stdClass Object ( [id] => 18606 [title] => É Deus; por isso, assemelha-se a mim [alias] => e-deus-por-isso-assemelha-se-a-mim [introtext] =>A alma e a cítara / 17 – Não somos amados porque sem culpa, mas porque somos amados-e-basta
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 19/07/2020
«Não é nossa missão prever o dia – mas esse dia chegará – em que os homens serão novamente chamados a pronunciar a palavra de Deus de tal modo que o mundo será mudado e renovado. Será uma linguagem nova, talvez completamente não religiosa».
Dietrich Bonhoeffer, Resistência e rendição.
A cultura da culpa e do sacrifício esconde muitas armadilhas, algumas bem conhecidas pela Bíblia que as revela no Salmo 51 (e no que o precede), um dos mais conhecidos e belos.
«Tem compaixão de mim, ó Deus, pela tua bondade; pela tua grande misericórdia, apaga o meu pecado. Lava-me de toda a iniquidade; purifica-me dos meus delitos. Reconheço as minhas culpas e tenho sempre diante de mim os meus pecados» (Salmo 51, 3-5). Miserere mei, Deus. Palavras cantadas em todas as línguas, geração após geração, cabeceira após cabeceira, lágrima após lágrima, desespero após desespero, esperança após esperança. Talvez não haja salmo mais amado que o Miserere, mais amado pelas pessoas, pelos pobres. Nem todos se encontram perseguidos, nem todos reconheçam a marca do Criador no céu estrelado e, por isso, esses salmos escritos e oferecidos para estas circunstâncias permanecem mudos; mas não há homem nem mulher que não tenha sentido, pelo menos uma vez na vida, uma necessidade invencível de ser perdoado – talvez apenas no último instante. O homo sapiens é animal mendicante de perdão.
[fulltext] =>Neste comentário ao Livro dos Salmos, geralmente, não citamos o primeiro versículo do cântico, onde se encontra o título redaccional, que fornece informação sobre o autor e sobre o contexto histórico, também porque nem sempre ajuda a percorrer o caminho exegético bom. Para o Salmo 51, porém, o título é muito importante: “Salmo de David. Quando o profeta Natan foi ao seu encontro, depois do adultério com Betsabé” (51, 1-2). É a ferida sempre aberta do Antigo Testamento, o buraco negro da história da salvação, a pausa dolorosa na genealogia de Deus: «David, da mulher de Urias, gerou Salomão» (Mt 1, 6). O homicídio de Urias, o hitita, o fiel e leal soldado que David mandou assassinar, um nome de sangue de um não-pai, anelado, como pérola opaca, naquele rosário que recitamos há dois milénios, em cada Natal.
Natan, o profeta, foi mandado por Deus ao rei David para lhe revelar a gravidade do seu pecado (2Sm 12, 1). E, depois de lhe ter contado a parábola da ovelha e obter a indignação do rei pelo delito praticado pelo homem rico da fábula, o profeta pronuncia uma das frases mais tremendas da Bíblia: «Esse homem és tu» (12, 7). David não amaldiçoa Natan, reconhece o seu delito e recitou o seu miserere: «Pequei contra o Senhor» (12, 13). O salmo continua a oração onde a tinha interrompido o segundo livro de Samuel: «Contra ti pequei, só contra ti, fiz o mal diante dos teus olhos» (Salmo 51, 6). David é grande também pelo seu miserere, grande como o seu pecado.
Estamos perante uma das páginas que inventaram a ética da culpa. Não é a única página (existe imensas, também nos mitos gregos), mas o pecado de David e a sua gestão estão entre as primeiras palavras do grande discurso sobre a culpa, que se juntou ao da ética da vergonha, mais arcaico e ainda vivo. Na culpa, é o olhar de Deus a ver-nos no segredo e a denunciar o nosso delito; na vergonha, é o olhar dos outros a descobrir-nos, denunciar-nos e punir-nos. A passagem da vergonha à culpa (nunca totalmente completa e clara) representou, em muitos aspetos, um salto ético da civilização e das religiões, mas também a ética da culpa conhece as suas patologias e produziu e produz os seus danos.
A cultura da culpa está na origem de graves formas de escravidão, não só psicológicas ou espirituais. Impediu muitas pessoas de fazerem a experiência da liberdade e da libertação porque pregadas em perenes sentimentos de culpa cada vez maiores, quase sempre inventados ou amplificados. Isto acontece e aconteceu quando a experiência da culpa não é precedida e acompanhada pela experiência mais fundamental de ser amados e, por isso, libertados também dos nossos sentimentos de culpa, pela certeza que não somos amados porque sem culpa mas de ser amados-e-basta, que somos, primeiro, inocentes, e, depois, culpáveis, que nenhuma culpa pode apagar a imagem de Deus herdada de Adão, porque Caim matou Abel, mas não a sua semelhança com Deus. Porque, se é verdade, como nos recorda David, que «nasci na culpa e a minha mãe concebeu-me em pecado» (51, 7), os profetas recordam-nos que, antes, somos amados: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jr 1, 5). A cultura da culpa é muito perigosa porque ofusca esta prioridade do amor, porque nos tira a alegria («Faz-me ouvir palavras de gozo e alegria»: 51, 10), bloqueia-nos nos nossos deméritos, concentra-nos narcisisticamente no nosso umbigo moral e não nos faz ver a beleza gratuita que nos circunda.
Os Salmos 50 e 51 enfrentam uma específica patologia da cultura da culpa. É a contida na lógica do sacrifício. Há uma relação muito estreita entre culpa a sacrifício. Cometiam-se pecados em relação ao próximo; o pecado gerava, na pessoa e na comunidade, o sentimento de culpa que se queria aplacar com sacrifícios oferecidos a Deus. Por isso, o sentimento de culpa era gerado por injustiças nas relações horizontais inter-humanas, mas a reparação dos danos acontecia numa relação vertical, entre os homens e a divindade. Aqui, a Bíblia denuncia a perversão deste mecanismo de culpa horizontal/reparação vertical: «Porventura Eu [Deus] como a carne dos touros, ou bebo o sangue dos cabritos?» (Salmo 50, 13); «Não te comprazes nos sacrifícios nem te agrada qualquer holocausto que eu te ofereça» (Salmo 51, 18). O pecado, na Bíblia, nunca é um assunto privado entre mim e a divindade: pelo contrário, é um “mal público”, que produz sempre “exteriorizações negativas” sobre os outros, que eu tenho de assumir, se o arrependimento é responsável.
O salmista recorda-nos, juntamente com os profetas que não se pode violar a justiça do próximo e, depois, esperar repará-la no âmbito do culto religioso: «Porque andas sempre a falar da minha lei e trazes na boca a minha aliança? Se vês um ladrão, tornas-te amigo dele e fazes sociedade com os adúlteros. Dás largas à tua boca para o mal e a tua língua tece enganos. Sentas-te a falar contra o teu irmão e difamas o filho da tua própria mãe» (50, 16-20). Estes dons-sacrifícios são, portanto, apenas subornos oferecidos a Deus, presentes mafiosos que só os ídolos aceitam: «A oblação daquele que sacrifica bens mal adquiridos é imunda; … o homem que jejua por causa dos seus pecados, e volta a cometê-los. Quem ouvirá a sua prece?» (Sir 34, 18.25-26).
Estamos perante a antiga tentação, por vezes apoiada pelas religiões, de acreditar que os danos provocados no próximo podem ser “pagos” a Deus em satisfatórios mercados de indulgências. A razão desta relação doente é simples: se o sacrifício é o preço do meu pecado, a religião torna-se um mercado das vacas onde se compra a permissão para pecar. Assim, os templos tornam-se escritórios de amnistias perpétuas, que não fazem mais que incentivar os pecados – também porque os nossos pecados se tornam recursos para o templo. É uma ideia infantil de Deus e da religião, nunca apagada no coração das fés. Eis, portanto, a solução diferente indicada pelo Salmo, no cântico de David arrependido: «O sacrifício agradável a Deus é o espírito contrito; ó Deus, não desprezes um coração contrito e arrependido» (51, 19), porque «Honra-me quem oferece o sacrifício de louvor» (50, 23). Aqui, o salmista tira ao sacrifício a sua lógica económico-retributiva-compensadora, e faz dela uma expressão de louvor, uma oração de súplica de conversão: «Cria em mim, ó Deus, um coração puro; renova e dá firmeza ao meu espírito» (51, 12).
Uma inovação da espiritualidade. Se cometi um pecado, se violei a justiça, não é possível compensar o dano provocado a pessoas concretas com um sacrifício a Deus. Há, no entanto, um ato concreto que posso fazer: pedir a Deus um “coração novo” e, assim, prometer a conversão, comprometer-me em não mais cometer aquele ato – e, talvez, reparar o dano que causei; mas isto não o diz o salmo. A atitude mais sábia, a melhor economia do arrependimento é a que diz respeito ao futuro, não a que se dirige ao passado: se há uma salvação de algo passado, é a que monta a sua tenda no amanhã.
Nós aprendemos, durante milénios, que nem o pedido do coração novo, nem o “sacrifício de louvor” oferece garantias que não mais cometerei o pecado que, agora, “confesso” diante de Deus; mas o salmista quis eliminar a “bolsa de valores” dos pecados, onde descontar todas as nossas “letras morais”. Na realidade, apesar dos sacrifícios de touros e cordeiros terem acabado na nossa cultura, nunca se apagou a tentação de fazer da religião um lugar de compensação vertical dos pecados e danos dos quais não queremos assumir a responsabilidade horizontal da compensação. As bolsas de valores e as instâncias de compensação mudaram de forma, mas não de substância; saíram das religiões e das igrejas, mas permaneceu sempre grande a tentação de “contaminar o irmão”, de violar a justiça e o direito e, depois, esperar alguma forma de perdão ou de amnistia onde branquear, com uma oferta, o nosso pecado. E os salmos continuam a repetir-nos, em nome de Deus: «Tens feito tudo isto. Poderei Eu calar-me? Pensavas que Eu era igual a ti?» (50, 21).
No entanto, caro antigo amigo salmista, nós “assemelhamo-nos verdadeiramente àquele Deus que, em ti, nos repreende. Disse-o a própria Bíblia que guarda o teu cântico: «criou-o à imagem de Deus» (Gn 1, 27). Não “figuramos” nada de estranho. Toda a imagem é uma relação de reciprocidade e se nós somos imagem de Deus, também Deus é nossa imagem. Sabemos bem que nós, humanos, somos um emaranhado de vícios e virtudes, de beleza e pecados, de fidelidades e traições, que todos somos irmãos de Abel e de Caim, todas irmãs, filhos e filhas de Rute e de Jezabel. Todos imagens de Eloim, todos nos assemelhamos a ele. E, assim, qualquer um poderia fazer à Bíblia perguntas incómodas: porque temos de proteger a imagem das sombras e salvar apenas as luzes? Porque reduzir e cortar aquele versículo para nos deixar apenas a semelhança da nossa parte boa? E se não fosse a ética o critério correto par realizar este recorte? Se Deus fosse maior que as nossas virtudes? Se nos assemelhássemos a ele mais do que imaginamos? E se fossemos, também nós, maiores que o nosso coração?
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Original italiano publicado em Avvenire em 19/07/2020
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 12/07/2020.
«Dantès que, três meses antes, não aspirava a nada a não ser à liberdade, agora já não se contenta com a liberdade e aspira à riqueza; a culpa não era de Dantès, mas de Deus que, limitando o poder do homem, suscitou nele desejos infinitos!».
Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo
O Salmo 49 leva-nos a refletir sobre a natureza da riqueza e sobre a sua promessa de vida eterna que, se bem entendida, não é totalmente falsa.
Desejamos a riqueza porque aumenta a liberdade. Entre as liberdades “compradas” pela riqueza, a mais fascinante e tentadora é a liberdade de morte e do sofrimento. Está aqui a raiz da natureza religiosa da riqueza, que pode tornar-se, para nós, um ídolo porque tem traços que a assemelham às divindades. No Evangelho, foi o próprio Jesus a pô-la em concorrência com Deus, porque promete uma imortalidade diferente. No Éden, Eloim não proíbe a Adão os frutos da árvore de vida porque essa proibição seria ineficaz, tão forte é, nos homens e nas mulheres, o desejo de imortalidade. A riqueza atrai-nos porque nos aparece como o que, na terra, mais se assemelha ao elixir de eterna juventude. Eros (amor) e plutos (riqueza) são os dois deuses que, cada um a seu modo, nunca deixaram de combater thanatos (morte).
[fulltext] =>De facto, a promessa da riqueza exerce sobre nós um fascínio quase invencível porque, como a promessa da serpente, não é totalmente falsa. O rico está menos exposto às vulnerabilidades da existência, vive em casas mais seguras, tem acesso a melhores tratamentos. Também por isso, na Bíblia e em muitas culturas, o ser rico é considerado uma bênção de Deus – Não por acaso, usamos o termo “bens”, isto é, coisas boas.
O poder religioso da riqueza cresce com a extensão da área da vida social coberta pelo dinheiro, que sempre foi vasta. Também numa sociedade pré-moderna, a riqueza extravasou do âmbito tipicamente económico até tocar o paraíso e o purgatório (o mercado das indulgências). De facto, não devemos pensar que a riqueza só conte muito numa economia de mercado: o dinheiro já era deus antes do capitalismo. Porque, num mundo com escassa circulação da moeda, com a riqueza centrada em pouquíssimas mãos ciumentas, o poder sobrenatural do dinheiro era maior que hoje. Se por um lado, o aumento das áreas sociais cobertas pelos mercados faz aumentar a importância da moeda (se, com a moeda, compras quase tudo, a moeda torna-se quase tudo), por outro lado a sua difusão mais ampla em muitas mãos, redu-la; e, assim, não é fácil calcular a soma algébrica destes dois efeitos de sinal oposto. A avareza, a avidez, a inveja face aos ricos não eram, na Idade Média, inferiores às de hoje e as dinâmicas sociais por detrás dos denários de Judas, das dracmas e aos talentos não eram muito diferentes das que estão por detrás dos nossos euros – o desenvolvimento os mercados não reduz a inveja social, mas orienta-a num sentido menos danoso. Eis porque a ética económica não perdeu nada da sua capacidade de nos falar, hoje, do nosso trabalho, das nossas riquezas e das nossas pobrezas: «Prestarei atenção ao provérbio dos sábios, interpretarei o seu sentido ao som da lira… Eles confiam na sua opulência e vangloriam-se nas suas riquezas. Infelizmente, o homem não consegue escapar nem pagar a Deus o seu resgate» (Salmo 49, 5-8).
Numa outra das obras-primas absolutas do Saltério, este salmista, filho de profetas e mestre de Job e Qohélet, ensina-nos com um cântico universal dirigido a toda a humanidade: «Ouvi bem isto, povos de toda a terra; escutai, habitantes do mundo inteiro, humildes ou poderosos, ricos ou pobres, todos juntos» (49, 2-3). O enigma diz respeito à relação entre a riqueza e a morte, o provérbio está contido no refrão do salmo: «O homem que vive na opulência não permanecerá: é semelhante aos animais que são abatidos» (49, 13). O resgate é o tema central do salmo. No antigo Israel, a Lei de Moisés (Êxodo 21), previa que, nalgumas ofensas, uma condenação à morte pudesse ser comutada em dinheiro e, assim, resgatada. O Salmo conhece muito bem estas normas jurídicas e sabe que o seu leitor também as conhece. Por isso, sabe que o dinheiro pode mesmo resgatar da morte. Mas o salmo quer dizer-nos que a riqueza apenas pode adiar a morte, não pode resgatar a condição de mortalidade do ser humano, porque Sócrates é homem, portanto mortal. O salmista deixa de lado a penúltima vitória da riqueza e concentra-se na sua última derrota.
E, assim, visto na perspetiva da sua mortalidade, o homem é verdadeiramente como os animais, o rico como o pobre, o sábio somo o parvo, e encontramo-nos num horizonte de igualdade cósmica: «Não te preocupes, se alguém enriquece, se aumenta a fortuna da sua casa. Quando morrer, nada levará consigo; a sua fortuna não há de acompanhá-lo» (49, 17-18). Muitos sábios compreenderam esta vaidade da riqueza. Mas também nós a compreendemos, como a compreenderam os pobres quando viam os ricos adoecer e morrer e a compreendem os ricos quando fazem a experiência que as suas riquezas não servem para as poucas coisas verdadeiramente importantes – o rico sincero está consciente da muita vaidade nas suas riquezas.
É muito bonita, depois, a razão da impossibilidade do resgate da vida: «Seria demasiado caro o resgate de uma vida». A vida humana não pode ser resgatada porque o preço seria demasiado alto. Regressa a linguagem económica à fé que, geralmente, leva a caminhos errados. Aqui, porém, a metáfora económica pode sugerir-nos algo de bom. O valor da vida humana não é resgatável com dinheiro porque, tendo um valor infinito, necessitaria de um preço infinito. Esta é a base antropológica da não mercantilidade de vida humana: não há um mercado para a vida humana porque o encontro entre a procura e a oferta aconteceria no infinito, o ponto de equilíbrio seria demasiado alto para se encontrar na Terra: seria necessário o Paraíso – e se se encontrasse aqui um sentido bom da metáfora do “preço” pago por Cristo crucificado? Está aqui sempre o valor da gratuidade: a gratuidade não tem preço porque é impagável, porque o seu preço seria infinito. Então, sempre que uma vida humana é equiparada a um preço monetário, sempre que tentamos comprar uma pessoa ou parte dela, estamos renegando o almo 49, que tem a sua raiz no Salmo 8 - «Quase fizeste dele um ser divino» - e no nosso ser “imagem de Deus”. Se Deus é infinito, toda a sua imagem é infinita.
Se tomássemos a sério estas palavras, deveríamos também dizer que o salário não é a medida do valor da nossa obra. Uma parte de infinito permanece infinita e um infinito de ordem inferior é também infinito. O nosso trabalho vale infinitamente mais que os nossos salários que, por isso, deveriam ser interpretados como contra-dom, como sinal e símbolo de reconhecimento. E, por isso, não deveriam ser demasiado diferentes e desiguais – serei ingénuo ou idealista (e sou-o e estou a fazer de tudo para continuar a sê-lo), mas ainda não me consigo habituar a um mercado que paga tanto por um dia de trabalho de um consultor como um mês de trabalho manual.
Todavia, naquela igualdade universal perante a morte cantada pelo salmo deve haver algo de mais profundo. A humanidade, na consciência dos seus poetas e sábios, sempre intuiu que, por baixo (ou por cima) deste espetáculo de verdadeira desigualdade e de verdadeira injustiça, criado pelas riquezas e pelas pobrezas, entre os homens, havia também uma dimensão, igualmente verdadeira, de igualdade. Certamente no nascer e no morrer, na dor e no sofrimento, mas não apenas nisto. Adam Smith (Teoria dos sentimentos morais, 1759) tinha intuído um aspeto, quando afirmava que se tivéssemos de somar as alegrias e os sofrimentos, dar-nos-íamos conta que os ricos e os pobres são mais semelhantes do que geralmente se pensa. Porque existem felicidade dos ricos que os pobres não conhecem, é verdade; mas também existem infelicidades da opulência desconhecidas pelos pobres, como existem alegrias que só os pobres, com a sua liberdade diferente, experimentam, invejadas pelos ricos. Esta estranha igualdade entre ricos e pobres, acrescentava Smith, é bom que seja conhecida apenas pelos filósofos porque, se fosse evidente a todos, as pessoas desvalorizariam as riquezas, deixariam de se empenhar em fazê-las crescer e pararia o desenvolvimento económico que, na sua opinião, se rege por uma espécie de «ilusão providencial». Em muitas coisas da vida, somos verdadeiramente iguais, antes das riquezas e das pobrezas. Ricos e pobres enamoram-se, são deixados e abandonados, traídos e enganados, feridos e abençoados, todos medrosos da dor e da morte. É por esta “igualdade anterior” que, para nos debruçarmos sobre quem encontramos «meio morto» à beira da estrada, basta-nos reconhecer aí «um homem», e deixaríamos de ser humanos se, antes de o socorrer, lhe perguntássemos qual o tamanho da sua conta bancária.
