A aurora da meia-noite / 9 – A semente rompe a crosta, as pétalas dão cor às flores
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 18/06/2017
«Quase todas as ideias lançadas por Jeremias nesta época ligam-se à lei; quase todas as imagens usadas por ele são tiradas do mesmo património, já secular, da profecia bíblica. Tudo isto não é mais que um exercício, uma aprendizagem»
André Neher, Jeremias
«YHWH ordenou-me: “Vai comprar uma faixa de linho e cinge com ela a tua cintura, mas não a metas na água”. E eu comprei a faixa, de acordo com a palavra de YHWH, e com ela me cingi. Foi-me dirigida, pela segunda vez, a palavra de YHWH: “Toma a faixa que compraste (…) e encaminha-te para as margens do Eufrates, e esconde-a ali na fenda de uma rocha» (Jeremias 13, 1-4).
Vai. Os profetas recebem ordens de Deus, precisas, pormenorizadas, meticulosas. Palavras que chamam, pelo nome, objetos, rios, pedras. São instruções para desenvolverem uma missão especial, um mapa para uma viagem num território inexplorado, uma execução testamentária. Um mandato para fazer, não só para dizer: a boca dos profetas é o seu corpo. Falam dizendo, falam fazendo. Falam com a boca, com as mãos, com os pés, com as pernas, com a coluna.
A experiência da verdade da palavra de quem fala e a capacidade de a distinguir das não-verdades dos falsos profetas é, porém, um processo lento e, frequentemente, muito longo, que, por vezes, pode durar anos, décadas, até toda a vida de um profeta. O florescimento destas vocações segue um caminho marcado por fases precisas, que o estudo da Bíblia e da vida nos pode ensinar a conhecer e a reconhecer.
No princípio, há uma comunidade onde o profeta nasce, onde convivem más e boas pessoas, verdadeiros e falsos profetas. As comunidades verdadeiras são sempre mistas e espúrias. Uma vocação profética só pode crescer e desenvolver-se dentro de uma ou mais comunidades, a partir da primeira comunidade familiar. Embora nada mais do que a profecia diga individualidade e diálogo pessoal entre dois “tu”, a profecia é também uma prática e, por isso, um assunto social e comunitário. Os profetas são enviados a comunidades concretas, são incarnados na terra e na história de um lugar de um determinado tempo; as suas críticas, cuidados, perguntas estão encastoadas na vivência quotidiana da sua gente.
No interior desta primeira comunidade, realiza-se o primeiro chamamento, a vocação, que é o acontecimento fundamental e absolutamente individual. Porém, após o chamamento, encontramos de novo a comunidade, umas vezes a primeira, outras vezes uma nova comunidade profética, onde o jovem se forma, procura um ou mais mestres, companheiros de vocação. A ideia que os profetas sejam homens solitários, que vêm ao mundo já formados e perfeitos para desenvolver a sua missão ou amestrados apenas por Deus no seu íntimo, pertence às representações artísticas, não à realidade histórica. Na verdadeira formação dos profetas, as vozes e as palavras dos Batistas e dos Ananias são aliadas necessárias da voz de YHWH. Nasce-se profeta, torna-se profeta aprendendo, no tempo, a ser o que se era já no seio materno.
Esta dimensão temporal e diacrónica da vocação profética explica porque os primeiros capítulos do livro de Jeremias não sejam muito originais, apesar de alguns lampejos luminosíssimos de génio. Van Gogh aprendeu a desenhar: no princípio, era já Van Gogh por vocação, mas ainda não conhecia as técnicas da pintura. Nas suas primeiras pinceladas já se antevia o grande génio, mas tivemos de esperar anos, para ver as suas obras de arte. Também Jeremias aprendeu a ser profeta, porque a profecia é carne e sangue, e vive com as suas leis e tempos. E, assim, na primeira fase da sua atividade de jovem profeta, Jeremias começa a conhecer os grandes profetas bíblicos que o tinham precedido, estuda a Torá, a tradição da Aliança, as histórias dos Patriarcas. O jovem profeta procura a sua própria identidade, e começa a descobrir o seu perfil profético específico, que encontrará na maturidade. Então, para compreender e tocar em profundidade os livros proféticos, que se desenrolaram e escreveram no tempo, devemos aprender a esperar, temos de acompanhar o profeta no seu crescimento. A palavra cresce juntamente aos seus escritores, e nós crescemos juntamente aos profetas se sabemos esperá-los. E escritura é mãe, a escritura é esposa; mas a escritura também é filha de quem a sabe esperar enquanto cresce e lhe coloca as perguntas no momento próprio, nem antes nem depois – muitas vezes, não encontramos as respostas na Bíblia porque as fazemos no momento (kairos) errado, fora do tempo.
A charneira entre a fase juvenil e a da maturidade de Jeremias (e dos profetas, em geral), é representada pelo conflito e pela emancipação da primeira comunidade. De facto, no desenvolvimento da sua vocação, Jeremias começa a duvidar, não só da sua família (capítulos 11 e 12), mas também da sua própria comunidade profética. O povo é oprimido pela seca e pela fome, e Jeremias pede a Deus: «Ah! Senhor meu Deus! Os profetas dizem-lhes: “A espada não vos atingirá, não passareis fome; antes, dar-vos-ei paz e segurança neste lugar”» (14, 13). Não estamos ainda na verdadeira luta que Jeremias travará contra os falsos profetas, nos capítulos seguintes da sua vida e do seu livro. Pelo contrário, estas suas palavras sugerem-nos um jovem profeta ainda confuso, que se encontra dentro da comunidade onde cresceu e se preparou e na qual se fia, mas pede a Deus explicações sobre a luta interior que começa a sentir. A luta entre as palavras que lhe nascem dentro e que ouve pronunciar pelos outros profetas.
