A aurora da meia-noite / 4 – A verdade também faz sofrer, mas gera para a verdadeira liberdade
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 14/05/2017
«Espero, de todo o coração, que me absolveis; não me diverte a ideia de fazer de herói na prisão, mas não posso deixar de declarar-vos explicitamente que continuarei a ensinar os meus jovens o que ensinei até agora … Se não pudermos salvar a humanidade, salvaremos, pelo menos, a alma».
Don Lorenzo Milani, Carta aos capelães militares, carta aos juízes
A ideologia é o primeiro instrumento usado pelas classes dominantes nos tempos das crises. Antes da força, do dinheiro, do poder político, os chefes (civis ou religiosos) gerem as crises dos seus impérios produzindo ideologias, pagando a ideólogos, erguendo um sistema de propaganda capilar da ideologia. Quanto mais grave é a crise, mais essencial é o instrumento ideológico. A principal forma que toma a ideologia no tempo das crises é a produção sistemática e reiterada de ilusões coletivas. Enquanto os sinais falam, clara e somente, de declínio e de fim, as ideologias produzem, primeiramente, sinais diferentes, inexistentes; depois, fazem-nos tornar principais; por fim, apresentam-nos como os únicos. As ideologias são muitas e diferentes, mas têm em comum a criação artificial de uma realidade paralela que é apresentada como perfeita e que, progressivamente, faz perder o contacto com a realidade imperfeita e verdadeira.
As ideologias ilusórias que se desenvolvem e crescem durante as crises grandes e longas são, talvez, as mais perigosas e devastadoras, porque têm a sua especificidade na negação da crise. Vive-se o tempo presente na espera de algum acontecimento miraculoso, de uma nova revelação, ainda secreta, que salvará a todos e a comunidade é drogada com um ópio espiritual que agrava e exaspera a crise. Uma manipulação que dura até que a evidência supere o ponto em que se torna impossível a negação. Mas, por vezes, o “ponto sem retorno” torna-se irrealizável, porque as ideologias mais fortes e poderosas podem levar à elaboração ideológica das crises muito para a frente e, não raramente, também as catástrofes e os colapsos totais continuam, ex post, a ser interpretados ideologicamente. Há comunidades aniquiladas pela ideologia, mas onde os membros sobreviventes continuam a negar a evidência e a procurar, entre os escombros, alguma confirmação das suas anteriores previsões ideológicas.
Também Jeremias teve de se confrontar com este tipo de ideologia e com os seus efeitos devastadores: «“Pois, naquele dia, o coração do rei e o vigor dos chefes desfalecerá - oráculo do Senhor. Os sacerdotes serão possuídos de terror e os profetas de espanto”. Eu disse: “Na verdade, ó YHWH, Tu enganaste este povo e Jerusalém, prometendo-lhes a paz, quando a espada nos penetrou até ao mais íntimo» (Jeremias 4, 9-10).
Aqui, Jeremias mostra uma dimensão subtil e decisiva do fenómeno ideológico. O que estava a acontecer a Jerusalém era uma produção sistemática de ilusões por parte dos profetas pervertidos, aliados aos sacerdotes e à classe dominante. Estes tinham, primeiro, criado, depois, alimentado a chamada “teologia real do templo”, uma espécie de nacionalismo religioso que proclamava a invencibilidade de Jerusalém, a inviolabilidade do templo e, por isso, negava o perigo proveniente do Norte (Babilónia). «Tereis a salvação» não fora a palavra de YHWH, mas dos falsos profetas e dos chefes, que defendiam o seu poder iludindo o povo. Neste contexto, Jeremias vê claramente a evolução desta ideologia. O inimigo chegará e destruirá o reino, mas a ideologia continuará em ação, salvando-se a si própria com a única explicação que lhe resta: a inversão total da realidade, atribuindo a criação da ilusão ao próprio YHWH. Para se salvar a si próprios, os chefes do povo condenam Deus.
Isto é uma atuação comuníssima do poder, realizada através da ação dos falsos profetas, e é também o “teste decisivo” para desmascarar a falsa profecia. Os falsos profetas, sempre abundantíssimos durante as crises grandes, perante o não cumprimento das próprias previsões, em vez de reconhecer a falsidade da sua palavra, negam a verdade daquele em cujo nome tinham profetizado. Sacrificam Deus de bom grado porque, na realidade, era apenas um ídolo que usavam para receber benefícios. Todos os falsos profetas são ateus, e sabem que o são – os ex-profetas tornam-se ateus porque se revelam falsos profetas e não vice-versa. Sacrificam Deus no altar dos próprios interesses porque aquele deus não valia nada para eles, era apenas um totem, uma flauta para encantar os outros. Nisso, o falso profeta é o arquétipo de todos os que, perante a escolha entre o próprio interesse e a verdade de uma relação, escolhem-se a si próprios, renegando e matando matrimónios, comunidades, amizades, empresas. Serviram-se de Deus apenas para fazer carreira, e deitam-no fora logo que já não lhe convenha.
O profeta autêntico, pelo contrário, é responsável pela palavra que anuncia porque aquela palavra é carne da sua carne, é palavra incarnada. Não pode preferir a morte da palavra à própria morte, porque nele/nela as duas palavras tornam-se uma só carne, como nas núpcias. O martírio do profeta não é altruísmo nem generosidade, é a única escolha que podem fazer para permanecer profetas.
