Maiores que a culpa / 23 – A história humana não é um brinquedo de Deus
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/06/2018
«Não fazemos mais que ensinar obras de sangue, as quais, logo que ensinadas, acabam por punir o mestre. Esta justiça da mão imparcial coloca nos nossos próprios lábios a mistura do nosso cálice envenenado».
William Shakespeare, Macbeth
Não basta não ser vistos para sermos inocentes. As grandes civilizações antigas produziram as suas leis e normas éticas sob o olhar de olhos mais altos que eles. Nós, hoje, enfeitiçados pela ética do encontro, renunciámos a este olhar “do alto”, substituindo-o por milhões de olhos que nos controlam e espiam, continuamente, a partir “de baixo”. Mas, quando introduzimos, no nosso mundo, olhos não-humanos mais baixos que os nossos, ou são os olhos dos ídolos ou os dos nossos artefactos, que não nos sabem fazer ver os anjos e o paraíso. Este olhar mais alto e diferente dizia, entre outras coisas, que o mal e os pecados que fazemos, agem também quando permanecem secretos.
Foi assim que algumas civilizações – e, entre elas, a ocidental – superaram a arcaica ética da vergonha, onde prémios e punições eram externas ao indivíduo. Este olhar, alto e profundo, permeia também toda a Bíblia, enche-lhe a paisagem e marca o horizonte do seu humanismo. Também nos diz que as nossas ações podem ficar escondidas, mas não podem ser apagadas, porque a vida é uma coisa tremendamente séria. Sem sentir a presença de um olhar que nos vê “no segredo”, qualquer moral é imperfeita e exposta aos abusos dos poderosos, que têm muitos mais quartos secretos que os pobres.
Urias, o hitita, foi morto no campo de batalha, porque o rei David esperava poder apagar o seu adultério, eliminando o marido da mulher formosa que tinha “tomado”, juntando-a à comunidade das suas mulheres e concubinas. «Ao saber da morte de seu marido, a mulher de Urias chorou-o. Terminados os dias de luto, David mandou-a buscar e recolheu-a em sua casa» (2 Samuel 11, 26-27). O texto de Samuel não nos diz se Betsabé, mulher de Urias, sabia do plano de David nem se, ao menos, o tinha pressentido – os planos perversos dos seus homens não escapam ao talento das mulheres, mesmo que o não digam. Talvez pela própria dor. Na terra, há um repertório invisível que guarda os infinitos delitos que nunca chegam aos livros de história nem às atas dos tribunais. Fragmentos vivos deste arquivo invisível, mas realíssimo, encontram-se escondidos no coração de muitas mulheres que foram objeto ou espetadoras destes delitos secretos. Quando o delito de David já parecia arquivado e esquecido, YHWH reabre, para nós, a causa: «O Senhor enviou então Natan a David» (12, 1). Com as palavras de Natan, travamos conhecimento com um género literário – a parábola – que será uma nota dominante e belíssima dos evangelhos. «Logo que entrou no palácio, Natan disse-lhe: “Dois homens viviam na mesma cidade, um rico e outro pobre. O rico tinha ovelhas e bois em grande quantidade; o pobre, porém, tinha apenas uma ovelha pequenina, que comprara. Criara-a, e ela crescera junto dele e dos seus filhos, comendo do seu pão, bebendo do seu copo e dormindo no seu seio; era para ele como uma filha. Certo dia, chegou um hóspede a casa do homem rico, o qual não quis tocar nas suas ovelhas nem nos seus bois para preparar o banquete e dar de comer ao hóspede que chegara; mas foi apoderar-se da ovelhinha do pobre e preparou-a para o seu hóspede”» (12, 1-4).
Uma parábola espetacular, cheia de humanidade e de emoção, onde a tensão moral do relato revela claramente a vítima e o carrasco, e produz no ouvinte a condenação pelo comportamento malvado do homem rico. Também David entra na parábola, executa perfeitamente o exercício empático que Natan lhe oferece: «David, indignado contra tal homem, disse a Natan: “Pelo Deus vivo! O homem que fez isso merece a morte. Pagará quatro vezes o valor da ovelha”» (12, 5-6). Estamos perante um episódio que nos revela a força extraordinária da narração, sobretudo da grande e profética. A literatura, a arte, a música, os contos de fadas, os filmes têm a capacidade de formar e exercitar os nossos músculos morais através da imaginação e da empatia. Quando, verdadeiramente, lemos um romance, entramos num cinema, repetimos, de algum modo, o encontro entre Natan e David. Também nós, como David, continuamos a cometer delitos e pecados e, depois, num livro ou num filme, condenamos os carrascos das histórias que revivemos. Alinhamos pelo lado da vítima, condenamos os seus assassinos, não nos identificamos com a parte amaldiçoada da história. Talvez porque, em nós, há um lugar profundo que não ama nem aceita as coisas más que fazemos. Queremos esquecê-las e, talvez, durante a duração de um romance ou de um filme, consegue esquecê-las verdadeiramente – talvez a arte seja um dom do céu para nos fazer entrar em sintonia com a alma mais bonita do nosso coração, pôr-nos em contacto com a “imagem e semelhança de Eloim” que Caim, o fratricida, não consegue apagar. Talvez a alegria de paraíso, que conseguimos experimentar apenas diante de certas obras de arte, nasça do contacto com o Adão que habita no nosso éden, que se alimenta da árvore de vida. Depois, comemos o fruto proibido, matamos Abel e um rapaz por causa de uma pisadela” (Lamec), mas o chamamento do Adão interior permanece vivo e forte, antes e depois das nossas maldades que, quase sempre, são inocentes. É apenas a perceção desta inocência profunda que nos faz comover verdadeiramente quando vemos um filme sobre a dor dos imigrantes e das suas crianças, mesmo se, antes do filme, tenhamos votado num partido que alimenta aqueles sofrimentos. E, depois do filme, continuamos a votar nele. Que nos faz indignar perante os adultérios dos outros, enquanto continuamos a repetir os nossos.
