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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 21/09/2014
“A crueldade das pragas não chegou à da opressão dos egípcios sobre os filhos de Israel, que se prolongou até ao fim da permanência naquela terra. Ainda no próprio dia do Êxodo, Raquel, filha de Sutela, deu à luz um menino enquanto estava a trabalhar com o marido a lama para os tijolos. O bébé escorregou pelo ventre fora e afundou naquela papa. Apareceu então Gabriel que formou um tijolo no qual incluiu o menino e levou-o para o alto dos céus”
Louiz Ginzberg, Le leggende degli ebrei (As lendas dos hebreus)As pragas do Egito são a condição normal dos impérios idolátricos, incluindo aquele em que vivemos nós, claro. São regimes nos quais a água não tira a sede aos seres vivos nem fecunda a terra; apodrece e cria rãs, mosquitos e moscardos… os animais não conseguem viver. O sol não chega a passar através da poeira densa e tudo fica rodeado de trevas.
[fulltext] =>Os impérios dos ídolos não têm descendentes, porque os primogénitos morrem; o ídolo é sedutor, mas estéril. Quando os impérios revelam a sua inevitável natureza idolátrica, quando nenhuma praga basta para converter o faraó, quando a única condição de vida possível no seu território é a escravidão, diz o Êxodo que ainda nem tudo acabou para o pobre: resta ainda uma possibilidade. Mesmo nesta condição tremenda – o que haverá de mais tremendo que a morte de crianças? – existe uma saída de salvação quando se consegue acreditar nos profetas e resistir até ao fim: «Enviarei ainda outra praga contra o faraó e contra o Egito; depois disso, ele não só vos deixará partir daqui, mas até vos mandará embora» (11,1).
No decorrer das dez pragas, para além do papel do SENHOR, deve ser destacado aquele essencial de Moisés e Aarão que sempre pedem ao faraó que se converta, apesar do coração obstinado que ele revela. Segundo uma lógica de fundo da Bíblia, Moisés e Aarão devem ter ficado muito admirados depois de cada uma das pragas. Sabiam que o faraó tinha o coração empedernido, mas não imaginavam até que ponto ia a sua obstinação. Vão descobrindo mais e mais a sua teimosa incapacidade de conversão vendo-a praga após praga: «Assim diz o Senhor, o Deus dos hebreus: “Até quando te recusarás a humilhar-te diante de mim?”» (10,3). E tiveram que assistir e resistir até à morte dos meninos, que bem gostariam de não ter visto. O SENHOR, o seu Deus da vida, era o mesmo que anos antes tinha abençoado as parteiras do Egito, e nelas abençoara todos os meninos dos hebreus, dos egípcios, todos os meninos do mundo. O grito de morte dos primogénitos – que parece anular o choro de vida dos recém-nascidos que Deus e as mulheres tinham salvo da mão de um outro faraó homicida – deve então obrigar-nos a escavar mais, para descobrirmos uma veia mais profunda. No escavar, porém, é preciso não perder completamente o contacto com o terreno da história, com a memória coletiva de fenómenos climáticos extraordinários nos últimos anos que os hebreus passaram no Egito; ou, talvez, uma peste que atingira o país e as crianças (é sempre a nossa leitura que transforma os factos em sinais). A memória histórica do sofrimento provocado pelas dez pragas permaneceu sempre viva na tradição bíblica (na noite de pèsach, a páscoa, nas casas hebraicas derramam-se do cálice dez gotas de vinho: a não-plenitude do cálice é o lugar vivo da memória, e torna triste a festa).
