fole

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A aurora da meia-noite / 4 – A verdade também faz sofrer, mas gera para a verdadeira liberdade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 14/05/2017

170514 Geremia 04 bis rid

«Espero, de todo o coração, que me absolveis; não me diverte a ideia de fazer de herói na prisão, mas não posso deixar de declarar-vos explicitamente que continuarei a ensinar os meus jovens o que ensinei até agora … Se não pudermos salvar a humanidade, salvaremos, pelo menos, a alma».           

Don Lorenzo Milani, Carta aos capelães militares, carta aos juízes

A ideologia é o primeiro instrumento usado pelas classes dominantes nos tempos das crises. Antes da força, do dinheiro, do poder político, os chefes (civis ou religiosos) gerem as crises dos seus impérios produzindo ideologias, pagando a ideólogos, erguendo um sistema de propaganda capilar da ideologia. Quanto mais grave é a crise, mais essencial é o instrumento ideológico. A principal forma que toma a ideologia no tempo das crises é a produção sistemática e reiterada de ilusões coletivas. Enquanto os sinais falam, clara e somente, de declínio e de fim, as ideologias produzem, primeiramente, sinais diferentes, inexistentes; depois, fazem-nos tornar principais; por fim, apresentam-nos como os únicos. As ideologias são muitas e diferentes, mas têm em comum a criação artificial de uma realidade paralela que é apresentada como perfeita e que, progressivamente, faz perder o contacto com a realidade imperfeita e verdadeira.

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As ideologias ilusórias que se desenvolvem e crescem durante as crises grandes e longas são, talvez, as mais perigosas e devastadoras, porque têm a sua especificidade na negação da crise. Vive-se o tempo presente na espera de algum acontecimento miraculoso, de uma nova revelação, ainda secreta, que salvará a todos e a comunidade é drogada com um ópio espiritual que agrava e exaspera a crise. Uma manipulação que dura até que a evidência supere o ponto em que se torna impossível a negação. Mas, por vezes, o “ponto sem retorno” torna-se irrealizável, porque as ideologias mais fortes e poderosas podem levar à elaboração ideológica das crises muito para a frente e, não raramente, também as catástrofes e os colapsos totais continuam, ex post, a ser interpretados ideologicamente. Há comunidades aniquiladas pela ideologia, mas onde os membros sobreviventes continuam a negar a evidência e a procurar, entre os escombros, alguma confirmação das suas anteriores previsões ideológicas.

Também Jeremias teve de se confrontar com este tipo de ideologia e com os seus efeitos devastadores: «“Pois, naquele dia, o coração do rei e o vigor dos chefes desfalecerá - oráculo do Senhor. Os sacerdotes serão possuídos de terror e os profetas de espanto”. Eu disse: “Na verdade, ó YHWH, Tu enganaste este povo e Jerusalém, prometendo-lhes a paz, quando a espada nos penetrou até ao mais íntimo» (Jeremias 4, 9-10).

Aqui, Jeremias mostra uma dimensão subtil e decisiva do fenómeno ideológico. O que estava a acontecer a Jerusalém era uma produção sistemática de ilusões por parte dos profetas pervertidos, aliados aos sacerdotes e à classe dominante. Estes tinham, primeiro, criado, depois, alimentado a chamada “teologia real do templo”, uma espécie de nacionalismo religioso que proclamava a invencibilidade de Jerusalém, a inviolabilidade do templo e, por isso, negava o perigo proveniente do Norte (Babilónia). «Tereis a salvação» não fora a palavra de YHWH, mas dos falsos profetas e dos chefes, que defendiam o seu poder iludindo o povo. Neste contexto, Jeremias vê claramente a evolução desta ideologia. O inimigo chegará e destruirá o reino, mas a ideologia continuará em ação, salvando-se a si própria com a única explicação que lhe resta: a inversão total da realidade, atribuindo a criação da ilusão ao próprio YHWH. Para se salvar a si próprios, os chefes do povo condenam Deus.

Isto é uma atuação comuníssima do poder, realizada através da ação dos falsos profetas, e é também o “teste decisivo” para desmascarar a falsa profecia. Os falsos profetas, sempre abundantíssimos durante as crises grandes, perante o não cumprimento das próprias previsões, em vez de reconhecer a falsidade da sua palavra, negam a verdade daquele em cujo nome tinham profetizado. Sacrificam Deus de bom grado porque, na realidade, era apenas um ídolo que usavam para receber benefícios. Todos os falsos profetas são ateus, e sabem que o são – os ex-profetas tornam-se ateus porque se revelam falsos profetas e não vice-versa. Sacrificam Deus no altar dos próprios interesses porque aquele deus não valia nada para eles, era apenas um totem, uma flauta para encantar os outros. Nisso, o falso profeta é o arquétipo de todos os que, perante a escolha entre o próprio interesse e a verdade de uma relação, escolhem-se a si próprios, renegando e matando matrimónios, comunidades, amizades, empresas. Serviram-se de Deus apenas para fazer carreira, e deitam-no fora logo que já não lhe convenha.

O profeta autêntico, pelo contrário, é responsável pela palavra que anuncia porque aquela palavra é carne da sua carne, é palavra incarnada. Não pode preferir a morte da palavra à própria morte, porque nele/nela as duas palavras tornam-se uma só carne, como nas núpcias. O martírio do profeta não é altruísmo nem generosidade, é a única escolha que podem fazer para permanecer profetas.

É o próprio Jeremias a mostrar-nos, maravilhosamente, a relação íntima entre a palavra e a sua carne, num versículo estupendo, um absoluto da literatura profética: «Ai, as minhas entranhas e o meu peito! O meu coração está em sobressaltos!» (4, 19). Uma obra-prima espiritual, que rasga o véu da alma do profeta, homem de Anatot, e o torna nosso contemporâneo – ou, melhor, nós seus. Mas, sobretudo, leva-nos para dentro do seu mistério e do mistério de qualquer vocação humana verdadeira.

