Permanecerá uma grande candura

Permanecerá uma grande candura

Maiores que a culpa / 31 – Pode ser-se “rei” quando não se deixa de ser filhos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 19/08/2018

Piu grandi della colpa 31 rid«Eu não vivo em mim, mas fora;
Eu sou defeituoso, eu faço
erros continuamente.
Não sei porquê, não mais que os outros
Mas a mim, parece fazer mais…
Oh, fora estão as árvores
Estão os pássaros e as flores…».

Nicola Gardini, Io non vivo in me ma fuori

«Estas são as últimas palavras de David: “… O espírito de YHWH falou por mim, sua palavra está na minha língua”… disse-me: “O justo, dominador dos homens, que domina pelo temor de Deus, é como a luz da manhã quando se levanta o Sol numa manhã sem nuvens, que faz germinar a erva que brota da terra, depois da chuva”» (2 Samuel 23, 1-4). Embora, na Bíblia, David volte a falar (1 Livro dos Reis), para os Livros de Samuel, estas são “as últimas palavras de David”, como um testamento. Aqui, o rei David fala como profeta, como quem recebeu uma nova língua para anunciar (no seu caso cantar) a palavra de YHWH – e terminará o livro como sacerdote. O autor sabe que, também nós, chegados já ao fim da sua vida, podemos testemunhar que David disse, de verdade, palavras diferentes e mais altas que as suas e as nossas. Disse-as misturadas com palavras baixas, mais baixas e vis que as nossas; mas Deus falou em David, justamente através das feridas da sua ambivalente humanidade.

Depois das últimas palavras, o texto apresenta alguns episódios da vida de David que, pela sua natureza e pela sua mensagem, estão colocados como epílogo da sua história. O primeiro diz respeito a uma estranha sede de David em Belém: «David manifestou este desejo: “Quem me dera beber da água do poço que está à porta de Belém!” No mesmo instante, os três valentes penetraram no acampamento dos filisteus e tiraram água do poço situado à porta de Belém. Trouxeram-na a David, mas ele não a quis beber» (23, 15-16). Episódio complicado, que nos diz outra coisa sobre reis muito amados pela sua gente. Estas pessoas, frequentemente, gozam junto da sua comunidade de uma tal veneração e devoção que levam os seus seguidores a fazer o possível e o impossível para satisfazer as necessidades do seu “rei”, procurando antecipar os desejos e, não raramente, também os caprichos. Este tipo de chefe carismático sabe muito bem que possui semelhante poder de encantamento em relação aos seus fiéis, e é muito tentado para usar e abusar dele. Este relato mostra-nos o coração de David: também ele é tentado por aquele seu capricho e cede, mas sabe arrepender-se, mudar de ideia e fazer um gesto de lealdade para com os seus homens.

Este episódio da água está encaixado dentro da apresentação da trintena de guerreiros à volta de David, a sua guarda especial. O pormenor mais interessante deste elenco de militares e da gesta heroica é o último nome, o que fecha a lista: «Urias, o hitita» (23, 39), o soldado leal, mandado matar por David, para ter a sua mulher Betsabé (cap. 11). O autor não tem medo de colocar, como selo da parada militar de David, o nome de que basta a pronúncia para falar ao leitor bíblico mais que um tratado de teologia. A misericórdia e a predileção de YHWH por David, o rei amantíssimo, poeta e cantor de salmos maravilhosos, foram maiores que a sua culpa. Mas a Bíblia quis conservar o nome de Urias até ao fim, não o apagou do registo da história de David, do catálogo da vida e da morte. A recordar-nos que os grandes pecadores escavam cicatrizes que marcam e mudam o nosso corpo para sempre. Sempre que, ao ler a Bíblia, pronunciamos o nome de Urias, David continua a ser responsável daquele pecado – perdoado, mas não irresponsável.

O segundo episódio diz respeito ao recenseamento. Por uma sua misteriosa ira, YHWH «incitou David contra o povo, dizendo: “Vai, faz o recenseamento de Israel e Judá”» (24, 1). Deus “incita” David a agir mal contra o seu povo, “indu-lo em tentação” – está, verdadeiramente, toda a Bíblia na oração do Pai Nosso. David cede a este impulso e Joab realiza o recenseamento: «Havia em Israel oitocentos mil homens de guerra, que manejavam a espada e, em Judá, quinhentos mil homens» (24, 9). Mas, depois do recenseamento, David sente o “remorso” e diz: «Cometi um grande pecado, ao fazer isto» (24, 10). Porque é que convocar um recenseamento era um “grande mal”? Os números, naquele mundo do Médio Oriente, tinham um significado misterioso e mágico. Conhecer o “número” de uma realidade significava possuir o seu mistério e, assim, poder usá-lo e também manipulá-lo. Passar da qualidade (o povo) à quantidade (o número) reduz os graus de liberdade, deixa pelo caminho todas as outras dimensões, exceto a contida no número, quase sempre a mais banal, porque a mais simples. Também para o recenseamento: contar as pessoas significa manifestar uma vontade de domínio, um espírito de posse das “coisas” que se contam, para dizer que se é seu dono. Ontem e hoje. No humanismo bíblico, o rei não é o dono do seu povo e, por isso, aquele recenseamento tinha um forte valor teológico; negava a soberania de YHWH sobre o seu povo. Naquele número insinuava-se o pecado de idolatria – nas comunidades ideais e espirituais, contar as próprias pessoas tem sempre um valor teológico, revela vontade de poder, coloca em crise a gratuidade e a castidade dos fundadores e dos chefes.

