As perguntas nuas / 8 – A vida isolada e o seu sal (e salário) não têm sabor
por Luigino Bruni
publicado no jornal Avvenire no dia 27/12/2015
“Na praia dos mundos/ se quebra a ressaca/ antiga e sempre nova/ dos desejos humanos/ que palpitam ao sol/ invocando a vida. … E nós, aqui, a esperar. Porque ainda deve vir. … E nenhum, finalmente,/ será deixado só”
Maria Pia Giudici, Sulla spiaggia dei mondi
As solidões não são todas iguais. Existem pessoas deixadas a viver sós, idosos cuja solidão continua a ser habitada pela ausência-presença de quem amaram. Há quem esteja só porque é simplesmente pobre, isolado e abandonado nas periferias das nossas cidades.
Mas existem, também, as solidões dos poderosos ou as das vítimas de um modelo económico-social que celebra a libertação dos laços como conquista da civilização, prometendo uma outra felicidade, substituindo as pessoas por coisas. As solidões boas, que podem ser também bem-aventuradas estão sempre interligadas com os encontros, são pausa no ritmo social normal da vida, diálogos diferentes que criam e regeneram o espaço interior para poder encontrar, novamente, o rosto do outro. Pelo contrário, quando a solidão se torna alternativa à vida em comum, quando me encontro comigo mesmo para fugir de ti, se me habituo a estar sozinho porque já não sei estar com ninguém, volta forte a palavra de Qohélet: ai dos sós.
“Vi também que todo o esforço e todo o êxito de uma obra não passam de inveja de uns para com os outros. Também isto é ilusão e correr atrás do vento. O insensato cruza os braços e devora-se a si mesmo: «Mais vale um punhado de lazer, do que duas mãos cheias de esforço e correr atrás do vento” (4, 4-6).
Qohélet continua a crítica da sua sociedade. Vê ‘debaixo do sol’ homens que se afadigam na concorrência, numa competição que, para Qohélet, não é a alma do desenvolvimento, mas apenas o resultado da inveja social. Viu-o no seu mundo, e nós vemo-lo ainda mais no nosso. E, por isso, regressa forte o seu juízo: hebel, vaidade, fumo, rajada louca de vento. No lado oposto deste frenesim, Qohélet vê quem renuncia ao desafio, cruzando os braços na inatividade. Isto também não é sabedoria. É tão louco como a competição invejosa da primeira cena.
Depois, indica-nos um caminho sábio: deixar livre uma mão para que a sua palma se possa encher de calma, de repouso, de ‘consolação’. As duas mãos do homem não devem ser usadas na mesma atividade: se é louco quem deixa ambas as mãos inertes, também o é quem as ocupa apenas com o trabalho frenético. O fruto do trabalho e da indústria só pode ser usufruído se deixamos um espaço livre de não-trabalho, se uma palma está vazia e pode acolher o fruto conquistado pela outra. É louco quem nunca trabalha, mais louco quem trabalha sempre.
A nossa civilização construiu-se à volta da condenação do ócio e originou uma cultura da vida boa assente no trabalho, instituindo a ligação entre dignidade humana, democracia e trabalho. Os braços inativos, porque não se quer ou não se pode trabalhar, não são braços geradores de bem-estar nem de alegria. Na corrida, que a civilização ocidental iniciou há alguns anos, esquecemo-nos da segunda loucura-vaidade do sábio Qohélet: a vida é fumo e fome de vento, também para o muito trabalho. O trabalho é bom apenas nos seus ‘tempos’ corretos.
Naquela cultura antiga, estava ainda muito viva a experiência do Egito e de Babilônia, quando os hebreus, tornados escravos, trabalhavam sempre, com ambas as mãos. Só os escravos e os reduzidos à escravidão da inveja e da avidez se afadigam sempre e só com o trabalho. É difícil dizer se hoje sofre mais o desempregado, que cruza inocentemente os braços ou o gerente super-ocupado, que passa o Natal no escritório, porque o trabalho, pouco a pouco, lhe comeu, como todos os ídolos, alma e amigos. Sofrimentos diferentes, ambos muito graves, mas o segundo não o vemos como loucura e vanitas, e incentivamo-lo.
É a relação entre o um e o dois que está no centro deste capítulo de Qohélet: “Vi ainda outra ilusão debaixo do Sol: eis um homem só [é um, não dois], sem ninguém junto de si, não tem filho, nem irmão; mas não cessa de se esforçar, nem os seus olhos se fartam de riquezas: «Para quem me esforço eu, privando-me de coisas boas?» Também isto é ilusão e tarefa ingrata” (4, 7-8). Estamos perante uma página maravilhosa, um verdadeiro destilado de antropologia. Qohélet revela uma relação profunda, radical e tremenda entre a solidão e o trabalho. Apresenta-nos um homem só, que trabalha muito, sempre (‘não cessa de se esforçar’) e a muita riqueza que ganha nunca o sacia. Está na não saciedade a chave deste versículo: a riqueza que não pode ser partilhada não sacia, não satisfaz o nosso coração. Alimenta apenas a fome de vento, e produz o grande autoengano de a riqueza em si ou o aumento do património poderem, amanhã, saciar a indigência de hoje. E o carrocel continua a girar, cada vez mais no vácuo.