Olhar a vida na perspetiva do seu último dia deveria, portanto, aumentar os sentimentos de igualdade entre todos. Mas para que cresçam também os sentimentos de fraternidade há necessidade de mais alguma coisa. O salmista pode esquecer, no seu cântico, as vitórias penúltimas das riquezas, pode descurar a sua imortalidade segunda. Nós, não: nós não podemos esquecer que entre o dia do nascimento e o da morte, os dois dias onde os animais e homens se assemelham todos no seu ser criatura efémera e contingente, as existências decorrem de modo muito diferente. O filósofo, o poeta e o teólogo realizam a sua tarefa de nos recordar que a riqueza não resgata a morte e, por isso, no fundo, não vale; o economista, o especialista social, o político sabem, pelo contrário, que o que acontece entre o primeiro e o último dia é muito importante para a qualidade moral e espiritual da nossa vida e da de todos. E, por isso, a riqueza vale. E, assim, depois de ter meditado na vaidade de tudo debaixo do céu estrelado ou durante um funeral, não devemos descansar enquanto cada criança que nasce possa crescer num mundo onde a escassez de bens não lhe impeça uma vida digna, onde as condições materiais da sua família não se tornem um fardo demasiado pesado para a fazer voar, onde não existam alguns riquíssimos que poderão viver duzentos anos, com a substituição de órgãos, e outros que morrem aos três com a malária. A riqueza não resgata tudo, mas resgata alguma coisa; por vezes poderia resgatar muitas pessoas de vidas indignas e, por isso, deve ser equitativamente distribuída e partilhada. A vida não pode ser resgatada pela riqueza, mas a riqueza pode ser resgatada pela comunhão: «O homem que vive na opulência e não reflete é semelhante aos animais que são abatidos» (49, 21).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 12/07/2020.
«Dantès que, três meses antes, não aspirava a nada a não ser à liberdade, agora já não se contenta com a liberdade e aspira à riqueza; a culpa não era de Dantès, mas de Deus que, limitando o poder do homem, suscitou nele desejos infinitos!».
Alexandre Dumas, O Conde de Monte Cristo
O Salmo 49 leva-nos a refletir sobre a natureza da riqueza e sobre a sua promessa de vida eterna que, se bem entendida, não é totalmente falsa.
Desejamos a riqueza porque aumenta a liberdade. Entre as liberdades “compradas” pela riqueza, a mais fascinante e tentadora é a liberdade de morte e do sofrimento. Está aqui a raiz da natureza religiosa da riqueza, que pode tornar-se, para nós, um ídolo porque tem traços que a assemelham às divindades. No Evangelho, foi o próprio Jesus a pô-la em concorrência com Deus, porque promete uma imortalidade diferente. No Éden, Eloim não proíbe a Adão os frutos da árvore de vida porque essa proibição seria ineficaz, tão forte é, nos homens e nas mulheres, o desejo de imortalidade. A riqueza atrai-nos porque nos aparece como o que, na terra, mais se assemelha ao elixir de eterna juventude. Eros (amor) e plutos (riqueza) são os dois deuses que, cada um a seu modo, nunca deixaram de combater thanatos (morte).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 05/07/2020.
«A invocação do homem é a invocação própria de Deus. O homem reza à imagem e semelhança de Deus: de quem, se não desta que é a maior das suas obras? Os Salmos são a oração de Deus».
Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia.
A sede da corsa é a condição ordinária da vida espiritual adulta. A aridez não é ausência, mas lugar da fé. Todavia, não o sabemos, enquanto não acontecer um “encontro” extraordinário…
A qualidade espiritual da nossa vida depende de como usamos os poucos encontros determinantes. Um destes é aquele entre o jovem que éramos e o adulto em que nos tornámos. Um encontro que, no desenrolar de uma existência, chega quase sempre – num livro que estamos a ler, num sonho, enquanto limpamos o quarto e preparamos a mesa. Chega sempre inesperado, nunca se faz anunciar, não é um encontro planeado, é um vau dum rio tumultuoso. Apanha-nos de surpresa e encontra-nos impreparados. É sempre um acontecimento determinante. O encontro começa com uma pergunta do jovem: “Quem és?”. Reconhecemo-lo de imediato porque, nele, revemos o rosto infantil que nunca se apagou na alma. Ele não: para ele somos um desconhecido, mudámos muito para que aquela criança possa reconhecer-se no adulto. Aquele “quem és?” ecoa em nós como algo de assustador, tira-nos a respiração. Naquela pergunta voltamos a ouvir o eco da pergunta feita por Eloim a Adão (“onde estás?”), revive a pergunta a Caim (“onde está o teu irmão?”). E nós, então, descobrimo-nos nus, envergonhamo-nos, não conseguimos responder nem queremos fazê-lo. Se salvámos alguma coisa da inocência da infância, aquela pergunta quase nos pode fazer morrer. Depois, num momento, revemos toda a nossa vida e renasce uma infinita pungente saudade de pureza, de verdade e de todas as primeiras palavras que sentíamos perdidas para sempre.
[fulltext] =>Se aquele adulto é alguém que, em jovem, sentiu clara e forte uma voz verdadeira e respondeu, o encontro é ainda mais terrível. O “Quem és?” torna-se a pergunta que a primeira vocação dirige ao homem ou à mulher que a própria vocação gerou. O jovem, só com a sua presença, diz-nos: a promessa era uma outra. Mesmo quando a vida está a funcionar, deu frutos, estima, reconhecimentos, diante do jovem sentimos mais forte e mais verdadeiro que a promessa não era a que parece realizar-se, porque a traímos. A grande traição consumou-se a pouco e pouco; não o sabíamos nem o queríamos, mas a voz que o jovem seguiu e a que estamos a seguir hoje não falam entre si, não se compreendem, tornaram-se reciprocamente estranhas. Depois destes encontros noturnos com o anjo, ou se renasce ou se começa a morrer para sempre. «Como suspira a corça pelas águas correntes, assim a minha alma suspira por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo! Quando poderei contemplar a face de Deus? Dia e noite as lágrimas são o meu alimento, porque a toda a hora me perguntam: “Onde está o teu Deus?”» (Salmo 42, 2-4).
Começa assim o maravilhoso Salmo 42, com que se abre o segundo livro do Saltério e que, com o seu refrão («Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?») abraça também o Salmo 43, para formar um único cântico. A metáfora da corsa sedenta que, depois de um longo peregrinar, chega junto de um riacho seco, é muito forte e rica. É habitual na literatura espiritual, inspirou um dos cânticos espirituais mais sublimes (o de João da Cruz). Quem ouviu o rugido dum veado sequioso diz que é um versículo inquietante, um lamento dilacerante que nunca esqueceu. Um som que terá atingido o homem antigo do Médio Oriente, mais capaz que nós de ler e decifrar os lamentos da criação. O salmista, talvez exilado no Norte, na região onde nasce o Jordão, longe de Jerusalém e do seu templo, agarra no urro animal mais doloroso que tinha ouvido e tornou-o o canto da sua alma bramante a um Deus da juventude que já não existia. A Bíblia está cheia de palavras emprestadas da natureza e dos animais para conseguir dizer o que as emoções humanas não sabem dizer: o arder de uma sarça, a nuvem apoiada numa montanha, o fogo no Carmelo, a aragem ligeira, a burra de Balaão.
A saudade de um passado maravilhoso num presente árido ocupa o centro do cântico: «A minha alma estremece ao recordar quando passava em cortejo para a Casa do Senhor, entre vozes de alegria e de louvor da multidão em festa… Penso muito em ti, desde as terras do Jordão e dos montes Hermon e Miçar.» (42, 5.7). A sede desta corça não é, portanto, a sede boa de quem está a chegar à água. É a sede de quem vagueia no deserto procurando a água num oásis conhecido noutras travessias e que, agora, secou. Portanto, geme, deseja, grita, urra por causa duma sede que não consegue extinguir porque não há água. Não é simples utilizar a imagem da sede para falar da relação com Deus. Uma determinada literatura religiosa estraga a metáfora equiparando a fé à água que extingue a sede. A sede seria o movimento ascendente do homem, a pergunta antropológica a que Deus responde com a oferta da fé. Nesta perspetiva, não haveria nada de religioso na experiência da sede, que seria apenas a premissa da fé, a antecâmara da vida religiosa que começaria quando, alcançada a fonte, finalmente se bebe – a sede termina no encontro com a água. Para muitos, a fé é isto e na Escritura existem pontos de apoio para tal interpretação da água e da sede (Jo 4, 13-14).
Mas, cada salmo é muitas coisas juntas, é estratificação de significados e de experiências diferentes de fé e de humanidade. Sobre esta sede, o salmo sugere-nos também algo de diferente. A sede não é apenas preparação da experiência religiosa; é já fé, é já relação com Deus. O tempo da sede é o tempo da fé: «Na Escritura, todos morrem de sede e que é esta universal ânsia se não o próprio Deus sedento de si? Sempre pensei, desde que o aprendi, que morrer com este versículo nos lábios seria um bom não-morrer» (Léon Bloy, “Le symbolisme de l’Apparition”, 1880). Neste salmo, Deus é mencionado 22 vezes. Um cântico desesperado pela ausência de Deus é um dos salmos mais habitados pelo nome de Deus de todo o Saltério. O deserto, na Bíblia, é o lugar do encontro com Deus. A terra prometida não é o único lugar onde Deus habita, como também o não é o templo. Moisés não entrando na terra prometida, diz-nos que também o deserto e a sua sede podem ser a tenda do encontro com Deus, talvez o mais puro e mais verdadeiro. O seu morrer fora de Canaã é também um modo para eternizar a promessa e o seu desejo.
O salmo, portanto, põe-nos em alerta em relação a um erro típico do homem e da mulher de fé, o de identificar a fé apenas com a água. Erro muito comum, de quem pensa e vive a fé como acampamento estável num oásis rico de água que, encontrado no fim de um primeiro caminho, nunca mais se abandona. Aqui, a corsa repousa, serena e dessedentada, naquele novo jardim do qual não se afasta para novas peregrinações. Esta é a visão da fé como consumo de bens materiais, como conforto, como plena satisfação do consumador religioso. O salmo 42-43, pelo contrário, recorda-nos que a sede é a condição originária da vida espiritual adulta, porque mesmo que encontremos alguma fonte pelo caminho é preciso, imediatamente, levantar a tenda, retomar o caminho sem hesitações e refazer rapidamente a mesma experiência da sede-fé. Que a crise da fé não é a aridez mas a extinção da sede. Enquanto conservarmos a sede de Deus e da vida, estamos a caminhar no único caminho bom, melhor ainda se em companhia dos pobres e dos sedentos e famintos. A fé bíblica é gritar a Deus no tempo infinito da sequeira porque nenhuma experiência do divino pode apagar o nosso desejo de paraíso. Nesta terra não há uma água capaz de dessedentar a sede de Deus e, se nos sentimos religiosamente dessedentados, é muito provável que estejamos a beber a água dos ídolos, que é também um distribuidor automático de bebidas refrescantes. Também é interessante notar num pormenor: embora o texto hebraico fala de veado (’aiàl), a tradição sempre viu uma corsa neste salmo. Talvez porque só as mães conhecem verdadeiramente os urros gritados por determinadas ausências e só elas aprenderam verdadeiramente a paradoxal bem-aventurança da sede.
Mas, neste salmo, há também uma bonita metáfora da evolução de uma vocação. Começa com uma primeira água, a do primeiro encontro da juventude. Depois, continua, durante toda a vida, com a experiência da sede, quando se vagueia à procura da primeira água que já não conseguimos encontrar e, enquanto vagueamos, a nossa garganta seca de água para se encher do grito de Deus. Para terminar, provavelmente, com uma água diferente que encontraremos onde e quando já não a estávamos a procurar – é muito bonito que uma das últimas palavras de Jesus que os Evangelhos referem seja: “Tenho sede”. Nós vivemos esta secura como experiência de imperfeição, de falta, por vezes de fracasso e esquecemo-nos da bem-aventurança da sede: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”, que têm fome e sede de mim. Temos saudade da água da primeira juventude porque não compreendemos que aquela água tinha o objetivo de acender a sede para, depois, caminhar como peregrinos sedentos pelo mundo. Até que, num abençoado dia, compreendemos que é na indigência que se esconde e se encontra o sentido religioso da vida. Ali estão a pobreza e a pureza que tínhamos desejado desde o primeiro dia e tínhamos confundido com a água. E, nesse dia, sentimo-nos amigos solidários com todos os sedentos, os famintos de pão e de justiça, com todos os indigentes da terra, e, finalmente, sentimo-nos pobres. Porque descobrimos que a fé não é posse, mas promessa.
daquela criança: “Sou tu, tornado adulto. Mudámos muito, é verdade; o sol do deserto árido escureceu-me a pele, marcou-me o rosto; o caminho empoeirou-me; a dor, minha e dos outros, feriu-me; a vida deixou-me os seus estigmas: por isso, não me reconheces. Mas sou eu; olha-me bem, sou tu. Não temas; não te traí; sou a única coisa boa que podia ser. Acredita: nunca deixei de desejar a tua própria água. Acredita: a minha promessa é a tua. Vamos lá, confia em mim, dá-me a tua mão, caminha comigo: espera-te uma vida sedenta e maravilhosa”.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 05/07/2020.
«A invocação do homem é a invocação própria de Deus. O homem reza à imagem e semelhança de Deus: de quem, se não desta que é a maior das suas obras? Os Salmos são a oração de Deus».
Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia.
A sede da corsa é a condição ordinária da vida espiritual adulta. A aridez não é ausência, mas lugar da fé. Todavia, não o sabemos, enquanto não acontecer um “encontro” extraordinário…
A qualidade espiritual da nossa vida depende de como usamos os poucos encontros determinantes. Um destes é aquele entre o jovem que éramos e o adulto em que nos tornámos. Um encontro que, no desenrolar de uma existência, chega quase sempre – num livro que estamos a ler, num sonho, enquanto limpamos o quarto e preparamos a mesa. Chega sempre inesperado, nunca se faz anunciar, não é um encontro planeado, é um vau dum rio tumultuoso. Apanha-nos de surpresa e encontra-nos impreparados. É sempre um acontecimento determinante. O encontro começa com uma pergunta do jovem: “Quem és?”. Reconhecemo-lo de imediato porque, nele, revemos o rosto infantil que nunca se apagou na alma. Ele não: para ele somos um desconhecido, mudámos muito para que aquela criança possa reconhecer-se no adulto. Aquele “quem és?” ecoa em nós como algo de assustador, tira-nos a respiração. Naquela pergunta voltamos a ouvir o eco da pergunta feita por Eloim a Adão (“onde estás?”), revive a pergunta a Caim (“onde está o teu irmão?”). E nós, então, descobrimo-nos nus, envergonhamo-nos, não conseguimos responder nem queremos fazê-lo. Se salvámos alguma coisa da inocência da infância, aquela pergunta quase nos pode fazer morrer. Depois, num momento, revemos toda a nossa vida e renasce uma infinita pungente saudade de pureza, de verdade e de todas as primeiras palavras que sentíamos perdidas para sempre.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 28/06/2020.
«Cada palavra é palavra falada. Originariamente, o livro apenas está ao seu serviço, ao serviço da palavra tornada som, cantada, pronunciada».
Franz Rosenzweig, A escritura e a palavra.
A Sabedoria, que torna claro o Salmo 37, é a aprendizagem da postura humana com que vemos a justiça e a injustiça, para aprender a mansidão.
«Não te irrites por causa dos malfeitores nem invejes os que praticam a injustiça… Não invejes os que prosperam nem os que vivem de intrigas» (Salmo 37, 1-7). Estamos dentro dum cenário de tentação. A dos justos, pobres, por causa da sua justiça. Rodeados por ímpios que, pelo contrário, obtêm sucesso e riqueza. Um tema clássico da literatura bíblica sapiencial, no centro da Bíblia, da história, da vida. São as perguntas de Job, de Qohélet, as perguntas dos pobres e das vítimas; são as nossas perguntas. Sempre foi muito difícil – por vezes, demasiado – perseverar numa vida que pensamos ser justa, quando os nossos males aumentam e cresce a prosperidade de quem julgamos ser iníquo. Por vezes, enganamo-nos, julgamo-nos mais justos do que somos. Outras vezes, pelo contrário, não nos enganamos; quem se “engana” é apenas a vida; quem erra, começamos a pensar, é Deus.
[fulltext] =>O salmista conhece esta típica crise-tentação dos justos. Parte dela, não a deita fora; leva-a a sério e, como bom acompanhante, usa a lama que tem à disposição para criar um novo Adão. E, imediatamente, dá ao justo uma ordem muito importante: permanece inocente. Não basta serem pobres para serem justos: é preciso a inocência, porque salvar a inocência na nossa desventura, é o dote que levaremos como oferta ao anjo da morte. A inocência bíblica não é ausência de pecados – caso contrário, ninguém seria inocente. É algo de diferente e mais importante. É estar agarrado, durante toda a vida, à fé-corda a que fomos ligados no tempo da juventude. Não a ter soltado nas viragens e nos deslizes, ter preferido esta humilde corda aos teleféricos que prometem escaladas mais fáceis, velozes e espetaculares. A inocência é o abraço fiel entre uma mão e uma corda.
««Foge da ira e deixa a indignação; não te impacientes, pois isso conduz ao mal» (37, 8). A ira que, geralmente, é um recurso ético bom e importante porque ativa processos de mudança, pode também desencadear circuitos degenerativos quando a raiva e a indignação geram a preocupação e as paixões auto lesivas da inveja e da vingança, ou quando fazem florir no coração a pior de todas as ideias: “errei sempre; não vale a pena ser justo”. É difícil não cair nestas ratoeiras (toda a tentação é uma ratoeira) porque, mais ou menos conscientemente, todos somos fiéis de um qualquer culto económico-retributivo; devotos de uma religião assente no dogma que a bênção de Deus se manifesta na riqueza e no sucesso e que, por isso, a sua maldição ganha forma de pobreza e fracasso. Até porque é a própria Bíblia (e não só ela) a conter tradições e livros onde esta ideia está presente a ativa – ver Abraão ou o prólogo de Job.
Antes de entrar no coração do seu discurso, o salmista convida-nos a um movimento, a um gesto do corpo. Convida todos, mas sobretudo os pobres que se encontram naquela típica e grande tentação e, em especial, os pobres que poderiam deixar de o ser se imitassem os desonestos: mas não o fazem, porque preferem ser falhados como justos que vencedores como ímpios.
Faz-nos entrar num lugar. Pede-nos para nos “aninharmos em Deus”: «Enrola toda a tua sorte à volta do Senhor¸ deixa-lha» (37, 5). O verbo hebraico galàl, como recorda Guido Ceronetti, remete para um envolvimento, para um enrolamento; lembra o casulo do verme, «a nuvem de algodão doce ao redor da vara», a imagem do enrolamento do feto no ventre materno. O salmista aconselha-nos a enrolarmo-nos no seio de Deus e, a partir daí, ler a vida. Esta é a única posição boa.
O Salmo 27 não é uma oração. O seu autor não se dirige a Deus, mas aos homens. Aconselhando-nos, de imediato, a enrolarmo-nos no ventre de Deus, revela-nos uma dimensão fundamental da tradição sapiencial. O sábio não é um profeta que fala aos homens em nome de Deus (“assim fala o Senhor”); não é o sacerdote, guarda da Lei, ministro do templo e do sagrado. O sábio não assume a sua autoridade nem de uma palavra privada de Deus nem da Lei-Torá. A fonte da autoridade das suas palavras é a vida, a história, a experiência humana - «Fui jovem e agora sou velho» (37, 25) – que o sábio explora e aprofunda, para descobrir verdades que, para a Bíblia, assumem um grande valor, a ponto de alguns livros sapienciais estarem entre os mais amados. Está aqui a esplêndida laicidade bíblica. A Sabedoria não é profecia, não é oração; também não é teologia: é a atitude humana para compreender toda a «Lei e os profetas», para poder começar a rezar verdadeiramente, para distinguir os verdadeiros profetas dos falsos. Sabedoria é a criatura que se coloca no lugar do justo, descobre-o como “sede da sabedoria” e pronuncia o seu fiat.