Estes capítulos do Êxodo – difíceis, tremendos e estupendos – devem ser lidos também como grande lição sobre a idolatria; é esta a corrente mais profunda de que estamos à procura. A Bíblia não tem piedade alguma por este faraó porque para salvar -se a si mesma e salvar-nos tem que opôr-se ferozmente aos ídolos. A primeira verdade do SENHOR é não ser um dos muitos ídolos dos homens. Israel sempre lutou contra os ídolos à sua volta e dentro de si, incluindo os que tinha visto no Egito e que o tinham fascinado. Ao colocar no início do Génesis um Deus criador e um homem criado à sua imagem, a Bíblia quis fazer uma escolha radical e fundamental. Rasgou um sulco profundíssimo e intransponível entre ela e a cultura idolátrica na qual, pelo contrário, é deus criado à imagem de um homem desprovido de transcendência. O ídolo é o anti-SENHOR, mas é também o anti-Adam, porque uma cultura idolátrica nega antes de mais o homem que acaba por ser escravo e passa a vida toda a produzir tijolos para o ídolo que ele mesmo criou. Para acreditar no ídolo não é precisa a fé; a sua presença é banalmente evidente nas praças e mercados; está à vista de toda a gente. A fé bíblica, pelo contrário, é confiança numa voz que não se vê, mas se “sente”. É então que o imperador-ídolo é atingido pelas pragas e a grande libertação é sobretudo sair da idolatria. Os filhos que irão morrer são os filhos dos ídolos e seus impérios que seguiram o desenrolar da nossa história e da história da salvação.
Vivemos hoje uma grande época idolátrica, provavelmente a maior de sempre. O transcendente foi reduzido a produto manufaturado, o “céu” foi preenchido com coisas que nunca nos saciam, porque foram produzidas não para apagar, mas para fazer crescer a nossa fome de ídolos esfomeados; os ídolos precisam sempre de comer; acabam por devorar os seus adoradores e nunca ficam saciados. O sistema histórico mais próximo da cultura idolátrica pura é o capitalismo financeiro-consumista que criámos. Basta frequentar os seus espaços, falar com os seus grandes atores, assistir às suas liturgias, para chegar a essa conclusão com extrema clareza. É um sistema que conhece e alimenta apenas e só o culto de si mesmo, que vê e reconhece um único fim: maximizar a produção de tijolos para erguer as próprias pirâmides-babel cada vez mais altas. Os impérios idolátricos puros não duram muito tempo: passará depressa também a cena deste capitalismo devorador. Mas as pragas de hoje não terminaram ainda e com elas continua a ouvir-se forte o grito dos povos oprimidos.
Não é de admirar, então, que as duas primeiras palavras da Lei que Moisés receberá no Sinai são a fé num Deus libertador do Egito e a radical negação dos ídolos. Um deus que não nos liberta é um ídolo (também no âmbito das religiões) e o Deus bíblico não é ídolo porque é libertador, porque liberta o povo oprimido que grita nos campos de trabalho forçado. Não se faz experiência do Deus bíblico, mas de um estúpido ídolo (característica dos ídolos é sempre a sua radical estupidez) se, quando o encontramos, não somos libertados de uma escravidão, pessoal ou de outrem. As experiências religiosas sem escravidão e sem libertação podem ser perfeitamente replicadas por magos do Egito e por legiões de novos magos à procura do lucros.
Após a décima praga, a mais terrível, o povo finalmente parte: «Nessa mesma noite o faraó mandou chamar Moisés e Aarão e disse-lhes: “Vão-se embora! Saiam do meio do meu povo, vocês e os filhos de Israel! Vão adorar o SENHOR como disseram. Podem levar também as vossas ovelhas e vacas, como pediram, e partam. Roguem também por mim.”» (12,31-32). Tendo deixado o Egito, descobriram que a festa que o povo queria celebrar no deserto era precisamente a pèsach. O povo de Israel celebrava a esta festa já antes do Egito; a páscoa era parte da cultura das antigas tribos nómadas que ofereciam um cordeiro a Deus para que abençoasse a transumância deles e dos rebanhos. O faraó não permitiu que o povo festejasse por três dias aquela antiga festa nómada e o SENHOR transformou uma festa de pastores na grande festa da libertação do povo e de todos os oprimidos por faraós idólatras. Foi assim que a festa, já grande antes do Egito, se tornou a maior de todas, depois da escravidão. A nova páscoa passa a ser «o primeiro dos meses do ano» (12,2), porque é o início do novo Israel. É a origem de uma nova história. Mas é também a recapitulação das primeiras alianças e da promessa do SENHOR. De facto, naquela grande noite está Noé e nele a humanidade inteira; mas estão também Jacob, os patriarcas, os seus filhos e as doze tribos, simbolizadas pelos “ossos” de José: «Moisés levou consigo os restos mortais de José, porque José tinha pedido aos israelitas que assim fizessem. José tinha dito: “Quando Deus vos vier tirar daqui, levem convosco os meus ossos”» (13,19).
