As parteiras do Egito/15 - A terra e o tempo são dom. Não deixemos que no-los roubem
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire 16/11/2014
"Numa pequena igreja batista de Montgomery, Alabama, escutei o sermão mais extraordinário que alguma vez ouvi: era sobre o livro do Êxodo e a luta política dos negros do sul. No púlpito o pregador fez a mímica da saída do Egito e expôs as analogias com o presente; dobrou as costas debaixo do chicote, desafiou o Faraó, hesitou, receoso, diante do mar, aceitou a aliança e a lei no sopé da montanha". M. Walzer, Êxodo e revolução
Os humanismos que se revelaram capazes de futuro floresceram graças a relações não predadoras com o tempo e com a terra. A terra e o tempo não somos nós que os produzimos: apenas podemos recebê-los, protegê-los, cuidar deles, gerí-los, como dom e promessa. E quando o não fazemos – porque usamos tempo e terra em vista de lucro – o horizonte futuro de todos fica enevoado e mais curto.
O humanismo bíblico tinha traduzido esta dimensão de radical gratuidade do tempo e da terra com a grande lei do sábado e do jubileu, com a cultura do pousio: “Podes cultivar a tua terra e colher os seus frutos durante seis anos, mas ao sétimo não a deves cultivar: deixa-a descansar para que os pobres do teu país comam dela e para que os animais selvagens comam do que sobrar. …Tudo o que tiveres para fazer podes fazê-lo durante os seis dias da semana, mas no sétimo dia deves descansar, para poderem descansar também o teu boi e o teu jumento e para que o teu escravo e o estrangeiro recuperem as forças” (23,10-12).
Nós não somos donos do mundo. Habitamos nele, que nos ama, nos alimenta e nos deixa viver, mas estamos aqui como hóspedes e peregrinos; somos habitantes e detentores de uma terra que é totalmente nossa e totalmente estranha; nela nos sentimos em casa e de passagem. A terra é sempre terra prometida, meta diante de nós e que jamais alcançamos. E isto vale também para a terra onde moramos, a terra do nosso bairro, a terra aonde cresce o trigo que comemos.
Na base da cultura bíblica do pousio não está apenas uma técnica sábia e sustentável de cultivo da terra. O Êxodo apresenta o pousio associado ao sábado e ao jubileu; é por isso expressão de uma lei mais profunda e mais geral sobre a natureza, o tempo, os animais, as relações sociais; é uma radical profecia de fraternidade humana e cósmica. Podes cultivar a terra durante seis anos, não no sétimo; podes ter ao teu serviço outros homens durante seis dias, não no sétimo. Podes e deves trabalhar, mas não sempre, porque isso era o que acontecia quando éramos escravos no Egito. O animal doméstico trabalha seis dias para ti, mas no sétimo dia não é para ti. O forasteiro não é forasteiro todos os dias; no sétimo dia é gente de casa com e como todos. Uma parte da tua terra e do que é teu não te pertence; deves cedê-la ao animal selvagem, ao estrangeiro, ao pobre. Aquilo que possuis não é tudo e exclusivamente para ti. Pertence também a quem é outro de ti; que não é nunca tão ‘outro’ a ponto de sair do horizonte do ‘nós’. Todos os verdadeiros bens são bens comuns.
Estando assim impresso nas coisas e nas relações humanas um caráter de gratuidade, toda a propriedade é imperfeita, todo o domínio é subordinado, não há estrangeiro que seja mesmo e só estrangeiro, pobre que o seja para sempre. Profeticamente, o cristianismo pôs em crise a ‘letra’ da lei do sábado, mas não o fez para reduzir o sétimo dia aos outros seis. No ‘reino dos céus’, onde os pobres são proclamados felizes e os servos chamados amigos, os primeiros seis dias têm por vocação converter-se à profecia de gratuidade e de fraternidade universal que o sétimo dia contém.
A lei do sétimo dia diz-nos, pois, que o valor dos animais, da terra, da natureza não deriva apenas da sua relação connosco, os humanos; valem também por si mesmos. A terra e o lago devem ser respeitados, deve ser-lhes permitido repousar, livres do nosso império e do instinto de aquisição, não apenas porque os seus frutos se tornam por isso mais sãos e melhores para nós: devem ser respeitados por causa do seu valor intrínseco e da sua dignidade que precisamos de reconhecer e não agredir mesmo quando um terreno não está a ser cultivado ou quando num lago não há peixe para pescar. Porque os campos, os lagos, os bosques são criação e dom, tal como nós, humanos, os animais e o mundo. A lei que inspira o pousio, o sábado e o jubileu é a fraternidade da terra.