Jeremias, profeta autêntico, pode e deve dizer apenas o que vê e ouve. Vê e ouve desgraça e destruição para Jerusalém, e grita-o. Não pode emendá-la, revirá-la, caso contrário tornar-se-ia simplesmente um falso profeta, como tantos outros, como quase todos. Mas, aquele povo, a quem anuncia a desgraça, é o seu povo, é a sua gente. Está aqui o valor dos profetas: sofrer, contorcer-se com as palavras que anunciam, mas não serem livres de não as anunciar.

Este sofrimento acompanhará Jeremias (vê-lo-emos), mas é uma nota central do ministério do profeta, particularmente forte e atormentadora em tempos das grandes crises e das grandes ilusões. O povo quereria acreditar que a crise passará rapidamente e tudo voltará a ser belo como antes, que a queda de vocações na comunidade é transitória, que as igrejas voltarão a encher-se; e, em vez disso, o profeta-não-falso diz – se assim vê e ouve – que a crise se acentuará, que as vocações serão cada vez menos, que as igrejas continuarão a esvaziar-se. Os profetas não são sempre profetas de desgraça; anunciam também coisas esplêndidas – nascimento de crianças, um rebento, o regresso dum “resto”, um messias. Mas é a profecia da desgraça o verdadeiro teste da verdade e qualidade dum profeta, onde pode perder a alma ou florir em anima mundi. Muitas vocações proféticas falham por incapacidade de persistir no anúncio de coisas incómodas e duras – para o povo e para o profeta.

O profeta verdadeiro, portanto, sente na sua carne todo o sofrimento pelas vocações que faltam, pelo vazio nas igrejas, pela destruição da cidade. O profeta é mãe da palavra que pronuncia (“as minhas entranhas e o meu peito…”). Faz a experiência de quem vê o filho que se dirige definitivamente pelo caminho estrada dos porcos e das prostitutas, e já o vê em ação nas pocilgas e nos bordéis («Cumulei-os de dons e eles cometeram adultério, indo, em tropel, às casas da prostituição. Eram garanhões bem nutridos e lascivos; cada um arde em cobiça diante da mulher do seu próximo»: 5, 7-8).

Os sentimentos de Jeremias, aqui, não são os do “pai misericordioso” que espera, com esperança, o regresso do “filho pródigo”, mas o de quem sofre porque o filho, o irmão, o amigo, não volta e não quer voltar. Na mundo, são poucos os filhos que regressam das bolotas, mas são muitos os que lá permanecem. E muitos pais e amigos podem apenas, como Jeremias, “contorcer-se nas entranhas” pela dor destes não-regressos. Os filhos não voltam, nós sofremos e eles continuam a não voltar.

A primeira ressurreição que a Bíblia realiza (e também a grande literatura e a grande arte) é o seu tornar-se próximo dos crucificados, abordá-los, vê-los, antes que chegue a aurora da ressurreição, prisioneiros num perene sábado santo. É assim que alcança e toca as nossas feridas mais profundas, as não curadas, e as beija. As feridas não se curam com os beijos, mas o nosso coração talvez se cure.

Se a Bíblia contivesse apenas os relatos dos filhos que regressam, das filhas que ressuscitam, dos curados que regressam para agradecer, dos escravos libertados, seria apenas uma edificante recolha de histórias com final feliz, ou um livro de relatos consoladores. O imenso valor espiritual e humano da Bíblia está também na presença de páginas acerca das entranhas contorcidas de Jeremias, pelos irmãos e filhos perdidos e que não pode salvar, dos relatos de Abel morto por um irmão, de Job que continua a gritar inocência num monte de estrume, a esperar um Deus que ainda não chegou, que talvez não chegará, mas que continua a ser esperado e gritado como o “Deus do ainda não” porque liberto das ilusões. A maior parte das histórias vivas e verdadeiras não têm um final feliz, mas se existe (e existe) uma alegria em viver, esta espera-nos para além das ilusões, quando tivermos aprendido a encontrar as ressurreições dentro dos crucificados. Os lugares da terra onde podemos esperar ser surpreendidos pelo Espírito assemelham-se mais ao Gólgota que ao Tabor. Na terra e, talvez, também no céu.

A honestidade do profeta mede-se pela medida do sofrimento pelas palavras verdadeiras que diz. Qualquer honestidade se mede só assim, quando, para nos salvarmos, poderíamos dizer palavras diferentes e rufias, mas não as dizemos, e nos salvamos verdadeiramente, mesmo se tudo à nossa volta nos diz o contrário e fala de insucesso e de fracasso.

Os dons dos profetas no tempo das desgraças são apenas a honestidade das suas palavras verdadeira e as suas entranhas contorcidas. Juntos. As entranhas são a caixa-de-ressonância das notas do seu canto. Tão verdadeiro e honesto que ainda nos toca e nos fala, a consolar-nos nas nossas desgraças, a proteger-nos dos muitos vendedores de ilusões.

 

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A aurora da meia-noite / 4 – A verdade também faz sofrer, mas gera para a verdadeira liberdade

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 14/05/2017

170514 Geremia 04 bis rid

«Espero, de todo o coração, que me absolveis; não me diverte a ideia de fazer de herói na prisão, mas não posso deixar de declarar-vos explicitamente que continuarei a ensinar os meus jovens o que ensinei até agora … Se não pudermos salvar a humanidade, salvaremos, pelo menos, a alma».           