As pragas e o mar que arrasta carros e cavaleiros dos egípcios, são imagem também de um novo dilúvio; as águas do Nilo e do mar Vermelho tornam-se lugar de morte. Mas uma vez mais um homem (Moisés) salva-se a si e aos outros do dilúvio; e com a sua família salvam-se ainda os animais (Moisés não partiu sem levar os animais na sua “cesta” (arca): 10,26). O arco-íris brilha novamente sobre o mundo. Mas naquela nova páscoa podemos entrever também Jacob. Entre os muitos possíveis significados da antiquíssima palavra pèsach, encontra-se o verbo coxear (psh). E na Bíblia dizer coxear é o mesmo que dizer Jacob, que se tornou Israel durante a travessia noturna de um ribeiro (o Jaboc), onde na luta com o SENHOR foi ferido no nervo ciático, ficou coxo e mudou de nome. O primeiro Israel nasceu de uma luta noturna com Elohim no meio das águas, o novo Israel renasce de uma grande luta noturna, quando o povo do primeiro Israel atravessava as águas da escravidão. De uma primeira ferida individual veio uma primeira bênção, de uma grande ferida (as pragas) floriu uma grande bênção (a libertação) – e um dia a maior das feridas há-de gerar uma bênção infinita. Jacob coxeou a vida toda, a escravidão e as pragas acompanham ainda os filhos de Israel; o Ressuscitado tem gravados os estigmas da cruz. Toda a ferida transformada em bênção é sempre fecunda.
Não há festa maior que a pèsach, a páscoa. Nem libertação maior que a libertação dos ídolos.
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Todos os comentários de Luigino Bruni publicados em Avvenire estão disponíveis no menu Editoriais AvvenireAs parteiras do Egito/7 – Após a praga extrema, o ídolo cede; é «o início dos meses»
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 21/09/2014
“A crueldade das pragas não chegou à da opressão dos egípcios sobre os filhos de Israel, que se prolongou até ao fim da permanência naquela terra. Ainda no próprio dia do Êxodo, Raquel, filha de Sutela, deu à luz um menino enquanto estava a trabalhar com o marido a lama para os tijolos. O bébé escorregou pelo ventre fora e afundou naquela papa. Apareceu então Gabriel que formou um tijolo no qual incluiu o menino e levou-o para o alto dos céus”
Louiz Ginzberg, Le leggende degli ebrei (As lendas dos hebreus)As pragas do Egito são a condição normal dos impérios idolátricos, incluindo aquele em que vivemos nós, claro. São regimes nos quais a água não tira a sede aos seres vivos nem fecunda a terra; apodrece e cria rãs, mosquitos e moscardos… os animais não conseguem viver. O sol não chega a passar através da poeira densa e tudo fica rodeado de trevas.
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As parteiras do Egito/6 - Nem os magos do faraó conseguem manter presos os pobres
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 14/09/2014
"Enquanto a salvação não chega – para nós, hoje, como para Israel no tempo de Moisés – a espera da salvação apenas pode ser um universal contínuo agravamento de tensões e sofrimento. O anúncio da salvação, ao romper o equilíbrio mundano, faz emergir somente brutais relações de força”. (Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia).