E, assim, depois de nos ter colocado na seda daquele casulo, o salmista começa o seu discurso sapiencial. E fá-lo com uma crítica radical à religião retributiva e à teologia da prosperidade, isto é, à ideia de um Deus que usa a linguagem da riqueza e do sucesso para nos falar da nossa justiça ou iniquidade e da de tantos outros. O salmo mostra-nos poderosos, pessoas de sucesso e ricas, que o são porque ímpias: «Os maus desembainham a espada e retesam o arco, para abaterem o pobre e o desvalido, para matar os que seguem o bom caminho» (37, 14). Neste salmo, há uma visão predatória da riqueza e do poder. Nem toda a riqueza nasce de abuso de poder, sabemo-lo nós e sabe-o a Bíblia; mas nós – e ainda mais a Bíblia – sabemos também que muita riqueza nasce de uma qualquer forma de abuso de poder – embora hoje, muitas injustiças são mascaradas por leis legitimamente emanadas pelos parlamentos (o princípio necessário de legalidade nunca foi suficiente para nenhuma justiça). Só o facto de algumas riquezas serem, certamente, fruto da impiedade, é suficiente para não poder ler a riqueza, nossa e dos outros, como bênçãos de Deus e a pobreza como suas maldições: «Vale mais o pouco para o homem justo, do que toda a fortuna do ímpio» (37, 16). Podemos compreendê-lo dentro do novelo.
Muito bonito e importante é o discurso sobre o empréstimo e sobre a oferta – é sempre comovente encontrar a economia na oração bíblica: não deveria lá estar, mas está: «O ímpio pede emprestado e não paga, enquanto o justo se compadece e empresta» (37, 21). A maldade e a justiça são declinadas com a linguagem financeira. Diversamente de muitas passagens bíblicas, que insistem na proibição de emprestar (com juros), encontramos aqui uma condenação do outro lado do contrato. Condena-se quem pede emprestado, não quem o empresta. A lembrar-nos que há impiedade não só em conceder empréstimos com taxas usurárias, mas também em receber empréstimos com intenção de os não restituir. Porque, enquanto os pobres insolventes se tornam escravos dos seus credores, os ricos tinham – e têm – muitas formas de saírem incólumes de uma insolvência e, frequentemente, torná-la ocasião de lucro.
O justo, pelo contrário, é o que usa os seus bens com generosidade, que os transforma em oferta. A única riqueza boa e justa é, portanto, a partilhada e oferecida? Mas a tese mais subversiva descobrimo-la juntando este versículo 21 com o 26 que, falando do justo, acrescenta: «Sempre o vi compassivo e generoso; por isso, a sua descendência será abençoada». Empresta: emprestar pode ser atividade justa, expressão de compaixão equiparada à oferta? Sim: somos justos quando partilhamos a riqueza com ofertas e quando a partilhamos emprestando aos outros os nossos bens. Então, erra quem contrapõe, como princípio, filantropia e finança, oferta e contrato. Há empréstimos justos, que libertam mais que as ofertas e existem ofertas mais venenosas que os contratos. Ontem e hoje, quando, nos mercados, convivem uma finança que faz viver os pobres com uma que os devora.
Falta ainda uma pedra neste mosaico, a central e mais luminosa: «Os pobres [os nwym] possuirão a terra» (37, 11). A terra como herança. Estupendo. Aquele antigo sábio não promete o sucesso aos justos. Promete muito mais: os justos, que salvam a sua inocência, terão a terra em herança. Toda a Bíblia é guarda desta promessa, é shomer (sentinela) desta palavra que fundamenta o chamamento de Abraão, a sua Aliança com YHWH, a grande libertação e o êxodo, a gruta de Belém. Uma promessa que não se completou com a chegada a Canaã porque, se a terra prometida se torna nossa propriedade e posse, permanece a terra e desaparece a promessa. A promessa da herança da terra – que, no Salmo, aparece cinco vezes – é, portanto, a promessa de ter um futuro. Não é uma recompensa para aqui e agora; esta promessa diferente não pertence ao “já” e, mesmo quando saboreamos algum bocado, estes são apenas a garantia do “ainda-não”, que é o lugar da realização incompleta da promessa. O justo, que não cede ao conselho dos ímpios, «terá um futuro» (Pr 23, 18). A promessa de futuro não é garantia de sucesso nem de riqueza, mas de um olhar de alguém que, como a irmã-criança de Moisés, nos acompanha enquanto a nossa cesta desliza no grande rio, porque «o Senhor conhece os dias do homem honesto e a herança dele será para sempre» (37, 18). Portanto, o justo é o que guarda a promessa de uma terra que sabe que nunca possuirá, é a sentinela da utopia, que vive em qualquer terra como provisória e a vida como peregrinação.
Estava o salmo 27 por detrás da terceira bem-aventurança, por detrás de todas as bem-aventuranças: bem-aventurados os mansos, herdarão a terra (Mt 5, 5). Então, este salmo é também uma explicação do que é a mansidão bíblica e cristã. Os mansos são os justos deste salmo. São os e as que não seguem o caminho do ímpio, não o invejam, permanecem ligados com duplo fio à sua corda, durante a escalada da vida; para, no fim, se dar conta que, durante a viagem nunca tinham saído daquele novelo, guardado por entranhas boas e misericordiosas. A terra é a herança dos mansos porque só os mansos são capazes de guardar a promessa de uma terra sem a possuir. Então, teremos uma terra e um futuro se aprendermos esta justiça e esta mansidão, se aprendermos a habitar no planeta sem nos sentirmos donos e, por isso, predadores. O futuro será manso ou não existirá: «o homem de paz terá descendência» (37, 37).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 28/06/2020.
«Cada palavra é palavra falada. Originariamente, o livro apenas está ao seu serviço, ao serviço da palavra tornada som, cantada, pronunciada».
Franz Rosenzweig, A escritura e a palavra.
A Sabedoria, que torna claro o Salmo 37, é a aprendizagem da postura humana com que vemos a justiça e a injustiça, para aprender a mansidão.
«Não te irrites por causa dos malfeitores nem invejes os que praticam a injustiça… Não invejes os que prosperam nem os que vivem de intrigas» (Salmo 37, 1-7). Estamos dentro dum cenário de tentação. A dos justos, pobres, por causa da sua justiça. Rodeados por ímpios que, pelo contrário, obtêm sucesso e riqueza. Um tema clássico da literatura bíblica sapiencial, no centro da Bíblia, da história, da vida. São as perguntas de Job, de Qohélet, as perguntas dos pobres e das vítimas; são as nossas perguntas. Sempre foi muito difícil – por vezes, demasiado – perseverar numa vida que pensamos ser justa, quando os nossos males aumentam e cresce a prosperidade de quem julgamos ser iníquo. Por vezes, enganamo-nos, julgamo-nos mais justos do que somos. Outras vezes, pelo contrário, não nos enganamos; quem se “engana” é apenas a vida; quem erra, começamos a pensar, é Deus.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 20/06/2020
«A Bíblia não é um livro sobre Deus: é um livro sobre o homem. Na perspetiva da Bíblia: quem é o homem? É um ser posto na labuta, mas que tem os sonhos e os desígnios de Deus. O sonho de Deus é não estar só, mas ter o género humano como companheiro no drama da contínua criação».
Abraham Heschel, Quem é o homem?
Vendo o trabalho dos pastores e o cuidado dos hóspedes, podemos aprender a conhecer melhor Deus. O Salmo 23 leva-nos a este coração do humanismo bíblico.
«O Senhor é meu pastor: nada me falta. Em verdes prados me faz descansar e conduz-me às águas refrescantes. Reconforta a minha alma e guia-me por caminhos retos, por amor do seu nome» (Salmo 23, 1-3), Chegámos à mais linda metáfora-oração da Bíblia. Toda a Bíblia é metáfora, toda a oração é metáfora. As metáforas não são apenas instrumento retórico e narrativo; são também meio de descoberta, para poder compreender e dizer coisas que não poderíamos compreender e dizer sem a revelação daquela metáfora – também isto é revelação: Deus também se nos revela sugerindo metáforas aos poetas que, depois, o povo peneira com o sexto sentido da sua fé e da tradição. Milhões de pessoas, ao longo dos séculos, rezaram e cantaram, este salmo, que está entre os mais amados de toda a Bíblia, que continua a ser cantado em todos os mosteiros e conventos do mundo, com a alma e com a cítara. Foi e é a última saudação aos nossos queridos, a oração de quem está para atravessar um “vale tenebroso” e quer fazê-lo com a mesma fé-esperança-amor do salmista.
[fulltext] =>O povo de Israel aprendeu a conhecer Deus vendo o humilde, fatigante e difícil trabalho do pastor. Observando este antigo protagonista das economias nómadas, compreendeu melhor a gramática da Aliança, aprendeu algo mais da natureza do seu Deus diferente, sem imagens e com nome impronunciável. Não olhou para os reis, os faraós, os homens poderosos do povo; pelo contrário, conheceram Deus olhando para o trabalho humano, observando, até nos mínimos pormenores, a ação dos trabalhadores, com o cheiro das ovelhas às costas, empoeirado, analfabeto, pobre de palavras. Das não-palavras de um trabalhador nómada, a Bíblia aprendeu palavras para nos falar de Deus, deixando-nos imagens entre as mais ricas de toda a literatura religiosa. Que nos recordam que aprendemos quem é Deus observando os homens e as mulheres porque, juntamente ao “céu estrelado e a lei moral”, é a vida concreta dos seres humanos que nos revela a gramática divina que, na antropologia se esconde a teologia bíblia. E que, por isso, sempre que nos encontramos vazios de palavras para rezar, podemos olhar também as pessoas que trabalham e, ali, reaprender a rezar. Pastores, operários, artesãos, professores, empresários – quem sabe como aquele antigo poeta escreveria o seu salmo numa sociedade pós-industrial?
Um dia, o poeta compreende que existia uma analogia entre a profissão de pastor e o seu Deus. E, assim, a metáfora do pastor torna-se a imagem de Deus que falta, por sua ordem explícita. Aquele povo compreendeu que deviam olhar para os pastores para compreender a lógica do seu Deus e que sempre os teria guiado “pelo caminho reto”, e que o faria “por amor do seu nome”, isto é, em virtude da sua natureza porque, se o fazem os pastores, também Deus o deve fazer. O Salmo 23 é, sobretudo, uma declaração de fé, um canto de amor ao Deus que aquele salmista sentia como providência e Pai bom, mesmo na noite mais escura: «Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança» (23, 4). Caminhar num vale, durante a noite, não era uma hipotética possibilidade; era a condição a partir da qual se elevou a oração. Os salmos são também uma cura dos nossos medos mais profundos, o medo da morte. Rezamo-los toda a vida também para ter palavras diferentes e melhores quando os grandes medos baterem à porta, a oração irá abrir e talvez não encontrará ninguém (ou encontrará um amigo, que saudará com o beijo da paz). Grande dom poder cantar na alma enquanto somos tocados pelas mãos experientes do anestesista: se tivesse de caminhar num vale tenebroso… Poder fazê-lo porque foi feito durante toda a vida. A oração também é uma espécie de seguro: pagamos, em cada ano, um preço para ter o prémio no dia do “acidente”. Reza-se toda a vida também para ganhar o último ámen.
Não sabemos se aquele salmo foi escrito na Babilónia, mas, certamente que a imagem de IHWH-pastor reforça-se e desenvolve-se durante o exílio. Um povo exilado, humilhado e sem templo, conseguiu ver o oásis verdejante ao longo dos rios da Babilónia, foi capaz de viver aquele deserto como pastagem restauradora, conseguiu ler uma salvação naquela desventura, ver um Deus-pastor num Deus derrotado. A transformação dos acampamentos de Babilónia em prados verdes das frescas águas foi possível graças ao talento daquele antigo poeta, mas a alquimia foi possível também porque entre os exilados havia os profetas. A profecia é o princípio ativo que transforma os desertos em oásis, prisões em libertações, o bastão do carcereiro em cajado do bom pastor. Dois profetas que estavam no exílio em Babilónia – o Segundo Isaías e Ezequiel – deram-nos as imagens proféticas mais nítidas do bom pastor, que chegarão aos Evangelhos, os atravessarão e fecundarão: «Sou Eu que apascentarei as minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar - oráculo do Senhor Deus. Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente. Vigiarei sobre a que está gorda e forte. A todas apascentarei com justiça» (Ez 34, 15-16). É do profeta anónimo, conhecido como Segundo (Deutero) Isaías, o ícone mais sugestivo do “bom pastor”, que tanto influenciou a arte e a piedade popular: «Leva os cordeiros ao colo, e faz repousar as ovelhas que têm crias» (Is 40, 11). Sem profetas exilados, aquele povo teria deixado de cantar: «Junto aos rios da Babilónia nos sentámos a chorar, recordando-nos de Sião. Nos salgueiros das suas margens pendurámos as nossas cítaras» (Salmo 137, 1-2). As cítaras não foram dependuradas para sempre, a alma dos poetas não deixou de cantar porque, graças a estes grandes profetas, o povo exilado fez a experiência do Deus pastor; sentiu que aquela noite era uma travessia no caminho da salvação, era um outro vau noturno donde sairiam feridos e abençoados. Nenhuma noite mata a alma se um profeta nos revela o sentido (direção). Nas nossas noites, a voz dos profetas pode chegar até nós através de um amigo, dum verso dum poeta, duma palavra boa de uma mãe – todos os ventos sopram livremente na terra e na alma.
A segunda parte do Salmo surpreende-nos com uma outra imagem: «Preparas a mesa para mim à vista dos meus inimigos; ungiste com óleo a minha cabeça; a minha taça transbordou» (23, 5). Gerações de estudiosos se interrogaram qual seria a ligação entre a primeira parte do Salmo (1-4), construída sobre a imagem do pastor e a segunda que descreve uma cena de hospitalidade nómada, a ponto de alguns especularem dois salmos, originariamente autónomos e, depois, fundidos. Uma leitura unitária é possível. Um homem, nómada e peregrino, chega junto de um acampamento estrangeiro, sedento e cansado, talvez apanhado por qualquer inimigo. E, aqui, faz a experiência espetacular da hospitalidade: não é repelido por aquela gente diferente; é honrado. É-lhe preparada uma mesa, dão-lhe de beber, a sua cabeça e o seu corpo são borrifados com óleo, espalham-se os perfumes que enchem a tenda. Os inimigos não ousam entrar; veem que aquele homem encontrou proteção. No fim da festa, aquele hóspede oferece ao fugitivo uma escolta para o acompanhar, seguro, no resto do caminho. Cenas não muito raras, ontem; muito raras, hoje.
No mundo antigo, a hospitalidade era algo de tão vital que, em muitas culturas, era considerado uma coisa sagrada. Na Bíblia, Deus é o libertador da escravidão do Egipto, mas é também o hóspede do seu povo libertado. Como aquele povo nómada e, frequentemente, fugitivo, compreendeu algo de importante sobre Deus, vendo a atividade do bom pastor, aquele mesmo salmista ou, porventura, um outro aprendeu alguma coisa do próprio YHWH, fazendo a experiência do acolhimento ou observando-a noutros. Terá intuído que o seu Deus era pastor e era hóspede. Conhecemos e reconhecemos Deus quando vemos como o pastor trata as suas ovelhas e descobrimos o mesmo Deus quando vemos homens acolher e honrar outros homens e mulheres. As duas metáforas encontram-se, enriquecem-se e completam-se uma à outra. E também enriquecem Deus porque, sempre que do alto dos seus céus, observa um pastor cuidar do seu rebanho, um hospede a honrar um outro ser humano, aprende algo de novo. Deus, omnipotente e omnisciente, sabe o que é a docilidade e o que é o acolhimento; mas, para conhecer a mansidão, tem necessidade da mão do pastor que passa pelo dorso do cordeiro (manso) e, para conhecer a hospitalidade, precisa da alegria infinita experimentada por um peregrino por um copo que lhe é oferecido debaixo da sua tenda. Para estas coisas, precisou que Adão saísse do Éden e se tornasse pastor e hóspede. A história é verdadeira para nós e é verdadeira para Deus.
Aquele antigo salmista compreendeu, então, que a ação do pastor e a do hóspede eram muito semelhantes, que algo de importante sobre Deus se manifestava no trabalho do pastor e no hóspede. YHWH é bom pastor e bom hóspede e, por isso, para compreender a gramática do cuidado, nosso e de Deus, não basta olhar a relação entre um homem e os seus animais (nem ontem nem hoje); é preciso também a arte da hospitalidade, olhar como os humanos se tratam entre si. Quando redescobriremos, hoje, novas metáforas humanas para dizer coisas novas e boas sobre Deus? E se o estivermos a fazer já? Novos salmistas, com linguagens diferentes talvez estejam a compreender melhor e mais a Deus, vendo o trabalho dos médicos e enfermeiros, ao vê-los chegar de países distantes, para curar os nossos doentes, e hospedá-los sob novas tendas. Talvez outros estarão a compreender algo de novo sobre os homens e sobre Deus, enquanto fazem a experiência da hospitalidade. Não o sabemos, não nos interessa sabê-lo, não o compreendemos porque escritas em novas linguagens; mas, se fossemos capazes de as intercetar, ouviríamos, também hoje, todos os dias e em toda a terra, as mesmas palavras do Salmo: «A tua bondade e o teu amor hão de acompanhar-me todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre» (23, 6).
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Abraham Heschel, Quem é o homem?
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por Luigino Bruni
publicado originalmente em italiano no site Avvenire em 29/03/2020
Feliz o homem que não procede conforme os conselhos dos ímpios,
não trilha os caminhos dos pecadores
e nem se assenta entre os escarnecedores,mas na lei do Senhor encontra a sua alegria,
na sua lei medita dia e noite.É como a árvore plantada na margem das águas correntes,
que dá fruto no tempo certo:
suas folhas não murcham
e tudo aquilo que ele faz, prospera.Os ímpios não são assim,
mas como a palha que o vento leva;por isso não suportarão o juízo,
nem permanecerão os pecadores na assembleia dos justos.porque o Senhor vela pelo caminho dos justos,
ao passo que o dos ímpios leva à perdição. (Salmo 1)Os salmos são um concentrado da Bíblia inteira. Hoje, começamos a comentá-los, colocando-nos na bifurcação entre o caminho dos justos e dos ímpios.
Começamos o comentário do Livro dos Salmos. Porém, tais livros não são comentados. São rezados, cantados e gritados. São demasiadamente humanos, imbuídos de dor e de amor, misturados profundamente com o homem e com Deus. E mesmo assim o comentaremos, conscientes que permaneceremos na periferia de seus mistérios. Juntamente com os evangelhos, os Salmos são os livros mais conhecidos e traduzidos da Bíblia. Eles são partes essenciais e amadas da Bíblia, também porque são uma espécie de sua destilação, acrescentados de poesia, de música e de liturgia. Além disso, neles se encontram os profetas, a Lei e os textos de sabedoria, Jó - e nestes se encontram os salmos. A composição dos salmos acompanhou toda a história de Israel, e com ela se cruza e se entrelaça. Os primeiros datam (pelo menos) à época de David, e os últimos atingem o limiar do Novo Testamento.
[fulltext] =>Poderíamos narrar os evangelhos através de citações, diretas ou indiretas, contidas nos salmos. Sem os salmos não poderíamos entender o monasticismo, que nasce e renasce da oração e do cântico dos salmos, que conduzem o ritmo de sua liturgia. Lutero e Calvino escreveram comentários memoráveis sobre os salmos - e aqui está uma estranha afinidade entre as igrejas reformadas e o monasticismo. E ainda, os salmos são o sopro da oração diária de muitas comunidades religiosas e de milhões de crentes. Na Europa - a sua arte, a sua música e a sua espiritualidade - também foram inspiradas pela recitação e pelos cânticos dos salmos.
Não são tratados como teologia nem como ética: são uma oração. E assim como todas as orações autênticas, nasceram da dor e do amor das pessoas, do coração do povo e de sua fé. São palavras distintas e sublimes que o homem e a mulher encontraram dentro de si como dom, e depois as usaram para louvar, para gritar o desespero, para não morrer de dor, quando a oração restava como o último elo com a vida. As orações mais autênticas não estão escritas: elas chegam, encontram-se, aparecem, surgem na alma e depois, algumas vezes, chegam até a cítara e ao pandeiro. E se é verdade que a oração faz parte do repertório base do ser humano, então todos nós podemos compreender os salmos e todos nós podemos cantá-los.
São orações coletivas e comunitárias, mesmo quando o sujeito da oração é uma única pessoa. Os salmos também usam a palavra 'nós', mas é o 'eu' o protagonista do saltério. Muitos salmos são orações ditas e escritas por um só indivíduo, que a comunidade transformou em oração coral. Ou seja, para edificar a comunidade não é preciso cancelar a individualidade à procura de um abstrato 'nós'. Quando a experiência comunitária é autêntica, o 'eu' doa as suas palavras à comunidade e essa as transforma em palavras coletivas, deixando-as como orações pessoais.
