Comentários - Desafio ao offshore: duro e necessário
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire dia 23/06/2013
O anúncio do G8 de declarar guerra aos ‘paraísos fiscais’ e os protestos dos brasileiros contra a Copa do mundo, são fatos profundamente interligados. O “grande” futebol perdeu contato com o bom jogo. Entre o mercado das multinacionais do esporte e o jogo de futebol no campo tem cada vez menos coisas em comum, do mesmo modo que tem cada vez menos contato ético entre comprar pão no mercado e as dinâmicas dos grandes mercados internacionais de cereais. Não se trata mais – como até há poucas décadas – de diferença de grau; trata-se sim de diferença de natureza, de uma transformação profunda para a qual contribuiu, e não pouco, ao advento do capitalismo financeiro.
É também (e não só) esta transformação de natureza de um futebol objeto de grandes interesses econômicos que leva muitos brasileiros a protestarem nestes dias contra a organização da Copa. Esses brasileiros procuram então dizer algo muito importante ao governo: vamos investir os recursos na educação dos jovens, na saúde, na segurança; na luta contra a desigualdade que é a verdadeira chaga deles, e que a Copa (2014) e as Olimpíadas (2016) certamente não curam.
Não se cria panem (pão) com os circenses, sobretudo quando os circenses (jogos) são, ontem como hoje, instrumentos na mão dos imperadores. E que quando o criam, não é bom pão, porque não chega aos pobres, mas vai alimentar os banquetes dos patrocinadores e dos ricaços construtores de estádios. O futebol não deve ser usado como novo ópio dos pobres e dos jovens, como por vezes aconteceu, no Brasil e não só. São necessários – devemos nos perguntar – novos estádios de futebol no Brasil, quando em muitas das suas regiões faltam ainda bons hospitais, boas escolas e universidades? E a quem serviriam? E eram precisos, e a quem serviram, na África do Sul (hoje em profunda crise econômica, depois de uma breve primavera pré-2010)? O que é que nos trouxe Itália ’90, para além de empreitadas corruptas e distração dos acontecimentos históricos vividos naquele período? Para não falar de Atenas 2004. Mas, em geral, para que servem os estádios a este futebol capitalista quando, enquanto na sua construção se usam dinheiros públicos, os direitos de transmissão dos jogos são confiados às multinacionais da mídia, que tudo fazem para nos venderem o jogo na TV, sozinhos e sentados na poltrona, transformando assim o esporte de bem relacional em mera mercadoria?
Muitas das multinacionais que patrocinam os grandes eventos esportivos brasileiros e de todo o mundo, são utilizadores daqueles paraísos fiscais a quem o último G8 (re)prometeu luta sem quartel. As declarações de guerra aos ‘paraísos’ são um dos rituais dos meetings dos grandes, ou melhor, dos poderosos da terra. A do G20 de Londres de 2 de abril de 2009 foi uma das mais solenes, anunciada como batalha final e decisiva contra as operações offshore. Offshore, isto é, atividades que acontecem ao largo, no alto mar, onde ninguém vê e onde os grandes monstros marinhos “correm e pululam nas águas”, (Gênesis), o reino de Leviatan e de Moby Dick.
Mas oÉden do capitalismo financeiro dos mares inundou também os continentes, até aos Alpes. Na Europa existem muitos estados, principados, repúblicas e ilhas onde as empresas obtêm “incentivos” fiscais não muito diferentes dos oferecidos pelas famosas ilhas Cayman. Os seus habitantes são muitíssimas empresas multinacionais, sociedades financeiras, bancos, que com a mão impura põem a sede legal nos paraísos e, com a mão pura, produzem ‘balanços sociais’ maquilhados, e talvez generosas fundações filantrópicas com 1% daqueles lucros falsificados. No ano passado deixei de comprar um produto alimentar, de que até gostava muito, depois de um congresso em Montecarlo onde descobri que a empresa que o produz tinha lá a sede fiscal. Precisamos de ter a coragem de reconhecer que o nosso capitalismo financeiro tem necessidade vital dos paraísos fiscais. A oferta de taxas paradisíacas é a resposta à forte procura de bancos, fundos, empresas e cidadãos. Uma quota impressionante do comércio internacional, cerca de metade, recorre direta ou indiretamente aos paraísos fiscais. Quase todas as grandes empresas, para não falar dos bancos e fundos de investimento, têm inteiros departamentos dedicados à otimização fiscal (expressão sugestiva) e pagam milhões de euros a consultores tributários para encontrar o melhor produto fiscal nos mercados/mares globais.
A política mundial, ainda que acreditasse naquilo que declara, não tem força para gerir este capitalismo, para domar o Leviathan. Os paraísos fiscais não são então uma anomalia do nosso sistema. Enquanto a cultura do capitalismo financeiro permanecer fundada na maximização dos lucros a brevíssimo prazo, os paraísos fiscais farão parte orgânica do sistema. Se verdadeiramente quiséssemos eliminá-los, precisaríamos fazer coisas muito sérias e radicais, a começar por estilos de vida não consumistas e solidários que precisariam de ser inseridos nos programas de todas as escolas, passando pela regulamentação bancária que, pelo contrário, estão caminhando na direção oposta (ex. Basilea 3), para chegar a algum sinal de reversão no processo de globalização, devolvendo mais poderes aos territórios. Na falta de coisas sérias e, portanto, impopulares, os nossos líderes com as suas declarações continuam a comportar-se como aquele meu amigo que no fim de jantares com toda a espécie de gorduras e doces tomava sempre o café com adoçante porque queria “começar uma dieta”. Os processos sérios de mudança interrogam-se sobre as causas, e daí partem.
Hoje, mesmo se é incômodo dizê-lo, os paraísos fiscais são a outra face, a menos apresentável, dos smartphone, das beauty farm, do turismo exótico e de muitas mercadorias deste capitalismo que tanto nos agradam. Muitas civilizações do passado tiveram os seus paraísos fiscais, aqueles lugares fora de controle civil, onde eram permitidas operações de compensação humana e ética de mil injustiças de todas as idades. Escravos, servos, colônias, guerra. Mas não nos esqueçamos de que cada civilização também lutou para eliminar os grandes monstros que vagueiam nos mares. Quis e sonhou um mundo diferente, e soube esperar: “Naquele dia, o SENHOR ferirá com a sua espada grande, temperada e forte, o monstro Leviatan, serpente sinuosa, o monstro Leviatan, serpente fugidia, e matará esse dragão do mar” (Is. 27,1).
Hoje chamam-se “paraísos”, mas continuam sempre sendo lugares povoados por monstros marinhos não menos desumanos que os das civilizações passadas. Não esqueçamos que entre as vítimas dos habitantes do offshore estão pequenas e médias empresas que não têm ‘santos’ naqueles paraísos, porque não têm nem cultura (graças a Deus), nem dinheiro para aquelas operações, mas que frequentemente se encontram a competir com as empresas paradisíacas. Perdem mercados, fecham, e perdemos trabalho. Levemos então a sério os protestos civis dos brasileiros, e não paremos de nos indignar por este capitalismo que tem necessidade dos habitantes do offshore. E façamos alguma coisa, em todos os níveis, para mudá-lo.
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