Não é conveniente que Deus esteja só

Não é conveniente que Deus esteja só

A alma e a cítara / 7– A nossa humana semelhança com Deus entre um “verdadeiramente” e um “mas”

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 10/05/2020.

«E quando vejo as estrelas arder no céu;
Digo para comigo, pensando:
Para quê tantas tochas?
Para que serve este ar infinito, e o profundo
Infinito Sereno? Que quer dizer esta
Solidão imensa? E eu, que sou eu?».

Giacomo LeopardiCanto noturno de um pastor errante da Ásia.

A antropologia bíblica é um bem comum global da humanidade. Também o Salmo 8 no-lo recorda, continuando ainda a surpreender-nos pela sua extraordinária beleza profética.

Algumas pessoas recordam, durante toda a vida, o dia em que viram, pela primeira vez, o céu estrelado. Tinham-no “visto” outras vezes, mas, numa noite abençoada, aconteceu algo de especial e viram-no verdadeiramente. Fizeram a experiência metafísica da imensidão e, simultaneamente, sentiram toda a sua pequenez e fragilidade. Foram, fomos vistos imensamente pequenos. E, ali, sob o firmamento, floriram perguntas diferentes, as que, quando chegam, marcam uma etapa nova e determinante da vida: onde estão e o que são os meus negócios? e os meus problemas? o que é a minha vida? o que são os meus amores, as minhas dores? E, depois, chega a pergunta mais difícil: e eu, que sou eu? É o dia tremendo e belíssimo; para alguns, marca o início da pergunta religiosa; para outros, o fim da primeira fé e o início do ateísmo – para, depois, descobrir, mas só no fim, que as duas experiências eram semelhantes, que talvez havia muito mistério na resposta ateia e muita ilusão na religiosa mas, ali, não podia sabê-lo. Nem todos fazem esta experiência, mas, se a desejamos, podemos experimentar sair de casa, nestas noites, tornadas mais calmas e nítidas pelos meses sabáticos, procurar as estrelas, fazer silêncio, esperar as perguntas – que, disseram-me, por vezes chegam.

Depois, para alguém, há um outro dia determinante. Quando aquele infinitamente pequeno fez a experiência que o «Amor que move o sol e as outras estrelas» se interessa por ele, por ela, que o procurava, lhe falava, a encontrava. Dia também determinante, porque não basta a experiência verdadeira do dia das estrelas para que se inicie a vida religiosa. Existem muitas pessoas que sentem verdadeiramente vibrar o espírito de Deus na natureza, ouvem a sua voz ecoar nas noites estreladas e em muitos outros lugares, mas nunca se sentiram chamadas pelo nome por aquela mesma voz. Como existem outros que tiveram um autêntico encontro pessoal com a voz, mas que, depois, nunca mais a sentiram viver em todo o universo, que nunca se comoveram, reconhecendo-a na imensidão do cosmo. É o encontro entre estes dois dias que marca o começo da vida espiritual madura, quando a imensidão que nos revela a nossa infinita pequenez se torna um tu mais íntimo do que o nosso nome.

O autor do Salmo 8 fez, creio, a experiência de ambos os dias. Reconheceu a presença de YHWH no firmamento infinitamente grande e sentiu-se infinitamente pequeno; depois, intuiu que a voz que lhe falava entre as galáxias era a mesma voz que lhe falava no coração: «YHWH, como é admirável o teu nome em toda a terra! Adorarei a tua majestade, mais alta que os céus… Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste: que é o homem para te lembrares dele, o filho do homem para com ele te preocupares?» (8, 2-5). Versos maravilhosos. Deveríamos ter o coração e os estigmas de Francisco para os cantar.

Assistimos, ao vivo, a uma experiência de absoluto. O antigo poeta sentiu a imensidade e a pequenez, não se sentiu escorraçado e começou um novo cântico. O cântico da humildade (humilitas) verdadeira, porque o húmus só nos diz quem somos verdadeiramente se conseguimos, por um momento, olhar a distância sideral; o adamah (terra) só revela o Adão se visto do alto. É esta a alegria pela verdade finalmente revelada, por uma nova ignorância que não humilha. A humildade é o oposto da humilhação. E experimenta-se uma nova infância, uma juventude ilimitada: «Da criança e menino de leite gaguejante» (8, 3).

No centro do salmo, uma pergunta: o que é o filho do homem (Ben Adam: expressão estimada pelos profetas e pelos evangelhos), diante de tamanha imensidão?! A resposta é esplêndida: apesar da sua insignificância, em comparação às estrelas e a sua pequenez no tempo e no espaço, tu cuidas do homem, recordas-te dele. Como se dissesse: se tu, ó Deus, tivesses em consideração o que Adão é, objetivamente, em relação ao universo interminável, não deverias ocupar-te dele; mas, pelo contrário, cuidas dele, dela. Por isso, a pergunta necessária: mas esta voz que me fala dentro é precisamente a mesma que falou entre as galáxias? A resposta do primeiro dia apenas pode ser um sim, caso contrário o caminho não começa! Com o passar do tempo, a resposta pode tornar-se: talvez. Depois, chegam os longos anos em que a resposta é: não. Por fim, regressa o sim, mas – se e quando regressa – é um sim dito na profundidade de uma outra humildade. E, aqui, nasce uma nova maravilha, transborda a gratidão, reaparece a oração dos últimos tempos.