Don Lorenzo Milani, Carta aos capelães militares, carta aos juízes

A ideologia é o primeiro instrumento usado pelas classes dominantes nos tempos das crises. Antes da força, do dinheiro, do poder político, os chefes (civis ou religiosos) gerem as crises dos seus impérios produzindo ideologias, pagando a ideólogos, erguendo um sistema de propaganda capilar da ideologia. Quanto mais grave é a crise, mais essencial é o instrumento ideológico. A principal forma que toma a ideologia no tempo das crises é a produção sistemática e reiterada de ilusões coletivas. Enquanto os sinais falam, clara e somente, de declínio e de fim, as ideologias produzem, primeiramente, sinais diferentes, inexistentes; depois, fazem-nos tornar principais; por fim, apresentam-nos como os únicos. As ideologias são muitas e diferentes, mas têm em comum a criação artificial de uma realidade paralela que é apresentada como perfeita e que, progressivamente, faz perder o contacto com a realidade imperfeita e verdadeira.

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Como mães da palavra

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A aurora da meia-noite / 3 – É um grande dom ter ao lado pessoas mais fiéis que nós

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 07/05/2017

170507 Geremia 03 rid«Quando chegou junto do monte, onde Moisés tinha subido e tinha contemplado a herança de Deus, Jeremias subiu e encontrou um vão em forma de caverna e lá meteu a tenda, a arca e o altar do incenso e tapou a entrada. Alguns dos que o seguiam regressaram para assinalar o caminho, mas não conseguiram encontrá-lo».

Segundo o Livro dos Macabeus

A fidelidade é uma das palavras que tem a capacidade de, sozinha, dizer tudo o que há a dizer acerca da vida. Uma existência é feita de muitas palavras e de muitas coisas, mas, se tivéssemos de escolher uma só, a fidelidade seria uma candidata muito forte. A fidelidade é quase tudo; talvez a fidelidade seja tudo. Fidelidade aos pactos fundadores da nossa existência, à aliança conjugal, à nossa profissão, às amizades, à voz que, um dia, nos chamou, fazendo-nos partir para a viagem maior. É a fidelidade que aquece o coração nos invernos, que consola a alma quando tudo o resto passa, que nos faz pronunciar o nosso nome sem nos envergonharmos. É a melhor herança que podemos deixar aos nossos filhos.

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Mesmo que o não consigamos ver nem, muito menos, dizê-lo, o mundo está cheio de fidelidade. Não a vemos, ou não a vemos suficientemente, porque a sua parte mais preciosa é invisível. Vê-se a infidelidade, não a fidelidade, porque se desenvolve e realiza quando podemos ser infiéis e não o somos, quando temos o “incentivo” para trair e, ao contrário, decidimos permanecer fiéis a um pacto; quando podemos não voltar mais e, pelo contrário, voltamos, fiéis, a casa. E não o dizemos a ninguém, porque se o disséssemos perderia o seu encanto.

Porém, a Bíblia, com a sua infinita sabedoria humana, fala-nos, sobretudo, de infidelidade: «Levanta os teus olhos para os lugares altos e vê. Em qual deles te não prostituíste? Nas bermas dos caminhos te sentavas à espera deles… E profanaste a terra com os teus vícios e devassidão» (3, 2). E, se a Bíblia nos fala de infidelidade, então devemos saber olhar mais em profundidade para o binómio fidelidade-infidelidade, porque talvez seja mais complexo do que pensamos. A Bíblia não tem medo de partir do homem como ele é e, dali, chamá-lo pelo nome: «Volta, rebelde Israel, não mais te mostrarei um semblante enfurecido porque sou misericordioso, a minha ira não é eterna» (3, 12).

Muitas das experiências que nos aparecem e vivemos como infidelidades são misteriosos exercícios para aprender a arte de viver. Há muitas infidelidades dentro do que parece fidelidade e algumas fidelidades nas traições. Uma das graças mais sublimes da vida é conseguir, num dia inesperado, encontrar as próprias infidelidades sentadas a nosso lado na cozinha, saudá-las, finalmente, como outros companheiros de viagem e cear e fazer festa em conjunto.

O encontro de duas (ou mais) fidelidades chama-se aliança ou pacto. Quando a fidelidade se desenrola no interior dum pacto-aliança, torna-se mais forte, porque a aliança pode viver e crescer mesmo se uma das partes se torna infiel. A aliança é uma corda, uma fides (isto é, uma fé-confiança), que liga as pessoas entre si. É a corda amarrada na escalada das paredes. Se alguém tropeça ou para, não cai e não colapsa enquanto a corda aguentar e houver alguém bem seguro na rocha. Existem famílias, comunidades, empresas salvas porque, pelo menos, uma pessoa aguentou, porque alguém acreditou quando ninguém já acreditava naquela história de amor, porque aguentou quando todos os outros desistiam. Talvez não haja maior dom que poder escalar o cume da vida amarrados a pessoas mais fiéis que nós. Pode-se viver durante anos, durante décadas, em condições de infidelidade mas não se perder porque uma outra, um outro, consegue não desistir, não desistirmos. Pelo contrário, a infidelidade torna-se uma precipitação no desfiladeiro quando nos separamos da corda para continuar a escalada de modo solitário. Enquanto permanecemos dentro duma história de aliança, não podemos saber quantas vezes nos salvamos porque alguém, ao nosso lado, nos estava a segurar. Mesmo quando não nos damos conta ou pensamos que aquela corda seja apenas um laço que nos prende ao cepo de uma prisão. Quem vive e supera as grandes crises permanecendo numa aliança, não sabe quantas vezes não é esmagado num precipício só porque alguém foi fiel também por ele – talvez rezando ou aceitando docilmente uma dor. Poucas pessoas têm o dom de descobrir, no decurso da vida, os salvamentos que não tinham visto enquanto se realizavam – que são sempre mais que os que conseguimos conhecer e reconhecer.

Mas, pela sua natureza, a aliança e os pactos são experiências trágicas: enquanto nós podemos aguentar e não deixar a corda, o outro pode sempre cortá-la e deixar-se cair. Ou porque, outras vezes, o peso das infidelidades dos outros é tão grave que nos puxa a nós também para baixo, se não temos a lucidez de compreender qual é o último momento para cortar a corda. Sofre-se, sofre-se muito, pelas infidelidades próprias e sofre-se, sofre-se muito também pelas infidelidades das pessoas com quem estamos ligados. Esta é uma razão profunda do verdadeiro culto que a nossa civilização tem pelos contratos, que são muito mais leves e ténues que os pactos e as alianças: cortam-se facilmente, mas não nos salvamos dos precipícios da vida.

