Como lápide dos inocentes

Como lápide dos inocentes

Maiores que a culpa / 18 – Os carniceiros humilham, negando a dignidade do nome

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 20/05/2018

Piu grandi della colpa 18 rid«A relação Eu-Tu consiste em colocar-se frente a um ser externo, isto é, radicalmente outro, e em reconhecê-lo como tal. Este reconhecimento da alteridade não consiste em fazer uma ideia da alteridade. Não se trata de pensar o outro nem de o pensar como outro, mas de dirigir-se a ele, dizer-lhe Tu»

Emanuel Lévinas Martin Buber

O diálogo é o fio que tece as nossas relações sociais boas e fecundas. Ouvir e dizer, silêncio e palavra, frases e gestos são a gramática do recíproco atravessamento (dia) da palavra (logos). Dialogar é deixar-se atravessar pelo outro enquanto lhe pedimos autorização para se deixar atravessar pela nossa palavra. Atravessar é um verbo de movimento, que lembra tempo e espaço, lugares, nomes, carne; é sempre criação e novidade.

Muitos possíveis diálogos necessários, começados com empenho e boa vontade, não conseguem nascer porque, quando a palavra toca a carne para a marcar, a perceção da dor bloqueia o atravessamento recíproco. Paramos, quase sempre, no limiar do diálogo verdadeiro, onde se encontram os seus semiacabados – o confronto, o gentlemen agreement, o compromisso… Na origem da civilização ocidental encontramos uma tese esplêndida e imensa, que é também uma declaração de amor que o homem faz a si mesmo: somos seres capazes de logos, de palavra, de discurso, de diálogo e, por isso, de relação. Somos uma realidade dialógica. O humanismo bíblico também nos disse que o Adão também é capaz de diálogo com Deus, que podemos ter uma relação com o absoluto, sabemos discorrer com YHWH. O homem é um ‘amigo de Deus’ (Abraão), fala-nos ‘face a face’ (Moisés), porque não só o homem, mas também o Deus bíblico é capaz de diálogo. Jeremias, Isaías, Agar, Ana, Maria mostraram-se como pessoas guiadas por uma voz, com a qual entram em diálogo. Dialogar é sempre uma aprendizagem recíproca, é uma con-criação. Então, se é verdade que a humanidade aprendeu e aprende muito, dialogando com Deus, deve ser também verdade que Deus aprendeu e continua a aprender alguma coisa a dialogar com o homem e com as mulheres. Aprendeu e aprende o que, na verdade, são o mundo, a dor e o amor, enquanto nós melhoramos esse mundo com o nosso trabalho, enquanto nos enamoramos, sofremos, somos fiéis e infiéis, morremos e ressurgimos muitas vezes. Deus mudou para sempre a história humana ressuscitando o seu filho, e nós sabemos que muda porque não pode ficar indiferente quando assiste, ao vivo, às nossas ressurreições e às dos nossos filhos.

Também David é um homem que dialoga com Deus: “Depois disto, David consultou o Senhor, dizendo: «Posso ir a alguma das cidades de Judá?» Respondeu o Senhor: «Podes.» David perguntou: «A qual irei?» A resposta foi: «A Hebron.» David pôs-se a caminho de Hebron com suas duas mulheres, Aínoam, de Jezrael, e Abigaíl” (2 Samuel 2, 1-2). David faz perguntas a Deus, que responde. Não sabemos como David dialogava com YHWH. Mas seríamos tolos se deixássemos o género literário ensombrar a beleza e a verdade destes diálogos distantes. Em Hebron, David é ungido rei: “Os homens de Judá foram lá e ungiram David como rei de Judá” (2, 4). David torna-se rei local, e grande parte de Israel permanece ainda nas mãos da família de Saul. Abner, o comandante do exército de Saul, pessoa de grande carisma e poder, tinha feito com que Isboset, um dos filhos de Saul, se tornasse rei: “Isboset, filho de Saul, tinha quarenta anos quando se tornou rei de Israel e reinou durante dois anos. Porém, a casa de Judá seguiu David” (2, 10).

Em seguida, David dirige-se aos habitantes de Jabés de Guilead, que tinham sepultado dignamente Saul: “David soube, então, que os homens de Jabés em Guilead haviam sepultado Saul. David mandou-lhes mensageiros, dizendo: «Abençoados sejais pelo Senhor, por terdes feito esta obra de misericórdia para com o vosso senhor Saul, sepultando-o. Que o Senhor, por sua vez, se mostre bom e fiel para convosco; eu também vos farei bem por esta ação que realizastes” (2, 4-6).

O reconhecimento é duplamente transitivo: aqueles habitantes tinham sido reconhecidos para com Saul; agora, David é reconhecido para com eles e pede a Deus que seja reconhecido, dando àqueles cidadãos ‘amor e fidelidade’. Os nossos filhos serão, amanhã, reconhecidos para com os outros e para connosco, se hoje o somos para com os outros e para com os nossos pais, porque o reconhecimento é a primeira herança que se transmite de pai para filho. Esta forma de transmissão horizontal (entre homens e entre gerações) é o lado luminosos da lei de retribuição vertical que atravessa a Bíblia (as nossas desventuras e as nossas riquezas são punições e prémio de Deus), que Jesus procurou superar definitivamente – sem sucesso, se pensamos que a meritocracia não é mais que a secularização daquela antiga teologia.

