Um homem chamado Job/2 - Resistir sem amaldiçoar; descobrir a «liberdade do esterco»
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire 22/03/2015
“Vinda do Norte e do Ocidente, a civilização atual viu o sol e o azul; não viu as trevas do mar, a lama seca, os desertos de areia parda, as rochas fendidas, os rios sem água, o emaranhado de silvados poeirentos, a crueldade da luz, o sal e o suor, os gritos e o silêncio, a putrefação veloz. Neste ver mal, nesta ilusão, está a nossa cultura; por isso, perante a morte – e, portanto, perante a vida – ela é o retrato da impotência”.
Sergio Quinzio Cristianesimo dell’inizio e della fine (Cristianismo do início e do fim)
Toda a riqueza humana, toda a nossa riqueza é, antes de mais, dom. Vimos ao mundo nus e começamos a caminhar sobre a terra graças à gratuidade de um par de mãos que nos acolhem quando nos apresentamos ao mundo. Recebemos como dom a herança de milénios de civilização, genialidade e beleza, que nos são consignados sem qualquer mérito nosso. Nascemos dentro de instituições que existiam antes da nossa chegada, que de nós cuidam, nos protegem e amam. O nosso mérito é sempre subsidiário relativamente ao dom; e é muito mais pequeno. Mas nós insistimos em provocar injustiças cada vez maiores em nome da meritocracia; insistimos em viver como se a riqueza e o consumo pudessem cancelar a nudez de onde vimos e que por nós espera, fiel, nas encruzilhadas de todos os caminhos da vida.
Satã (“o adversário”) perde o primeiro desafio porque, apesar do vento impetuoso com que arrasou todos os bens de Job, este não amaldiçoou Deus: «apesar de tudo isto, Job não ofendeu a Deus nem disse nenhuma palavra de protesto contra ele» (1,22). Mas Satã não ficou ainda convencido da gratuidade da fé de Job; pediu então a Deus autorização para o tentar no último bem que lhe restara, o corpo. Então, em nova assembleia da corte celeste, toma a palavra e pede ainda: «Um homem é capaz de dar tudo o que tem e até a sua própria pele, para poder salvar a sua vida!». Mas experimenta levantar a tua mão contra ele; faz com que ele sofra a doença nos seus ossos e no seu corpo e verás se ele não te amaldiçoa, mesmo na tua frente» (2,4-5). Deus respondeu-lhe ainda: «Aí o tens à tua disposição». Satã então «fez com que Job sofresse de chagas horríveis, desde os pés à cabeça. Job agarrou num caco e com ele raspava a sua pele, sentado no pó da terra» (2,7-8).
A desventura de Job chegou ao limite do possível. Ficou apenas com a nua vida. Também nós, como Job, só quando caímos em total ruína descobrimos recursos desconhecidos que nos tornam capazes de suportar sofrimentos que antes nos pareciam impossíveis. Uma fortaleza que poderá surpreender-nos, até quando descobrirmos ser capazes de morrer, nós que durante a vida inteira pensamos não ser capazes.
Com o segundo capítulo do livro de Job, o horizonte do humano bom amigo de Deus continua a alargar-se; simbolicamente, não há condição humana que fique de fora. Job no monte de esterco, no meio do lixo da aldeia, toca o ponto mais baixo da condição humana, as periferias existenciais mais distantes, os desperdícios, todos os “vencidos”, a ralé da história. As lixeiras encontravam-se fora de muros; a doença de pele de Job (semelhante à lepra, talvez) marcava-o como impuro; devia, por isso, ser banido, “excomungado”. Para os povos do Médio Oriente não havia maior sinal da maldição que Deus reserva aos pecadores do que doenças infeciosas da pele. Nas religiões “económicas” daquele tempo (como também hoje, na “religião” das grandes empresas e bancas) a desventura e a impureza são consideradas efeitos de uma vida de pecado. É esta equivalência que Job não quer aceitar; para si, e para nós. Antes rico e poderoso, Job encontra-se agora na maior desventura; impuro, e portanto intocável, fora de todas as castas sociais. É a triste sorte que toca ainda hoje a empresários, dirigentes, trabalhadores, políticos, sacerdotes; caídos em desgraça, acham-se não apenas empobrecidos, mas sentados num montão de desperdícios que inclui família, amigos e saúde. E não tarda que vão parar no meio dos impuros, fora da aldeia, afastados e marginalizados em clubes, associações e círculos; confinados a locais de descarga social e relacional, por todos evitados – nem os tocam – com terror de ficarem também contagiados pela sua desgraça.
Mas Job, sobre a cinza e o esterco, com o seu caco, não amaldiçoou Deus. Continuou a ser justo. Não existe maior gratuidade que a de quem espera e deseja que Deus exista e seja justo, ainda quando na sua vida pessoal deixou já de ver, quer os sinais da sua presença quer os da sua justiça. Job continua a procurar a verdade e a justiça. Uma busca desesperada, com um valor ético e espiritual imenso; tanto mais que no Antigo Testamento (Job incluído) a ideia da existência de uma vida depois da morte era muito rarefeita, quase não existia. O local onde o SENHOR vive e onde se pode encontrar a sua bênção é esta terra, não outra. A luta de Job abraça então todo o ser humano que queira aprender o ofício de viver sem se contentar com respostas simplistas; tampouco com as respostas simplicíssimas do ateísmo. Em todos os tempos, Job continua a lutar por esses, também.