Também para a fidelidade vale o princípio profético do resto. A salvação das infidelidades pode realizar-se enquanto permanecer vivo, em nós, um resto, uma pequena parte, um rebento, um filho: “Tomar-vos-ei um de uma cidade, e dois de uma família e hei-de reconduzir-vos a Sião” (3, 14). Uma história de aliança pode continuar se, durante o afastamento, conseguimos permanecer fiéis a algo de verdadeiro, porque, pelo menos, uma coisa fizemos bem e com fidelidade, até ao fim. Há pessoas que se salvaram, em situações de infidelidade, próprias ou dos outros a quem estavam ligadas, porque conseguiram salvar dentro de si um resto vivo, porque continuaram, durante décadas, a fazer bem uma só coisa: um trabalho, o cuidado de uma relação, de uma horta, porque continuaram a recitar, bem e fielmente, a única oração materna que ainda recordavam. Pode salvar-se uma vocação e toda uma vida também cuidando bem duma planta na varanda da casa, que se torna corda que pode impedir-nos de colapsar.

Depois das infidelidades, apenas um resto regressa. Após cada traição, o povo fica cada vez mais pequeno, passagens completas da nossa vida e da dos outros não voltam mais. Mas a terra prometida pode ainda ser alcançada se, pelo menos, um permanece vivo e fiel, se uma porção de terreno não foi destruída. Como as plantas. No termo da corrida, nem todas as belezas e nem todas as esperanças da juventude chegaram ao fim; muitas coisas, belas e boas, ficaram ao longo do caminho, entretidas com outro, com outros. Por vezes, é apenas um a terminar a corrida; apenas uma pérola, do dote que nos foi dado pela primeira voz chega ao destino; mas o que verdadeiramente conta é que um resto, algo de nós tenha permanecido fiel ao pacto. Em jovens, queríamos uma vida pura, coerente, religiosa, mansa, pobre. Em adultos, encontramo-nos na impureza, na incoerência, com uma fé debilíssima. Mas, se permanecemos verdadeiramente pobres, ou se conseguimos permanecer mansos, entramos na terra de Canaã ou, pelo menos, vemo-la de longe – e, depois, por vezes, descobrimos que naquela pobreza à qual tínhamos permanecido fiéis, estavam também todos os outros ideais e as outras belezas que procurávamos em jovens e que já as não víamos, porque não tínhamos compreendido que era na ‘torpeza’ que, como adultos, as podíamos encontrar.

Por isso, na Bíblia, a Aliança está ligada à imagem da arca: a arca da aliança. Moisés (Êxodo 25) tinha recebido a ordem de Deus para a construir, para ali guardar as duas Tábuas da Lei com, provavelmente, um vaso de ouro com o maná e a vara florida de Aarão (Carta aos Hebreus 9). A arca assemelhava-se a objetos babilónicos e, sobretudo, egípcios que tinham o hábito de construir caixas para guardar os seus deuses e ídolos, que levavam em procissão durante as grandes festas. A arca simbolizava a Aliança, pela presença nela das Tábuas, o sacramento do pacto estipulado por YHWH com Moisés, no Sinai. Era o maior tesouro do povo.

Também em Jeremias reencontramos a arca no centro da profecia do regresso de Israel, finalmente fiel: “quando vos multiplicardes e vos tornardes numerosos na terra, então - oráculo do Senhor - não se falará mais na Arca da Aliança do Senhor; não lhes virá ao pensamento, não se lembrarão nem sentirão necessidade dela e não se fará outra” (3, 16).

Não se falará mais na arca, não será lamentada nem reconstruida. Após a destruição do templo de Salomão por Babilónia (587), não se teve mais notícias seguras sobre a arca (segundo algumas tradições, foi destruída; segundo outras, ainda está enterrada sob os restos do templo de Jerusalém; outras acreditam que está na Etiópia e em muitos outros lugares).

Jeremias não tem saudades da arca, talvez porque saiba que também a arca, realizada sob ordens de Deus, se pode tornar um ídolo. Os profetas sabem que a idolatria pode atingir o coração da fé verdadeira. Se os homens têm a tendência de tornar ídolo o que não é Deus, ainda muito mais radicalmente procuram transformar Deus num ídolo para consumir. As idolatrias sem retorno não são as de Baal, mas as de Deus. Se não existissem os profetas (ou se não os escutamos), os sacrários das nossas igrejas tornar-se-iam deuses tótemes, e Jesus o nosso maior ídolo.

Depois da destruição de Jerusalém, no segundo templo, o lugar que era ocupado pela arca foi ocupado por uma simples pedra, que indicava um vazio, uma ausência. Enquanto os templos e as igrejas souberem conservar a ausência de Deus, pode permanecer vivo o seu desejo e o seu sonho em nós. E, talvez, um dia o possamos encontrar enquanto pastoreamos um rebanho, enquanto recolhemos as redes, quando caminhamos, desiludidos, para uma aldeia. Ou quando, regressados finalmente a casa, o reconheçamos no rosto de quem, fiel, ainda estava à nossa espera.

Dedicado a Marco Tecilla, primeiro focolarino

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A aurora da meia-noite / 3 – É um grande dom ter ao lado pessoas mais fiéis que nós

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 07/05/2017

170507 Geremia 03 rid«Quando chegou junto do monte, onde Moisés tinha subido e tinha contemplado a herança de Deus, Jeremias subiu e encontrou um vão em forma de caverna e lá meteu a tenda, a arca e o altar do incenso e tapou a entrada. Alguns dos que o seguiam regressaram para assinalar o caminho, mas não conseguiram encontrá-lo».