A alma coletiva não é uma soma ou multiplicação das individualidades, mas é a alquimia - rara e sublime - de um 'eu' que transforma o 'nós', permanecendo o 'eu'; é a mútua inabitação de cada alma na alma do outro, e de todas naquela da comunidade. O poeta compõe o salmo com palavras muito íntimas recebidas na sua alma, e quando diz "eu", quer dizer "nós"; e a comunidade, usando as palavras do salmista, repete o "nós" com as palavras daquele "eu". Não há um comentário mais apropriado à Trindade de Andrej Rublëv, de que um salmo escrito e cantado em primeira pessoa singularmente.
Os salmos foram compostos para os cultos no templo e para as grandes ocasiões (coroações), mas alguns floresceram dentro da normalidade da vida - do trabalho, do sofrimento e do luto. Na Bíblia e também hoje, embora nós, confundidos por muitas ideias demasiadamente pequenas em espiritualidade, os procuramos nas igrejas ou nas liturgias, e por isso não os encontramos. Não há nada de mais leigo que um salmo, porque não há nada de mais leigo do que a vida.
O Salmo 1 é uma introdução de todo o Saltério. Por essa razão, a primeira palavra do primeiro salmo começa com o alef (a primeira letra do alfabeto hebraico; e a última palavra do salmo começa com o tau, a última letra). É uma bem-aventurança e uma benção, um desejo de que o caminho seja bom, um viático para o leitor que inicia a sua meditação no livro dos Salmos. É como se dissesse: quem tomar esse caminho será abençoado, será como uma árvore robusta plantada as margens de um rio, portanto, dará frutos. A imagem da árvore é muito estimada pelos profetas (Ezequiel, Jeremias), e por alguns padres da igreja (Gregório, o grande, Ruperto de Salzburgo) que viram a profecia da cruz, da nova "árvore da vida" do fruto eterno.
A felicidade da Bíblia não é a felicidade dos gregos (eu-daimonia: o bom demônio), nem mesmo a Glück (sorte) dos alemães ou a felicidade (happen: acontece) dos ingleses. Em vez disso, assemelha-se à felicitas dos romanos, onde o prefixo fe- é o mesmo de feto, feminino, feraz, que significa a natureza generativa de uma boa e feliz vida. Essa bem-aventurança é uma promessa de frutos. Os frutos que em vez o ímpio, o maldoso, não consegue dar, porque as suas obras se dispersam, como o vento dispersa o joio, que se espalha com a batida da colheita - vanitas, nulla, hevel: "os malvados desaparecem no nada".
Esse salmo põe uma bifurcação diante do homem, que é decisiva para quem começa o seu caminho no Saltério e na vida, pedindo para que ele faça uma escolha fundamental entre a vida boa do justo e aquela má do ímpio. Porém, não pede para usar a Bíblia e a religião como meios para julgar quem são os justos e quem são os malvados, situação muito comum, que sempre acaba nos colocando entre aqueles que estão no caminho certo. O salmo nos diz que errar a escolha nos momentos decisivos, significa perder o fio da existência e, portanto, não dar frutos ou produzi-los estragados. O ímpio é de fato aquele que escolheu o caminho errado, por conseguinte, perdeu-se. A bênção que abre o saltério é, portanto, um convite para não errar o primeiro passo - em cada caminho, o primeiro e o último passo são os mais importantes - e é também um desejo de não se desviar dentro do saltério. Nos evangelhos, satanás cita um salmo (91) para tentar Jesus no deserto, mostrando-nos que também há uma maneira diabólica de ler e usar os salmos. Os ímpios caminham, e também eles erram nos passos de Caim.
O salmo promete fecundidade aos justos, mas acrescenta: "no tempo certo". Essa frase se assemelha muito "para tudo há um tempo", do capítulo 3, Eclesiastes. Muitas vezes, quando o justo não vê os frutos, talvez ele simplesmente não esteja na estação certa. Às vezes, a estação dos frutos do justo é, simplesmente, a última.
E tem mais. O salmo de fato acrescenta: "tudo o que ele faz, prospera". Uma promessa de recompensa que para não ser confundida como uma simples teologia da prosperidade (embora presente na Bíblia), deve ser lida juntamente com o que leremos em muitos outros salmos, como nos profetas e em Jó, onde nos lembram que nem sempre as obras dos justos prosperam, ou até mesmo acabam em montes de estrumes; não porque eram ímpios, mais justamente porque estavam certos.
Talvez essa seja uma das mensagens mais fortes presente na Bíblia toda. O sucesso não é sinal da nossa justiça, nem o fracasso, um sinal da maldade. A história está cheia, todos os dias, de justos fracassados e malvados que são bem-sucedidos. Contudo, nunca paremos de acreditar que exista uma relação entre a felicidade e a justiça, mesmo que todos nós saibamos, inclusive os salmistas, que a vida seria falsa se as desgraças e as bençãos chegassem baseadas nos nossos méritos e nas nossas culpas. Eis então que surge a verdadeira natureza dos salmos das bem-aventuranças: são desejos e orações ao Deus justo, para que a injustiça diminua no mundo. Os nossos mesmos desejos e as nossas mesmas orações, que nunca devem chegar ao ponto de ler os nossos infortúnios e os dos outros como punição, pois seria a blasfêmia mais perversa.
Enfim, quem são os ímpios? E quem são os justos? Sabemos o que Jesus pensava daqueles que se consideravam justos. Entramos nos salmos como ímpios sentindo-nos justos, e se o caminho funcionar, no final, saímos justos sentindo-nos ímpios. Não tem um momento mais favorável do que este para meditar e rezar os salmos. Muitos salmos nasceram nos momentos mais turbulentos da história de Israel. Alguns foram gerados durante o exílio, quando dentre as antigas orações não se encontrava mais nenhuma capaz de exprimir a dor sem precedentes pela pátria perdida e o templo destruído.
Os salmos se tornaram um templo móvel. Aquele longo luto espiritual gerou outras novas orações, dentre as mais lindas do saltério - quem sabe quantos novos salmos estão sendo gerados, hoje, nos nossos hospitais: talvez os mais lindos não serão recolhidos e contados por ninguém, porém não se perderão - "põe as minhas lágrimas no teu odre" (Salmo 55).
Ao longo dos séculos, os salmos proporcionaram palavras para as orações, àqueles que não as tinham. Eles foram as primeiras orações daqueles que voltaram a rezar. Algumas vezes se transformaram em palavras emprestadas a quem, sem a fé, tinha, porém, o desejo de rezar nos momentos difíceis, quando a oração se tornava a filha única do silêncio. Os salmos nos levam de volta às encostas do Sinai, a escutar novamente as palavras de Moisés, a atravessar de novo o mar e depois dançar com Maria o canto da libertação. Basta apenas um salmo para aprender o sentido da Bíblia e, quem sabe, também da vida. Boa viagem.
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por Luigino Bruni
publicado originalmente em italiano no site Avvenire em 29/03/2020
Feliz o homem que não procede conforme os conselhos dos ímpios,
não trilha os caminhos dos pecadores
e nem se assenta entre os escarnecedores,mas na lei do Senhor encontra a sua alegria,
na sua lei medita dia e noite.É como a árvore plantada na margem das águas correntes,
que dá fruto no tempo certo:
suas folhas não murcham
e tudo aquilo que ele faz, prospera.Os ímpios não são assim,
mas como a palha que o vento leva;por isso não suportarão o juízo,
nem permanecerão os pecadores na assembleia dos justos.porque o Senhor vela pelo caminho dos justos,
ao passo que o dos ímpios leva à perdição. (Salmo 1)Os salmos são um concentrado da Bíblia inteira. Hoje, começamos a comentá-los, colocando-nos na bifurcação entre o caminho dos justos e dos ímpios.
Começamos o comentário do Livro dos Salmos. Porém, tais livros não são comentados. São rezados, cantados e gritados. São demasiadamente humanos, imbuídos de dor e de amor, misturados profundamente com o homem e com Deus. E mesmo assim o comentaremos, conscientes que permaneceremos na periferia de seus mistérios. Juntamente com os evangelhos, os Salmos são os livros mais conhecidos e traduzidos da Bíblia. Eles são partes essenciais e amadas da Bíblia, também porque são uma espécie de sua destilação, acrescentados de poesia, de música e de liturgia. Além disso, neles se encontram os profetas, a Lei e os textos de sabedoria, Jó - e nestes se encontram os salmos. A composição dos salmos acompanhou toda a história de Israel, e com ela se cruza e se entrelaça. Os primeiros datam (pelo menos) à época de David, e os últimos atingem o limiar do Novo Testamento.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 14/06/2020
«Gritai, gritai, gritai! Oh, sois feitos de pedra! Se eu tivesse as vossas línguas e os vossos olhos, usá-los-ia de modo que a abóbada celeste se quebraria».
William Shakespeare, Rei Lear
O Salmo 22, um dos vértices poéticos e espirituais da Bíblia, é também a pauta sobre o qual foi escrita a sinfonia da paixão de Cristo. E ajuda-nos a compreender algo dos crucificados e dos seus mistérios.
Um homem é perseguido, torturado, humilhado, desprezado por outros homens. Sente a morte muito próxima. Aquele homem está inocente – como tantos outros, ontem e hoje. Sabe que não merece aquela grande dor, aquela violência, aquela humilhação – e quem as merece? Mas aquele homem, além de ser um justo sofredor e humilhado, é também um homem de fé. E, ali, naquela noite escuríssima, talvez num cárcere, em cima de um monte de esterco ou dentro de uma cisterna, nasce uma oração, aflora-lhe na alma um último cântico desesperado. Começa com palavras que estão incluídas entre as mais preciosas, tremendas e estupendas da Bíblia, entre as mais tremendas e estupendas da vida: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Salmo 22, 2). Um pináculo poético, espiritual e antropológico do Saltério, talvez o mais alto.
[fulltext] =>Também um grito que abre uma oração, como no Egipto, quando a primeira oração coletiva do povo escravo foi um alto grito (Êxodo, 23). Muitas orações grandes ganham a forma do grito, de um urro atirado ao céu para procurar acordar Deus. Na Bíblia, gritar é possível, lícito, aconselhado; é uma linguagem que Deus parece compreender. Gritando, podemos despertar Deus, recordar-lhe o seu “trabalho” de libertador de escravos e de pobres. Enquanto formos capazes de gritar o abandono, não perdemos a fé; estamos apenas a exercitá-la, estamos simplesmente a realizá-la.
Aquele homem torturado, aquele “servo sofredor” grita e vive a sua desventura na fé e, por isso, dentro daquele abandono, sente também o abandono de Deus. E aquele grito torna-se a corda (fides, em latim) para não perder o contacto com Deus, o fio de ouro da vida que não se quebra precisamente porque ousamos gritar. Aquele homem não acusa Deus por o ter reduzido àquelas condições; diferentemente de Job, não considera Deus o seu carrasco. Pelo contrário, a sua dor nasce da não intervenção de Deus, que deveria intervir como libertador do seu fiel inocente, mas ainda não o fez: «Minha salvação, porque estás longe? Não falo mais; grito» (22, 2).
Para o despertar, aquele homem recorre à melhor estratégia presente na Bíblia: recorda a Deus quem é, ajuda-o a recordar-se da sua promessa: «Tu, porém, és o Santo e habitas na glória de Israel. Em ti confiaram os nossos pais; confiaram e Tu os libertaste. A ti clamaram e foram salvos; confiaram em ti e não foram confundidos» (22, 4-6). Em toda a relação que se quer salvar, a primeira oração não é: “recorda-te de mim”, mas: “recorda-te de ti”, e também “recorda-te de nós”.
Na Bíblia, a memória é o recurso extremo, o mais eficaz. Volta-se aos acontecimentos de ontem para recriar a fé de hoje e de amanhã. E quem é Deus torna-se, imediatamente, o que fez, não ações genéricas e anónimas, mas as ações específicas e concretas, na existência real de quem está a rezar, gritando, de quem tenta despertá-lo. No humanismo bíblico, a história é a primeira prova que o seu Deus está vivo: a história do povo, mas também a história de cada pessoa. Todo o crente tem um seu Egipto, um seu Mar Vermelho e um seu Sinai para narrar e levar como demonstração da não-vaidade da sua fé. Toda a oração, então, é um encontro de três “recorda-te”: pedimos a Deus que se recorde de si, se recorde de nós e a nós mesmos para nos recordarmos de Deus: «Na verdade, Tu me tiraste do seio materno; puseste-me em segurança ao peito de minha mãe… Desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus» (22, 10-11).
És Tu mesmo: nunca me habituo à intimidade e confiança com que, nos salmos, os homens se dirigem ao seu Deus. Naquele mundo antigo, violento, frequentemente primitivo, Deus era o seu “tu” mais delicado e secreto, era o amigo, o amante, o amado, o amor. Repetindo os salmos, geração após geração, dia após dia, hora após hora, aprendemos a rezar e conhecemos melhor Deus e conhecemos mais o homem e a mulher; mas também aprendemos a ternura e a confiança entre nós, o diálogo cara-a-cara, porque aquele “Senhor dos exércitos” sabia tornar-se mais meigo que uma criança, que uma esposa, que uma mãe.
«Eu, porém, sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe. Todos os que me veem escarnecem de mim; estendem os lábios e abanam a cabeça. “Confiou no Senhor, Ele que o livre; Ele que o salve, já que é seu amigo”. […] Todos os meus ossos se desconjuntaram. A minha garganta secou-se como barro cozido e a minha língua pegou-se-me ao céu-da-boca. Estou rodeado por matilhas de cães, envolvido por um bando de malfeitores; trespassaram as minhas mãos e os meus pés: posso contar todos os meus ossos. Repartem entre si as minhas vestes e sorteiam a minha túnica. Tu és o meu Deus» (22, 7-20). Não são precisas mais palavras. Qualquer comentário estraga. Mas não podemos calar uma ressurreição, todas as ressurreições estão anunciadas: «Respondeste-me!» (22, 22).
O abandonado despertou Deus. Mais uma vez, um grito de um inocente furou o céu: «Então anunciarei o teu nome aos meus irmãos e te louvarei no meio da assembleia… Pois Ele não desprezou nem desdenhou a aflição do pobre… Os pobres comerão e serão saciados; louvarão o Senhor, os que o procuram. Hão de lembrar-se do Senhor e voltar-se para Ele todos os confins da terra;» (22, 23-28).
O louvor torna-se oração universal, cósmica, infinita, no espaço e no tempo. Um dos frutos mais sublimes e maravilhosos das grandes desventuras superadas, é uma alma alargada, até cobrir todo o universo. Torna-se mãe e pai da humanidade, nasce uma nova fraternidade com todos, bons e maus, sentimo-nos pequeníssimos, embora soberanos do mundo.
Um outro inocente, num outro dia, foi capturado, condenado, foram-lhe trespassados pés e mãos, pregado no madeiro. Quem recolheu e narrou a paixão daquele homem não encontrou, em toda a Escritura, texto mais apto que o Salmo 22 para servir de pauta sobre a qual escrever a sinfonia do Gólgota. No auge da vida e da paixão de Cristo, encontramos um outro grito, revestido das palavras do Salmo 22: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15, 34; Mt 27, 46).
Foi uma escolha extraordinária, genial, toda dom. Os evangelistas sabiam que aquela paixão não era a mesma que tinha vivido, séculos antes, aquele salmista anónimo. No entanto, não tiveram medo de recordar aquele cântico escandaloso – um Homem-Deus que grita o abandono de Deus. Fizeram-no porque queriam dizer-nos algo de importante. Se os discípulos e testemunhas, para nos transmitir algo da sua compreensão da paixão e morte de Cristo, escolheram o Salmo 22, então a ideia de Deus a trabalhar naquela crucifixão deve ser muito semelhante ao Deus daquele antigo salmo. Queriam dizer-nos que, para compreender aquele abandono e aquela cruz, temos de levar muito a sério o Salmo 22.
O homem do Salmo sentiu verdadeiramente o abandono por parte de Deus. Não fingia; o abandono era verdadeiro. O mesmo para Jesus. O homem do Salmo permaneceu um homem de fé na sua paixão; não perdeu a fé. Também Jesus. Aquele homem não protestou com o Pai, acusando-o do seu sofrimento, mas rezava-lhe para que interviesse naquele sofrimento. E Deus respondeu, fez o seu trabalho de libertador e salvador e ressuscitou-o da sua “morte”.
Escolher o Salmo 22 significa, portanto, distanciar-se das muitas leituras teológicas da morte de Cristo, antigas e modernas. Antes de mais, o salmo diz-nos que a cruz de Cristo não foi querida por Deus como “preço” para nos salvar. O salmista sabe que não foi Deus a conduzi-lo ao seu patíbulo, mas pede-lhe para o libertar. Deus está do lado da libertação, não da condenação. Além disso, a cruz de Jesus não foi vivida nem compreendida, pelos primeiros cristãos, como sacrifício do Filho, agradável ao Pai, porque, naquele salmo, o salmista não diz que o seu sofrimento agrada a Deus; diz precisamente o contrário. Finalmente, a paixão e a cruz não são vividos como sacrifício voluntário do Filho: o salmo diz-nos exatamente o oposto; o homem sofredor pede a Deus que o liberte daquela dor injusta e obtém a libertação. O Deus bíblico não quer o sofrimento dos seus filhos.
O Salmo 22 é também o Salmo da ressurreição. Diz-nos que a ressurreição é a resposta do Pai à oração do Filho. Como nos diz que, embora a ressurreição de Cristo tenha sido um acontecimento especial e único, também é verdade que quanto acontece entre a Via Crucis e o Sepulcro vazio tinha algo de semelhante a quanto tinha vivido aquele antigo salmista, a quanto tinham vivido já muitos homens e mulheres feridas, humilhadas crucificadas e ressurgidas, aos milagres que nos acontecem quando nos encontramos no cimo dum monte, nos sentimos como um verme, não perdemos a fé (pelo menos na nossa inocência) e nos encontramos ressurgidos. Que quanto viveu Cristo era muito semelhante – talvez idêntico – ao vivido pelos muitos crucificados da história – e, assim, nenhum crucificado da história permanece fora do horizonte abençoador do Salmo, do Gólgota, do Sepulcro vazio. E, quando a dor não passa e a ressurreição não chega, estamos autorizados a gritar, pedindo emprestadas as palavras do Salmo 22: cantemo-las uma, duas, cem vezes. Se o anjo da morte nos encontrar com aquelas palavras nos lábios ou no coração, entre os seus braços começará uma ressurreição – nas terapias intensivas da primavera pandémica de 2020, viram muitas Bíblias, algumas delas abertas precisamente no livro dos Salmos.
Se o grito de Cristo na cruz é o começo do Salmo 22, então podemos pensar que aquele Salmo foi a oração de Jesus na cruz. Sigamo-lo no seu cântico secreto: «Minha salvação, porque estás longe? Não falo mais; grito… sou um verme e não um homem, o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe. Todos os que me veem escarnecem de mim. Trespassaram as minhas mãos e os meus pés: posso contar todos os meus ossos… Mas Tu, Senhor, não te afastes de mim! És o meu auxílio: vem socorrer-me depressa… Tu me tiraste do seio materno; puseste-me em segurança ao peito de minha mãe». E, finalmente, o último sussurro: «Tu és o meu Deus».
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 14/06/2020
«Gritai, gritai, gritai! Oh, sois feitos de pedra! Se eu tivesse as vossas línguas e os vossos olhos, usá-los-ia de modo que a abóbada celeste se quebraria».
William Shakespeare, Rei Lear
O Salmo 22, um dos vértices poéticos e espirituais da Bíblia, é também a pauta sobre o qual foi escrita a sinfonia da paixão de Cristo. E ajuda-nos a compreender algo dos crucificados e dos seus mistérios.
Um homem é perseguido, torturado, humilhado, desprezado por outros homens. Sente a morte muito próxima. Aquele homem está inocente – como tantos outros, ontem e hoje. Sabe que não merece aquela grande dor, aquela violência, aquela humilhação – e quem as merece? Mas aquele homem, além de ser um justo sofredor e humilhado, é também um homem de fé. E, ali, naquela noite escuríssima, talvez num cárcere, em cima de um monte de esterco ou dentro de uma cisterna, nasce uma oração, aflora-lhe na alma um último cântico desesperado. Começa com palavras que estão incluídas entre as mais preciosas, tremendas e estupendas da Bíblia, entre as mais tremendas e estupendas da vida: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Salmo 22, 2). Um pináculo poético, espiritual e antropológico do Saltério, talvez o mais alto.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 06/06/2020.