Esta etapa é uma etapa crucial das vocações proféticas, sobretudo das maiores – como é a de Jeremias. Podemos compreendê-la se tivermos presente que, em Israel, a profecia era também uma espécie de profissão. Eram centenas, talvez milhares, os nabi (profetas) que giravam pelo país, a contar visões, realizando gestos bizarros e profetizando cenários sombrios e apocalípticos. Tinham um vestuário típico (ex.: o manto) e eram facilmente reconhecidos no meio do povo e em redor do templo. Nem todos estes profetas eram “falsos” ou impostores. A maior parte eram profetas por profissão, que se limitavam a repetir os poucos versículos de Isaías ou de Amós e, com base no seu conhecimento da sabedoria e da tradição profética, conseguiam também dar algum bom conselho ou, até mesmo, encontrar algum ouvinte ou discípulo. Na primeira fase da sua vida, Jeremias terá sido um destes nabi, misturado entre os muitos de quem não temos qualquer sinal. Um dia, porém, aquele profeta, já diferente, começa a compreender que as suas palavras não são como as dos seus “colegas”, porque a voz que lhe fala diz coisas diferentes das que ouve dizer pelos outros: “Mas o Senhor replicou: «Esses profetas falsamente vaticinam em meu nome: não os enviei, não lhes dei ordens, não lhes falei. Visões mentirosas, oráculos vãos, fantasias e enganos do seu coração, eis o que profetizam!»” (14, 14). Jeremias adquire consciência do seu ser profeta diferente. Uma diversidade que, para se projetar com toda a sua força, recorre àquele conjunto de palavras sintetizado na expressão falsa profecia. Sob o ponto de vista histórico, é difícil imaginar que todos os nabi do tempo de Jeremias fossem falsos profetas, inventores e cantores de mentiras, embora Jeremias o escreva. Como em todas as profissões, os bons e os maus profetas terão vivido lado a lado, mesmo no seu tempo.
Aqui, porém, a quest
Aqui, porém, a questão é diferente e muito importante. Não é apenas a Lei a desempenhar a função de pedagogo (São Paulo); ela deve deixar lugar ao Espírito, quando se se torna adultos. Também a comunidade profética é um pedagogo e, se não sabe desaparecer quando a criança atinge a maturidade, impede os jovens de desabrochar. Ao mesmo tempo, a comunidade não pode deixar de combater este desabrochar, como a semente que se opõe à terra que a tinha guardado, que, se não for forçada e furada não produz espiga nem fruto. Há um dia, um momento, em que quem recebeu a vocação profética pode sentir a urgência de deixar a comunidade dos profetas de profissão para se tornar algo de diferente que nem sequer ele/ela conhece ainda. Inicia-se uma nova etapa, totalmente diferente e, quase sempre, só. Este “voo” toma sempre as formas de um julgamento duro nas relações com a comunidade, que pode assumir as mesmas palavras de Jeremias: falsidade e mentira. Na história, nem sempre a falsidade e a mentira da primeira comunidade são reais, mas são reais na experiência subjetiva de quem deve iniciar aquele voo louco.
É assim que nascem as grandes inovações, mesmo as espirituais. Uma destruição criadora que, na experiência, ganha a forma de “destruição” da profecia dos outros para poder “criar” a própria.
Todos os outros colegas profetas de Jeremias não terão sentido nenhuma necessidade de destruir as palavras dos outros, simplesmente porque não tinham nada a criar. A grande inovação profética tem necessidade dos escombros da tradição para construir a própria catedral. Esta é uma outra analogia entre profecia e carisma: ambas inovam “destruindo” as suas instituições e as suas palavras. Mas – e este é um problema decisivo – a par dum verdadeiro profeta que destrói para criar, existem mil falsos ou patifes que destroem e basta.
Quando, numa comunidade profética, um jovem entra em conflito com as palavras dos outros, a ponto de as sentir e chamar “falsas” e “mentira”, é possível que nos encontremos diante do desabrochar de uma vocação profética autêntica que, para poder desenvolver o seu trabalho e a sua missão de salvação não pode deixar de destruir e, depois, criar, ferir a terra para poder florir, conforme a lei inscrita no próprio códice genético espiritual.
Muitas vocações não desabrocham e estragam-se apenas porque não se lhe dá oportunidade de gerar. A comunidade originária não consegue ver a bênção na ferida da sua terra; não pode vê-la. Mas o profeta também pode desabrochar se consegue permanecer dentro deste conflito doloroso até a habitá-lo, se não cede à tentação de voltar à comunidade dos nabi normais e inócuos. Muitos profetas não conseguem florescer porque persistir na destruição criadora é muito doloroso: «Derramem os meus olhos lágrimas noite e dia, sem descanso» (14, 17). Mas, todas as vezes que uma vocação morre soterrada, pétalas coloridíssimas desaparecem do floreio da terra.
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