Segundo o Livro dos Macabeus

A fidelidade é uma das palavras que tem a capacidade de, sozinha, dizer tudo o que há a dizer acerca da vida. Uma existência é feita de muitas palavras e de muitas coisas, mas, se tivéssemos de escolher uma só, a fidelidade seria uma candidata muito forte. A fidelidade é quase tudo; talvez a fidelidade seja tudo. Fidelidade aos pactos fundadores da nossa existência, à aliança conjugal, à nossa profissão, às amizades, à voz que, um dia, nos chamou, fazendo-nos partir para a viagem maior. É a fidelidade que aquece o coração nos invernos, que consola a alma quando tudo o resto passa, que nos faz pronunciar o nosso nome sem nos envergonharmos. É a melhor herança que podemos deixar aos nossos filhos.

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A mão que segura a corda

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A aurora da meia-noite / 2 – O destino e a liberdade no encontro com o absoluto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 30/04/2017

170430 geremia02«Quando levou à cabeceira de Jeremias a bebida preparada, ele respirava tranquilamente a dormir. “Porque não me é lícito esconde-lo do mundo, como poderia esconde-lo de ti, mãe?” … “Que escondeste?” (…). “O Senhor esteve próximo de mim… E a sua voz falou-me. E a sua voz me mandou para fora daqui”. Os olhos de Abi encheram-se de lágrimas. Não chorava porque o Senhor tinha vindo até ele. Não devia estar orgulhosa, entre todas as mulheres de Jacob? E, no entanto, o coração da Abi quebrava-se de dor pela escolha do filho»

Franz Werfel, 'Ascoltare la voce'

Há um conflito, uma tensão radical entre os profetas e o poder. Por muitas razões, mas, sobretudo, porque o profeta, por missão e vocação, sabe ver a natural tendência de qualquer poder – in primis, o revestido de uma veste sacra – em perverter-se e transformar-se em tirania.

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Vê-o, di-lo, grita-o. Sabe que os poderosos são inconvertíveis, que a única ação positiva em relação a eles é a denúncia, a crítica, o desmascaramento das suas reais intenções para além das palavras bonitas e rufias. A profecia “ama” o poder criticando-o duramente, gritando a sua natural corrução, não se convertendo às suas razões, permanecendo firme no seu poso de vigia. Os “bons” reis e os “bons” chefes são os que sabem estar sob os golpes da crítica impiedosa dos profetas, que não procuram comprá-los para os converter às suas razões. Quando os profetas desaparecem ou se tornam falsos-profetas, a natureza corrompida do poder torna-se perfeita, os governos transformam-se em impérios e nós em escravos.

«A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: “Vai e grita aos ouvidos de Jerusalém, dizendo: Assim fala o Senhor: 'Recordo-me da tua fidelidade no tempo da tua juventude, dos amores do tempo do teu noivado, quando me seguias no deserto, na terra em que não se semeia”» (Jeremias 2, 1-2).

Jeremias, crescido na escuta dos relatos das tribos do Norte, está profundamente ligado à tradição da Aliança, tem muito viva a recordação dos dias do primeiro amor: «Israel era, então, propriedade sagrada do Senhor, primícias da sua colheita» (2, 3). Por aquela primeira Aliança, por aquele primeiro e sempre atual pacto nupcial (Oseias), YHWH tinha dado, em dote, ao seu povo, uma terra, tinha-o libertado do Egipto: «conduziu-nos através do deserto, terra de desolação e abismos, terra de aridez e de escuridão, terra por onde ninguém passa» (2, 6). Jeremias grita contra os chefes do seu povo porque Israel, unilateralmente, quebrou o pacto: «Que injustiça encontraram em mim os vossos pais para me abandonarem?» (2, 5).

Uma traição total, uma infidelidade geral: «Os sacerdotes não se interrogaram: “Onde está o Senhor?” Os doutores da Lei não me reconheceram, os pastores revoltaram-se contra mim, e os profetas profetizaram em nome de Baal e seguiram deuses inúteis» (2, 8). A rebelião envolveu os três eixos sobre os quais se rege a vida do povo. Importante a referência à corrução dos profetas, que passaram para o serviço ao deus Baal, um elemento que revela uma outra dimensão da função profética. A profecia não é exclusiva de Israel, e os profetas sabem reconhecer o mesmo sopro em pessoas de outros povos, sabem reconhecer-se entre si. O pecado cometido pelos profetas, denunciados por Jeremias, foi transformar-se em profetas de Baal. São profetas que mudaram de deus.

Talvez não exista maior perversão espiritual que a do profeta que começa a profetizar em nome de um outro deus. Pode-se deixar de ser profeta por muitas razões – poucos profetas permanecem verdadeiros profetas durante toda a vida. Porque, por vezes, a missão profética é temporária e dura o tempo da missão a realizar; porque já não conseguem escutar a voz e, portanto, não têm mais nada a dizer (umas vezes, a voz desaparece verdadeiramente, outras vezes é o profeta que perde a capacidade de a ouvir); ou porque o profeta não consegue resistir à dor que lhe provoca a própria vocação e escolhe retirar-se para a vida privada. Estas conclusões de histórias proféticas são possíveis, muito comuns e, por vezes, boas. Pelo contrário, o fim do profeta que muda de deus é sempre péssimo. Porque a vocação profética é o encontro entre duas vozes pessoais: uma que chama pelo nome e outra que responde ao nome que o chama. O profeta não falso conhece e reconhece aquela voz única, distingue-a entre as muitas vozes da vida. Quando – por dinheiro, por poder, por prazer, por perversão… – começa a falar em nome de um outro deus, torna-se automaticamente, falso profeta, porque não fala em nome de nenhuma voz. Os profetas são inconvertíveis a outros deuses, porque estão essencialmente-ontologicamente ligados à primeira voz pessoal, a uma palavra, a uma única língua do espírito.