Como resposta ao arrependimento da David, YHWH envia, através de Gad (um profeta-vivente), uma palavra a David: «Dou-te a escolher entre três coisas; escolhe uma das três e a executarei… Que preferes: sete anos de fome sobre a terra, três meses a fugir diante dos inimigos que te perseguem, ou três dias de peste no teu país» (24, 12-13). David exclui a fuga diante do inimigo e Deus mandou uma peste que matou setenta mil pessoas. David oferece-se a si próprio para salvar o seu rebanho: «Fui eu que pequei, eu é que tenho culpa! Mas estes, que são inocentes, que fizeram? Peço que descarregues a tua mão sobre mim» (24, 17). Como resposta ao seu voto, Gad transmite também a David a resposta de Deus: «Sobe e levanta um altar ao Senhor na eira de jebuseu Arauna» (24, 18). Aquela eira, aquele lugar de debulha, de treino e de morte dos animais, torna-se, agora, o altar de David-sacerdote e, mais tarde, o lugar em que Salomão construiu o seu templo – no meu dialeto, eira diz-se ara, a palavra latina para dizer altar (talvez pelo próprio cruzamento de morte e de vida). Arauna declara-se pronto para dar, gratuitamente, ao seu rei, os bois para o holocausto e a lenha para o fogo. Mas David responde-lhe: «“Não será assim, mas pagar-te-ei o seu justo valor. Não oferecerei holocaustos ao Senhor, meu Deus, que não me tenham custado nada”. E David comprou a eira e os bois por cinquenta siclos de prata» (24, 24). Um diálogo que nos recorda, de perto, Abraão e o seu contrato com os Hititas, para a compra do túmulo de Sara (Génesis 23); e nos recorda também o nome de Urias, o hitita. Para aquele túmulo, Abraão pagou 400 ciclos de prata; agora, o preço é 50. O autor (mais tardio e mais ideológico) do Primeiro Livro das Crónicas (21, 25), não se contentará com este pequeno valor, multiplicá-lo-á por doze e a prata tornar-se-á ouro («600 ciclos de ouro»). E também é muito bela aquela modesta cifra referida pelo escritor antigo, talvez a dizer-nos que nenhum templo vale uma mulher e que a terra para o templo que contem a Arca da Aliança vale um oitavo da terra que contem uma esposa.

Neste último episódio volta também o grande tema da fé económica. Os sacrifícios a Deus não valem se não custam, se são grátis. A visão religiosa que considera a gratuidade uma moeda má, que crê que Deus não aprecie os dons que não custam nada. Uma ideia radicada muito profundamente também nas nossas relações sociais (que nos leva, por exemplo, a desprezar ofertas que sabemos serem recicladas) e que os homens também quiseram estender à relação com a divindade, prendendo, assim, também Deus na nossa lógica comercial – quando o libertaremos? Mas este último capítulo diz-nos, mais uma vez, que a Bíblia amou David pela sua capacidade de se arrepender e de recomeçar, depois de ter falhado. David não foi belo e amado pela sua vida moral, mas pela sua misteriosa candura, quase infantil. Por aquela primeira candura do pastorinho que o pecado do homem adulto não foi capaz de apagar, que permaneceu maior que a culpa. Para, assim, nos poder dar a mensagem mais importante da história de David: aquela misteriosa candura, e aquela inocência infantil, resistem, tenazes, e agem em ada um de nós. Também nós somos maiores que a nossa culpa – e temos de o recordar, sobretudo nos tempos das grandes culpas, nossas e dos outros.

David entrou na Bíblia como um rapaz e, em certo sentido, aquele rapaz nunca saiu de cena. Soube dialogar com as mulheres, escutou a voz dos profetas e do Espírito, sentiu um respeito para com o seu “pai” Saul, cantou, compôs hinos e poesias, chorou. David, o rei e o pai maior, foi tão grande porque nunca deixou de ser filho. Talvez por isso, foi muito amado e continua a sê-lo. A eira-ara de Arauna, na tradição bíblica, encontrava-se no Monte Moriá, onde um anjo de Deus salvou um outro filho inocente. Porque, Deus e nós, amamos muitas coisas mas, sobretudo, amamos os filhos.


E, também desta vez, graças a Deus, chegámos ao fim. Domingo, 2 de Setembro recomeçaremos com uma nova série sobre as Organizações Movidas por um Ideal e sobre pessoas que as geraram e ali trabalham. Como sempre, de modo diferente, obrigado a quem procurou seguir-me nestas trinta e uma semanas. Obrigado ao Diretor, Marco Tarquino, o primeiro leitor de cada linha minha e que permite que o diálogo entre um economista e a Bíblia continue e, porventura, amadureça. Obrigado a quem me escreveu, encorajou, criticou, com palavras por vezes estupendas. Foi um comentário longo e riquíssimo de encontros. E. como sucede em cada leitura bíblica, as pessoas que se encontram ao longo do caminho não desaparecem quando se passa para além delas. Permanecem vivas, falam, introduzem e apresentam os encontros seguintes e colocam-se a caminhar connosco, até ao último encontro. E, assim, ao termo do caminho, encontramo-nos numa área povoada por todas as mulheres e todos os homens que conhecemos. Também está aqui a beleza da grande literatura e, de modo especial, da Bíblia. Nesta eira de Arauna estavam, invisíveis, Ana, Samuel, Eli e os seus filhos, Saul, Jónatas, Betsabé, Rispa, a bruxa de Endor, as duas mulheres sensatas, Joab, Absalão, Amon. Estavam Tamar e Urias, juntamente a tantas outras vítimas, de quem a Bíblia conserva, para nós, as lápides. E dá-nos as suas palavras para rezar, quando esgotámos as nossas; ou quando, como nestes dias, em Génova, a demasiada dor nos tira palavras e folego.

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