A aurora da meia-noite / 13 – Como Deus alimenta e muda para sempre a nossa existência
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 16/07/2017
«A minha alma refugia-se no Antigo Testamento e em Shakespeare. Lá, pelo menos, sente-se alguma coisa: lá, são homens que falam. Lá, odeia-se!; lá, ama-se, mata-se o inimigo, amaldiçoam-se os descendentes, por todas as gerações; lá, peca-se.»
Soren Kierkegaard, citado em Scipio Slataper, Ibsen
O livro de Jeremias marca um novo estádio da consciência humana, um salto no processo de humanização, uma verdadeira inovação antropológica e espiritual. Todo o seu livro, sobretudo as suas confissões. E, se lhe permitirmos entrar no íntimo da nossa consciência e estivermos dispostos a suportar os seus altos custos, aquela antiga inovação pode ainda realizar-se, aqui e agora.
Desde o primeiro capítulo do seu livro, Jeremias alternou o conteúdo da sua missão profética com as suas confissões íntimas, revelando-nos a sua alma, as suas esperanças, as suas angústias. Agora, no auge do seu diário interior, chegamos aos capítulos 19 e 20, onde os factos narrados e a sua poesia atingem um pico absoluto.
Aqui, o profeta e o homem de Anatot cruzam-se profundamente, a palavra de YHWH e a de Jeremias fundem-se uma na outra, formando um enredo de vida e de poesia que representa um autêntico património da humanidade. Devemos, portanto, aproximar-nos destes capítulos, tirando as sandálias antes de escutar a voz que provem desta sarça ardente diferente onde a arder não está um arbusto, mas os ossos de Jeremias.
No início deste díptico maravilhoso, encontramos um outro gesto, entre os muitos célebres e fortes da Bíblia. Estamos ainda dentro da cena laicíssima da oficina do oleiro, quando encontramos uma nova ordem: Jeremias recebe a ordem de Deus para comprar uma bilha e se dirigir ao “vale dos cacos”, uma lixeira da cidade (Jeremias, 19, 1-2). Somos conduzidos para fora da cidade, num ambiente que, para o leitor habituado à leitura bíblica, recorda imediatamente Job, também ele conduzido por Deus e pela vida ao monte de lixo mais célebre da Bíblia. Jeremias compra uma bilha ao oleiro, leva consigo as testemunhas mais autorizadas do povo, e explica, com as suas palavras, o sentido daquela ida à lixeira da cidade: Deus mandará sobre Israel uma grande desgraça, porque se prostituiu com cultos cananeus e com os seus sacrifícios de crianças (10, 3-9). Depois, YHWH acrescenta: “Então, na presença dos que forem contigo, quebrarás a bilha, exclamando: «Quebrarei este povo e a cidade como se parte um vaso de barro»” (19, 10-11).
Tudo é claro e forte, e claras e fortes foram as consequências, como nos conta Baruc, o secretário amigo de Jeremias que, aqui, entra no livro e não mais sairá dele: “Ora, o sacerdote Pachiur, filho de Émer, superintendente do templo de YHWH, ouviu o profeta Jeremias pronunciar este oráculo. Pachiur mandou espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão, que estava na porta superior de Benjamim, junto do templo de YHWH” (20, 1-2). Aquela bilha quebrada faz precipitar a situação: não só calúnias e conjuras; agora, Jeremias é flagelado e torturado. A obediência à ordem de quebrar a bilha em mil pedaços marcou uma viragem na vida e na carne de Jeremias. Não compreenderemos o seu cântico do capítulo 20, talvez o mais célebre – e mais equivocado – de todo o livro, se, enquanto o lemos, não virmos Jeremias com a bilha na mão e, depois, na prisão. É a partir dali que entoa o seu de profundis mais bonito, que deveremos cantar apenas juntamente aos muitos profetas que continuam a ser torturados, presos, mortos apenas por serem fiéis à voz da sua consciência: Jeremias canta também para eles: “Seduziste-me, YHWH, e eu me deixei seduzir! Tu me dominaste e venceste. Sou objeto de contínua irrisão, e todos escarnecem de mim” (20, 7).
Não devemos dar nem sequer um milímetro de espaço ao sentimentalismo e ao romantismo que são, frequentemente, aplicados a estes versículos tremendos. Aqui, a “sedução” de que fala Jeremias é a do adulto que atrai uma pessoa menor, de um forte que encanta e engana uma criança, para abusar dela. O contexto dramático e o verbo hebraico escolhido não deixam margem a equívocos; tudo é claro e simples: Jeremias, do fundo do seu cárcere, acusa Deus de o ter enganado, na idade do entusiasmo da juventude, e de lhe ter – simplesmente – arruinado a existência. Palavras fortes, que podem ser compreendidas apenas por quem, para seguir um chamamento, saboreou algum bocado da mesma noite de Jeremias. São palavras adultas, e só assim são maravilhosas, porque nos abrem ao tremendum das vocações verdadeiras.