A diversidade radical do sétimo dia recorda-nos ainda que as leis dos seis dias, as leis das assimetrias e das desigualdades não são nem as únicas nem as mais verdadeiras; o sétimo dia é o juízo sobre a justiça e sobre a humanidade dos outros seis. O grau de humanidade e de civilização verdadeira de qualquer sociedade concreta mede-se com base na diferença entre o sexto e o sétimo dia. O último dia torna-se assim a perspetiva por onde olhar e julgar a qualidade ética, espiritual e humana dos outros seis. Quando o sétimo dia vem a faltar, o trabalho torna-se escravidão para quem o faz, escravidão e falta de respiração para a terra e para os animais; o forasteiro nunca se torna irmão, o pobre é apenas desperdício e nunca redenção de si e da cidade. Os impérios tentaram sempre eliminar a própria ideia do sétimo dia e a utopia concreta que ela contém, pensando com isso eliminar o juízo sobre as injustiças que no sexto dia praticam - é interessante pensar que quando os sacerdotes hebreus escreviam o livro do Êxodo, pelo menos algumas das suas partes, eram escravos na Babilónia, não tinham sábado. Por isso o amavam e desejavam com grande esperança e promessa de liberdade de todos os ídolos e de todos os impérios e como juízo sobre o tempo que viviam: a profecia de um ‘dia’ diverso sempre renasce no sofrimento e na escravidão e pode renascer também agora.
Enquanto formos capazes de salvar a profecia do sétimo dia manteremos viva a esperança dos humildes e dos oprimidos e de quantos se não conformam com a escravidão e com as humilhações dos seis dias da história; e afirmamos o desejo de que essas injustiças não sejam para sempre.
A lei do sétimo dia interpela todas as dimensões da vida. A cada um de nós convida a não consumir-se e a não possuir-se inteiramente, a deixar algum espaço na alma não ocupado pelos nossos projetos porque nesse espaço poderão desenvolver-se sementes que não pensávamos ter. Sem esta dimensão de gratuidade e de respeito pelo mistério que somos, faltará na nossa vida aquele espaço de liberdade e de generosidade onde reside o húmus espiritual que faz despontar o ‘já’ no ‘ainda-não’. É o lugar íntimo e precioso da nossa mais fecunda capacidade de dar vida. Nessa terra livre, porque não ‘posta a render’ para nós, chegam-nos as grandes surpresas da vida, que a transformam para sempre; é lá que nasce a verdadeira criatividade. É desse pedaço de terra inculta e não explorada do jardim que podemos ver a mais alta linha do horizonte entre o céu e a terra, onde os nossos olhos nostálgicos de infinito se espraiam e conseguem finalmente repousar.
Mas a lógica do pousio – (maggese, em italiano) de maggio (Maio), o mês em que no mundo romano se deixavam repousar os campos – revela coisas importantes também às comunidades e instituições. Uma comunidade sem pousio não tem tempo para a festa, não é acolhedora, apodera-se de pessoas e bens, não conhece a fraternidade e, por isso, não se sente nela o sopro da ‘respiração’ do espírito. Onde ele existe, pelo contrário, os seus indicadores são claros e fortes: as hierarquias e o poder duram apenas seis dias, a gratuidade da festa e a eficiência do trabalho têm a mesma dignidade. Crianças e pobres sentem-se sempre em casa, porque há zonas na casa desocupadas, deixadas livres para eles.
A cultura do pousio não é a cultura do capitalismo que estamos a viver que, pela sua natureza idolátrica, vive de um culto perene e total que tem necessidade de consumidores-trabalhadores sete dias por semana: “Cumpram tudo o que vos ordenei e não invoquem outros deuses” (23,13). É por isso grande indigência da nossa geração, talvez a maior de todas, a morte do sétimo dia que foi removido do nosso código simbólico coletivo. O valor do sétimo dia não é apenas a sétima parte do total: é fermento e sal de todos os outros; sem ele, os outros dias ficam todos e sempre ázimos e insonsos. Apenas o não-jugo do sétimo dia torna sustentáveis, até mesmo ligeiros e suaves, os jugos de todos os outros dias.
Deixámos que nos roubassem o sétimo dia; trocámo-lo pela cultura do fim de semana (no qual os pobres são ainda mais pobres, os animais ainda mais escravizados, os estrangeiros ainda mais estrangeiros). E a noite do sétimo dia está inexoravelmente a escurecer os outros seis dias. A terra deixou de respirar; e o ar falta-nos a nós. Temos o dever de lhe restituir – e restitui-la a nós mesmos – a respiração; temos que voltar a dá-la aos nossos filhos que têm direito a viver num mundo que tenha um dia diverso dos que tem, temos que fazer de novo a experiência do dom do tempo e da terra.
Mas ainda há esperança. A profecia do sétimo dia não está morta; a Bíblia protegeu-a para nós. E com ela protegeu o seu juízo sobre os nossos seis dias que se tornaram sete, todos idênticos; e para nós também, conservou a sua promessa. A palavra é viva, gera e regenera-nos sempre. Doa-nos de novo tempo e terra; alarga os nossos horizontes; faz-nos ouvir e ver céus mais límpidos: “Moisés subiu ao monte com Aarão, Nadab e Abiù, e os setenta anciãos de Israel. Ali viram o Deus de Israel: debaixo dos seus pés havia como que um tapete de safiras, de um azul tão puro como o do céu” (24,9-11).