A impossibilidade de mudança da voz profética é de alcance universal, e vale também quando o profeta não chama “Deus” à voz que mora nele ou, como, simples e magnificamente lhe chama Etty Illesum, «a parte mais profunda da mim». Vale para a arte, para a poesia, mas também para quem se coloca no seguimento dos grandes ideais humanos. O profeta sabe que a sua vocação está ligada a uma única específica voz que o chamou e o rechama cada dia. E sabe que, se perde a relação com aquela voz, perde a própria vocação e desaparece. Mas, apesar disso, por vezes decide profetizar para outros “deuses” (quase sempre o dinheiro e o poder). Sabe que está a tornar-se profeta inútil do nada mas, mesmo assim, fá-lo: «estou enamorado dos estrangeiros e quero segui-los» (2, 25). Encontramos estes fenómenos também nas experiências comunitárias, quando as vocações se reúnem á volta de carismas coletivos onde, nos momentos de crise é muito forte a tentação de começar a profetizar em nome de outros “deuses” e de encher os seus templos com outras divindades vizinhas e, assim, perder-se e perder a própria alma. Estas percas são inevitáveis no arco histórico do desenvolvimento duma comunidade carismática, que pode salvar-se se, pelo menos, um profeta permanece fiel e não deixa de gritar as palavras sugeridas pela voz verdadeira. São inevitáveis porque chega, pontualmente, o momento em que o próprio “deus”, se é verdadeiro, parece muito difícil, diferente, mais incómodo que o dos povos vizinhos. A idolatria, em Israel, chegou sempre como resposta ao desejo do povo de ter, finalmente, um deus como todos os outros: visível, pronunciável, palpável, fácil: «Eles dizem a um lenho: “Meu pai és tu”, e a uma pedra: “Tu me geraste”» (2, 27).

É esta a raiz de toda a conversão idólatra: a incapacidade de permanecer numa condição espiritual imperfeita e não plenamente satisfatória e, assim, transformar Deus num bem de consumo que responda plenamente às nossas preferências religiosas. Quando Deus ou um ideal acaba por coincidir com a nossa ideia de Deus ou do ideal, já estamos dentro dum culto idólatra: a verdade de qualquer fé encontra-se na diferença entre os nossos gostos e a nossa experiência, uma diferença que é o espaço onde podemos escutar a subtil voz do silêncio da verdade.

O verdadeiro profeta, que se torna falso porque muda de “voz”, é muito mais perigoso que o falso profeta que o é desde o início, e é também maior a sua infelicidade. A saudade da primeira voz boa nunca o deixa e acompanha-o fielmente, como espinho na carne, nas suas peregrinações mercenárias: «Sobre todas as colinas elevadas, e sob todas as árvores verdejantes te reclinaste e te prostituíste» (2, 20). Pode-se voltar à primeira voz, mas são muito raros estes movimentos de regresso.

Por isso, Jeremias é muito lúcido em identificar a razão da infidelidade: o povo traiu o seu pacto nupcial «indo atrás da nulidade dos ídolos, eles próprios se tornaram nulidade» (2, 5)

É forte e significativo o nome que o profeta dá aos ídolos: nada, vento, sopro, fumo. Usa a mesma palavra, tornada célebre, graças a Qohélet, hevel: vaidade. Porém, o nada dos ídolos é um nada radicalmente diferente do nada de Qohélet. A vanitas de Qohélet surge num cenário de um mundo esvaziado dos ídolos, de um quarto livre da vanitas da ilusão. É um nada libertador e verdadeiro, que mostra a caducidade e o efémero da condição humana. É um nada cheio, como verdadeiros, plenos e libertadores são os cânticos de Leopardi, ou algumas páginas luminosas de Nietzsche, onde o nada aparece para além do “crepúsculos dos ídolos”, como epifania de uma verdade ausente na vanitas ilusória dos tótemes fabricados.

Grande parte do caminho espiritual de toda uma existência consiste em libertar-se de um nada errado que parecia verdadeiro para se apropriar de outro nada radicalmente diferente. Umas vezes, este segundo nada é a aurora de uma nova viagem à procura de uma nova verdade; outras vezes, o segundo nada permanece até ao fim: expande-se, aprofunda-se, cresce em nós e permite-nos gerar frutos bons e saborosos que são muito semelhantes, se não idênticos, aos que se encontravam no fim da terceira navegação. Existem muitos homens e mulheres alimentados, durante décadas, por este segundo nada verdadeiro, escutado e amado, como a boa condição humana para além da ilusão consoladora do primeiro nada. Não se começa a terceira viagem sem se estar livre do primeiro nada e se chegar à verdade do segundo nada: a etapa do segundo nada é inevitável. Muitos caminhos espirituais e, por isso, humanos, ficam bloqueados no primeiro nada ilusório pelo medo de aprofundar o segundo nada com a sua paisagem desértica e clima árido e, assim, permanecem servos e escravos do nada: «Acaso Israel é um escravo nascido na própria casa?» (2, 14).

Na terra, são muito numerosos os falsos profetas do primeiro nada. Também existem, raríssimos, os profetas da terceira navegação. Mas, a seu lado e dos seus grandes amigos, podem reconhecer-se os profetas do segundo nada que, no seu deserto despovoado, são habitados e alimentados apenas pela voz – e não falta nada.

O segundo nada é também terra da promessa, mas já é uma terra para além do mar da escravidão que, por vezes, se estende até às encostas do Monte Nebo, onde podemos adormecer, juntamente a Moisés, vendo Canaã na linha do horizonte.

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A aurora da meia-noite / 2 – O destino e a liberdade no encontro com o absoluto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 30/04/2017

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Há um conflito, uma tensão radical entre os profetas e o poder. Por muitas razões, mas, sobretudo, porque o profeta, por missão e vocação, sabe ver a natural tendência de qualquer poder – in primis, o revestido de uma veste sacra – em perverter-se e transformar-se em tirania.