O diálogo entre Natan e David não termina aqui. No fim da parábola e depois da frase de indignação de David, Natan disse uma das frases mais bonitas e tremendas de toda a Bíblia: «Esse homem és tu!» (12, 7). E, aqui, temos de parar, para não perder toda esta beleza dilacerante. E, depois, sentir na nossa carne a dor por não haver, à saída dos nossos filmes, um profeta que nos diga “aquele homem és tu” e, ao dizê-lo, nos oferecer uma possibilidade de ressurgir. Só um profeta verdadeiro pode dizer a um poderoso uma frase semelhante. Natan sabia bem que, revelar ao rei estar ao corrente do seu delito, podia levar à sua eliminação. Mas não renunciou a desempenhar a sua missão e assim, deu a David a única possibilidade boa que lhe restava: «Pequei contra o Senhor» (12, 13). A salvação de David, na Bíblia, depende também da sua reação frente à parábola de Natan. Podemos esperar não perder a nossa alma enquanto, depois dos nossos delitos e pecados, reencontrarmos ainda um coração maior que as nossas culpas – as prisões estão cheias de assassinos que salvaram esta inocência. A esperança morre quando adaptamos os nossos sentimentos às nossas ações malvadas, quando nos convencemos que não há nada de mal nos adultérios, nas mentiras, na violência. Depois, Natan continua: «O Senhor perdoou o teu pecado. Não morrerás» (12, 13). O perdão atua em David (não morrerá). Mas nem o perdão de Deus pode evitar que a ação delituosa de David produza os seus efeitos: «jamais se afastará a espada da tua casa… E morrerá certamente o filho que te nasceu» (12, 10.14)
Este anúncio tremendo da morte da criança nascida do adultério incorpora muitas mensagens. Entre estas, há também a teologia retributiva, muito presente no Antigo e no Novo Testamento, que lê aquela morte inocente como o “preço” que David deve pagar a Deus para obter o seu perdão. Não deixemos estas mensagens aos devotos das teologias comerciais, de ontem e de hoje, e trabalhemos para encontrar significados mais à altura dos homens, das crianças e de Deus. Nem todas as páginas da Bíblia podem ser inscritas no livro da vida, mas muitas poderão ser, se as lermos sem a preocupação moralista de defender Deus (que não tem necessidade da nossa defesa) e, pelo contrário, procuramos defender os homens e as vítimas – a Bíblia tem uma necessidade extrema de leitores não rufias, capazes de a libertar da ideologia do seu redator e das muitas outras que, durante milénios, se acumularam no texto. A palavra bíblica é excedente em relação ao texto literário que a contém e, para permanecer viva, tem necessidade do nosso trabalho honesto. Porque, se é verdade que nós temos necessidade do olhar de Deus, também a sua palavra tem necessidade do nosso.
Com aquela morte inocente e com a profecia da espada sobre a casa de David, a Bíblia também nos mostra a tremenda seriedade e o valor infinito das nossas ações e das nossas palavras, que não são vanitas e vento, porque estão vivas e, por isso, conservam os sinais com que as gravamos. Há também a dor infinita da condenação à morte deste menino anónimo dentro da dignidade e verdade das ações humanas que a Bíblia guardou para nós, e fê-lo com um preço altíssimo. Se o perdão de Deus a David tivesse apagado todas as consequências do seu delito, o humanismo bíblico teria perdido um grau de liberdade e ter-se-ia afastado da nossa vida verdadeira, onde as feridas de ontem continuam a condicionar a vida de hoje e de amanhã. A palavra bíblica, um dia, torna-se carne num rebento do próprio tronco de David porque, diversa mas verdadeiramente, já se tinha tornado carne muitas outras vezes, dentro das dores e dos amores do povo de Israel – e continua a tornar-se carne nas nossas dores e nos nossos amores. Um dia, crescendo, poderei perdoar, se conseguir, a quem matou o meu pai, mas este perdão não apaga a dor e as consequências de ter crescido sem o pai, nem poderá preencher o vazio no coração da minha mãe, que é infinito. Posso perdoar-te, e faço-o de verdade, porque traíste o pacto que nos ligava em sociedade, mas ninguém pode apagar a dor provocada aos trabalhadores que perderam o trabalho por causa da tua traição. Ninguém – nem Deus, diz-nos a Bíblia. Porque se Deus exercesse a sua omnipotência para apagar não só a nossa culpa, mas também os efeitos das nossas ações, nunca sairíamos dos filmes e dos romances, e confundi-los-íamos com a vida. A história não é um brinquedo de Deus, não é um dispositivo que pode desmontar e voltar a montar a seu prazer. Estas operações sabem-nas fazer apenas os ídolos, porque a eles não interessa a nossa liberdade e dignidade. O corpo ressuscitado conserva as chagas da paixão e conserva-as para sempre, porque aquelas chagas eram verdadeiras. Verdadeiras e vivas como as nossas, que permanecem inscritas, para sempre, nas nossas ressurreições.
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