«¿Quem sabe se o deserto que deixarmos, um dia, não terá esta voz, este lamento humano do vento, infinitamente repetido: mah-’enòsh? Que é o homem? Que foi o homem? Que foi ser homem?».
Guido Ceronetti, O livro dos salmos.
O Salmo 19 parte do firmamento, cantor da glória divina, e termina com as culpas inconscientes, para nos mostrar que uma relação curada tem o mesmo valor que uma galáxia.
«Os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite. Não são palavras nem discursos cujo sentido se não perceba. O seu eco ressoou por toda a terra, e a sua palavra, até aos confins do mundo» (Salmo 19, 2-5). Os céus proclamam. A Bíblia é toda palavra, é toda proclamação; é guardiã da palavra de Deus dita em palavras humanas. É sentinela ciumenta de relatos extraordinários e diferentes, onde as palavras foram capazes de dizer o inefável, fazer-nos sonhar Deus até quase vê-lo.
[fulltext] =>A Bíblia amou e venerou a palavra, a ponto de arriscar fazê-la tornar-se um ídolo, violando a proibição das imagens e de idolatria contido nas suas páginas. Um dos dispositivos teológicos e poéticos que lhe permitiu não se tornar o ídolo maior e mais perfeito é a presença nela de linguagens de Deus não-verbais. De facto, da glória de Eloim falam também os céus, o firmamento, o sol, a noite. Não somos apenas nós, humanos, a falar de Deus; não somos os únicos guardiões e transmissores de mensagens divinas. A Bíblia diz-nos que existem maravilhosas narrativas de Deus escritas sem palavras humanas. Deus fala-nos com a boca e com as palavras dos profetas, escreveu-nos cartas de amor com o estilo do escritor sagrado, compôs cânticos estupendos com a poesia e a cítara de David. Porém, a Bíblia sabe que a linguagem humana não é a única língua usada nos colóquios entre Eloim e nós – “Sem linguagem, sem palavras, sem que se ouça a sua voz”. Narrações mais antigas que as humanas, que ecoaram através do universo, antes que chegasse o homem e que continuam, hoje, a ecoar nas galáxias infinitas; e a dizer-nos que aquelas narrações são também para nós, mas não apenas para nós: não sonos o único sentido da criação. Os astros não escrevem os seus relatos apenas para nós. Aqui, a humildade e a grandeza de Adão encontram-se a harmonizam-se.
Mas o momento em que a Bíblia testemunha as narrações das estrelas e as reconhece como linguagem de Deus, também essa linguagem não-verbal se torna palavra de homem que narra a não-palavra de Deus. E o Salmo torna-se um encontro de narrações: os céus narram ao homem a glória, sem usar palavras humanas, e as palavras humanas, ao descrever estas narrações não-verbais, mudam em palavra o que não é palavra. Estupendo. Então, quando lemos a sua palavra mais louca – “a palavra fez-se carne” – naquela palavra temos de incluir também as não-palavras do sol, das estrelas, do cosmo – o verbo, na Bíblia, são todas as palavras da terra e todas as “palavras” do céu.
Os primeiros relatos escritos pelos homens talvez tenham sido tentativas de narrar os relatos da natureza, escritos sem palavras. Como a criança aprende a fala repetindo as palavras da mãe, nós, crianças, aprendemos a falar repetindo as “palavras” dos relatos das estrelas. Muitos povos antigos estavam tão fascinados por esta linguagem cósmica que chamavam deuses ao sol e às estrelas. A Bíblia, pelo contrário, coloca o seu Deus acima dos altíssimos astros. Os astros não são Deus, mas criaturas suas – os céus anunciam a glória de Deus. Não são portadores de uma mensagem própria, mas significantes de outros significados, também eles “palavras” pronunciadas. Está aqui a diferença entre este Salmo e os cânticos cósmicos que encontramos na literatura babilónica e egípcia. O sol não é Deus, mas é hóspede de Deus: «Deus fez, lá no alto, uma tenda para o Sol, donde ele sai, como um esposo do seu leito, a percorrer alegremente o seu caminho, como um herói» (19, 5-6).É o seu melhor atleta que corre, em cada dia, do oriente ao ocidente, indo ao encontro da noite para lhe passar a sua mensagem, para lhe dizer, em cada manhã, palavras teóforas: «Sai de uma extremidade do céu e, no seu percurso, alcança a outra extremidade» (19, 7). Toda a Bíblia está no Cântico do Irmão Sol.
Ainda não recuperámos o fôlego por esta visão cósmica do verbo, dita com uma poesia que aqui trazemos num dos seus momentos de primavera, no alvorecer das civilizações e eis que o Salmo nos surpreende com um segundo golpe de teatro: «A lei do Senhor é perfeita, reconforta o espírito» (19, 8). Porquê este salto da sinfonia cósmica à Torá, do céu à Lei? Um salto tão inesperado que não poucos exegetas especularam que os salmos, na origem do Salmo 19, fossem (pelo menos) dois, fundidos por um redator final.
Na realidade, a unidade do Salmo é revelada pela própria Bíblia. Para o homem bíblico, o firmamento e a Torá são ambos obras-primas de YHWH. Quando o antigo salmista elevava os olhos para o alto, ficava encantado pela harmonia e pela beleza do céu; mas, depois, experimentava o mesmo encanto quando olhava a terra e lá encontrava a Torá. A ordem cósmica é garantida por leis intrínsecas impressas pelo Criador na criação e a ordem moral nasce da obediência às leis e aos preceitos da Torá. O objetivo é o mesmo, a idêntica providência: «Os mandamentos do Senhor são retos, alegram o coração; … São mais desejáveis que o ouro, o ouro mais fino; são mais doces que o mel, o puro mel dos favos» (19, 9-11). O salmista experimentava a mesma “alegria do coração” quando via, em cada manhã, ressurgir o sol e quando lia “honra o pai e a mãe”; ficava emocionado pelo firmamento e pelo “não matar”. Porque sabia que as estrelas e a Torá eram dom para ele, eram só e completamente gratuidade. Sem esta dupla beleza, não entramos no humanismo bíblico, não compreendemos o seu maior objetivo: «há grande proveito em cumpri-las» (19, 12). «O céu estrelado acima de mim, a lei moral dentro de mim»: só com o Salmo 19 diante dos olhos se capta o sentido da última página da Crítica da Razão Pura, de Kant, uma página entre as mais bíblicas de toda a filosofia.
Este antigo poeta sabia também outra coisa: «Mas, quem poderá discernir os próprios erros? Perdoa-me os que me são desconhecidos. Preserva-me também da soberba, para que ela não me domine» (19, 13-14). Acima do sol, os astros obedecem, dóceis e mansos, às leis que YHWH inscreveu neles; transmitem a sua mensagem, não transgridem, não pecam. Debaixo do sol, não; porque, sobre a terra, Adão foi criado com uma liberdade moral única que o torna o grande mistério do universo. Só o homem e a mulher podem decidir não seguir as leis de amor pensadas, por Deus, para eles. E, nisto, são superiores ao sol e às estrelas. Está aqui o grande mistério do homem: a imagem de Deus torna-o livre a ponto de poder negar as leis pensadas para a sua felicidade (as nossas infelicidades mais importantes são as que escolhemos sabendo que são infelicidades). Somos mais livres que o sol e, por isso, menos obedientes. E regressa o nosso destino tremendo e estupendo, guardado pelo Salmo 8: «O que é o homem? Porém…».
Entre os pecados humanos, encontramos aqui realçados os cometidos por inadvertência e os inconscientes. Embora o século XX nos tenha mostrado um inconsciente não inocente, a categoria dos pecados inconscientes está distante da nossa sensibilidade moderna, muito centrada nas intenções. A Bíblia não é uma ética, embora nos seus livros existam muitas éticas. O humanismo bíblico não pode ser enquadrado numa ou noutra das teorias éticas modernas (responsabilidades, intenções, virtudes…), mas está, certamente, mais interessado que nós nas consequências dos atos. Porque o que mais lhe interessava era o equilíbrio do corpo social e o cuidado da Aliança com Deus. Se, então, alguém cometia um pecado e provocava um dano, era a este equilíbrio nas relações sociais que a Bíblia, sobretudo, olhava. O Decálogo começa com a recordação da libertação do Egipto: não com um princípio ético abstrato, mas com um facto. A dimensão histórica da fé bíblica manifesta-se também no grande valor que atribui aos comportamentos, às ações, aos factos, às palavras. Basta pensar, para um exemplo, no velho Isaac que dá, por erro/engano a sua bênção a Jacob: quando se apercebe do seu erro, não pode revogar a bênção errada, porque aquelas palavras tinham gerado a realidade, enquanto a dizia, e tinham agido, independentemente das condições subjetivas de Isaac e dos seus parentes (Gen. 27). Os pecados são factos que agem e mudam o mundo, com uma vida própria, diferente das intenções de quem os praticou. Se, hoje, te digo uma palavra feia e, amanhã, te peço desculpa, as desculpas poderão agir no futuro, mas não poderão apagar a realidade da dor que aquela palavra provocou no coração do outro, nas horas que decorreram entre o pecado e o arrependimento. Portanto, na Bíblia, a palavra é tão séria que produz efeitos por si mesma, mesmo quando não estamos conscientes, mesmo naquelas “horas” que passam e não pedimos desculpa porque não estamos conscientes dos danos que estamos provocando – os danos inconscientes podem ser maiores, justamente porque nunca chegam nem o arrependimento nem as desculpas.
Pedir, então a Deus (e à comunidade) para ser absolvido pelos pecados inconscientes nascia da consciência que os danos que provocamos são maiores que as nossas más intenções. O homem bíblico sabia-o e restabelecia o equilíbrio. Nós perdemos a consciência disso, não pedimos perdão a ninguém, encobrimo-nos por detrás da boa-fé e aumentamos os desequilíbrios.
O Salmo 15 tinha louvado a sinceridade. O Salmo 19 diz-nos que a sinceridade, por vezes, não basta. Porque, na vida, há também o valor das consequências de ações erradas, realizadas em boa-fé. A Bíblia é um contínuo e precioso exercício de auto subversão, que é o remédio mais eficaz contra todas as ideologias. Inclusive as muitas pequenas ideologias do nosso século, nascidas da morte das grandes ideologias do século passado.
O Salmo 19 raptou-nos para o sétimo céu e, depois, devolveu-nos à terra, às nossas inadvertências e culpas inconscientes, para nos dizer algo de importante que nunca deveremos esquecer: uma relação sarada tem o mesmo valor que uma galáxia.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 06/06/2020.
«¿Quem sabe se o deserto que deixarmos, um dia, não terá esta voz, este lamento humano do vento, infinitamente repetido: mah-’enòsh? Que é o homem? Que foi o homem? Que foi ser homem?».
Guido Ceronetti, O livro dos salmos.
O Salmo 19 parte do firmamento, cantor da glória divina, e termina com as culpas inconscientes, para nos mostrar que uma relação curada tem o mesmo valor que uma galáxia.
«Os céus proclamam a glória de Deus; o firmamento anuncia a obra das suas mãos. Um dia passa ao outro esta mensagem e uma noite dá conhecimento à outra noite. Não são palavras nem discursos cujo sentido se não perceba. O seu eco ressoou por toda a terra, e a sua palavra, até aos confins do mundo» (Salmo 19, 2-5). Os céus proclamam. A Bíblia é toda palavra, é toda proclamação; é guardiã da palavra de Deus dita em palavras humanas. É sentinela ciumenta de relatos extraordinários e diferentes, onde as palavras foram capazes de dizer o inefável, fazer-nos sonhar Deus até quase vê-lo.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 31/05/2020
«Tyr perdeu a sua mão direita no decorrer dum juramento, feito a um lobo para o persuadir a deixar-se amarrar. Em Roma, a mutilação de Scevola é explicável em relação à mutilação de Tyr».
Dominique Briquel, Sul buon uso del comparativismo europeo in materia di religione romana.
A sinceridade é um traço típico do repertório humano. Que cresce juntamente à dor pelas falsidades e mentiras. Hoje, mais que nunca, é-nos útil a verdadeira força de uma nova sinceridade.
O homem é o único ser capaz de mentir. Nem os animais nem Deus podem mentir, se se excetuarem as pequenas mentiras ditas (talvez) por alguns macacos. Atrai-nos e seduz-nos a sinceridade de um cão, porque sabemos que não é como a nossa. Porque sabemos que os efeitos das nossas palavras e gestos dependem radicalmente de algo de tipicamente humano: a verdade. A possibilidade de palavras sem verdade é algo de tipicamente humano que nem sequer Deus possui. Este é um dos paradoxos do humanismo bíblico (e, geralmente, de muitas religiões): a mentira é algo que o homem possui e Deus não. Um “a menos” que se torna numa espécie de “a mais”. O homem, em tudo inferior aos Eloim, pode tornar-se seu “superior” nas suas coisas mais baixas – mentira, maldade, mal. Deus não sabe mentir; o homem e a mulher sim. Está também aqui a força sedutora do pecado: não pecamos apenas “para ser imortais como Eloim”, como disse a serpente à mulher; pecamos também porque somos atraídos e iludidos por poder ser mais que Deus, fazendo algo que Ele não pode fazer porque, se o fizesse, seria Deus a tornar-se como nós. Este bizarro primado antropológico contém, portanto, uma dignidade altíssima. Fez-nos “um pouco menos que ele” (Salmo 8) e, na sinceridade, fez-nos, paradoxalmente, “mais que ele”.
[fulltext] =>As civilizações sempre tiveram muito medo da mentira. Conhecem-lhe o poder destrutivo nas comunidades, nas famílias, em todas as sociedades. Temem-na como o mal maior, forte e grande como a palavra. A Bíblia, que vive de palavras, de palavras divinas reveladas com palavras humanas, de um deus que fala com as mesmas palavras que nós, é particularmente vulnerável e exposta à palavra mentirosa. De modo que os momentos espiritual e eticamente mais altos do Novo e do Antigo Testamento são acontecimentos criados por palavras verdadeiras (a Aliança, os profetas, a Incarnação) mas também por palavras falsas (Caim, Jacob, Pedro). A Bíblia tem um terror da mentira, porque fere exatamente o coração do seu mistério. A sua vida é toda palavra e, assim, pode ser ferida quando a palavra perde verdade. A palavra é protagonista do Salmo 15: «Quem poderá, Senhor, habitar no teu santuário? Quem poderá residir na tua montanha santa? Aquele que leva uma vida sem mancha, pratica a justiça e diz a verdade com todo o coração» (15, 1-2).
Diz a verdade com todo o coração. O coração pode conter uma verdade que não se torna palavra. A sinceridade está em afinar o conteúdo das palavras com o do coração. Não existem mentiras de boa-fé. A sinceridade faz-nos entrar peregrinos e hóspedes na tenda do Senhor. A sinceridade do coração é a entrada lateral do templo, aquela por onde também podemos entrar nós, pecadores em companhia do publicano (Lc 18, 9-14) e, como ele, poder rezar, ser compreendidos e escutados. Se não existisse esta porta secundária, a tenda do Senhor seria morada apenas dos justos e permaneceria privada de pessoas belíssimas, apesar de pecadores: os sinceros.
A mentira assume muitas formas. Uma, particularmente perniciosa, é a calúnia: «cuja língua não levanta calúnias e não faz mal ao seu próximo, nem causa prejuízo a ninguém» (15, 3). Poucas coisas mostram a capacidade performativa da palavra e das palavras como a calúnia: também a calúnia cria a realidade dizendo-a, muda o mundo falando. É uma palavra perversa que cria o mal e a escuridão enquanto os diz. É criação demoníaca, que nos recorda que Deus e o bem não são os únicos senhores da palavra. Falamos para bendizer e falamos para maldizer, e a possibilidade maravilhosa de tornar melhores as pessoas com as nossas bênçãos (e sermos feitos melhores pelas palavras boas dos outros) é medida pela experiência de ser piorados pelas palavras más e piorar os outros mal-dizendo-os. Mas, enquanto a gratuidade se desvirtua se usada mal, a palavra é incapaz de resistir ao seu abuso. É menos poderosa nisso que a fraca gratuidade, que não é Deus, mas é dotada de um dispositivo que a protege da manipulação. E também Satanás fala, também os demónios usam a palavra para tentar mudar o mundo e, frequentemente, conseguem. Também a magia é assunto de palavras; também a blasfémia é palavra.
Ligando-se às palavras, Deus decidiu partilhar a sua força juntamente à sua fragilidade. Quando, com infinita alegria e gratidão, quisemos escrever que “A palavra fez-se carne”, descobrimos que a palavra tornara-se vulnerável e frágil como a carne de uma criança e, depois, ferida e humilhada, palavra crucificada, grito de abandono, palavra ressuscitada com as chagas. O Salmo acrescenta, depois, um dos usos mais antigos, controversos e importantes da palavra: o juramento: «que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo» (15, 4). É imediatamente revelada a natureza do juramento, um instrumento ao serviço da verdade da palavra, um auxílio ao cumprimento das nossas promessas.
Inventámos os juramentos porque aprendemos a conhecer o poder dos perjúrios, conhecemos a dor infinita dos pactos quebrados, das comunidades, das famílias, das cidades destruídas por palavras falsas e vazias, os desastres operados pelas mentiras de quem prefere os interesses falsos às verdades suas e dos outros. A palavra é a alma da confiança, da corda que liga as pessoas e as comunidades, em que se apoia todo o edifício social – em Roma, o deus dos juramentos chamava-se Dius Fidius, profundamente ligado à fides-confiança. Se perdemos o contacto com a verdade das palavras, nos invernos caminhamos sobre um gelo demasiado fino para aguentar o peso dos nossos passos. Qualquer promessa se baseia na fé numa palavra, na esperança que, por detrás daquele folego haja alguma coisa de sério, algo de belo, algo a mais; “algo” para o qual não encontrámos palavra melhor que verdade. Se não acreditássemos, esperássemos e amássemos esta possibilidade verdadeira, não pronunciaríamos nenhum “para sempre”, não diríamos nenhum “amo-te”, “perdoa-me”, “desculpa-me” e não acreditaríamos nos dos outros.
Mas esta urgência de palavras verdadeiras colide com a evidência, milenária, da fragilidade da palavra – nossa e dos outros – com a incapacidade de cumprir a palavra dada quando aumentam os custos da fidelidade e da lealdade. Aqui está porque os homens inventaram instrumentos para reforçar as palavras e, também, os pactos. Acrescentaram gestos (ex.: o apertar a mão), testemunhas, coisas (sal ou pedras lançadas ao chão durante os pactos) e, sobretudo, inseriram as palavras nas liturgias religiosas. Escrevemos os nossos pactos e as nossas promessas e, depois, pusemo-los sobre altares, prometemos dizer a verdade colocando a mão sobre o coração ou sobre a Bíblia, esperando que a sua verdade (da Bíblia e do coração) desse força às nossas palavras.
O juramento é uma espécie de contrato com as nossas palavras, comprometendo-as a pagar um preço com outras palavras em caso de traição das palavras que nós próprios estamos a pronunciar. Pedimos às nossas palavras diferentes que venham em ajuda das nossas palavras comuns que sabemos serem mais débeis que a nossa sinceridade. “Juro pelos meus filhos”, é uma expressão antiga que permaneceu na nossa linguagem. A força máxima do juramento atingia-se quando e pronunciava: “Juro por Deus”, associando a divindade como garantia da verdade das nossas palavras. Jurando, chamamos, hoje, palavras maiores para que, amanhã, possam salvar as nossas palavras de ontem da sua fragilidade. A humildade é a raiz dos juramentos.
Apesar da crítica aos juramentos que encontramos nos Evangelhos – motivada por um uso formal e vazio daquele instrumento muito presente na Bíblia hebraica, que acaba por debilitar a força das palavras humanas e da invocação de Deus – a Igreja e o Ocidente continuaram a recorrer aos juramentos para reforçar as nossas palavras. Depois, a secularização da cultura trouxe consigo um progressivo abandono dos juramentos e encontrámo-nos com palavras cada vez mais débeis, com promessas e pactos cada vez mais frágeis, na ilusão que as hipotecas e as cauções pudessem bastar para suster as nossas palavras débeis. Não me admira que o salmo 15 termine com a economia: «Não empresta o seu dinheiro com usura, nem se deixa subornar contra o inocente» (15, 5).