Sem os depósitos do lixo, os cepos e as torturas dos chefes das comunidades, não se compreendem as vocações: se se vê apenas a antecâmara, se se permanece apenas no invólucro do pacote, fica-se encantado nos primeiros minutos da aurora da vida espiritual. Quem quis compreender as vocações proféticas verdadeiras foi sempre entre os cacos, nos cárceres, nos exílios, e é ali que devemos voltar, também hoje, se queremos encontrar os profetas. Mas, como quem se encontra nestes lugares não faz discursos espirituais, nem sermões, nem milagres nem visões, está mudo e, quando diz algumas poucas palavras, frequentemente amaldiçoa Deus e a vida – e só com estas palavras, para nós incompreensíveis, sabem, por vezes, rezar –, as vocações verdadeiras permanecem escondidas e estranhas, ou as confundimos com quem fala muito de Deus e de religião, embora com fundo musical e imagens de pôr-do-sol avermelhados. E, assim, fica-se fora da profecia verdadeira e desesperada, a única que pode salvar: “Maldito seja o dia em que eu nasci! Não seja abençoado o dia em que minha mãe me deu à luz! … Porque saí do seu seio? Somente para contemplar tormentos e misérias, e consumir os meus dias na confusão?” (20, 14-18). Não existem, debaixo do sol, palavras vocacionais maiores que estas. Podem ser equiparadas apenas a alguns salmos, a Qohélet, à paixão de Marcos e às palavras irmãs de Job/Jó.
Mas este capítulo vinte diz-nos ainda algo de mais íntimo sobre a natureza e mistério de uma vocação. De facto, no coração da sua confissão, encontramos estas palavras: “A mim mesmo dizia: «Não pensarei nele mais! Não falarei mais em seu nome!» Mas, no meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos” (20, 9).
“A mim mesmo dizia”: Jeremias diz-nos ter pensado calar a voz, não mais emprestar o próprio corpo e a própria boca, retirar-se, deixar a sua missão profética, deitar a manto às urtigas. Como ele diz, pensou seriamente, experimentou verdadeiramente mudar de vida; não foi apenas uma tentação que ficou no mundo dos pensamentos. Mas, enquanto procurava fugir – e talvez fugisse mesmo – deu-se conta que não conseguia: a vocação era os seus ossos e a sua carne, que continuavam a arder. E é neste momento que o profeta sente um novo cansaço, que é algo de diferente do esgotamento físico e moral: “Esforçava-me por contê-lo, mas não podia” (20, 9). É a experiência do cerco, do torno que agarra e aperta, que não deixa escapatória. Se é verdade que nada mais que uma vocação diz liberdade porque, seguindo a voz se descobre que se está a seguir o que é mais íntimo que os próprios ossos, Jeremias diz-nos ainda uma outra coisa: que não há nada menos livre que uma vocação verdadeira, porque não há um caminho de fuga, porque não se foge da própria medula.
É este o drama verdadeiro de quem, na vida, encontra uma voz verdadeira. Chega o dia em que se apercebe que a vida que está a fazer não é a que pensava na juventude. Tudo lhe fala apenas deste engano que o levou a fazer escolhas que hoje sente como violência e exagero por parte de Deus, das pessoas que, em seu nome, o seduziram, dos ideais idealizados em que acreditou na idade da inocência. E começa-se a sonhar e a pensar palavras diferentes das sugeridas pela voz, palavras novas nas quais se acredita mais, palavras próprias que parecem mais sinceras que aquelas que nos ouvem dizer e repetir por vocação.
A prova que Jeremias está a atravessar não é, portanto, devida simplesmente às perseguições, às cadeias, às torturas. É muito mais profunda e terrível. Um profeta não grita contra Deus e contra a vida enquanto acredita na verdade da sua história e da sua missão: não é o martírio que põe em crise uma vocação; até por vezes a exalta e a realiza. Aqui, a prova de Jeremias é de outro tipo: já não acredita na verdade do início, sente-se dentro de uma história de engano e de embuste. Faz a experiência de um jovem plagiado por uma ideologia ou por uma seita que, a um dado momento, acorda e só quereria fugir para voltar à vida verdadeira, abandonada por ter acreditado em mentiras, ilusões, falsas promessas.
Perdemos quase tudo da força desta imensa confissão de Jeremias se não a lemos em toda a sua radical nudez e no seu escândalo. Jeremias não põe em dúvida a verdade da voz que lhe fala e que lhe tinha falado no primeiro dia – outros profetas fizeram-no e fazem-no. Mas discute a verdade da sua missão e da sua vida, que sente totalmente inútil e errada. E quer escapar, agarrar o que lhe resta da vida. Mas é aqui que se abre um dos paradoxos mais esplêndidos da vida e do seu mistério: enquanto foge da ilusão, faz a experiência mais íntima que se pode fazer nesta terra: descobre uma outra verdade escondida dentro dos seus ossos. A voz parece-lhe verdadeira, justamente quando a quer calar: é tão verdadeira que é impossível fugir. É sentir arder nos ossos a voz do primeiro dia que diz, num outro dia adulto da vida, que quanto tínhamos encontrado era tão verdadeiro que é impossível fugir-lhe, como é impossível fugir à verdade dos ossos e da medula. Mas, antes de fugir, não o podíamos saber.
Não sabemos como Jeremias superou a crise; não no-lo diz. Talvez porque as crises não se superam; entram no miolo da vida, alimentam-na e mudam-na para sempre.
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