Bom seria que todas as gerações voltassem a ler o Êxodo: essa leitura ajudá-las-ia a descobrir e a olhar de frente os seus faraós e as suas escravidões, a desejar libertar-se deles, a reconhecer as pragas do seu tempo, a abandonar as terras dos impérios e a encaminhar-se para novas terras de fraternidade e justiça. Nas verdadeiras caminhadas de libertação é certo e sabido que há de chegar o momento das ‘pragas do Egito’, grandes sinais dos tempos em períodos de império, que os faraós não são capazes de interpretar porque têm o ‘coração’ petrificado.
[fulltext] =>Então chamam ‘magos’ para proferir oráculos tranquilizadores. A quem se dispõe a lê-lo com atenção, o livro do Êxodo diz que, quando os impérios são incapazes de se converter ao bem (e todos eles o são sempre; de contrário não seriam impérios), a única salvação para o povo oprimido é fugir, abandonar o território dos trabalhos forçados e encaminhar-se com decisão para outra terra.
“Moisés repetiu tudo isto aos israelitas, mas eles não fizeram caso dele, porque estavam muito desanimados, devido à dureza da sua escravidão” (6,9). Após a lealdade custosa e fraterna dos ‘capatazes’, Moisés falou novamente ao povo para lhe reafirmar a promessa do SENHOR. Mas o povo não deu ouvidos às suas palavras por causa da muita dor que recobria os ouvidos da sua alma.
Quando ultrapassa um certo limite o sofrimento torna-se tão profundo e radical que não deixa escutar os profetas e as suas promessas. Quando grandes sofrimentos de pessoas e comunidades duram muito tempo, nem mesmo os maiores profetas são escutados; o excesso de dor cria uma cortina invisível que nem a palavra eficaz do profeta consegue romper.
Todas as gerações conheceram estas formas de surdez sem esperança e muitas vezes souberam combatê-las e eliminá-las. A nossa época – que continua a produzir, sem cuidar deles, muitos oprimidos – também as conhece; mas aos muitos sofrimentos ensurdecedores dos oprimidos acrescentou novas formas de surdez: as das opulentas periferias espirituais e éticas, onde a voz dos profetas não é ouvida e onde não têm início libertações tão ou mais necessárias que as das periferias da miséria.
A narração das pragas do Egito mostra que, para povos e pessoas, existe um limiar de dor para além do qual a única linguagem credível de libertação passa a ser a dos factos, que consegue atingir profundidade maior do que a das feridas da dor. Então povos e pessoas encontram a origem da promessa, vêem-na em ação no interior da opressão em que se encontram. As palavras do SENHOR e de Moisés tornam-se história, entram na carne dos povos, ferem-na e abençoam-na. Apenas esta palavra encarnada consegue penetrar até ao fundo de certas dores das pessoas. Só certos factos, certas palavras encarnadas – um gesto, uma última carícia, noites sem número passadas num sofá no corredor de uma enfermaria, a porta de casa ainda aberta após repetidas traições … – são capazes de dizer alguma coisa a essas dores onde as palavras já não dizem nada nem sequer servem para pedir e conceder perdão. Está nisto, também, a dignidade do sofrimento humano, a única realidade que consegue ser mais forte que a palavra (foi para dar esta dignidade a todas as dores que a palavra encarnada morreu um dia cravada num madeiro).
A primeira luz que o povo imerso nas trevas começou a distinguir foi uma luz tenebrosa; mas foi quanto bastou para, no meio daquelas trevas, intuir a aurora da ressurreição. Imersos no paradoxo das pragas do Egito, os pobres sentiram renascer a esperança e a fé na promessa; também hoje sucede, muitas vezes, que a esperança ressurge a partir das chagas nossas e dos outros , quando nelas somos capazes de entrever, atravessando-as, uma luz de alvorada. E os ouvidos da alma abrem-se num efatá coletivo e libertador.