Nesta tensão entre as estrelas e o coração, ambos habitados pela mesma presença, está a dignidade de Adão, dos seus filhos e das suas filhas, a sua glória e a sua honra. Perdemo-nos nas várias ideologias se se perde um destes dois polos. Devemos ler o Salmo 8 em paralelo com os primeiros capítulos do Génesis: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Talvez o versículo da Bíblia de que eu mais amo. O Adão é colocado, por Eloim, no centro do jardim da criação para que fosse o seu guardião e responsável. O Salmo no-lo repete: «Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo submeteste a seus pés» (Salmo 8, 7). O Adão torna-se o primeiro interlocutor de Deus para que, com a sua reciprocidade, pudesse acompanhar também a solidão de Deus – «não é conveniente que o homem esteja só» (Gn 2, 18) é lido juntamente a outra frase não escrita na Bíblia, mas também presente: não é conveniente que Deus esteja só.

Não me admiraria se o autor daquele antigo salmo, enquanto cantava, tivesse na mão estes versículos do Génesis. Talvez estivesse a meditar e contemplar “o que é o homem” quando, a um dado momento, não aguentou a emoção e compôs um dos versículos mais belos acerca do homem, alguma vez escritos em toda a literatura religiosa e laica. Depois de o ter visto sub specie aeternitatis, depois de ter ido com a alma à lua e o ter perdido de vista, tal era a sua pequenez, voltou àquelas palavras do Génesis e reviu um outro homem. E pronunciou esta obra de arte, que é lido depois de algum momento de silêncio: «Quase fizeste dele um ser divino; de glória e de honra o coroaste» (8, 6). Mais ainda: a Bíblia, por vezes, fecha-se numa humilde conjugação de toda a sua profecia. Somos efémeros, somos como a erva… porém… «Diz uma voz: “Proclama!” Respondo: “Que hei de proclamar?” “Toda a gente é como a erva! A erva seca e a flor murcha … Verdadeiramente o povo é semelhante à erva» (Isaías 40, 6-7). Verdadeiramente… porém. Fomos pensados, procurados e amados entre um verdadeiramente e um porém. Verdadeiramente efémeros como a erva, verdadeiramente infinitamente pequenos, verdadeiramente infiéis e pecadores; porém, pouco menos que Deus; porém, sua imagem e semelhança; porém, amados, cuidados e esperados como filhos.

É esta a imensa antropologia bíblica. A literatura antiga conhecia a metáfora da imagem de Deus aplicada ao homem. Mas era usada para o rei, para o faraó. A Bíblia usa-a para cada um de nós, para cada homem e cada mulher, para ti, para mim. É o Adão, todo o Adão, a imagem e semelhança de Eloim; por isso, somo-lo nós, todos nós. É esta a magna carta de qualquer declaração dos direitos do homem e da mulher, dos meninos, das meninas, da dignidade da criação. O Salmo 8 é um hino a Deus e, simultaneamente, um hino ao homem. Exalta a pessoa dizendo-lhe quem é aquele Deus cuja imagem ele é e exalta Deus dizendo-lhe que sou o homem e a mulher que o refletem. Porque se o homem é imagem do outro, o Adão torna-se mais belo se mais mostra a beleza do seu Criador e quanto mais deixamos Deus livre para se tornar melhor que nós, mais nos embelezamos a nós próprios. Não compreendemos a antropologia bíblica se saímos da reciprocidade intrínseca ao símbolo e à imagem.

Mas a beleza e a força deste cântico explodem se imaginamos o salmista cantar o versículo 6 enquanto lia o capítulo três e quatro do Génesis: os da desobediência, da sedução vencedora da serpente e, depois, Caim e o sangue de Abel, de que o salmista ainda sentia o cheiro. É demasiado simples cantar a glória e a honra do homem limitando-se ao capítulo dois. O desafio seguinte é conseguir continuar o cântico enquanto os capítulos deslizam e se entra nas páginas negras e negríssimas do não, as da rotura da harmonia homem-mulher-criação-Deus, nas páginas da expulsão daquele jardim maravilhoso, as da noite escura do primeiro fratricídio da terra. E, chegados ali, não parar o canto. E, depois, continuá-lo com o grito tremendo de Lamec, o assassino de crianças, com a rebelião de Babel, com os pecados dos patriarcas, com as mentiras e os enganos da Jacob, com o homicídio dos benjaminitas, até ao homicídio de David, às infidelidades de Salomão e de quase todos os reis de Israel. E nunca parar de cantar: «Verdadeiramente… porém, quase fizeste dele um ser divino».

Toda a força da antropologia bíblica se liberta quando conseguimos vencer a dor e a vergonha e repetimos “verdadeiramente… porém” não só diante do firmamento, mas também nas prisões, nas mesquinhezes, nas violências, nas favelas de Calcutá, nas vias-sacras que levam ao Gólgota. Não há condição humana que não seja incluída entre o verdadeiramente e o porém; nenhuma fica de fora. A Bíblia não teve medo de nos narrar os pecados e as baixezas dos seus homens porque acreditava verdadeiramente na imagem de Eloim. E, sempre que escondemos, nas nossas histórias, as páginas mais negras, deixamos de acreditar que somos imagens.

Caim apagou a sua fraternidade e os seus filhos continuam a apagá-la matando diariamente Abel. Mas não pode apagar a imagem – e se o “sinal de Caim” fosse a própria imagem de Eloim? «Ó Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!» (8, 10).

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