A caminho da terra dos filhos

A árvore da vida/8 - Abrão não viu, acreditou, tornou-se justo. E foi Abraão e pai

por Luigino Bruni

pubblicato em Avvenire em 06/04/2014

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Houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos” (Søren Kierkegaard, Temor e tremor ).

Depois de Babel – a cidade fortificada na qual a humanidade, após o dilúvio, tinha procurado uma salvação errada, sem diversidade e fecunda dispersão pela terra – a aliança e a salvação continuam com Abrão, que deixa a casa de seu Pai e se põe a caminho, confiando numa voz que o chama.

 

Fé e confiança, porque toda a fé é confiança numa promessa. Noé tinha-nos salvo construindo uma arca, dentro da qual permaneceu juntamente com a sua família e com os animais, aguardando que as águas se retirassem. Abrão responde ao chamamento da mesma voz, pondo-se a caminho em direção a uma terra prometida: “Deixa a tua terra, os teus parentes e a casa do teu pai, e vai para a terra que eu te vou mostrar” (12,1). No início da sua história não lhe é pedido que construa uma arca ou que liberte o seu povo da escravidão, como acontecerá com Moisés. Para responder, Abrão deve ‘apenas’ acreditar na promessa de uma terra, e pôr-se a caminho para lá chegar; deve deixar a casa de seu pai Tera e dirigir-se para uma terra que lhe é anunciada como lugar de bênção e felicidade; mas que ele não conhece. Com Abrão – o primeiro hebreu da Bíblia – surge então um chamamento à felicidade, à fecundidade, ao florescimento: “Farei de ti um grande povo. Hei de abençoar-te, farei grande o teu nome e tu serás uma bênção. … E através de ti serão abençoados todos os povos do mundo” (12,2). Temos aqui um chamamento à vida, temos uma promessa de futuro: temos portanto o Adam, o Éden, a continuação do arco-íris de Noé. Está com ele uma mulher, Sarai; juntos chegam não à terra segura dos pais, mas sim à terra desconhecida dos filhos. A primeira vocação de Abrão está toda no acreditar incondicionalmente numa promessa e partir. É esta a sua primeira justiça.

Noé era “justo” e pela sua justiça foi-lhe confiada uma tarefa decisiva. De Abrão não se diz que era justo antes da vocação; a sua justiça nasce do ter acreditado na promessa: “acreditou e por isso foi aceite como justo” (15,6). Noé era justo e por isso acreditou; Abrão acreditou e tornou-se justo.

Há pessoas que recebem um chamamento para realizar uma tarefa de salvação, para construir uma arca: constroem-na, salvam muitos e, salvando, salvam-se. Mas há outros a quem aquela mesma voz faz uma promessa de felicidade e plenitude e a sua justiça está toda em continuar a vida inteira a acreditar incondicional e obstinadamente naquela promessa. Estes ‘chamados’ põem-se a caminho em direção a uma terra, não para salvar alguém ou alguma coisa, mas porque naquela promessa veem, ou conseguem entrever, bênção, felicidade, frutos, ‘filhos’ numerosos como as estrelas do céu. Nestas vocações as arcas a construir chegam depois (e se a vocação for autêntica chegam sempre), mas no acreditar e no partir não existe altruísmo nem sacrifício; não há dons a fazer, há apenas dons a receber. Nestas vocações parte-se com base num duplo ato de confiança: confia-se numa ‘voz’ boa que chama, e acredita-se que o cumprimento daquela promessa é a melhor felicidade.

Em todas as vocações há sempre um ato radical de confiança numa ‘voz’ que chama, mesmo quando não se sabe de quem ela é. A justiça-bondade de Abrão não é primariamente fruto de virtude: é acreditar numa promessa; e continuar a acreditar e a caminhar. Muitas doenças espirituais e, consequentemente, comunitárias surgem quando a bênção e a salvação são transformadas em perfecionismo ético; quando se vive a promessa como uma moral; quando em vez de continuar a caminhar se detém a observar virtudes (próprias) e vícios (dos outros). E perde-se o rumo.