É o próprio Jeremias a mostrar-nos, maravilhosamente, a relação íntima entre a palavra e a sua carne, num versículo estupendo, um absoluto da literatura profética: «Ai, as minhas entranhas e o meu peito! O meu coração está em sobressaltos!» (4, 19). Uma obra-prima espiritual, que rasga o véu da alma do profeta, homem de Anatot, e o torna nosso contemporâneo – ou, melhor, nós seus. Mas, sobretudo, leva-nos para dentro do seu mistério e do mistério de qualquer vocação humana verdadeira.
Jeremias, profeta autêntico, pode e deve dizer apenas o que vê e ouve. Vê e ouve desgraça e destruição para Jerusalém, e grita-o. Não pode emendá-la, revirá-la, caso contrário tornar-se-ia simplesmente um falso profeta, como tantos outros, como quase todos. Mas, aquele povo, a quem anuncia a desgraça, é o seu povo, é a sua gente. Está aqui o valor dos profetas: sofrer, contorcer-se com as palavras que anunciam, mas não serem livres de não as anunciar.
Este sofrimento acompanhará Jeremias (vê-lo-emos), mas é uma nota central do ministério do profeta, particularmente forte e atormentadora em tempos das grandes crises e das grandes ilusões. O povo quereria acreditar que a crise passará rapidamente e tudo voltará a ser belo como antes, que a queda de vocações na comunidade é transitória, que as igrejas voltarão a encher-se; e, em vez disso, o profeta-não-falso diz – se assim vê e ouve – que a crise se acentuará, que as vocações serão cada vez menos, que as igrejas continuarão a esvaziar-se. Os profetas não são sempre profetas de desgraça; anunciam também coisas esplêndidas – nascimento de crianças, um rebento, o regresso dum “resto”, um messias. Mas é a profecia da desgraça o verdadeiro teste da verdade e qualidade dum profeta, onde pode perder a alma ou florir em anima mundi. Muitas vocações proféticas falham por incapacidade de persistir no anúncio de coisas incómodas e duras – para o povo e para o profeta.
O profeta verdadeiro, portanto, sente na sua carne todo o sofrimento pelas vocações que faltam, pelo vazio nas igrejas, pela destruição da cidade. O profeta é mãe da palavra que pronuncia (“as minhas entranhas e o meu peito…”). Faz a experiência de quem vê o filho que se dirige definitivamente pelo caminho estrada dos porcos e das prostitutas, e já o vê em ação nas pocilgas e nos bordéis («Cumulei-os de dons e eles cometeram adultério, indo, em tropel, às casas da prostituição. Eram garanhões bem nutridos e lascivos; cada um arde em cobiça diante da mulher do seu próximo»: 5, 7-8).
Os sentimentos de Jeremias, aqui, não são os do “pai misericordioso” que espera, com esperança, o regresso do “filho pródigo”, mas o de quem sofre porque o filho, o irmão, o amigo, não volta e não quer voltar. Na mundo, são poucos os filhos que regressam das bolotas, mas são muitos os que lá permanecem. E muitos pais e amigos podem apenas, como Jeremias, “contorcer-se nas entranhas” pela dor destes não-regressos. Os filhos não voltam, nós sofremos e eles continuam a não voltar.
A primeira ressurreição que a Bíblia realiza (e também a grande literatura e a grande arte) é o seu tornar-se próximo dos crucificados, abordá-los, vê-los, antes que chegue a aurora da ressurreição, prisioneiros num perene sábado santo. É assim que alcança e toca as nossas feridas mais profundas, as não curadas, e as beija. As feridas não se curam com os beijos, mas o nosso coração talvez se cure.
Se a Bíblia contivesse apenas os relatos dos filhos que regressam, das filhas que ressuscitam, dos curados que regressam para agradecer, dos escravos libertados, seria apenas uma edificante recolha de histórias com final feliz, ou um livro de relatos consoladores. O imenso valor espiritual e humano da Bíblia está também na presença de páginas acerca das entranhas contorcidas de Jeremias, pelos irmãos e filhos perdidos e que não pode salvar, dos relatos de Abel morto por um irmão, de Job que continua a gritar inocência num monte de estrume, a esperar um Deus que ainda não chegou, que talvez não chegará, mas que continua a ser esperado e gritado como o “Deus do ainda não” porque liberto das ilusões. A maior parte das histórias vivas e verdadeiras não têm um final feliz, mas se existe (e existe) uma alegria em viver, esta espera-nos para além das ilusões, quando tivermos aprendido a encontrar as ressurreições dentro dos crucificados. Os lugares da terra onde podemos esperar ser surpreendidos pelo Espírito assemelham-se mais ao Gólgota que ao Tabor. Na terra e, talvez, também no céu.
A honestidade do profeta mede-se pela medida do sofrimento pelas palavras verdadeiras que diz. Qualquer honestidade se mede só assim, quando, para nos salvarmos, poderíamos dizer palavras diferentes e rufias, mas não as dizemos, e nos salvamos verdadeiramente, mesmo se tudo à nossa volta nos diz o contrário e fala de insucesso e de fracasso.
Os dons dos profetas no tempo das desgraças são apenas a honestidade das suas palavras verdadeira e as suas entranhas contorcidas. Juntos. As entranhas são a caixa-de-ressonância das notas do seu canto. Tão verdadeiro e honesto que ainda nos toca e nos fala, a consolar-nos nas nossas desgraças, a proteger-nos dos muitos vendedores de ilusões.
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