As chagas são o início da páscoa, premissa e pressuposto para atravessar o mar. O desenrolar das pragas tem uma dinâmica típica: enquanto o flagelo está a decorrer, o faraó promete a Moisés que deixará sair o povo para que celebre ao seu Deus no deserto. Moisés crê ou espera que a nova praga converta finalmente o faraó, e pede ao SENHOR que ponha fim à praga. Mas logo que a praga termina, o faraó “ao ver-se livre” (8,11), retira a promessa de libertação. A mensagem é clara: impérios e faraós como estes não têm conversão possível; as suas promessas não passam de fala barata, com o único objetivo de obter mais e mais tijolos para construir pirâmides que celebrem a sua divindade idolátrica.
Nas primeiras pragas (a água do Nilo que se transforma em sangue e a invasão de rãs) reaparecem os magos e adivinhos do faraó. Já os tínhamos encontrado no Génesis (41,8), no ciclo de José. Na memória de Israel o Egito não é apenas o lugar da escravidão; é também a terra fértil da fraternidade reencontrada. Os magos replicam os mesmos factos ‘prodigiosos’ de Moisés (“fizeram o mesmo com as suas artes mágicas”: 7,22;8,3) para demonstrar que a presença das pragas se podia explicar sem a ação do Deus de Israel. Mas com a terceira praga, a dos mosquitos, “os magos tentaram ..., mas não conseguiram” (8,14). Era o início do fracasso que se torna total com a sexta praga (as úlceras), quando “os magos não puderam comparecer para fazerem frente a Moisés porque, tal como todos os egípcios, também eles ficaram cobertos de chagas” (9,11).
Quando os impérios começam a vacilar, os dominadores convocam magos, videntes, adivinhos. Pedem-lhes que confirmem que quanto está acontecendo de novo e doloroso no reino não é nada realmente preocupante; pode ser explicado utilizando a lógica do império. Durante muitos anos assistímos a uma sucessão de adivinhações, horóscopos de magos da finança e da economia que queriam (e querem) convencer-nos de que as ‘pragas’ que vivíamos (e estamos a viver) não eram (ou são) um sinal claro de necessidade de conversão e mudança de lógica profunda do nosso império mas seriam apenas oscilações naturais do ciclo económico, erros e perturbações internos ao sistema que, portanto, podem ser reabsorvidos ‘no longo prazo’. Há dezenas de anos que se pagam as consequências das tranformações climáticas: diante de nós morrem pessoas, rios, animais, plantas, insetos; mas os magos do império continuam a negar a evidência e a querer demonstrar que se trata de eventos naturais que se explicam com as suas artes mágicas. Mas as pragas aumentam de intensidade, os impérios começam a vacilar e as simulações dos adivinhos deixam de funcionar porque a evidência vem à gala com tal força que desmascara até os adivinhos mais competentes e sofisticados - há mesmo quem sofra das mesmas doenças que se esforçara por negar.
O sistema económico atual, profundamente entrelaçado com as questões ambientais e climáticas, está ainda no estádio da ‘praga das rãs’ em que o faraó convoca e paga lautamente os seus magos para que o convençam a ele e a todos de que não está a acontecer nada de novo, algo de verdadeiramente preocupante. Mas há sinais de que estamos talvez entrando na terceira praga, porque o esforço das simulações e da persuasão dos videntes está a crescer. Ao contrário do que sucedeu com o faraó do Êxodo, esperemos que desta vez sejamos capazes de nos converter depois das primeiras pragas e não seja preciso que chegue a ‘morte dos primogénitos’ (a décima praga) para libertar finalmente os pobres e salvar a terra.
Esta rica, complexa e multicolor narrativa das pragas contém um grande ensinamento sobre a gestão de conflitos, sobretudo os conflitos entre o opressor – clara, inequívoca e injustamente opressor – e os oprimidos, inequivoca e injustamente oprimidos. Quando a natureza e a lógica destas duas partes em conflito se manifestam definitivamente, chega um momento em que é necessário interromper as negociações e resta apenas uma possibilidade para viver: fugir. A vida só é possível fora dos campos de trabalho escravo.