A usura, mas também a manifestação de poder e desejos de controlo, mascarados por presentes, as ofertas que prendem quem os aceita em relações perversas, as comissões e a corrupção são, antes de mais nada, palavras sem verdade. Antes de serem transações económicas más, são palavras fingidas. Por detrás destes contratos e atos económicos errados, escondem-se discursos falsos, palavras que perderam qualquer contacto com a verdade. A usura é uma promessa perversa porque a um filho que pede um ovo dá-se um escorpião (Lc 11, 129).
Fazemos renascer empresas, associações, contratos, relações laborais sempre que reencontramos uma ligação com a verdade escondida nas palavras que dizemos uns aos outros. Sairemos da crise que estamos a viver, que foi e ainda é uma crise de palavras e de promessas, não só encontrando a vacina para o coronavírus: será preciso uma nova verdade das palavras. As grandes dores podem gerar uma nova sinceridade.
Somos belos em muitas coisas, mas seremos belíssimos quando tivermos todos os incentivos e os interesses para dizer uma mentira e, em vez disso, dissermos a verdade. A escolha da difícil verdade, quando a mentira nos está à disposição, a custo zero (ou com vantagens), torna a verdade mais verdadeira, mais bonita, divina. Porque, se apenas os homens e as mulheres podem ser mentirosos, então só as mulheres e os homens podem ser sinceros. No Éden, Adão era inocente, mas torna-se sincero apenas depois da expulsão, quando, perdida a inocência e conhecido o preço da mentira, aprendeu o valor da sinceridade – e nós aprendemo-lo juntamente com ele. Sincero: um adjetivo belíssimo, todo para nós, cujo valor deriva de todas as mentiras que dissemos e um dia deixámos de dizer, das que podíamos ter dito e não dissemos.
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A sinceridade é um traço típico do repertório humano. Que cresce juntamente à dor pelas falsidades e mentiras. Hoje, mais que nunca, é-nos útil a verdadeira força de uma nova sinceridade.
O homem é o único ser capaz de mentir. Nem os animais nem Deus podem mentir, se se excetuarem as pequenas mentiras ditas (talvez) por alguns macacos. Atrai-nos e seduz-nos a sinceridade de um cão, porque sabemos que não é como a nossa. Porque sabemos que os efeitos das nossas palavras e gestos dependem radicalmente de algo de tipicamente humano: a verdade. A possibilidade de palavras sem verdade é algo de tipicamente humano que nem sequer Deus possui. Este é um dos paradoxos do humanismo bíblico (e, geralmente, de muitas religiões): a mentira é algo que o homem possui e Deus não. Um “a menos” que se torna numa espécie de “a mais”. O homem, em tudo inferior aos Eloim, pode tornar-se seu “superior” nas suas coisas mais baixas – mentira, maldade, mal. Deus não sabe mentir; o homem e a mulher sim. Está também aqui a força sedutora do pecado: não pecamos apenas “para ser imortais como Eloim”, como disse a serpente à mulher; pecamos também porque somos atraídos e iludidos por poder ser mais que Deus, fazendo algo que Ele não pode fazer porque, se o fizesse, seria Deus a tornar-se como nós. Este bizarro primado antropológico contém, portanto, uma dignidade altíssima. Fez-nos “um pouco menos que ele” (Salmo 8) e, na sinceridade, fez-nos, paradoxalmente, “mais que ele”.
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Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 24/05/2020.
«Neste Espírito que é o amor entre o Pai e o Filho, entre o Filho e nós, entre nós e nós, quantos temos uma alma, neste Espírito que é o nosso amor, está toda a nossa salvação: lançada no seu fogo, a nossa salvação humana torna-se a nossa divina loucura. Oxalá fosse assim; oxalá seja assim».
Giuseppe de Luca, A inteligência e a salvação da alma.
Também a pergunta sobre a existência de Deus é admitida na Bíblia. O Salmo 14 ajuda-nos a compreender que o ateísmo devoto é uma doença e que deixar de procurar Deus é perder o homem
«O insensato diz em seu coração: “Não há Deus!” Do céu, o Senhor olhou para os seres humanos, a ver se havia alguém sensato, alguém que ainda procure a Deus» (Salmo 14, 1-2). Um começo original para um salmo, único no saltério. Um começo especial porque especial é o assunto em jogo. De facto, é a única vez que, na Bíblia, encontramos escrito: não há Deus. Também o mundo religioso antigo conhecia a dúvida se os deuses eram uma invenção do homem. O homem bíblico está mais próximo de nós do que pensamos e escrevemos. Também a pergunta sobre a existência de Deus entre as perguntas legítimas da Bíblia.
[fulltext] =>O Salmo 14 foi escrito, com todas as probabilidades, durante o exílio babilónico. Os babilónicos não eram ateus. Deixaram-nos coleções de orações lindíssimas, tinham em grande consideração os seus deuses, que honravam com procissões, templos e estátuas espetaculares. Portanto, os babilónicos não diziam explicitamente “não há Deus”; muito menos o diziam os hebreus. A afirmação do salmista era, portanto, uma acusação à falsa religião? Era uma crítica idolátrica? Não. A forma da negação de Deus, de que fala este salmo não é a idolátrica. Então, qual é?
Revelam-no-lo dois elementos, um linguístico e outro teológico. A palavra hebraica que o salmo 14 usa para dizer «não há Deus» é Eloim que, na Bíblia, é o nome genérico da divindade (os deuses). Se o salmista tivesse querido criticar a idolatria, o culto dos deuses «falsos e enganadores», o nome usado devia ser YHWH, o nome próprio do Deus bíblico. Também porque YHWH é o nome de Deus mais usado no saltério e, quase exclusivamente, no primeiro livro (salmos 1-41). Usar, aqui, Eloim significa, portanto, querer dar àquela negação – não há Deus – um valor que vai para além da crítica idolátrica. Naquele «não há Eloim» esconde-se, portanto, algo de universal e de tremendamente importante para qualquer religião (a para qualquer ateísmo). De que “ateísmo” fala este salmo?
Descobrimo-lo olhando para o segundo elemento: «Mas todos se extraviaram e corromperam; não há quem faça o bem, nem um sequer! Devoram o meu povo, como quem come pão… Pretendíeis confundir o plano do pobre» (14, 3-4.6). Aqui, encontramos a tese profética que a negação de Deus se revela na negação do homem, sobretudo dos pobres. «Não há Deus», portanto, não é lida como uma afirmação ateia do tipo das que começámos a conhecer na Europa, com a modernidade, mas como uma consequência de uma ideia central da Bíblia: Deus existe se o homem existe – é o homem o outro nome da fé bíblica. É o «devorar o povo como quem come pão» que nos indica este tipo de ateísmo. Não é uma questão filosófica ou intelectual; é muito mais.
Certamente, a vida social dos babilónios provocou um grande efeito nos hebreus deportados. Os bancos que emprestavam com juros e que geravam devedores escravos, a corrupção do poder naquele grande império impressionaram muito os hebreus e os seus profetas. Ezequiel, profeta no exílio, chegou mesmo a formular uma versão do pecado de Adão, no Éden, como pecado económico: «Pelas muitas faltas e desonestidades no teu comércio, profanaste o teu santuário» (Ez 28, 18). Mas o ateísmo prático, inscrito nas praxis socioeconómicas, era algo de ainda mais geral do que acontecia em Babilónia. Já o encontramos em Isaías, antes do exílio: «Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável… procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas» (Is 1, 13-17). Isaías acusava os seus concidadãos, não os babilónios; estigmatizava os assíduos frequentadores do templo e os praticantes que ofereciam sacrifícios enquanto pisavam o direito e a justiça.
O salmista vê, portanto, a ausência de Deus na ausência do homem. São estas as passagens donde se compreende que a teologia bíblica é, de imediato, humanismo: honra-se o Deus bíblico honrando os homens, as mulheres, os pobres. Volta, novamente, a teologia do Génesis: somos imagem de Deus, mesmo quando alguém – um império ou uma cultura – já não vê o homem, já não vê Deus, ainda que continue a rezar-lhe e a louvá-lo nos templos. Já é ateu, mesmo que ainda o não saiba. Há muitos modos de dizer “não há Eloim”, “Eloim é nada” (na tradução de Ceronetti). O que é mais querido à Bíblia é claro: “o homem é nada”, “o pobre é nada”. E que é nada di-lo uma antiga linguagem, que verdadeiramente importa: a do comportamento e da ação. O mundo sempre foi povoado por homens religiosos que honravam Deus e desonravam os homens, que apreciavam os deuses e desprezavam os seus semelhantes. Não basta ser religiosos para não ser ateus. E, se o salmista escolheu Eloim e não YHWH, para nos falar deste típico ateísmo, é também para nos dizer que esta doença de “ateísmo devoto” atravessa todas as religiões, inclusive as bíblicas. Os homens dizem “não há Deus” com o seu modo de se tratar mutuamente e de tratar os pobres. A Bíblia não é um tratado de ética, mas pela ética dos homens se compreende se, no povo, existe ou não a fé.
O salmo chama “insensato”, “escurecido”, “estúpido” a quem diz «não há Deus». Qual é a estupidez deste ateísmo? Antes de mais, é um ateísmo coletivo, uma doença que infetou todo o povo: «não há quem faça o bem, nem um sequer». Esta estupidez que leva a negar Deus não é, portanto, um assunto que diga respeito ao indivíduo intelectual ou filosófico cético; o denunciado pelo salmista é um ateísmo popular: nem sequer ficou um crente. Estamos numa situação parecida à de Sodoma e Gomorra, à de Jerusalém onde Jeremias não encontrou um justo sequer (Jr 5, 1). Pior que a terra observada por Satanás, em reconhecimento, que lá encontrou, pelo menos, um justo: Job (cap. 1); um mundo mais corrompido que o de antes do dilúvio onde, pelo menos, havia um justo: Noé.
É belíssima a radicalidade da Bíblias – todos, nem um sequer. Todos estúpidos. Somo-lo todos, quando, dentro de instituições, comunidades, empresas, igrejas, se aninha e se difunde a corrupção. Precipitamo-nos num “recíproco estragar-se”. O (raro) verbo hebraico usado aqui, ’alàh, exprime o contágio recíproco, a mútua contaminação. Mesmo que muitos sejam assintomáticos, a corrupção atinge a todos. Para sair desta situação seria necessário um Noé, um Jeremias, um Abraão, Maria. Mas nem sempre existem. Quase nunca. Porque aquele «apenas um», para não ser estúpido, teria de denunciar a injustiça, resistir longamente na sua denúncia, suportar perseguições e se não consegue nenhum resultado, demitir-se, reformar-se, sair, separar-se. Mas estas ações são muito difíceis e, por isso, muito raras sobre a terra. Também nestas dinâmicas de “estragar-se mutuamente” somos todos filhos de Adão, somos solidários na corrupção e, mesmo quando os sintomas não são evidentes, somos, pelo menos, cúmplices e, por isso, estúpidos.
A palavra que o salmo usa para dizer “estúpido” é nabal. Nabal era o nome do marido de Abigail. No episódio do primeiro Livro de Samuel, Nabal não compreende como devia comportar-se com David. Não responde aos seus presentes com outros presentes, não “reconhece” David. Estava para rebentar uma guerra se Abigail não interviesse, que fez tudo o que não tinha feito o seu marido: foi grata, reconhece David, enche-o de presentes, foi generosa e soube honrar o seu hóspede: «Que o meu senhor não faça caso desse mau homem, Nabal, porque é um néscio e um insensato, como o seu nome indica» (25, 25). Abigail reconstrói uma relação quebrada pelo seu marido e com o seu dom obtém o perdão de David, que reconhece naquela relação sarada a presença de Deus: «Bendito seja o Senhor, Deus de Israel, que te mandou hoje ao meu encontro!» (25, 32). Abigail foi anti-Nabal; disse “Deus existe” dizendo “o homem existe”, mudando a guerra em paz. Não há melhor modo de bem-dizer Deus, para bem-dizer Eloim – as mulheres sabem-no bem, as mulheres sabem-no melhor.
O Salmo define o “sábio” (maskil) não encontrado por Deus na terra como alguém “que procura Deus”. O oposto do estúpido é, portanto, o buscador de Deus. Mas o primeiro buscador de Deus que encontramos no salmo é Deus-Eloim, que se debruça da sua varanda dos céus para procurar um homem justo, pelo menos. Deus procura para encontrar alguém que o procure. A fé é um encontro de procuras, uma reciprocidade de desejos, que se torna uma relação ternária: Deus procura um homem capaz de o procurar, procurando-o no homem – «… e o segundo mandamento é semelhante ao primeiro». Mas ainda se pode encontrar um outro sentido deste salmo 14: se o sábio é quem procura Deus, então o estúpido diz “não há Deus” porque, simplesmente, não o procura: e se o ateísmo estúpido fosse o de quem deixa de procurar?
Um dia, um outo homem louco «procurava Deus». Não o encontrou e anunciou a todos que tinha morrido. Talvez porque o tinha procurado no «mercado», onde «se encontravam recolhidos muitos dos que não acreditavam em Deus» (F. Nietzsche, A gaia ciência). O mundo onde encontrámos morto o Deus que estávamos à procura é preferível ao mundo corrupto onde ninguém pode dizer “há Deus”. E, se o dissesse, diria algo de mais falso que “não há Deus”, dito, naquela situação, pelo estúpido. Há um ateísmo menos estúpido que uma fé proclamada no meio da injustiça geral. Se o Deus procurado está morto, podemos sempre esperar e rezar para que ressuscite.
Quando o «Filho do homem voltar» não irá aos templos e às igrejas, para ver se «há fé sobre a terra (Lc 18, 7-8). Olhará para as nossas relações sociais: verá se nos queremos bem ou mal, olhará para a nossa banca, a nossa evasão fiscal, os nossos hospitais, os salários dos trabalhadores e os dos administradores. E, se ainda houver a fé, encontrá-la-á na justiça e na verdade das nossas relações; e, se ainda houver, poderá reconhecê-la na forma como respondemos à esperança do miserável.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 17/05/2020.
«Cada linha estava cheia de palavras de muitas sílabas que ele não compreendia. Estava sentado na cama e tinha diante de si o dicionário que era mais grosso que o livro… e, durante algum tempo, acariciou o projeto de não ler nada além do dicionário, até ser senhor de todas as palavras que ele continha».
Jack London, Martin Eden.
O Salmo 12 tem como protagonista a palavra, mesmo a impronunciável. É um dos maiores poderes à disposição dos seres humanos. Mas também uma das tentações mais fortes de qualquer poder. O dique da impronunciabilidade.
Muitas pobrezas são também pobreza da palavra. Uma indigência que impede de chamar pelo nome a dor própria e a dos outros. Por vezes, esta pobreza narrativa precede as pobrezas materiais e morais; outras vezes segue-a; acompanha-as sempre. Os “labregos” e os oprimidos de todos os tempos tornaram-se labregos e oprimidos também – e sobretudo – por causa das palavas que não sabiam dizer e pelas que os poderosos diziam e que eles não conseguiam e não conseguem compreender. Eis porque qualquer pobreza que quer ressurgir deve aprender e reaprender a falar até que, pelo menos, um pobre comece a dar um nome aos demónios da sua indigência. Também está aqui o convite belíssimo que os nossos avós nos dirigiam: “Luigino, estuda”; sabiam bem que conhecer as palavras dos senhores era o primeiro passo de uma libertação.
[fulltext] =>A Bíblia, mestra e guardiã da palavra, conhece as suas muitas naturezas, viu nela o paraíso, vislumbrou nela o inferno. Viu-a, a princípio, enquanto criava o mundo: viu-a tornar-se criança e admirou-se e comoveu-se. Perseguindo-a entre o génesis e o eskaton, aprendeu a gramática ambivalente das palavras humanas. Viu-a, mentirosa, na boca de Jacob, depois na de David, o rei mais amado, mas capaz de matar com uma palavra mentirosa e, finalmente, na boca, belíssima, de Maria. Depois, acompanhou-a, em silêncio, até ao monte onde a palavra se torna grito. Aprendeu, entre muitas dificuldades e fracassos, a reconhecê-la boa, na boca dos profetas verdadeiros e má na boca dos falsos profetas. Compreendeu que a palavra é o contacto entre Deus e o homem, é o lugar onde o humano e o divino falam boca-a-boca e o homem se torna cada vez mais semelhante ao outro. Somos “imagem” de Eloim em muitas coisas mas, sobretudo, somo-lo quando damos ordens ao mundo, dizendo-o com as palavras, quando ressuscitamos, nós mesmos e os outros, com uma palavra, finalmente, diferente, quando ferimos e matamos os outros e nós mesmos com uma palavra errada.
Éramos também imagem de Deus nas grutas e nas tendas móveis do neolítico, mas tornámo-nos mais com os milhões de palavras boas e bonitas que aprendemos e repetir uns aos outros, em cada dia. Só os deuses e os homens sabem falar. Existe, portanto, uma relação íntima e essencial entre palavra e a verdade que talvez só a Bíblia (e algum poeta enorme) nos pode explicar. A verdade é a alma da palavra. Como a alma não aparece à superfície, não se mostra, para muitos não existe. Quando a palavra perde o contacto com a verdade, perde a sua alma – ou vende-a ao diabo. A palavra é a protagonista do Salmo 12, um salmo, sobre a palavra e, por isso, sobre a profecia: «Salva-nos, Senhor, pois cada vez há menos justos! A lealdade desapareceu de entre os filhos dos homens. Mentem uns aos outros; na sua língua só há engano, só há duplicidade no seu coração» (12, 2-3).
Lealdade, sinceridade, mentira: questões de palavras. A sensação certa do Salmista é que a lealdade desapareceu da terra – ou, pelo menos, da sua vida. Esta é uma etapa que chega, pontualmente, na vida do homem de fé, especialmente nos profetas. Porque os profetas, vivendo dentro da relação com a palavra recebida e retribuída, são particularmente sensíveis à verdade das palavras próprias e dos outros. São palavra feita carne, pairando sempre entre o nada e o infinito, testemunhas da força-débil de um sopro efémero, capaz de vencer a morte. São sentinelas capazes de ver, na noite, a alma das palavras. Quem reza, assemelha-se muito ao profeta: ambos vivem da verdade da palavra, ambos são mendicantes do eco de palavras sussurradas ou gritadas, ambos não são donos nem das palavras nem, muito menos, do regresso do eco. E, assim, são radicalmente vulneráveis à manipulação da palavra, da mentira. Por vezes, convencem-se de estar rodeados apenas pela mentira. E não é raro que, entre as lealdades e sinceridades desaparecidas da terra, o profeta insira também as suas. Porque não faz parte do repertório do profeta honesto sentir-se o único justo sobrevivente no mundo: a primeira não-sinceridade que sente é a sua. Não é fácil sair desta armadilha de depressões espirituais, mas não é impossível.
O salmista vê e canta um aspeto crucial da mentira: “mentem uns aos outros”. Quando a mentira se apodera de uma comunidade – alguns tipos de mentira assumem a forma do vírus – torna-se recíproca. O oposto do mandamento novo (“amai-vos uns aos outros”) não é apenas o conflito: é também a mentira recíproca. Porque, como o amor “não perdoa” ao amado gerando reciprocidade, nem sequer a mentira, frequentemente, perdoa a quem a tocou. Difunde-se, multiplica-se, procura os seus semelhantes, produz uma companhia perversa onde cada um se alimenta das mentiras dos outros e das suas – poucas coisas são capazes de nos alimentar mais que as nossas mentiras que, à força de as contar, acabamos por as julgar verdadeiras: perdemos peso moral dia após dia e não nos damos conta. Uma forma típica de mentira estigmatizada pelo salmo é a adulação: os “lábios de mentira”. O livro dos Provérbios também a conhece: «O homem que lisonjeia o seu próximo, arma uma rede aos seus pés» (Pr 29, 5). Entre as muitas formas de adulação, a do amigo é, de facto, particularmente perigosa e desonesta.