Também no chamamento de Abrão encontramos então uma gramática universal das vocações: não apenas as religiosas, mas também as civis, profissionais, artísticas, empresariais. Abrão chega à terra de Canaã e encontra lá os cananeus: a terra prometida está ocupada por outra gente. Não encontra frutos e abundância, mas sim uma carestia que o faz emigrar para o Egito. Em Canaã fica “como estrangeiro” (17,8); os prometidos filhos – numerosos como as estelas do céu – não aparecem; inexorável, chega – isso sim – a velhice: a sua e a da sua mulher.

A terra prometida pela voz que chama revela-se sempre diferente de como a imaginávamos. Uma vocação não é um contrato (mas um pacto ou uma Aliança) e, por isso, há surpresas, desilusões, provações, desconforto; por vezes há até desespero. Mas também há sempre perdão e a possibilidade de recomeçar. A fadiga boa de quem recebeu uma vocação (e são muitos mais do que se pensa) está em continuar a caminhar quando a terra prometida surge árida e ocupada por outra gente e quando, nessa terra, são raptados familiares e bens (14,12). A justiça de Abrão está na resposta ao primeiro chamamento, mas está sobretudo no continuar a caminhar quando a promessa lhe parecia muito distante e uma ilusão, talvez. E no continuar a acreditar que aquela terra e o ventre ressequido de Sarai podiam ainda gerar, florir de bênçãos. Abrão deparou com uma terra diferente da que no momento do chamamento imaginara, mas foi justo e o maior de todos porque continuou a acreditar que a terra prometida era a que JHWH lhe haveria de mostrar, não outra.

Em qualquer vocação, a justiça está em reconhecer a terra prometida mesmo numa terra árida, em ver futuros filhos num ventre estéril. Sei de muitos empresários justos que partiram atrás de uma voz, que acreditaram numa promessa; e que depois encontraram – e continuam a encontrar – uma terra árida e não veem filhos ou netos. Salvaram-se – e salvaram – aqueles que foram capazes de divisar naquela aridez a primícia da terra prometida; salvaram-se sobretudo os que continuaram a caminhar, a montar a tenda mais adiante, sem inventar outra terra, desiludidos com a não realização da promessa.

Abrão recebeu o primeiro chamamento quando tinha 75 anos (os anos na Bíblia encerram muitos significados, todos eles importantes e em geral positivos), mas foi com 99 anos que se tornou Abraão: “cumpre a minha vontade com retidão. … O teu nome não será Abrão mas sim Abraão, porque vou fazer com que sejas pai de uma imensidão de povos. Vou dar-te uma enorme descendência” (17,1-5). Tinha já existido um chamamento, mas agora acontece algo de novo: Abrão torna-se Abraão e Sarai passa a ser Sara (17,15). Depois de 14 anos o chamamento à felicidade e à terra prometida transforma-se em chamamento a uma Aliança entre JHWH e um povo inteiro, em vista de uma bênção universal (ao ler e estudar estes primeiros capítulos do Génesis fiquei deveras impressionado com as bênçãos, com este olhar bondoso sobre o mundo e os humanos, um olhar que me ama e me alimenta). Esse novo encontro revela o chamamento, renova e qualifica a primeira promessa. Mas sobretudo muda o nome, quer dizer, dá o sentido verdadeiro da primeira vocação. Abrão não tinha sido irrepreensível (basta ler o capítulo 13 sobre Sarai no Egito); Abraão há de tornar-se tal.

Existe então um momento crucial no (bom) desenvolvimento de qualquer (verdadeira) vocação. Começara-se um dia a escutar uma voz de bênção; tinha-se chegado a uma terra desconhecida, combatido bons combates; mas faltava ainda o sentido profundo da promessa. Chega então uma segunda vocação dentro da primeira: morre Abrão e nasce Abraão. Compreende que a terra, os rebanhos e os rios generosos da primeira vocação não eram a promessa verdadeira. E torna-se também ‘irrepreensível’, não como alguém que busca a perfeição ética, pois ser irrepreensível é um dom, uma exigência profunda de verdade ao serviço da promessa. Abrão era pai de família; Abraão torna-se pai de um povo, de muitos povos, de ‘todos os povos do mundo’. Continua-se a caminhar, ainda, mesmo se o caminho é íngreme e a marcha mais parece uma silenciosa procissão com um filho-vítima em direção a um monte-altar, quando o arco-íris desaparece e as incontáveis estrelas se apagam. Salva-se e torna-se justo quem não desistir de caminhar, quem continuar a olhar para a frente, até gastar os olhos de tanto os fixar no horizonte.

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