O exílio e a promessa / 9 – A responsabilidade moral e espiritual de cada ação é sempre pessoal
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 06/01/2019
«Como o instinto do mal procura seduzir o homem ao pecado, também procura seduzi-lo a tornar-se demasiado justo»
Martin Buber, Storie e leggende chassidiche
O discurso civil é rico e bom quando conseguimos dizer “tu” a muitas pessoas, que aumentam e se tornam mais verdadeiras com o decorrer dos anos. Todavia, esta boa lei universal conhece poucas e determinantes exceções, onde é preciso que o “tu” seja um só. Os casamentos, por exemplo, têm inscrito na sua natureza a dimensão da unicidade. Algumas, pouquíssimas mas essenciais, palavras do “coração” só se podem dizer à própria esposa porque, se as dizemos a mais mulheres, esvaziam-se da sua beleza e verdade. Quando a Bíblia nos diz que a relação com Deus é vivida como Aliança e pacto, está a dizer-nos algo de muito parecido: se, no meu coração, digo as mesmas palavras a mais que uma divindade, não estou a dizer nada de verdadeiro a nenhuma delas. O Deus bíblico só sabe falar coração-a-coração, só conhece o discurso a dois; connosco apenas procura o dia-logo. A luta anti-idolátrica dos profetas é, portanto, a tentativa de salvar os homens e as mulheres, a possibilidade de poder tratar, verdadeiramente, a Deus por tu, sem nos enganar e sem enganar.
«Alguns anciãos de Israel aproximaram-se de mim... E a palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: “Filho de homem, estas gentes puseram os seus ídolos no seu coração... Devo Eu deixar-me consultar por eles?”» (Ezequiel 14, 1-3). Os chefes da comunidade do povo de Israel exilado em Babilónia vão ter com Ezequiel e pedem-lhe para interrogar IHWH. Eis a sua reposta: «Convertei-vos, afastai-vos dos vossos ídolos e afastai-vos de todas as vossas abominações» (14, 6). IHWH não responde ao seu pedido e convida-os a abandonar os ídolos. Regressa um tema central da profecia, a idolatria, que nos é apresentada como uma questão de “coração”: o povo e os seus chefes tinham hospedado na alma deuses diferentes do único Deus; tinham-se corrompido intimamente. Esta forma de idolatria, no exílio, é diferente da que Ezequiel tinha observado quando fora levado, “em visão”, ao templo de Jerusalém, habitado por outras divindades, colocadas ao lado de YHWH. Esta, em Babilónia, não é uma idolatria pública, também porque os exilados não tinham o templo. A pouca vida religiosa pública dos deportados continuava a celebrar YHWH como Deus. Era no privado que tinha chegado a corrupção, nas casas onde as famílias introduziam amuletos e imagens babilónicas a que rezavam e adoravam no segredo. Por isso, enquanto no exterior se continuava a rezar ao Deus da aliança, no coração tinham-se introduzido ídolos a que rezavam e adoravam como outros “tu”. Por isso, Ezequiel não pode deixar de dar o único responso possível: convertei-vos e voltai, “virai”, mudai radicalmente de direção, o nosso Deus é verdadeiro e diferente porque não fala, não pode falar num ambiente habitado pelos vossos ídolos.
O profeta conhece, vê, também esta corrupção íntima e secreta, e é esta uma das suas funções mais preciosas. Não as vê porque é um adivinho ou um mago, mas porque, por vocação, tem uma inteligência diferente: sabe ver dentro. Talvez a veja nos olhos dos seus interlocutores, porque os olhos são o espelho da alma e, portanto, de toda a corrupção interior. E como em qualquer traição do corpo e do coração, são os olhos os primeiros a embaciarem-se, perdem brilho, não mantêm o olhar a não ser por poucos segundos, desaparecem deles a luz especial da infância que acompanha durante toda a vida os olhos bons, a que guarda uma pureza diferente que, se a conservamos, será o primeiro dote com que chegaremos ao céu. O seu discurso continua e faz-nos conhecer uma outra forma de falsa profecia: «Se o profeta se deixa seduzir e profere alguma palavra, quererá dizer com isso que fui Eu quem o seduziu; estenderei a minha mão sobre ele e exterminá-lo-ei do meu povo de Israel» (14, 9). Entre os muitos falsos profetas no exílio, havia também os que continuavam a desempenhar a sua profissão no meio do povo corrompido na fé. Sendo vendedores de vanitas, não tinham nenhum diálogo verdadeiro a conservar e, por isso, ofereciam profecias falsas a qualquer requisitante. Por isso, eram muito estimados pelo povo, satisfaziam as suas necessidades religiosas, mas, na realidade, traiam-no e enganavam-no, e tornavam (e tornam) a vida ainda mais dura aos profetas honestos.