Não há possibilidade de negociação com estes impérios opressores: para nos salvarmos e salvar temos que fugir porque quem tenta negociar e descer a compromissos acaba por passar para o lado dos ‘inspetores’ do império, esquece os pobres, o seu grito, e a primeira promessa. Não se consegue a libertação de tantos imperadores porque – não os reconhecendo por aquilo que realmente são – se entra em negociação com a sua lógica, se aceitam as regalias que oferecem e o seu patrocínio para tratar das suas vítimas; não se liberta ninguém e acaba-se até por agravar a própria escravidão e a de todos.Os impérios do passado eram evidentes, afirmavam-se com nitidez à vista de toda a gente. Hoje em dia os impérios são cada vez mais invisíveis, conseguem apresentar-se como reinos bons e generosos; propõem-se eles mesmos libertar os pobres. Muita da liberdade e justiça do tempo que vivemos passa pela nossa capacidade espiritual e ética de identificar e dar nome aos impérios, reconhecer as pragas e fugir deles. Enquanto se resiste, procuremos não morrer e tenhamos esperança na libertação; não esqueçamos nunca que por detrás de tanta surdez espiritual e falta de libertação à nossa volta podem esconder-se grandes sofrimentos, produzidos pelos nossos impérios visíveis e invisíveis. Reduzir o sofrimento dos povos, aliviar e quebrar as cadeias que os obrigam a trabalhos forçados, poderá permitir a muitos pobres que finalmente escutem os profetas e se encaminhem coletivamente pela via do mar.
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As parteiras do Egito/6 - Nem os magos do faraó conseguem manter presos os pobres
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 14/09/2014
"Enquanto a salvação não chega – para nós, hoje, como para Israel no tempo de Moisés – a espera da salvação apenas pode ser um universal contínuo agravamento de tensões e sofrimento. O anúncio da salvação, ao romper o equilíbrio mundano, faz emergir somente brutais relações de força”. (Sergio Quinzio, Un commento alla Bibbia).
Bom seria que todas as gerações voltassem a ler o Êxodo: essa leitura ajudá-las-ia a descobrir e a olhar de frente os seus faraós e as suas escravidões, a desejar libertar-se deles, a reconhecer as pragas do seu tempo, a abandonar as terras dos impérios e a encaminhar-se para novas terras de fraternidade e justiça. Nas verdadeiras caminhadas de libertação é certo e sabido que há de chegar o momento das ‘pragas do Egito’, grandes sinais dos tempos em períodos de império, que os faraós não são capazes de interpretar porque têm o ‘coração’ petrificado.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 07/09/2014
“Se, de verdade, sois os enviados do Senhor, então ele será juiz entre nós e o faraó. … Sois vós os responsáveis pelo fedor que por todo o lado exala dos cadáveres dos hebreus, usados como tijolos onde não produziram a quota exigida. Somos como a pobre ovelha que o lobo roubou: o pastor persegue o ladrão, agarra-a e tenta arrancar-lhe das fauces a desgraçada presa que acaba feita em pedaços por ambos”. (L. Ginzberg, Le leggende degli ebrei)
A cultura dos incentivos está a transformar-se em nova ideologia do nosso tempo; surgiu nas grandes empresas capitalistas e está a emigrar para os setores da saúde, da cultura, da escola. O principal limite e perigo desta cultura do trabalho é uma visão empobrecida do ser humano, pensado e descrito como indivíduo que no trabalho é motivado exclusivamente por recompensas extrínsecas e monetárias, de quem se poderá obter praticamente tudo e em todos os âmbitos da vida, desde que adequadamente pago.
[fulltext] =>Graças a Deus, os homens e as mulheres são muito mais ricos e belos do que esta caricatura. Podemos fazer coisas mesmo grandes, mas queremos muito mais que dinheiro; as ‘moedas’ mais preciosas são o reconhecimento, a estima, a gratidão. Somos capazes de dar o melhor de nós mesmos se e quando nos sentimos estimados e reconhecidos, se somos ‘vistos’ e nos agradecem. A grande e verdadeira questão no centro da cultura do incentivo é, portanto, a da liberdade.