Estes primeiros capítulos do segundo livro de Samuel mostram-nos uma verdadeira guerra civil e fratricida entre David e a dinastia de Saul. Sucedem-se hediondos homicídios, traições, vinganças, que têm como principal fim dizer-nos que David, o novo rei, não sobe ao trono nem como usurpador nem como assassino dos seus inimigos. Os seus rivais principais (Isboset e Abner) são mortos por homens de David sem o seu conhecimento e contra a sua vontade (capítulos 3 e 4). De facto, como tinha acontecido com a morte de Saul e de Jónatas, David chora, jejua e celebra o luto quer pela morte de Isboset quer pela de Abner. O texto descreve-nos uma escalada de violência camuflada (René Girard), onde as retaliações e as vinganças se tornam a nova lei. A guerra civil terminará com a vitória de David e uma sua nova unção como rei de todo o Israel, em Jerusalém, a sua nova cidade e capital do reino.

Dentro do relato desta guerra civil, encontramos quadros narrativos breves, mas esplêndidos, que não nos podem deixar indiferentes.
O primeiro está relacionado com Abner, comandante do exército, que tinha “tomado” uma concubina de Saul. Isboset, o novo rei, diz-lhe: “Porque te aproximaste da concubina de meu pai?” E Abner dá-lhe uma resposta que nos introduz, imediatamente, numa dimensão péssima do poder, de todos os tempos: “Sou, porventura, algum cão de Judá? Até hoje, tenho agido com lealdade para com a casa de Saul, para com o teu pai, os seus irmãos e amigos, livrando-vos de cair nas mãos de David; e vens tu agora acusar-me de crime com esta mulher?” (3, 8). Tremendo. Passaram-se três mil anos, mas ainda encontramos esta frase viva e atual, com toda a sua infinita violência, nos lugares do poder dos homens, onde as relações com as mulheres são, muitas vezes, consideradas ‘questões’ irrelevantes, loucuras, ‘coisas’ desprezíveis, se comparadas às coisas sérias da política, da economia e do poder. A Bíblia, pelo contrário, olha para esta mulher, dá-lhe um nome e, portanto, reconhece-a. Aquela mulher chama-se Rispa. É a Bíblia a chamá-la pelo nome, não Abner, para quem ela é apenas uma ‘coisa’ a ‘tomar’, nem o rei, que a chama ‘uma concubina’. Não é Sara a dizer-nos, no Génesis, o nome da serva e do seu filho que ela expulsou para o deserto: é o autor bíblico a dizer-nos que se chamavam ‘Agar’ e ‘Ismael’. Os poderosos e os carrascos começam por humilhar as suas vítimas, negando-lhes a dignidade do nome, porque chamá-las pelo nome significaria reconhecê-las como pessoas. Reencontraremos Rispa no capítulo 21, num dos episódios mais dramáticos e humanos de toda a literatura antiga.

Um segundo quadro está encaixado na oferta de aliança/traição que Abner faz a David, prometendo entregar-lhe todo o Israel. David, como pré-condição de aliança com ele, diz a Abner: “Restitui-me a minha mulher, Mical, com a qual casei em virtude de ter circuncidado cem filisteus” (3, 14). Não sabemos porque é que David pede de volta a sua primeira mulher, Mical, filha de Saul. Apenas sabemos que, depois da fuga de David, Mical fora dada pelo pai a um outro marido: Paltiel. O pedido de David é executado e o rei “ordenou que a tirassem a seu marido, Paltiel” (3, 15). Muito forte é a reação do marido: “com lágrimas, a acompanhou até Baurim. Ao chegar ali, disse-lhe Abner: «Volta para tua casa.» E ele voltou” (3, 16). A Bíblia consegue fazer-nos ver este marido que segue, a pé e em lágrimas, a caravana da mulher, como o mesmo desespero com se segue o carro com a urna de uma mulher E, com isto, quer dizer-nos algo acerca da piedosa condição de um homem, de um macho, de um marido que, mesmo que só por um momento, atenua a impiedade das ações dos outros homens desta história – David incluído.

Por fim, encontramos um terceiro pormenor no capítulo que descreve a morte do rei Isboset: “Jónatas, filho de Saul, tinha um filho paralítico dos dois pés. Quando tinha cinco anos, chegou de Jezrael a notícia da morte de Saul e de Jónatas. Então, a sua ama fugiu com ele e, na precipitação da fuga, o menino caiu e ficou coxo. Chamava-se Mefiboset” (4, 4). Um relato que nos diz mais alguma coisa sobre Jónatas, o amigo de David, e quão grande e coletiva foi a dor por aquela morte. Um menino de cinco anos, coxo, em que revimos tantos meninos estropiados pelas guerras que ainda agora, três mil anos depois, continuam a estropiar, sobretudo, as crianças, a humilhar as mulheres que, mesmo quando conseguem fugir com os filhos nos braços, nem sempre conseguem evitar que as maldades dos adultos estropiem as suas crianças.

O escritor não podia poupar-nos a narração das violências daquela guerra civil. Porém, podia omitir estes pequenos pormenores narrativos, podia evitar falar-nos de Rispa e de Paltiel – como fizeram os Livros das Crónicas, que relatam os mesmos episódios, mas sem Rispa, Paltiel, Mefiboset. Todavia, aquele antigo escritor quis deixá-los, deu-nos os seus nomes e, assim, erigiu novas lápides às vítimas inocentes de todas as violências.

A Bíblia é um livro maravilhoso, por muitas razões, mas é-o, sobretudo, porque é um cofre que guarda as lágrimas dos pobres e dos rejeitados, muitas vezes escondidas nos interstícios dos grandes relatos, quase sempre ausentes nas nossas liturgias. E talvez seja bom que continuem escondidas, porque a dor das vítimas e dos pequenos é muito preciosa e deve permanecer em segredo, para a proteger.

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