Se a vida funciona e floresce, inevitavelmente chega a etapa do montão de esterco. É o encontro marcado com a pobreza não escolhida. Enquanto somos nós a escolher ser pobres, estamos porventura no campo das virtudes, não ainda no de Job. A pobreza escolhida – que produziu e produz muitas vidas boas – não é a pobreza de Job; Job é um rico e feliz que se torna pobre sem o ter escolhido. Por isso, a sua condição abraça a pobreza de todos, sobretudo a de quem não a escolheu, mas que se encontra dentro dela. Uma pobreza radical e universal porque, enquanto foram sempre poucos os que escolheram a pobreza como estilo de vida (menos ainda são os que conseguem libertar-se da riqueza de terem livremente escolhido a pobreza), muitos são – potencialmente, toda a gente – os que podem fazer a experiência de se tornarem pobres sem o ter pedido ou escolhido. É então que se encontra; ele está à nossa espera e combate connosco e por nós. Como quando, depois de uma vida gasta a acumular riqueza espiritual, certo dia, quase sempre de improviso, nos descobrimos nus, sobre um montão de esterco, privados de todos os “bens” que tínhamos acumulado. Tive o privilégio de conhecer algumas pessoas grandes que descobriram a radical liberdade do esterco somente quando se preparavam para morrer; quando, libertas de todas as riquezas – das espirituais, sobretudo –, descolaram em novo voo, finalmente livre; mesmo se durou apenas poucos anos ou meses, por vezes dias ou horas, somente. Esta pobreza radical e não-escolhida faz com que nos tornemos “pequeninos” que conseguem entrar num outro reino; porque antes conseguiram vê-lo e desejá-lo.
Job no esterco não está totalmente só. Vão ter com ele a mulher, primeiro, e depois alguns amigos. A mulher tem uma rápida, infeliz e única aparição; os amigos, pelo contrário, serão protagonistas de todo o drama. «A mulher de Job dizia-lhe: “Ainda continuas firme na tua retidão? Amaldiçoa a Deus e morre de uma vez!”» (2,9). Palavras misteriosas, com muitas explicações possíveis, mas que não são raras na vida dos justos caídos em desventura. No auge de uma grande prova sucede que são precisamente as pessoas mais próximas que passam a ser as mais distantes; além de não compreender o que estão a viver a mulher, os pais, o marido, acabam por dar os conselhos menos sábios e verdadeiros, mesmo se inspirados por amor ou piedade. A mulher convida-o a desistir, a suicidar-se, a deixar-se morrer. Ele não a escuta: «Estás a falar como uma ignorante qualquer! Se recebemos o bem da mão de Deus, por que não havemos de receber também o mal?» (2,10). Job não escolheu a morte. Mesmo se (vê-lo-emos seguidamente) irá passar pela tentação de querer morrer, vai continuar a viver, a lutar e a procurar um sentido: «Apesar de tudo isto, Job não pronunciava uma palavra ofensiva contra Deus» (2,10).
Job não amaldiçoou Deus. Mas amaldiçoou-se a si, amaldiçoou a sua vida: uma auto maldição de uma poesia e humanidade que nos deixam sem respiração; milhares de anos passados, é capaz de nos comover, de nos converter, de nos impelir a procurar ao menos um Job perto de nós; e a acompanhá-lo nestas páginas enormes. Capaz, assim, de nos levar a descobrir uma oração nova, porventura a mais bela de todas. Cada vez que relemos Job, Qohelet ou Marcos, podemos doar palavras a muitos que a dor e a vida tornaram mudos, que não podem, não conseguem, não querem gritar a sua dor maior e mais verdadeira. Pedindo emprestadas a Job as suas palavras extremas, a ponto de as tornar nossas e de quem palavras já não tem, é possível começar ou recomeçar a rezar; rezando esquece-se e volta-se a aprender muitas vezes na vida.
O poema de Job é a revelação da imensa profundidade da espessura moral de quem é capaz de continuar a louvar a Deus na desventura radical e imerecida, sem dele ter reciprocidade. Ao longo de todo o seu drama, Job procura um sentido para esta falta de reciprocidade de Deus; e com ele, procurá-lo-á todo aquele que ler o livro de Job, incluído numa Bíblia fundada sobre a reciprocidade “contratual” da Aliança e da Lei (Torah): Qual será a reciprocidade de Deus?
A aposta entre Satã e Elohim não é ganha por nenhum deles: o verdadeiro vencedor é Job, que “obrigará” o próprio Deus a libertar-se, por sua vez, da lógica retributiva, económica, contratual. Pedindo-lhe que se torne, a seus olhos de homem, aquilo que ele é: Outro.
Graças a Job, homem fiel mesmo sem reciprocidade, Deus tem então que continuar a amar-nos, mesmo quando nós deixamos de o fazer. Pode, e deve, estar presente num mundo que não o quer, não o vê, que deixou de o desejar.