Esta adulação não é a do falso amigo (esta também existe). Diferentemente do falso-amigo rufião, o amigo adulador não nos louva à procura do seu interesse, mas por uma estranha forma de piedade de nós. Sabe que está a dizer uma palavra não verdadeira, mas di-la na mesma, para nos agradar. A adulação é muito frequente nos pedidos de estima: não temos razões verdadeiras para estimar sinceramente uma obra ou uma ação de um amigo, mas decidimos satisfazer o seu pedido dando-lhe uma estima falsa. Preferimos a assonância emocional à verdade da palavra. E, assim, estendemos “uma rede aos seus passos”. Porque, em vez de aprofundar aquela relação e procurar uma razão verdadeira de estima sincera, contentamo-nos com uma moeda falsa que fazemos passar por boa. As relações começam a regredir, a palavra perde a verdade, aquela amizade perde a sua alma. E, como diz o Salmo, o coração desdobra-se: um coração sincero que cala e um coração não-sincero que louva. O coração desdobra-se, adoece a amizade e, com o tempo, o coração mentiroso contamina e estraga o bom. Quem encontra um amigo encontra um tesouro; quem encontra um amigo não adulador encontra dois tesouros.
Mas a gramática da palavra contida no Salmo não acaba aqui: «Como aqueles que dizem: “Confiamos na força da nossa língua; os nossos lábios nos defenderão; quem nos poderá dominar?”» (12, 5). A língua é a nossa força: eis-nos dentro duma dimensão essencial da palavra. É a ligada diretamente ao poder, a quem, sentindo-se senhor das palavras e da sua alma, acredita não haver outro senhor além dele próprio. Quem sabe falar e usar as palavras domina e oprime quem não sabe falar ou fala mal – vemo-lo diariamente. A proibição de pronunciar o nome de Deus em vão, contida no decálogo (Ex 20, 7), é também dispositivo de proteção contra as tentativas de conhecer todas as palavras e, assim, mandar em tudo e em todos. É a tentação da magia, mas também de quem se quer tornar senhor de todas as palavras. A luta idolátrica da Bíblia traduz-se também em tornar uma palavra inacessível e impronunciável; porque, se uma palavra não pode ser comandada com a palavra, então os seus senhores serão sempre senhores parciais, mesmo quando se sentem senhores absolutos. O nome, na Bíblia, indica sempre mistério.
Portanto, aqui, o salmo denuncia a tentação, sempre forte e, por vezes, invencível, de quem usa as palavras para construir o seu culto, uma sua religião. Se “palavra” é um dos nomes de Deus, então o poder sobre as palavras é sempre poder religioso. Está também aqui a raiz do antigo e sempre atual projeto de Babel, onde a construção de uma linguagem única se torna o instrumento para a construção de um império absoluto, sem “nenhum senhor”. Cada império, incluindo o nosso, começa por pretender dar um nome à única palavra impronunciável e, assim, se transforma numa nova religião-idolatria mais pequena e menos livre da que queria superar ocupando todos os nomes. As religiões onde os senhores conhecem todas as palavras, onde nem uma sequer fica escondida no mistério da nuvem, tornam-se impérios que, querendo pronunciar todos os nomes, não conseguem dizer bem nenhum.
É o homem religiosoo primeiro a ser tentado pelo querer comer o fruto da árvore do conhecimento de todos os nomes da terra e do céu. O Adão pode e deve dar o nome aos animais, mas não pode dar o nome a Deus. Este é o único nome que só pode ser revelado e, depois, encoberto de novo pelo próprio revelador porque, na guarda do nome de Deus, está também a guarda dos nossos nomes individuais. «Por causa da aflição dos humildes e dos gemidos dos pobres, me levantarei – diz o Senhor – e porei a salvo a minha testemunha» (12, 6). O salmista pede que o Senhor venha em socorro da sua testemunha. O profeta é a testemunha do pobre oprimido pelo poder das palavras. Quem, por vocação, tem eficácia na palavra, quem lhe conhece a alma, pode – deve – usá-la para testemunhar em favor de quem não conhece palavras suficientes para se salvar.
Compreende-se, assim, o valor civil da profecia: os profetas são quem emprestam palavras a quem se deve defender dos senhores de todas as palavras. Escritores, poetas, jornalistas, políticos, sindicalistas, artistas, advogados, participam da mesma função profética de Isaías e Amós, se são testemunhas dos oprimidos pela palavra nos tribunais da história. O pobre é quem não conhece palavras suficientes para poder chamar todos os espíritos da sua vida e, não conhecendo os seus nomes, não consegue afastá-los. Os profetas e os seus amigos chamam pelo nome os demónios que ameaçam os pobres e, depois, mandam-nos embora. E, assim, a palavra, cada dia, torna-se carne e repete a Lázaro: “Vem para fora».
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 17/05/2020.
«Cada linha estava cheia de palavras de muitas sílabas que ele não compreendia. Estava sentado na cama e tinha diante de si o dicionário que era mais grosso que o livro… e, durante algum tempo, acariciou o projeto de não ler nada além do dicionário, até ser senhor de todas as palavras que ele continha».
Jack London, Martin Eden.
O Salmo 12 tem como protagonista a palavra, mesmo a impronunciável. É um dos maiores poderes à disposição dos seres humanos. Mas também uma das tentações mais fortes de qualquer poder. O dique da impronunciabilidade.
Muitas pobrezas são também pobreza da palavra. Uma indigência que impede de chamar pelo nome a dor própria e a dos outros. Por vezes, esta pobreza narrativa precede as pobrezas materiais e morais; outras vezes segue-a; acompanha-as sempre. Os “labregos” e os oprimidos de todos os tempos tornaram-se labregos e oprimidos também – e sobretudo – por causa das palavas que não sabiam dizer e pelas que os poderosos diziam e que eles não conseguiam e não conseguem compreender. Eis porque qualquer pobreza que quer ressurgir deve aprender e reaprender a falar até que, pelo menos, um pobre comece a dar um nome aos demónios da sua indigência. Também está aqui o convite belíssimo que os nossos avós nos dirigiam: “Luigino, estuda”; sabiam bem que conhecer as palavras dos senhores era o primeiro passo de uma libertação.
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stdClass Object ( [id] => 18802 [title] => Não é conveniente que Deus esteja só [alias] => nao-e-conveniente-que-deus-esteja-so [introtext] =>A alma e a cítara / 7– A nossa humana semelhança com Deus entre um “verdadeiramente” e um “mas”
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 10/05/2020.
«E quando vejo as estrelas arder no céu;
Digo para comigo, pensando:
Para quê tantas tochas?
Para que serve este ar infinito, e o profundo
Infinito Sereno? Que quer dizer esta
Solidão imensa? E eu, que sou eu?».Giacomo Leopardi, Canto noturno de um pastor errante da Ásia.
A antropologia bíblica é um bem comum global da humanidade. Também o Salmo 8 no-lo recorda, continuando ainda a surpreender-nos pela sua extraordinária beleza profética.
Algumas pessoas recordam, durante toda a vida, o dia em que viram, pela primeira vez, o céu estrelado. Tinham-no “visto” outras vezes, mas, numa noite abençoada, aconteceu algo de especial e viram-no verdadeiramente. Fizeram a experiência metafísica da imensidão e, simultaneamente, sentiram toda a sua pequenez e fragilidade. Foram, fomos vistos imensamente pequenos. E, ali, sob o firmamento, floriram perguntas diferentes, as que, quando chegam, marcam uma etapa nova e determinante da vida: onde estão e o que são os meus negócios? e os meus problemas? o que é a minha vida? o que são os meus amores, as minhas dores? E, depois, chega a pergunta mais difícil: e eu, que sou eu? É o dia tremendo e belíssimo; para alguns, marca o início da pergunta religiosa; para outros, o fim da primeira fé e o início do ateísmo – para, depois, descobrir, mas só no fim, que as duas experiências eram semelhantes, que talvez havia muito mistério na resposta ateia e muita ilusão na religiosa mas, ali, não podia sabê-lo. Nem todos fazem esta experiência, mas, se a desejamos, podemos experimentar sair de casa, nestas noites, tornadas mais calmas e nítidas pelos meses sabáticos, procurar as estrelas, fazer silêncio, esperar as perguntas – que, disseram-me, por vezes chegam.
[fulltext] =>Depois, para alguém, há um outro dia determinante. Quando aquele infinitamente pequeno fez a experiência que o «Amor que move o sol e as outras estrelas» se interessa por ele, por ela, que o procurava, lhe falava, a encontrava. Dia também determinante, porque não basta a experiência verdadeira do dia das estrelas para que se inicie a vida religiosa. Existem muitas pessoas que sentem verdadeiramente vibrar o espírito de Deus na natureza, ouvem a sua voz ecoar nas noites estreladas e em muitos outros lugares, mas nunca se sentiram chamadas pelo nome por aquela mesma voz. Como existem outros que tiveram um autêntico encontro pessoal com a voz, mas que, depois, nunca mais a sentiram viver em todo o universo, que nunca se comoveram, reconhecendo-a na imensidão do cosmo. É o encontro entre estes dois dias que marca o começo da vida espiritual madura, quando a imensidão que nos revela a nossa infinita pequenez se torna um tu mais íntimo do que o nosso nome.
O autor do Salmo 8 fez, creio, a experiência de ambos os dias. Reconheceu a presença de YHWH no firmamento infinitamente grande e sentiu-se infinitamente pequeno; depois, intuiu que a voz que lhe falava entre as galáxias era a mesma voz que lhe falava no coração: «YHWH, como é admirável o teu nome em toda a terra! Adorarei a tua majestade, mais alta que os céus… Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste: que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares?» (8, 2-5). Versos maravilhosos. Deveríamos ter o coração e os estigmas de Francisco para os cantar.
Assistimos, ao vivo, a uma experiência de absoluto. O antigo poeta sentiu a imensidade e a pequenez, não se sentiu escorraçado e começou um novo cântico. O cântico da humildade (humilitas) verdadeira, porque o húmus só nos diz quem somos verdadeiramente se conseguimos, por um momento, olhar a distância sideral; o adamah (terra) só revela o Adão se visto do alto. É esta a alegria pela verdade finalmente revelada, por uma nova ignorância que não humilha. A humildade é o oposto da humilhação. E experimenta-se uma nova infância, uma juventude ilimitada: «Da criança e menino de leite gaguejante» (8, 3).
No centro do salmo, uma pergunta: o que é o filho do homem (Ben Adam: expressão estimada pelos profetas e pelos evangelhos), diante de tamanha imensidão?! A resposta é esplêndida: apesar da sua insignificância, em comparação às estrelas e a sua pequenez no tempo e no espaço, tu cuidas do homem, recordas-te dele. Como se dissesse: se tu, ó Deus, tivesses em consideração o que Adão é, objetivamente, em relação ao universo interminável, não deverias ocupar-te dele; mas, pelo contrário, cuidas dele, dela. Por isso, a pergunta necessária: mas esta voz que me fala dentro é precisamente a mesma que falou entre as galáxias? A resposta do primeiro dia apenas pode ser um sim, caso contrário o caminho não começa! Com o passar do tempo, a resposta pode tornar-se: talvez. Depois, chegam os longos anos em que a resposta é: não. Por fim, regressa o sim, mas – se e quando regressa – é um sim dito na profundidade de uma outra humildade. E, aqui, nasce uma nova maravilha, transborda a gratidão, reaparece a oração dos últimos tempos.
Nesta tensão entre as estrelas e o coração, ambos habitados pela mesma presença, está a dignidade de Adão, dos seus filhos e das suas filhas, a sua glória e a sua honra. Perdemo-nos nas várias ideologias se se perde um destes dois polos. Devemos ler o Salmo 8 em paralelo com os primeiros capítulos do Génesis: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Talvez o versículo da Bíblia de que eu mais amo. O Adão é colocado, por Eloim, no centro do jardim da criação para que fosse o seu guardião e responsável. O Salmo no-lo repete: «Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés» (Salmo 8, 7). O Adão torna-se o primeiro interlocutor de Deus para que, com a sua reciprocidade, pudesse acompanhar também a solidão de Deus – «não é conveniente que o homem esteja só» (Gn 2, 18) é lido juntamente a outra frase não escrita na Bíblia, mas também presente: não é conveniente que Deus esteja só.
Não me admiraria se o autor daquele antigo salmo, enquanto cantava, tivesse na mão estes versículos do Génesis. Talvez estivesse a meditar e contemplar “o que é o homem” quando, a um dado momento, não aguentou a emoção e compôs um dos versículos mais belos acerca do homem, alguma vez escritos em toda a literatura religiosa e laica. Depois de o ter visto sub specie aeternitatis, depois de ter ido com a alma à lua e o ter perdido de vista, tal era a sua pequenez, voltou àquelas palavras do Génesis e reviu um outro homem. E pronunciou esta obra de arte, que é lido depois de algum momento de silêncio: «Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste» (8, 6). Mais ainda: a Bíblia, por vezes, fecha-se numa humilde conjugação de toda a sua profecia. Somos efémeros, somos como a erva… porém… «Diz uma voz: “Proclama!” Respondo: “Que hei de proclamar?” “Toda a gente é como a erva! A erva seca e a flor murcha … Verdadeiramente o povo é semelhante à erva» (Isaías 40, 6-7). Verdadeiramente… porém. Fomos pensados, procurados e amados entre um verdadeiramente e um porém. Verdadeiramente efémeros como a erva, verdadeiramente infinitamente pequenos, verdadeiramente infiéis e pecadores; porém, pouco menos que Deus; porém, sua imagem e semelhança; porém, amados, cuidados e esperados como filhos.
É esta a imensa antropologia bíblica. A literatura antiga conhecia a metáfora da imagem de Deus aplicada ao homem. Mas era usada para o rei, para o faraó. A Bíblia usa-a para cada um de nós, para cada homem e cada mulher, para ti, para mim. É o Adão, todo o Adão, a imagem e semelhança de Eloim; por isso, somo-lo nós, todos nós. É esta a magna carta de qualquer declaração dos direitos do homem e da mulher, dos meninos, das meninas, da dignidade da criação. O Salmo 8 é um hino a Deus e, simultaneamente, um hino ao homem. Exalta a pessoa dizendo-lhe quem é aquele Deus cuja imagem ele é e exalta Deus dizendo-lhe que sou o homem e a mulher que o refletem. Porque se o homem é imagem do outro, o Adão torna-se mais belo se mais mostra a beleza do seu Criador e quanto mais deixamos Deus livre para se tornar melhor que nós, mais nos embelezamos a nós próprios. Não compreendemos a antropologia bíblica se saímos da reciprocidade intrínseca ao símbolo e à imagem.
Mas a beleza e a força deste cântico explodem se imaginamos o salmista cantar o versículo 6 enquanto lia o capítulo três e quatro do Génesis: os da desobediência, da sedução vencedora da serpente e, depois, Caim e o sangue de Abel, de que o salmista ainda sentia o cheiro. É demasiado simples cantar a glória e a honra do homem limitando-se ao capítulo dois. O desafio seguinte é conseguir continuar o cântico enquanto os capítulos deslizam e se entra nas páginas negras e negríssimas do não, as da rotura da harmonia homem-mulher-criação-Deus, nas páginas da expulsão daquele jardim maravilhoso, as da noite escura do primeiro fratricídio da terra. E, chegados ali, não parar o canto. E, depois, continuá-lo com o grito tremendo de Lamec, o assassino de crianças, com a rebelião de Babel, com os pecados dos patriarcas, com as mentiras e os enganos da Jacob, com o homicídio dos benjaminitas, até ao homicídio de David, às infidelidades de Salomão e de quase todos os reis de Israel. E nunca parar de cantar: «Verdadeiramente… porém, quase fizeste dele um ser divino».
Toda a força da antropologia bíblica se liberta quando conseguimos vencer a dor e a vergonha e repetimos “verdadeiramente… porém” não só diante do firmamento, mas também nas prisões, nas mesquinhezes, nas violências, nas favelas de Calcutá, nas vias-sacras que levam ao Gólgota. Não há condição humana que não seja incluída entre o verdadeiramente e o porém; nenhuma fica de fora. A Bíblia não teve medo de nos narrar os pecados e as baixezas dos seus homens porque acreditava verdadeiramente na imagem de Eloim. E, sempre que escondemos, nas nossas histórias, as páginas mais negras, deixamos de acreditar que somos imagens.
Caim apagou a sua fraternidade e os seus filhos continuam a apagá-la matando diariamente Abel. Mas não pode apagar a imagem – e se o “sinal de Caim” fosse a própria imagem de Eloim? «Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!» (8, 10).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 10/05/2020.
«E quando vejo as estrelas arder no céu;
Digo para comigo, pensando:
Para quê tantas tochas?
Para que serve este ar infinito, e o profundo
Infinito Sereno? Que quer dizer esta
Solidão imensa? E eu, que sou eu?».Giacomo Leopardi, Canto noturno de um pastor errante da Ásia.
A antropologia bíblica é um bem comum global da humanidade. Também o Salmo 8 no-lo recorda, continuando ainda a surpreender-nos pela sua extraordinária beleza profética.
Algumas pessoas recordam, durante toda a vida, o dia em que viram, pela primeira vez, o céu estrelado. Tinham-no “visto” outras vezes, mas, numa noite abençoada, aconteceu algo de especial e viram-no verdadeiramente. Fizeram a experiência metafísica da imensidão e, simultaneamente, sentiram toda a sua pequenez e fragilidade. Foram, fomos vistos imensamente pequenos. E, ali, sob o firmamento, floriram perguntas diferentes, as que, quando chegam, marcam uma etapa nova e determinante da vida: onde estão e o que são os meus negócios? e os meus problemas? o que é a minha vida? o que são os meus amores, as minhas dores? E, depois, chega a pergunta mais difícil: e eu, que sou eu? É o dia tremendo e belíssimo; para alguns, marca o início da pergunta religiosa; para outros, o fim da primeira fé e o início do ateísmo – para, depois, descobrir, mas só no fim, que as duas experiências eram semelhantes, que talvez havia muito mistério na resposta ateia e muita ilusão na religiosa mas, ali, não podia sabê-lo. Nem todos fazem esta experiência, mas, se a desejamos, podemos experimentar sair de casa, nestas noites, tornadas mais calmas e nítidas pelos meses sabáticos, procurar as estrelas, fazer silêncio, esperar as perguntas – que, disseram-me, por vezes chegam.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 03/05/2020.
«Nas minhas notas, não se encontrará um comentário hebraico nem um comentário cristão.
A mim, dói-me o homem: não tenho outro guia. E, como ato de piedade, comunico-o».Guido Ceronetti, O livro dos salmos.
O Salmo 6 ajuda-nos a recordar que o sofrimento e a doença não são queridos pelo Pai que, se lho pedimos, saber “tornar-se” próximo.
Quem tenha atravessado o vau duma enfermidade séria, aprendeu que aquela enfermidade não dizia apenas respeito ao corpo. Ou melhor: compreendeu que o corpo é entrelaçado de matéria e de espírito, é carne espiritual e espírito incarnado. Portanto, as doenças são perguntas dirigidas a nós e aos outros. Estão entre os poucos momentos de verdade que, por acaso, vivemos. Quando nos encontramos numa cama do hospital, que talvez pensássemos que fosse só para os outros, acaba o tempo da ficção e começa o da verdade e das perguntas nuas. Já não nos contentamos com as meias mentiras ditas aos outros e a nós mesmos: os relatórios e os diagnósticos tornam-se linguagem de uma nova relação autêntica com a vida e com o mundo. Eis porque uma doença pode ser anúncio também, de uma grande bênção. E é justamente entre a doença e a bênção que se aninham as insídias religiosas da doença. O homem antigo dirigia as suas perguntas, antes de mais, a Deus. Nós empobrecemos as linguagens da vida e dirigimos as perguntas, sobretudo, à ciência e aos doutores. Mas, se a doença se torna severa, mais cedo ou mais tarde, chegamos também às perguntas profundas: “Mas, porque a mim?”; “O que esteve errado na minha vida?”; “Porquê?”. De vez em quando, mesmo no meio do nosso mundo despovoado de deuses, pode voltar a tremenda pergunta: “De que culpas me manchei para merecer esta dor?”. É muito difícil sair inocente de uma doença grave.