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Os profetas do segundo nada

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A aurora da meia-noite / 1 – O destino e a liberdade no encontro com o absoluto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em  23/04/2017

Logo Geremia Crop 300

Vós que amais,
vós que desejais, 
ouvi, vós, doentes de despedida: 
somos nós que começamos a viver nos vossos olhares, 
nas vossas mãos que vão à procura na luz azul – 
somos nós, que cheiramos ao amanhã.
Já nos aspira o vosso folego,
nos puxa para baixo no vosso sono 
nos sonhos, que são o vosso reino
onde a escura ama, a noite, 
nos faz crescer,
até que nos reflitamos nos vossos olhos,
até que falemos às vossas orelhas.

Nelly Sachs 'Nelle dimore della morte'

A profecia é um bem capital em qualquer tempo e em qualquer lugar – para qualquer sociedade, para todas as comunidades, para toda a pessoa. Depois, quando atravessamos as grandes crises, a profecia torna-se um bem de primeira necessidade, precioso e essencial como a água e valoriza-a.

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Nas crises de resultado duvidoso, as que nos esperam nas encruzilhadas cruciais da existência, onde errar na direção significa perder-se, perder o caminho, não mais voltar a casa. O nosso tempo que, em si, concentra uma quantidade impressionante de crises e muitas delas decisivas, tem uma necessidade infinita de profecia, porque temos uma necessidade infinita de reaprender a falar, a falar-nos, a contar-nos grandes histórias e, também, a aprender a escutar, a escutar-nos, a amar o silêncio, que é o pai de toda a palavra não vã. Os profetas, juntamente com os poetas, são os especialistas da palavra, os guardiões da sua força e do seu mistério – são as suas parteiras. Sem uma nova-antiga cultura da palavra e das palavras, que se cultiva sempre na alma pessoal e coletiva, seremos cada vez mais vítimas de palavras que já não controlamos. Não se pode viver, não se pode ser justo, sem a profecia. Podemos ter mil “sacerdotes” e “reis” mas, se não temos, pelo menos, um profeta, os pobres ficam pobres para sempre, as comunidades transformam-se em clubes de consumidores de bens de conforto, a espiritualidade torna-se carga de emoções, as fés transformam-se em neuroses.

Ao longo da história dos povos, a profecia assumiu muitas formas. Porém, a que se desenvolveu em Israel é diferente, especial, única. A qualidade da profecia bíblica, a sua força, a sua duração, a sua imensa beleza, o cuidado e a fidelidade com que foi transmitida nos milénios, fazem dela um património universal, um expoente do génio espiritual da humanidade. Um grande dom para todos. Um dom que, infelizmente, atingiu pouquíssimas pessoas, que atinge cada vez menos. Porque vem rotulada como facto religioso e, assim, entendida como inútil por quem não tem uma cultura religiosa. Porque muitos cristãos pensam que o Evangelho contém tudo o que “serve” da Bíblia. Porque a profecia não-falsa não é rufia, não abraça as nossas certezas e os nossos comodismos, não responde aos gostos dos consumidores. E porque para compreender e amar aquelas outras palavras, teríamos necessidade de outros tempos, outros ritmos, de uma vida diferente da nossa, distraída, fragmentada e velocíssima.

Jeremias é um encontro que pode mudar a vida. Porque é o encontro com um absoluto – como Job, Qohélet, Paulo, Leopardi. E é sempre muito raro na vida encontrar alguém ou algo que traga uma ou mais dimensões de absoluto e, por isso, de inédito, novo, original.

No livro de Jeremias, estão muitas palavras de YHWH, mas estão também muitas palavras de Jeremias. O seu livro revela-nos o homem Jeremias, com as suas dúvidas, as suas crises, as suas perguntas. Como Oseias, mais que Isaías.

Jeremias começa o seu livro com o relato da sua vocação. Talvez entre as muitas revelações contidas na sua profecia, a mais universal e eterna seja a revelação da natureza profunda de uma vocação. Também para Jeremias, no princípio (bereshit) da sua vida profética, há um encontro com uma voz: “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei e te constituí profeta das nações.» E eu respondi: «Ah! Senhor Deus, eu não sei falar, pois ainda sou um jovem.» (…) Em seguida, o Senhor estendeu a sua mão, tocou-me nos lábios e disse-me: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; a partir de hoje, dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares.»” (Jeremias 1, 4-10).

No ano 627 a.C., quando, provavelmente, recebe a sua vocação, Jeremias teria cerca de vinte anos. A sua experiência profética desenvolve-se num espaço de quarenta anos (até 587, ano da grande deportação para Babilónia e talvez também outras). Nasceu na aldeia de Anatot, perto de Jerusalém, mas no “território de Benjamim” (1, 1), logo numa tribo do Norte, em Israel, numa família sacerdotal. Estes dados geográficos e familiares já nos dizem muito da vida e do destino de Jeremias. Diferentemente de Isaías, o seu mundo não é Jerusalém, as suas tradições são as dos patriarcas, do Êxodo, de Moisés, de Canaã e, portanto, o seu horizonte espiritual é o da Aliança. Seu pai Hilquias é, pois, herdeiro de Abiatar, sacerdote do templo de Silo, templo destruído e amaldiçoado (1 Samuel, 12-36), que Salomão tinha exilado naquela terra (1 Rs 2, 27). Na autoapresentação de Jeremias já está inscrito o seu destino: estrangeiro, desprezado, amaldiçoado.

Naquela hesitação perante o chamamento («Eu não sei falar, pois ainda sou um jovem»), está a vocação de Moisés e a sua resistência («Eu não sei falar»), mas há muito mais. Jeremias descobre a sua vocação ainda jovem, talvez ainda um menino. Mas, quando a escreve (ou a dita), era um homem adulto, em plena luta profética. Estas palavras são recordação daquele primeiro dia decisivo, mas são, sobretudo, interpretação da sua missão e do seu destino.

