A aurora da meia-noite / 23 – Aceitar a verdade é reconciliação, não resignação
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/09/2017
Cassandra: «Erro ou acerto no alvo como um arqueiro? Ou talvez seja um falso profeta que bate às portas para vender conversa? Sê minha testemunha e jura que estou reconhecendo as vilanias desta casa, antigas pela fama! (…) Mais uma vez, a terrível canseira de adivinhar verdades me ferve dentro, perturbando-me os seus prelúdios dolorosos”».
Ésquilo, Agamémnon
Quando, na vida, cultivámos uma grande ilusão, a gestão da desilusão é sempre muito complicada e extremamente dolorosa. Porém, se o tempo da ilusão foi vivido com boa-fé e durante muitos anos, quando se sente chegar o possível dia da desilusão, quase sempre preferimos ficar iludidos. Porque chamar a ilusão pelo seu verdadeiro nome significa ter de pronunciar palavras muito dolorosas para as poder dizer até ao fim: fracasso, (auto)engano, imaturidade, manipulação. E talvez bastasse compreender que a desilusão é o único bom florescimento da ilusão e vivê-la como uma passagem abençoada para dar bons frutos e, depois, concluir, na verdade, a nossa viagem debaixo do sol. Na luta entre ilusão e desilusão – a trata-se de autêntica agonia, sobretudo nas pessoas justas e honestas – o êxito depende decididamente de quem está ao nosso lado, na arena.
Se, por companheiro, temos um ou mais falsos profetas, permanecemos presos na ilusão, continuamos a negar a realidade, mesmo quando é óbvia e evidente para todos. Porque os falsos profetas são mestres em apresentar os factos contrários à sua ideologia como a última prova a superar para, finalmente, estar prontos para a verdadeira salvação. Se, pelo contrário, na luta, encontramos um profeta verdadeiro, a idade de ilusão pode, finalmente, terminar e a dor, má e opressora, transformar-se no bom trabalho das libertações. Perante o desabamento total e definitivo do que parecera, durante tanto tempo, o caminho mais bonito e verdadeiro na terra e no céu, a única salvação possível é acolher, docilmente, a desilusão. Convidá-la para a mesa, colocar as toalhas e os talheres mais bonitos, abrir o melhor vinho da adega. E fazer festa juntos, convidando os poucos amigos verdadeiros e os pouquíssimos profetas. Sem este jantar de reconciliação, não podemos descobrir, um dia, que aquela vida era verdadeiramente bela, talvez mais bela do que a tínhamos imaginado.
«Jeremias tentou sair de Jerusalém para ir ao território de Benjamim, a fim de escapar dali no meio do povo. Ao chegar à porta de Benjamim, encontrava-se lá o chefe da guarda, chamado Jerias, e prendeu o profeta Jeremias, dizendo: «Então, tu passas para o lado dos caldeus!» Jeremias respondeu: «É mentira! Eu não me passo para os caldeus.» Jerias, porém, não o quis ouvir e, prendendo o profeta, levou-o à presença dos chefes. As autoridades irritaram-se contra Jeremias e, depois de o açoitarem, prenderam-no na casa do escriba Jónatas (…). Jeremias entrou num calaboiço subterrâneo, onde esteve durante muitos dias (Jeremias 37, 11-16). Chegámos ao último período da história de Jeremias, narrado por Baruc. É o ciclo do chamado “martírio de Jeremias”. O seu calvário, a sua paixão. E as analogias vivíssimas com o relato da paixão de outros justos são muitas e importantes. As pancadas, os interrogatórios, os diálogos noturnos secretos, a cisterna e a lama. Podemos conhecer os Evangelhos, a vida, a paixão e a morte de Jesus Cristo sem nunca ter lido a Bíblia, os profetas, Job, Jeremias. Podemos fazê-lo, muitos o fizeram, muitíssimos continuam a fazê-lo. Mas podemos ler os Evangelhos juntamente a toda a “Lei e os Profetas” e, então, aprendemos a conhecer um outro cristianismo, começamos uma outra vida espiritual e, talvez, encontremos um outro Cristo.
Num momento de afrouxamento do torno do cerco dos babilónios, porque empenhados na frente egípcia (37, 11), Jeremias, ainda com liberdade para se movimentar (37, 4), desce da cidade, provavelmente para a aquisição do terreno em Anatot, de que nos fala o grandioso episódio do capítulo 32. É detido e acusado de colaboracionismo com o inimigo e lançado numa cisterna. Como José, um outro justo, o primeiro profeta da história da salvação, também ele acusado pelos irmãos, pelas suas palavras diferentes, pelos seus sonhos proféticos, verdadeiros e incómodos. Também ele salvo e não deixado morrer na cisterna: «O rei Sedecias mandou-o buscar, a fim de o interrogar secretamente no seu palácio. Perguntou-lhe: “Tens, porventura, algum oráculo do Senhor?” Jeremias respondeu-lhe: “Sim, tenho. Serás entregue nas mãos do rei da Babilónia”» (37, 17).
É extraordinária e impressionante a fidelidade de Jeremias à palavra: já o vimos muitas vezes, mas, de cada vez, continua a impressionar-nos e a deixar-nos sem respiração. O rei manda-o chamar ao cárcere, à procura das palavras diferentes do profeta, talvez pensando que a mudança do contexto geopolítico e o regresso do império egípcio teria produzido uma outra profecia e um outro resultado. Com Jeremias, estes jogos não funcionam, nem sequer no desespero geral. E, do fundo da sua cisterna, velho e esgotado, repete ao rei a mesmas palavras de sempre: a única salvação é a rendição, os caldeus voltarão, ocuparão Jerusalém e o templo. Acabou.
