À escuta da vida / 16 – Endireitar costas, libertar escravos, conduzir máquinas
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 09/10/2016
“A inspiração. Não é fácil explicar a alguém algo que nós próprios não compreendemos. Também eu, por vezes, perante esta pergunta, fujo à substância do assunto. Mas respondo assim: a inspiração não é um privilégio exclusivo dos poetas e dos artistas em geral. Há, houve e sempre haverá um grupo de indivíduos visitados pela inspiração”.
Wislawa Szymborska, Nobel da literatura, 1996
A ilusão de a salvação vir dos poderosos, dos faraós, dos impérios, foi sempre uma tentação radical e fortíssima dos povos, das comunidades, de cada um de nós. Quando a angústia cresce e o desencorajamento nos faz a corte, quando o desespero que está a chegar projeta a sua sombra cada vez maior nos nossos dias e começamos a preferir a noite para não ver aquela sombra ameaçadora, chega, pontualmente, a tentação, com insistência crescente, de procurar um poderoso a quem mendigar a nossa salvação.
E, infalivelmente, chega também a desilusão, que já estava presente quando invocávamos, desesperados, aquela última ajuda, mas preferíamos iludir-nos para continuar a viver ainda um pouco. Como os nossos amigos, dispostos a esvaziar a conta bancária para se iludir que o mais recente tratamento experimental extra-protocolar os poderá salvar. Felizes os que, pelo menos, têm um amigo que os salva destas ilusões e lhes dá a própria fraternidade como último viático verdadeiro. Os profetas são estes amigos que nos podem salvar destas grandes ilusões, e que não são escutados, porque os chefes, o povo, nós, continuamos a preferir as ilusões à verdade: “Ai dos que descem ao Egipto a pedir socorro, e põem a sua confiança na cavalaria! Confiam nos carros porque são muitos, e nos cavaleiros porque são fortes. Não olham para o Santo de Israel, nem consultam o Senhor” (Isaías 31, 1).
O primeiro dom que tem quem acredita na promessa bíblica é a proteção da ilusão de confiar nos impérios para a própria salvação. Aprender a dizer “tu não és Deus” aos grandes da terra, aos poderosos das nossas comunidades e empresas, é o grande ensinamento dos profetas, de quem temos extrema necessidade, também no nosso tempo, onde a expulsão de Deus produziu a invasão de “pretendentes” que concorrem entre si para ocupar o seu lugar. Todas as eliminações de Deus geraram sempre uma multidão de falsos deuses, que estão ansiosos por decretar a sua morte, apenas com o objetivo de o substituírem. Preferem um paraísito artificial e acanhado ao verdadeiro, para poderem parecer um pouquinho como aquele Deus que tanto diziam odiar. Não compreendemos o significado da desobediência do Génesis (cap. 3), se não levarmos a sério aquele ‘vós sereis como Deus’. Os profetas são a anti serpente, porque não nos enganam, prometendo-nos a divindade, e dão-nos o antídoto do veneno da falsa promessa – a serpente é também a imagem de toda a falsa profecia. O princípio profético é também o princípio mariano, e vice-versa. Embora quase todos os profetas bíblicos sejam homens, existe uma profunda sintonia carismática entre profecia e o génio feminino: a sua palavra gera vida e anuncia o advento de crianças, chora, consola. Quando, nas comunidades, falta a dimensão profética, desparece a dimensão feminina, a hierarquia torna-se pura gestão de poder, a lei come o espírito.
Ainda não sublinhámos suficientemente a importância do espirito (ruah) na vocação e missão dos profetas. À ‘diferença’ entre psique e inspiração, entre o eu e o seu excedente, muitas culturas chamaram espírito; algumas atribuíram-lhe uma origem divina. O cristianismo, no auge da revelação bíblica, fez uma experiência muito concreta de chamar-lhe Pessoa.
Os profetas são especialistas e mestres da ação do espírito no mundo. Conhecem-no, sabem que atua todos os dias no universo. Sentem-no operante e vivificante dentro de si próprios, doce hóspede da alma. É o espírito a voz que os inspira, os guia, os chama, os encoraja e os consola. Por vezes, pode haver dúvidas se YWHW está a agir no mundo, se está desperto e não tenha ‘adormecido’, se se tenha irritado e afastado da terra; mas, enquanto houver profetas, não podem negar ser habitados pelo espírito, que não coincide com a sua inteligência, com a sua criatividade, que não é uma produção sua. É um fogo que arde e a lenha não é sua. É uma presença totalmente íntima, mas totalmente distinta da sua alma. Reconhecem-na, escutam-na, obedecem-lhe, enquanto permanecem profetas.
Há profetas que perderam a fé durante anos, décadas, mas nenhum profeta pode perder esta relação com o espírito que habita neles, porque é parte da sua natureza e da sua vocação. Talvez possam esquecer o seu nome e, nas noites da alma, pedir-lhe que pare de falar dentro deles, mas nunca podem duvidar desta existência. Podem tornar-se cegos de Deus, não O ver durante muito tempo, mas não podem tornar-se surdos ao espírito. É o espírito que salva a fé do profeta. O primeiro encontro com a voz audível, com o tempo, torna-se afastado, distante, tende a evaporar-se. O espírito, pelo contrário, cresce e alimenta-o. Quando um profeta recebe a vocação, é associado a YWHW, passa a fazer parte dele. Já não o vê à sua frente, porque ele está a seu lado, junto dele, dentro. Não compreendemos a profecia se não entramos dentro deste grande mistério, de quem nos fala em nome de uma voz que não vê mas que o guia a partir de dentro. Os profetas bíblicos sabem, ou esperam, que quem lhes fala na alma é o espírito de YWHW, mas o mundo sempre foi povoado por outros profetas verdadeiros que davam outros nomes àquela voz e que, frequentemente, não sabiam nem sabem serem amigos de Isaías. Estão conscientes que há uma voz que habita neles, e, se são honestos, sabem que aquilo que fala e chama dentro deles é diferente deles.