Rapidamente, Qohélet faz-nos entrar na alma desta pessoa, apresentando-nos um veloz, mas intenso, exame de consciência: ‘por que toda esta canseira por nada? A quem ou para que serve este trabalho louco que me está a consumar a vida?’. Se pudéssemos ler o diário da alma do nosso tempo, encontraríamos milhões de exames de consciência semelhantes. A solidão ‘distorce os incentivos’ e faz trabalhar muito, porque a satisfação no trabalho torna-se um substituto da felicidade fora do trabalho. O trabalho, que se torna, pouco a pouco, tudo, destrói as poucas relações que permanecem e, assim, trabalha-se ainda mais. O tempo de trabalho aumenta, regresso a casa cansado, não tenho vontade de sair, o ‘custo’ das relações extra-laborais aumenta, amanhã sairei menos e trabalharei mais… Depois, um dia, pode chegar, pontualmente, a pergunta: ‘mas por que e para quem?’. Uma pergunta que é dramática quando a colocamos, pela primeira vez, perto da reforma, mas que pode ser libertadora se ainda estivermos a tempo. Enquanto estamos suficientemente vivos para nos colocar esta pergunta, podemos ainda esperar: o dia verdadeiramente triste é aquele em que renunciamos a sofrer pela nossa infelicidade e nos adaptamos a ela. Convencemo-nos que estamos bem na armadilha em que caímos e não pedimos mais nada, para não morrer.
“É melhor dois do que um só: tirarão melhor proveito do seu esforço. Se caírem, um ergue o seu companheiro. Mas ai do solitário que cai: não tem outro para o levantar! E se dormirem dois juntos, dormem quentes; mas se alguém está só, como se há de aquecer? Se um só é oprimido, dois já conseguem resistir a isso; o cordel dobrado em três não se parte facilmente” (4, 9-12).
Isto não é um louvor específico da família ou da amizade nem da espiritualidade da comunidade. O seu discurso é mais radical. A vida não funciona se se está só. Quando estamos sós, somos frágeis, vulneráveis, míseros. Após mais de dois milénios destas antigas palavras, construímos contratos, seguros e cobertores térmicos para poder dispensar o outro. E, assim, suscitámos a maior ilusão coletiva da história humana: crer podermo-nos levantar, proteger e aquecer sozinhos. Mas também aprendemos que não basta estar dois no mesmo leito para sentir calor: não há leitos mais gélidos que aqueles onde dormem dois, cada um mergulhado na própria solidão, já sem palavras. Não basta estarem dois para fugir ao ‘ai de quem está só’. Há muitas solidões desesperadas, revestidas de companhia, e muitas companhias verdadeiras por detrás do que aparece como solidão.
“É melhor dois do que um só: porque há um salário bom para a sua canseira” (cf. 4, 9). O salário bom é o que pode ser partilhado. O verdadeiro sentido da canseira do trabalho é ter alguém que espera o nosso salário. O salário sem um horizonte maior que do eu é um sal sem sabor. O tempo justo do bom salário é o de casa. O acumular riqueza sem que haja alguém que, com esta riqueza, possa crescer, habitar, estudar, ser cuidado, é fome de vento, é alimento que não sacia, mesmo quando consumado nos restaurantes de cinco estrelas.
O nosso tempo está a perder o tempo justo do trabalho porque quebrou a ligação entre trabalho e família. Quando os filhos não existem, quando o horizonte do trabalho é muito curto, é difícil encontrar uma resposta para a nua pergunta de Qohélet. Mas a nossa sociedade pós-capitalista tem uma necessidade crescente de pessoas sem vínculos fortes de pertença, e, por isso, sem limites de horário, de deslocação, sem o ritmo dos ‘tempos’ diferentes. São estes os dirigentes ideais das grandes multinacionais. Por vezes, alguém pergunta a si mesmo: “por que tanto trabalho; para quem?”. Uma pergunta que pode ser o início de uma vida nova. A oferta de novos bens e serviços, para acompanhar as solidões, está a tornar-se ampla e sofisticada, com a venda de bens pseudo-relacionais. Produzimos pessoas cada vez mais sós e produzimos cada vez mais bens para saciar solidões insaciáveis. E o PIB cresce, indicador da nossa infelicidade e, ao mesmo tempo, cresce a procura insatisfeita de gratuidade.
Mas que acontecerá quando esta procura de Qohélet se tornar coletiva? Que novas respostas conseguiremos dar, juntos? Haverá ainda sal bom nas dispensas das nossas empresas, das cidades? E, se procurando bem nos ângulos mais escondidos, encontrarmos uma mão-cheia de sal, será suficiente para dar sabor à comida? E aquele sal terá ainda sabor?
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