“São preguiçosos”. Foram as palavras que o rei do Egito dirigiu aos seus funcionários depois do encontro com Moisés e Aarão que lhe tinham pedido, em nome do SENHOR, para libertar o povo, para que pudesse celebrar três dias no deserto: “São uns perguiçosos,e por isso gritam ‘queremos ir oferecer sacrifícios ao nosso Deus’. Sobrecarreguem essa gente com mais trabalho, mantenham-nos ocupados para que não dêem ouvidos às mentiras que lhes vêm contar” (5,8-9). É típico dos impérios considerar os súbditos perguiçosos e mandriões e obrigá-los a trabalhar mais, para evitar que nos intervalos do trabalho possa insinuar-se o desejo de liberdade, o desejo de um Deus diverso do faraó. Para os imperadores, os trabalhadores-súbditos só trabalham quando sentem nas costas o aguilhão dos ‘capatazes’.
Hoje em dia, em muitas regiões do mundo (não em todas) já não há imperadores; mas é muito frequente ver dirigentes que multiplicam tarefas para os trabalhadores e os obrigam a espalhar-se ‘por todo o Egito’ (5,12) à procura de ‘palha’ que não tinham. Provocam stress e mal-estar nos lugares de trabalho, e continuam a pensar que não se trabalha bastante nos campos e que os incentivos não foram bem concebidos. Os mandriões existem, mas são muito menos do que se pensa; existe uma invencível e cientificamente demonstrada tendência para sobreavaliar a preguiça dos outros e subestimar a própria.
Inserido neste episódio do Êxodo encontra-se também o primeiro protesto dos ‘dirigentes’ de que fala a Bíblia, o protesto dos ‘capatazes’. Trata-se de um dos protestos mais belos e importantes de toda a Escritura; contém mensagens preciosas para todos os responsáveis de empresa, instituição ou comunidade, de ontem, hoje e amanhã.
Havia duas categorias de dirigentes nos campos de trabalho: os ‘inspetores’ e os ‘capatazes’. As diferentes reações de cada uma destas categorias perante a ordem do faraó de endurecer as condições de trabalho do povo oprimido – reações opostas, mesmo – ilustram duas diferentes e opostas culturas da responsabilidade e direção. As novas condições de trabalho e produção impostas pelo faraó (fabricar a mesma quantidade de tijolos de antes, mas sem ter à disposição a palha) não podiam ser satisfeitas por trabalhadores já submetidos a condições extremas (1,14).Foi isso mesmo que aconteceu (5,14). Os inspetores – egípcios às ordens do faraó – reegiram ao não cumprimento dos objetivos de produção descarregando nos capatazes dos campos de trabalho – hebreus, irmãos dos trabalhadores: “Chegaram a chicotear os capatazes dos israelitas nomeados pelos inspetores do faraó, dizendo-lhes: ‘Porque não completaram, nem ontem nem hoje, a quantidade de tijolos que faziam antes?’” (5,14). Por seu lado, os capatazes não bateram nos trabalhadores das suas equipas. Como as parteiras do Egito, também estes responsáveis de trabalhadores – por opção livre e custosa – escolheram ficar do lado do povo e da verdade, e não obedeceram às ordens do faraó. Escolheram ser irmãos dos oprimidos e assim partilharam a sua sorte. Então, em vez de se enfurecerem com os companheiros, foram protestar com o faraó: “Porque procedes assim com os teus servos? Já não nos fornecem palha e, no entanto, exigem-nos que fabriquemos os mesmos tijolos e chicoteiam estes teus servos. A culpa é do teu povo!’” (5,15-16).