Viver a vocação e compreendê-la são duas coisas completamente distintas. Quando se encontra a voz, encontramo-nos dentro de um acontecimento global e luminosíssimo: ouve-se, vê-se (“Que vês, Jeremias?”: 1, 11), é-se tocado no corpo (“na tua boca”). Parte-se, vai-se, vive-se. Mas, para compreender o que aconteceu naquele encontro, é preciso uma existência completa e, geralmente, não é suficiente. Existem, no entanto, momentos, factos, crises, em que se compreende e re-compreende o sentido (significado-direção-destino) daquele encontro juvenil. Estas interpretações posteriores da vocação são, por vezes, coerentes entre si e a que se alcança depois explica a precedente. Outras vezes, a segunda muda e retifica a primeira, a terceira altera a segunda e rompe a coerência da história das interpretações; mas não a coerência da interpretação da história, que continua (ou pode continuar) o desenvolvimento da primeira vocação.

Jeremias é um magistério sobre toda a vocação humana. Uma voz que chama para um destino irrefutável ao qual, literalmente, se responde, sabendo que não existe outra resposta possível. É uma liberdade e é um destino. Só os profetas e, entre estes, sobretudo Jeremias, conhecem e reconhecem esta dimensão misteriosa e paradoxal da vida vivida como chamamento íntimo: a máxima liberdade juntamente à máxima obediência, a consciência que se está a viver a única vida possível e não poder escolher outra melhor. Veremos que esta escolha/não-escolha, esta liberdade/obrigação, esta libertação/ligação é o coração secreto da vocação de Jeremias, talvez de qualquer vocação. Encontra-se uma voz, responde-se porque não se pode não responder, porque a voz externa é também a mais íntima. Naquela resposta está simplesmente o próprio destino, entendido no sentido mais belo e verdadeiro: o nosso lugar no mundo (“Antes de te haver formado no ventre materno…”).

Jeremias não podia saber tudo isto no ano 627; compreendeu-o – ou, pelo menos, intuiu-o – tornando-se adulto. No dia abençoado do chamamento, apenas podemos reconhecer que a voz que, de fora, nos chama, já estava dentro de nós. Mas o mistério doloroso e a luminosa dor de qualquer vocação revela-se quando aquela voz se tornar a nossa carne. Toda a vocação é incarnação de uma palavra acolhida na ignorância de uma juventude generosa. O “não saber” onde e como chegaremos é a beleza e o drama daquele primeiro encontro.

O que Jeremias escreve como adulto não é ainda o relato de quanto acontece no dia da sua vocação, «no tempo de Josias, filho de Amon, rei de Judá, no décimo terceiro ano do seu reinado» (1, 2). É a compreensão do seu destino. Vivendo, Jeremias estava “demolindo e edificando”, experimentava medo pelas reações violentas que as suas palavras provocavam: «E eis que hoje te estabeleço como cidade fortificada, como coluna de ferro e muralha de bronze, diante de todo este país, dos reis de Judá e de seus chefes, dos sacerdotes e do povo da terra. Far-te-ão guerra, mas não hão-de vencer, porque Eu estou contigo para te salvar» (1, 18-19). E ali, no meio da batalha, começa a compreender a primeira antiga epifania. E descreve-a, para que não tenhamos medo nas nossas batalhas, aqui e agora.

Jeremias vive, age e escreve durante a maior crise do povo de Israel, que culminará com a tomada de Jerusalém, a destruição do templo e a deportação para Babilónia. Vive num pequeno reino esmagado por grandes superpotências. Por vocação, deve contestar os seus chefes e os sacerdotes que, naquela crise epocal, continuam a iludir-se em poder resistir aos impérios que os estão a ameaçar. Jeremias compreende, por vocação, que um mundo está a acabar. Di-lo, grita-o, mas o povo não quer escutá-lo, e persegue-o. Jeremias é o profeta do tempo da noite, mas com um sol dentro de si que lhe permite ver uma aurora diferente da que o povo, iludido, quereria ver. E anuncia-a, canta-a. Até ao fim. A todos, mas principalmente aos reis e aos sumos-sacerdotes, sem medo.

No seu grito fiel e doloroso, Jeremias é companheiro de Job, do “servo sofredor”, de Cristo, das noites e das auroras diferentes dos profetas de todos os tempos, dos quais é amigo necessário: «Jeremias, porém, atravessa a Meia-noite. A Luz está no seu Livro e a alegria também. Mas é nos baixios e nas arribas que é preciso vê-las, improvisamente, reluzir e ouvi-las cantar» (André Neher, Geremia)

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A aurora da meia-noite / 1 – O destino e a liberdade no encontro com o absoluto

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em  23/04/2017

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Vós que amais,
vós que desejais, 
ouvi, vós, doentes de despedida: 
somos nós que começamos a viver nos vossos olhares, 
nas vossas mãos que vão à procura na luz azul – 
somos nós, que cheiramos ao amanhã.
Já nos aspira o vosso folego,
nos puxa para baixo no vosso sono 
nos sonhos, que são o vosso reino
onde a escura ama, a noite, 
nos faz crescer,
até que nos reflitamos nos vossos olhos,
até que falemos às vossas orelhas.

Nelly Sachs 'Nelle dimore della morte'

A profecia é um bem capital em qualquer tempo e em qualquer lugar – para qualquer sociedade, para todas as comunidades, para toda a pessoa. Depois, quando atravessamos as grandes crises, a profecia torna-se um bem de primeira necessidade, precioso e essencial como a água e valoriza-a.

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A hora de um cântico sem medo

A aurora da meia-noite / 1 – O destino e a liberdade no encontro com o absoluto por Luigino Bruni publicado em Avvenire em  23/04/2017 Vós que amais, vós que desejais,  ouvi, vós, doentes de despedida:  somos nós que começamos a viver nos...