[fulltext] =>Raramente as nossas perguntas conseguem chegar até Deus: banalizámo-lo demasiado para O sentir próximo, na verdade do sofrimento. Frequentemente, chegam-lhe muito perto, param a um palmo do céu, embora não o saibamos – mas os anjos sabem-no e veem-nos sempre. Os primeiros salmos do saltério estão a apresentar-nos modelos de oração, isto é, as diversas condições existenciais nas quais o homem aprende e reaprende a falar com Deus: aproximação dos inimigos, a acusação injusta, a esperança. Aprende: o desenvolvimento dos salmos é também uma aprendizagem da arte de rezar. Nos mosteiros, a liturgia era entendida como uma arte, como uma profissão – revela-no-lo também a ambígua semântica desta bonita palavra. Os salmos são muitas coisas; são também; são também uma aprendizagem da oração. No dia em que nos nasce na alma o desejo da oração, podemos abrir o livro dos salmos, folheá-los um a um e parar no que sentimos ser o nosso salmo; e, enquanto começamos a cantá-lo, damo-nos conta que aquelas eram as nossas palavras e não o sabíamos: «Despertando do sono, Jacob exclamou: “O Senhor está realmente neste lugar e eu não o sabia!”» (Gn 28, 16). E aquele primeiro salmo, o que nos ensinou a oração, será o nosso salmo – e, no fim, descobriremos que o primeiro e o último serão o mesmo cântico.
Com o Salmo 6, o espaço antropológico da oração aumenta ainda mais. Um homem está a enfrentar uma longa e grave doença. E pergunta a si mesmo: «É a tua ira, ó Deus, que me pune? É o teu furor, Senhor, que me castiga?... Senhor, até quando?» (Salmo 6, 2-4). É Deus o primeiro interlocutor das duas perguntas. O homem antigo, à dimensão vertical das perguntas nuas, acrescentava a horizontal. Eu, Deus e os outros: era este o seu espaço ternário. E, assim, depois de ter dialogado com Deus, o salmista (e nós com ele) procura outros aliados na culpa e chega, quase sempre, também à pergunta interpessoal: “De quem é a responsabilidade de quanto me aconteceu?”; “Quem são os meus inimigos?”. O diálogo com a própria alma e com Deus torna-se, dai após dia, um diálogo com os outros, procurando, à nossa volta, os carrascos: «Afastai-vos de mim, vós que praticais o mal» (6, 9). Os colegas, o chefe, os concorrentes, a minha comunidade, os doutores: varre-se com a alma, à procura de uma gramática da nossa dor. Não somos capazes de resistir muito tempo sem chamar pelo nome os nossos sofrimentos, porque sabemos que só os chamando poderá mostrar um outro rosto desconhecido e, por vezes, bom.
A sabedoria antiga tinha desenvolvido uma hermenêutica complexa, uma capacidade de decifração da dor, da doença, da desventura. E é aqui que se acrescenta uma dimensão determinante: o sofrimento e a doença são vividos como punição de quem a experimenta, por culpas próprias ou da sua família. A dor torna-se a paga pedida pelo céu para restabelecer um equilíbrio quebrado por algum pecado. Esta visão retributiva-económica da fé sempre teve grande sucesso, porque extremamente simples. Muito simples e, por isso, demasiado simples para ser verdadeira. Uma fé assim funciona porque desempenha perfeitamente a função de salvar o equilíbrio ético do mundo e justificar a divindade que, graças a este expediente religioso, sai sempre em pé, sai sempre inocente das nossas desventuras. É assim que as religiões, frequentemente, se tornaram mecanismos morais que salvam a justiça de Deus, sacrificando a inocência dos homens.
Além disso, a retribuição devia realizar-se nesta terra. A contabilidade entre os homens e Deus não se estendia para lá da vida: «No sepulcro, ninguém se lembrará de ti; na mansão dos mortos, quem te louvará?» (6, 6). A morte é o reino do nada; e, embora Deus habite nos céus, é na terra a sua casa. A sua voz ecoa debaixo do sol, tem necessidade da caixa-de-ressonância das montanhas, dos mares, do infinito espaço do coração humano. Uma teologia da retribuição sem paraíso é ainda mais exigente e, por isso, usa também a nossa dor como moeda para acertar as contas. Porém, neste Salmo 6, o autor não aceita, impassível e resignado, o próprio destino. Dialoga, discute, luta com Deus e com a própria desventura. Pede a Deus para mudar, para responder à sua pergunta: “até quando?”. Pede-lhe para voltar: «Vem, Senhor» (6, 5). O voltar refere-se à possibilidade de Deus mudar de direção, se converter. O Deus bíblico é um Deus que sabe voltar, se nós lho pedirmos.
É nesta frase que encontramos a grandeza teológica e antropológica dos Salmos. Eles são orações ao Deus do ainda não: pedem-lhe para se tornar algo que ainda não é. O homem dos salmos não se sente preso pelo seu destino e pela sua fé e ousa pedir a Deus: “Até quando?”. E a oração encontra-se com a religião e ressuscita-a. A oração também é isto: uma pessoa que, na experiência do espírito, já não se sente escrava porque libertada e, como livre, consegue libertar Deus das armadilhas em que o fecharam a teologia e a religião. Eis porque Deus tem necessidade da nossa oração ou, pelo menos, quanto nós precisamos de Deus. Então, a oração bíblica torna-se o nosso primeiro exercício de liberdade, um homem libertado que consegue libertar o seu Deus.
Há, também uma última mensagem. As palavras que o salmista usa no segundo versículo (hwkyh + ysr) são o binómio da pedagogia, as expressões da educação das crianças por obra de pais e mestres. É bonita a tradução que o biblista Alonso Schokel faz dela: «Repreende-me sem ira; corrige-me sem cólera». Até agora, encontrámos, para Deus, a imagem do juiz e a linguagem forense (e também a encontramos neste Salmo 6). Agora, a oração pede a Deus para deixar o tribunal e entrar nas relações educativas primárias. Portanto, a doença já não é entendida como pena para expiar uma culpa, mas como uma punição dentro de paradigma educativo daquele mundo. Eis o regresso, pontual, do Livro de Job, quando o quarto “amigo”, Eliú, irrompe em cena, trazendo consigo a explicação pedagógica do sofrimento: «Por vezes, ele corrige o homem com dores no leito, com a dor contínua dos seus ossos» (Jb 33, 19). Job não replicou a Eliú, não ficou convencido com a explicação do sofrimento como instrumento de que Deus se serviria para nos dar uma “lição”. Job cala-se; o salmista parece aceitar a explicação pedagógica, mas continua o diálogo e pede a Deus para “voltar”. Parte da metáfora, mas não se contenta.
Hoje, se queremos fazer a mesma experiência do salmista, temos de continuar a pedir a Deus para voltar e, assim, libertá-lo também desta metáfora pedagógica bastante presente na Bíblia. Depois de termos superado as metáforas jurídicas e económicas que procuraram (e procuram) prender a liberdade de Deus dentro das nossas categorias retributivas, não podemos, agora, sentirmo-nos tranquilos e tranquilizados por uma religião que associa os nossos sofrimentos a alguma intencionalidade educativa de Deus. Devemos, pelo menos, ter o nível de Job e, com ele, calar ou o do salmista e pedir a Deus para “voltar”. E é aqui que se revela algo e novo sobre o orar. Agora, quando abrimos a Bíblia e encontramos uma palavra, um salmo, um cântico de um profeta, a Bíblia continua a estar viva e operante se conseguimos reviver, aqui, a mesma experiência daquele antigo autor; portanto, se ousamos pedir a Deus que se torne o que ainda não é, que continue a mudar, a voltar para nós, para mim. E, assim, continuamos a libertar Deus. Somos libertadores de Deus. E não o sabíamos. Que dignidade infinita!
A doença e o sofrimento são factos humanos, fazem parte do nosso repertório. A nós, compete-nos fazer tudo para manter Deus fora da responsabilidade das nossas dores e não descansarmos em reduzir a dor e o sofrimento dos seres humanos e de todos os seres vivos. Se nas nossas noites suadas nas camas dos hospitais, queremos ver a mão de Deus, devemos reconhecê-la nas dos enfermeiros e médicos, na de quem nos enxuga a testa e chora connosco. Deus não quer a nossa dor, mas acompanha-nos quando ela chega. No Gólgota, o Pai estava na mesma cruz do filho, e enxugar-lhe a testa, a gritar com ele. Todos os outros espíritos, que rodeiam a nossa dor, são demónios e temos de repetir com o salmista: «Os meus inimigos hão de ser envergonhados e retroceder, confusos, num instante» (6, 11).
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«Nas minhas notas, não se encontrará um comentário hebraico nem um comentário cristão.
A mim, dói-me o homem: não tenho outro guia. E, como ato de piedade, comunico-o».Guido Ceronetti, O livro dos salmos.
O Salmo 6 ajuda-nos a recordar que o sofrimento e a doença não são queridos pelo Pai que, se lho pedimos, saber “tornar-se” próximo.
Quem tenha atravessado o vau duma enfermidade séria, aprendeu que aquela enfermidade não dizia apenas respeito ao corpo. Ou melhor: compreendeu que o corpo é entrelaçado de matéria e de espírito, é carne espiritual e espírito incarnado. Portanto, as doenças são perguntas dirigidas a nós e aos outros. Estão entre os poucos momentos de verdade que, por acaso, vivemos. Quando nos encontramos numa cama do hospital, que talvez pensássemos que fosse só para os outros, acaba o tempo da ficção e começa o da verdade e das perguntas nuas. Já não nos contentamos com as meias mentiras ditas aos outros e a nós mesmos: os relatórios e os diagnósticos tornam-se linguagem de uma nova relação autêntica com a vida e com o mundo. Eis porque uma doença pode ser anúncio também, de uma grande bênção. E é justamente entre a doença e a bênção que se aninham as insídias religiosas da doença. O homem antigo dirigia as suas perguntas, antes de mais, a Deus. Nós empobrecemos as linguagens da vida e dirigimos as perguntas, sobretudo, à ciência e aos doutores. Mas, se a doença se torna severa, mais cedo ou mais tarde, chegamos também às perguntas profundas: “Mas, porque a mim?”; “O que esteve errado na minha vida?”; “Porquê?”. De vez em quando, mesmo no meio do nosso mundo despovoado de deuses, pode voltar a tremenda pergunta: “De que culpas me manchei para merecer esta dor?”. É muito difícil sair inocente de uma doença grave.
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Luigino Bruni.
Original italiano publicado em Avvenire em 26/04/2020.
«A cidade exulta com a felicidade dos justos e alegra-se com a perdição dos ímpios. A cidade prosperará com a bênção dos justos e será destruída pelas palavras dos ímpios».
Livro dos Provérbios, Capítulo 11.
Em nós, é sempre forte a tentação de aplicar a Deus as nossas ideias económicas e jurídicas de justiça. Mas a Bíblia recorda-nos a gratuidade.
«Ouve, Senhor, as minhas palavras e atende a minha súplica. Escuta a voz do meu clamor, ó meu Rei e meu Deus, pois eu elevo a ti a minha oração» (Salmo 5, 2-3). Um homem inocente é acusado de um delito. Procurou defender-se, mas em vão. Esgotou as instâncias de julgamento da justiça humana. Resta-lha, ainda, o Juiz de última instância. Levanta-se bem cedo, antecipa-se ao nascer do sol, dirige-se para o templo para apresentar a Deus a sua “causa”. Consegue apenas balbuciar algumas silabas, emitir um sussurro com as últimas energias morais que ainda tem: «Pela manhã, Senhor, escuta a minha voz. Mal o Sol nasce, exponho diante de ti o meu pedido…» (5, 4). Penetra no meu sussurro. Nestas últimas audiências da vida, resta apenas o folego para um sussurro. Não existem orações mais humanas que os sussurros suaves, misturados com o choro. O sussurro do homem humilhado e torturado é a forma pura da oração que comove o céu e a terra. E é a mais bela oração laica e humaníssima que podemos dizer uns aos outros, quando apenas quem é capaz de sussurrar entre o travesseiro, o ventilador e o coração, pode penetrar nos sussurros preciosos como a vida.
[fulltext] =>Este homem sabe que está inocente, denuncia e condena os ímpios que o infamaram injustamente: «Tu não és um Deus que se agrade do mal…Os arrogantes não poderão subsistir na tua presença… O homem sanguinário e fraudulento é detestado pelo Senhor» (5, 5-7). E, depois, louva a Deus que o escuta: «Mas eu, pela grandeza do teu amor, entrarei na tua casa… Guia-me, Senhor, pelos caminhos da tua justiça; defende-me contra os que me perseguem; aplana diante de mim o teu caminho» (5, 8-9). Bonita imagem do caminho aplanado. A justiça também é retidão, isto é, a arte de tornar os caminhos direitos, suavizar os obstáculos, remover as pedras de tropeço, isto é, os escândalos. O caminho do pobre é constelado de pedras e obstáculos. Leis, decretos dos poderosos, truques. A justiça deveria aplanar seu caminho e fazê-lo caminhar livre. A boa história humana é uma progressiva transformação de caminhos acidentados em caminhos direitos e, depois, uma contínua manutenção destes caminhos arranjados porque, à nossa primeira distração, enchem-se, imediatamente, de pedras e de escândalos.
O homem do Salmo 5 usa uma típica estrutura retórica do saltério: “eles…mas eu”. Eles loucos e mentirosos…mas eu, inocente. Qual o sentido deste “mas eu”? Uma primeira leitura destes versículos levaria a dizer que o Deus bíblico atende as orações, conforme a justiça de quem reza. A intervenção da justiça de Deus seria uma resposta à justiça do homem. Só o justo é escutado na sua oração. Muitos o pensam, muitos o pensaram sempre, porque tendiam a atribuir a Deus as mesmas características dos bons juízes humanos. Delitos e penas, méritos e prémios. Amamos de tal modo a justiça que não podemos imaginar um Deus que seja menos justo que nós. E, assim, primeiro, criamos a justiça divina “à imagem e semelhança” da nossa e, depois, uma vez criada, usamos esta justiça “divina” para dar um cariz sagrado à nossa justiça humana, para condenar os outros com a bênção de Deus, até fundamentar, hoje, a meritocracia na Bíblia e nos Evangelhos. Sempre o fizemos e continuamos a fazê-lo. Nós conhecemos as leis económicas e as jurídicas e, sem o querer, obrigámos Deus a tornar-se um comerciante e um juiz.
Mas também há uma segunda leitura possível. É a que não coloca a razão da escuta da oração nos méritos/culpas de quem reza, mas na gratuidade de Deus. Somos salvos porque somos bons ou tornamo-nos bons porque somos salvos? A antiga pergunta no coração da fé bíblica. S. Paulo cita este salmo 5 (o versículo 10, sobre a maldade e a mentira dos outros) para dizer algo que vai na direção desta segunda interpretação: «É que não há diferença alguma: todos pecaram e estão privados da glória de Deus. Sem o merecerem, são justificados pela sua graça» (Rm 3, 22-24). Todos são justificados gratuitamente pela sua graça. Uma revolução fantástica e ainda incompleta, porque, em nós, é demasiado forte a tentação de ler o que de bom acontece como a recompensa dos nossos méritos e as coisas más que acontecem aos outros como fruto das suas culpas. Porque nos agradam os presentes, mas agradam-nos mais imaginarmo-nos como merecedores dos presentes. Mas, se Deus estivesse circunscrito no mesmo círculo da nossa ideia de justiça comercial e jurídica não teríamos, em lugar algum, alguém capaz de fazer evoluir o que já chamamos justo para o justo que ainda não tem esse nome.
Se e quando as comunidades obrigam Deus a ser justo nas formas e nos modos da sua justiça humana, autoconfinam-se em armadilhas éticas que impedem a sua justiça e a de Deus de melhorar. São os casos, muito frequentes nas religiões, quando uma teologia estreita restringe o humano. Pelo contrário, a Bíblia e o seu Deus cresceram juntamente às interpretações que os homens e as mulheres deram à justiça divina. Também isto é reciprocidade entre céu e terra. As mesmas páginas bíblicas, os mesmos salmos, disseram coisas diferentes às diferentes gerações de leitores. E não tanto apenas pelo desenvolvimento das técnicas exegéticas, mas porque a evolução das nossas ideias de justiça e de amor mudaram e enriqueceram as perguntas que aprendemos a fazer a Deus e a nós mesmos e, assim, aquelas antigas palavras aprenderam palavras novas e diferentes, a partir dos homens e das mulheres. A Bíblia é logos e dia-logos, só nos fala se lhe fizermos perguntas e apenas espera que, em cada dia lhe digamos: “vem para fora”.
Cada geração recompreende o “sacrifício” de Isaac e a paixão de Cristo em função do crescimento das ideias de justiça que foi capaz de gerar e fazer ressurgir das suas feridas. Hoje, dizemos coisas diferentes – e temos de as dizer – sobre pais, filhos, sentimentos que uns e outros experimentam diante dos Gólgota e dos Montes Moriá, porque tivemos milhares de anos para entender o que significa morrer e ressurgir. E, se nós aprendemos coisas novas acerca da vida, também as aprende em nós a Bíblia que, assim, consegue dizer-nos coisas que não podia dizer-nos há dois mil anos nem ontem. O Deus bíblico, para crescer, tem necessidade de nós e o do crescimento da nossa justiça. A parábola do bom samaritano que cuida do homem “meio morto” sempre leu coisas novas após cada guerra, após cada epidemia, após cada vez que chegámos “meio mortos” a umas urgências; e poderá dizer coisas novas hoje, quando médicos e enfermeiros nos ampliaram a semântica da expressão “cuidar”. E talvez precisemos de dois meses de igrejas fechadas e liturgias suspensas para compreender, de modo diferente, nesta hora, o Evangelho de João: «Mas chega a hora - e é já - em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende» (Jo 4, 23).
Há muito do cântico de Job nos cânticos do Saltério. O nosso cânone coloca os Salmos depois do Livro de Job porque não compreendemos os salmos sem os ler em companhia de Job, se não os cantamos no seu monte de estrume, se não os entoamos fora dos muros, como ele excomungados, condenados pelos amigos, em diálogo com um Deus que tarda a chegar. Também Job transformou o seu aterro numa sala de audiências, também ele, ao amanhecer, levou a sua “causa” a Deus: «Defenderei a minha causa diante de Deus. Estou pronto a defender a minha causa e sei que que serei declarado inocente» (Jb 13, 17-18). Então, se lermos a causa do salmista juntamente à causa de Job, podemos aprender algo de novo sobre o seu Deus.
O autor do Salmo 5 leva a Deus a sua causa e… “espera”; Job pede a Deus que desça do seu trono, para ser fiador da sua inocência e… espera. Ambos têm em comum a inocência e têm em comum a espera de uma justiça diferente. Não sabemos se esta justiça mais justa chegou ao protagonista do Salmo 5; não é missão do Saltério narrar-nos os epílogos das vicissitudes dos seus personagens. Porém, conhecemos como acabou a oração de Job: apesar da sua inocência, o Deus de Job não vem ao encontro e quando, por fim, chegou, não era o Deus que Job esperava; não veio o Deus de Job, mas o dos seus amigos e da sua teologia, um deus que se revelou mais pequeno do que a justiça de Job que tinha crescido juntamente às suas chagas.
Então, uma mensagem escondida nestas páginas bíblicas é a bênção da espera. A fé numa justiça diferente e mais alta gera a esperança não-vã que, amanhã, possa verdadeiramente chegar o Messias e que o saberemos reconhecer como se reconhece um amigo, porque o esperámos e o desejámos. O dia do Messias é amanhã, mas este amanhã abençoa o hoje e muda-lhe o nome. À nossa geração não falta apenas a fé; falta-lhe, sobretudo, a esperança e o desejo da espera.
Esta espera in-finita da história não é exclusiva de um clube de inocentes e de justos: é também a dos ímpios e dos pecadores, porque sempre se pode enfiar num dos buracos de inocência que cada homem vive nalguns dias luminosos da vida – também Caim, também Judas e, portanto, também eu, embora saiba sempre combatera tentação invencível de me identificar com a parte justa dos salmos. A nossa bondade é maior que os nossos pecados.
Uma outra vez, um outro dia, um outro homem, em crise e deprimido, que queria morrer debaixo de um junípero, foi salvo por um sussurro, por uma «subtil voz de silêncio» (1Rs 19). Daquela vez, foi Deus que aprendeu a sussurrar e aquele sussurro chegou aos ouvidos de Elias e ressuscitou-o. E se a oração fosse apenas um encontro de sussurros?: «Tu, Senhor, abençoas o inocente, o fortaleces e o envolves com a tua benevolência» (5, 13).
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