Um outro episódio que fala muito e alto, que diz muitas coisas. Entre estas, a ambivalência radical deste rei (e do poder em geral) que, por um lado, parece dar crédito a Jeremias e lhe pede um novo oráculo e, por outro lado, desejaria sugerir a Jeremias que palavras a dizer, certamente diferentes das que Jeremias sempre tinha dito. O rei procura consolações; Jeremias obedece à verdade. Sedecias faz como quem, perante uma escolha determinante, sente necessidade de um “profeta”, que o aconselhe e console, mas não tem a força moral de ir ter com alguém honesto e verdadeiro, porque poderia dar-lhe um conselho incómodo; e, assim, procura, por vezes inconscientemente, um pai espiritual ou um coach espiritual, manipulável, que o aconselhe a escolha que ele, no seu coração, já decidiu fazer. Discernimentos mentirosos, sem amor à verdade, os enganos típicos cultivados sempre pelos falsos profetas. De facto, Jeremias acrescenta: «Onde estão os vossos profetas que vos profetizam, dizendo: 'O rei da Babilónia não virá contra vós e contra esta terra'?» (37, 19). Como quem diz: se queres as habituais mentiras consoladoras, dirige-te aos teus profetas da corte, aos rufias que sempre te disseram o que querias ouvir, e te impeliram para o abismo. Jeremias, pelo contrário, resiste até ao fim, não se torna servo do poder e dos seus fingimentos. Jeremias é grande por muitas coisas, mas é imenso por esta fidelidade sem condições à palavra e à própria dignidade. Perante a derrota, já iminente, do rei e do povo, podia ceder à pietas humana e dizer uma palavra de consolação – como quem, à cabeceira de um inimigo que está a chegar ao fim, lhe diz com amor: “Vais ver que melhorarás”. Nós fazemo-lo; Jeremias não: para nos repetir o valor absoluto da verdade da palavra, em qualquer circunstância, mesmo na mais dramática. Também quando a palavra parece, a alguém, entrar em conflito com as exigências da caridade, Jeremias diz-nos que o único modo de trair, seguramente, a caridade é renunciar a servir a verdade da palavra. Os descontos, os saldos, os leilões, as amnistias… os profetas deixam-nos para os nossos negócios, de ontem e de hoje..
O diálogo secreto, entre o profeta e o rei, continua: «Jeremias disse ainda ao rei Sedecias: “Que delito cometi contra ti, contra os teus ministros e contra este povo, para me meterdes na prisão? Agora, escute-me, majestade; que o rei acolha favoravelmente a minha súplica, e não me faça voltar para a casa do escriba Jónatas, para que não morra lá”. Então, o rei Sedecias ordenou que Jeremias fosse retido no pátio da guarda e que lhe dessem todos os dias uma torta de pão, trazido da rua dos padeiros, enquanto houvesse pão na cidade» (37, 18-21).
Neste diálogo, as palavras de Jeremias não são precedidas por “Assim fala YHWH”, nem por “Oráculo do Senhor”. Encontramo-nos perante um diálogo entre dois homens, entre um soberano e um profeta, entre um rei e um seu prisioneiro. As palavras de Jeremias, no livro de Jeremias, não são todas palavras de YHWH. Existem também muitas palavras apenas de Jeremias, que não são menos belas e importantes – como o relato da sua vocação, das suas provas, os seus cânticos íntimos. Esta oração que, agora, o ancião profeta, esgotado pela prisão, dirige ao rei, não é um gesto profético nem uma ordem de Deus. É apenas uma palavra de Jeremias de Anatot. Uma palavra como as muitas que os sofredores gritam aos poderosos que os podem libertar. Talvez todos os “oráculos” recebidos no decurso da nossa existência tenham formado um capital que gastaremos quando chegarmos ao cimo do nosso Gólgota, onde recordaremos apenas uma das palavras escutadas e ditas e comporemos o nosso salmo de abandono.
Nos capítulos do seu martírio, narrados pelo seu escriba Baruc, também Jeremias aparece cada vez mais indefeso, só, em poder dos seus inimigos. As palavras que repete são as que sempre disse: «Assim fala o Senhor: ‘Aquele que ficar nesta cidade morrerá pela espada, pela fome e pela peste; e aquele que sair para se entregar aos caldeus será tomado como despojo, mas terá a vida salva’. Oráculo do Senhor: ‘A cidade será entregue nas mãos do exército do rei da Babilónia, para que a conquiste’» (38, 2-3). Não há outras palavras a dizer. E, assim, os ministros e os generais ainda presos pela ideologia nacionalista e bélica, pedem ao rei para Jeremias ser de novo preso. E o rei Sedecias responde: «Aí o tendes nas vossas mãos, pois o rei nada vos pode recusar» (38, 5). Nesta paixão, não podia faltar Pilatos – quase nunca falta nas paixões verdadeiras dos homens e de Deus: «Tomaram, então, Jeremias e, por meio de cordas, fizeram-no descer à cisterna do príncipe Malquias, que fica no pátio da guarda. Não havia água na cisterna, mas apenas lodo; e Jeremias ficou atolado no lodo» (38, 6).
Jeremias afunda-se no lodo. Nós podemos vê-lo afundar e continuar os nossos afazeres, divertindo-nos com as nossas ilusões. Ou, então, podemos decidir afundar-nos com ele e, na cisterna, esperar uma salvação, mas sem saber se virá um eunuco etíope a salvar-nos. Porque não existem muitos “etíopes” para salvar todos os Jeremias que continuam atolados na lama do mundo.
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