Os profetas terminam a sua função (pense-se em Jeremias) quando não sentem já esta presença dentro, quando o espírito os deixa, já não fala e já não os faz falar. Podem durar muito sem recordar o rosto da primeira voz, ma não permanecem profetas, nem sequer durante um segundo, quando a voz interna se apaga. É só assim que termina o seu canto, que sentem que a sua missão terminou, que não eram donos da voz, que tudo era gratuidade.
Os profetas falam pouco do espírito, porque é a sua intimidade, de que são tabernáculo secreto. Mas, quando conseguem dar palavras àquele habitante do seu coração, dão-nos os poemas mais belos: “Uma vez mais virá sobre nós o espírito do alto. Então o deserto se converterá em pomar, e o pomar será como uma floresta. Na terra, agora deserta, habitará o direito, e a justiça no pomar. A paz será obra da justiça, e o fruto da justiça será a tranquilidade e a segurança para sempre” (32, 15-17). Só quando aquele sopro espiritual, que o profeta recebeu dentro de si como dote da sua vocação, se tornar a respiração do povo, quando não houver apenas a voz do coração de poucos, mas descer do alto e encher a terra, então a justiça, a liberdade, a felicidade, a paz serão a condição estável da humanidade e de toda a criação. Um dia ainda muito distante, mas a experiência interior do profeta é garantia do advento daquele dia de bem-aventurança cósmica: “Bem-aventurados vós, que semeais à beira da água, e deixais o boi e o asno em liberdade” (32, 20).
Uma bem-aventurança que incluirá o trabalho humano e a nossa relação com os animais. Isaías, dando voz à alma bíblica mais profunda, está consciente que a subordinação dos animais aos nossos jugos é uma condição imperfeita, devida à natureza da terra, do trabalho e do coração dos homens. Muito raros são os campos fertilizados pela generosidade do lodo do Nilo e dos grandes rios da Babilónia. Em todos os outros, o trigo chega através do suor da testa, do trabalho dos escravos e da subjugação dos animais. Nos campos fora do Éden, o fruto da terra não nasce, geralmente, da amizade operativa e da reciprocidade espontânea entre Adão, o solo e os animais. O jumento que se torna instrumento de produção não é a vocação do onagro que corre livre sobre os montes; o jugo dos bois não pode ser a sua primeira ou única vida: não estão no mundo apenas para o nosso serviço. Têm valor em si mesmos: são uma ‘coisa boa’, chegada à terra antes de nós, para fazer companhia ao seu criador. Nenhuma criatura tem dignidade se apenas é funcional para o homem. E nem as costas curvas e dobradas pelo trabalho nem, muito menos, as dos escravos que libertam dos trabalhos os seus senhores, podem ser o destino da terra. É esta a grande mensagem do Shabbat, que não é um oásis livre num mundo de homens e animais escravos, mas sinal e profecia da nossa vocação mais verdadeira. Isaías sabe-o, diz-no-lo, recorda-no-lo e convida-nos a construir dias que estejam cada vez mais próximos do seu Sábado. Hoje, temos todos os recursos e toda a tecnologia para endireitar as costas dos trabalhadores, para libertar os escravos, para deixar em ‘liberdade bois e jumentos’ mas, pelo contrário, as costas estão cada vez mais curvadas, os escravos aumentam, os animais ainda são explorados ou, erro não menos grave, idolatrados. A tecnologia, em vez de nos libertar das antigas escravidões, arrisca escravizar-nos a máquinas cada vez mais donas da nossa alma, do nosso tempo, das nossas relações, devoradoras do nosso silêncio. E, do coração dos nossos dias, a Bíblia continua a recordar-nos que “no princípio não era assim’, e que, por isso, ‘virá um dia’ em que já não será assim. Os profetas estão seguros disso. Nós podemos, pelo menos, esperá-lo, na espera ativa daquele dia, quando o ‘espírito descer do alto’. E, no tempo que medeia entre o ‘nosso dia’ e ‘aquele dia’, podemos reconhecer a voz do espírito na boca dos profetas.
Isaías tinha começado o seu livro contrapondo a rebelião e a desobediência do povo à docilidade e à mansidão dos bois e dos jumentos (“O boi conhece o seu dono, e o jumento, o estábulo”: 1, 3). Todo o seu livro está povoado de animais, protagonistas dos seus versículos mais belos. Agora, depois do lamento sobre as cidades destruídas, o apocalipse, os cânticos da sentinela e da pedra rejeitada, eis que voltam estes dois animais. Dois animais dóceis, que a tradição cristã quis colocar como companheiros da noite mais bonita da história. Mas não os quis ligar a um jugo, nem colocou uma carga em cima deles. Apresentou-os em repouso, junto de uma manjedoura, os quais, respirando, davam o seu sopro (ruah) quente a um recém-nascido e à sua mãe. Naquela gruta, está toda a Bíblia, estava Isaías com a sua promessa de um outro dia, de um outro trabalho, de uma outra relação com a criação, finalmente fraterna. Louvado sejas.
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