Este tratado sobre a idolatria conclui-se (por agora) e, imediatamente, com uma reviravolta narrativa, encontramo-nos dentro dum horizonte diferente, em que Ezequiel nos revela coisas novas e muito importantes: «Foi-me dirigida a palavra do Senhor nestes termos: “Filho de homem, se um país pecasse contra mim por revolta e Eu estendesse a minha mão contra ele… se estivessem neste país estes três homens - Noé, Daniel e Job - estes homens salvariam a sua vida graças à sua justiça”» (14, 12-14). Aqui, o grande tema é o da responsabilidade individual das ações e a transmissão das culpas (e dos méritos) de pais para filhos («porém, se estivessem lá Noé, Daniel e Job, … eles não salvariam seus filhos e filhas, e apenas salvariam as suas vidas»: 14, 20). Ezequiel, para dar força ao seu discurso e o universalizar, refere três figuras lendárias e não hebraicas, conhecidas pela sua grande justiça – impressiona a cultura de Ezequiel, que abarca as civilizações afastadas e antigas e, nisto, é o maior que os outros profetas bíblicos. Noé, Job e Daniel eram personagens míticos do Médio Oriente que, depois, a Bíblia retomará e transformará em obras-primas espirituais e literárias. Ezequiel diz-nos que nem sequer estes campeões éticos absolutos conseguiriam, com a sua proverbial justiça, salvar os seus filhos. Porquê?
A relação entre as culpas e a justiça dos pais e as dos filhos é um tema que, em formas não totalmente coerentes entre si, acompanha toda a Bíblia. A vida é uma corda (fides) que serpenteia entre as gerações e, de cada uma delas, sai marcada e ensinada (in-segnata, no original). Nós sabemos que, mais que qualquer teoria religiosa ou científica, é um dado da vida que as culpas e os méritos dos pais e das mães se transmitem aos filhos. As suas virtudes, a sua inteligência, a sua economia e a sua cultura, as suas escolhas éticas, os seus erros e os seus pecados condicionam muito, por vezes determinantemente, a nossa vida, no bem, e no mal. Mas nós – e Ezequiel – também sabemos que somos maiores que o destino inscrito nos nossos genes e no nosso passado. Um dos caracteres que tornam o Adão “um pouco inferior aos Elohim” (Salmo 8) é a nossa capacidade de nos tornarmos diferentes de como deveríamos ser pela família de que provimos, pelas bênçãos e pelas feridas da nossa infância e juventude. Somos muito mais que acaso e necessidade, embora neste “muito mais” se esconda a possibilidade de piorar o nosso destino (porque uma vida pior è sempre preferível a uma vida determinada pelo nosso passado, porque o valor da liberdade é infinito).
Então Ezequiel e nós sabemos que existem virtudes e culpas que não se transmitem por linha familiar e, em muitos casos, é bom que seja assim. Nós sabemos, mas não foi sempre assim, e não era assim em Israel, no tempo de Ezequiel (que, não por acaso, retomará este tema no capítulo 18). De facto, as civilizações quiseram deduzir as virtudes e, sobretudo, as culpas dos pais das ações dos filhos - «que família teve este jovem para fazer isto?!». E, assim, durante milénios, as responsabilidades individuais tornaram-se coletivas, o estigma privado transformou-se em familiar e público e atacou muitos inocentes, pais e filhos. Neste capítulo do seu livro, Ezequiel está agora a dizer-nos algo de novo e de extremamente significativo: a responsabilidade moral e espiritual das ações é pessoal. Uma tese teológica e antropológica que tem enormes consequências, simultaneamente esplêndidas e tremendas. Um filho mau não pode ser resgatado por um pai bom, que pode permanecer – e, geralmente, permanece – justo apesar do seu filho se tornar injusto. Esta é uma lei moral que deriva da seriedade e da verdade da história e da nossa dignidade e liberdade. Há méritos e bondade dos nossos filhos que não podemos nem devemos atribuir aos nossos cromossomas e à nossa hereditariedade, como existem degenerações e pecados que não devemos ver como nossa responsabilidade e culpa. Vemo-los crescer, mudar e, por vezes, tornarem-se piores do que podiam e deviam ser. Fazemos de tudo para os redimir e salvar mas, um dia, chegam a um patamar que não conseguimos ultrapassar, que não devemos ultrapassar.
É o limiar que delimita e guarda a sua responsabilidade pessoal que, de certo modo, os protege das nossas heranças estragadas, os liberta também do destino e os pode tornar melhores que nós, os defende também do nosso desejo santo de os salvar dos abismos que nós já vemos abrir-se debaixo dos seus pés. A sua necessária liberdade que os salva dos nossos pecados é a mesma liberdade que não lhes permite de se agarrar às nossas virtudes. Este é um dos grandes mistérios da paternidade, talvez o maior: a alegria que experimentamos quando vemos os nossos filhos e filhas tornarem-se mais bonitos e melhores que nós é verdadeira porque também é verdadeira a nossa dor quando assistimos, impotentes, à sua deterioração. A maturidade espiritual da vida adulta depende muito da aprendizagem da arte de assistir, impotentes, aos calvários dos nossos filhos sem desesperarmos nem mergulhar num sentimento de culpa. Por vezes, conseguimos descravá-los do madeiro ou a cravar-nos nós em vez deles. Fazemo-lo muitas vezes. Mas não o podemos fazer sempre porque, nesta nossa impotência e dependência, estamos a gerar neles a possibilidade de se tornarem pais e mães de filhos e filhas que, talvez, se tornem melhores que eles, melhores que nós.
Dedicado a Marco, regressado à Casa do Pai e que soube conservar a pureza dos olhos bons.
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