Tal como sucede ainda demasiado frequentemente, perante este protesto leal dos capatazes, o faraó limitou-se a associá-los à mandriice dos trabalhadores: “Vocês são uns preguiçosos! Sim, uns preguiçosos! Por isso é que andam a dizer: ‘Queremos ir oferecer sacrifícios ao SENHOR’. Vão mas é trabalhar!” (5,17-18). Então, “os capatazes reconheceram que estavam numa situação difícil” (5,19). É a ‘situação difícil’ em que muitas vezes se encontra quem rejeita ordens dos poderosos por lealdade para com os fracos; e é por aqueles acusado de também ele ser incompetente e preguiçoso. Quem não estiver disposto a correr o risco de ser associado ao vício que os chefes atribuem às pessoas que representa e defende não pode ser mediador; um dirigente nunca será bom ‘capataz’, se não estiver disposto a correr o risco de ser ‘espancado’ com e como a sua equipe de trabalho. Fora desta lógica solidária e responsável, fica o mercenário; ao contrário do ‘bom pastor’, não dá a vida pelo rebanho, não partilha a sua sorte. Além do mais, tomar sobre si as ‘pauladas’ sem as descarregar em quem lhe está confiado, é também uma grande e bela imagem de qualquer verdadeira vocação de paternidade, natural ou espiritual.
Nem o insucesso do protesto ao faraó fez alterar a atitude dos capatazes. Continuaram a exercitar a sua lealdade para com os trabalhadores, enfrentando diretamente Moisés e Aarão. Dirigiram-lhes palavras fortes: “Vocês é que têm a culpa de o faraó e os seus funcionários nos verem com maus olhos. Puseram nas suas mãos a espada com que eles nos vão matar” (5,21). Moisés tomou muito a sério o grito duro e leal dos capatazes e enfrentou a primeira crise da sua missão no Egito. Depois de escutar esse grito teve um novo encontro com a voz que o tinha chamado. A lealdade custosa e fraterna dos chefes de equipe produziu uma nova teofania, um novo encontro com o seu Deus, uma nova vocação: “Moisés dirigiu-se a Deus e disse: ‘Ó meu SENHOR, porque tratas mal este povo? Porque me enviaste?” (5,22). E Deus falou-lhe, chamou-o novamente: “‘Eu sou o SENHOR. …Levar-vos-ei ao país que prometi a Abraão, Isaac e Jacob e dar-vos-ei essa terra para ser vossa. Eu sou o SENHOR” (6,1-8).
Não se pode imaginar a vastidão do alcance de um ato de lealdade verdadeira, que poderá acontecer quando nos ‘campos’ onde trabalhamos somos capazes de não obedecer a ordens erradas de faraós e nos mantemos fieis à verdade e à dignidade de quem connosco trabalha. Por vezes esta fidelidade pode escancarar o teto do escritório ou da nave industrial onde trabalhamos; pode fazer de novo despontar no céu o arco-íris de Noé. Esta lealdade permite que entre dirigentes e trabalhadores se gere uma relação por alguns chamada fraternidade; quando nasce de uma lealdade silenciosa e custosa não tem qualquer laivo moralista e retórico. Tornamo-nos verdadeiramente irmãos e irmãs de quem depende de nós quando oferecemos as costas e nos entrepomos entre eles e as ordens erradas dos faraós.
Se os capatazes não tivessem levado até ao fim o processo de protesto leal, se – por medo ou respeito – tivessem parado um passo só antes de encararem Moisés e Aarão, não teriam reaberto o céu e o SENHOR não teria renovado a promessa. Muitos atos de verdadeira lealdade não chegam a produzir todos os frutos porque o processo não é levado até ao fim.
O desafio mais difícil de ultrapassar por quem responde a uma vocação e aceita desempenhar uma tarefa de libertação é continuar a acreditar na verdade da vocação, da tarefa que recebeu, da promessa e da voz, quando vê que aumenta o sofrimento dos que era suposto amar e libertar; quando o povo a tirar dos trabalhos forçados piora a sua condição e a dor inocente cresce. Só é possível sair destas provas – sempre muito dolorosas e que surgem (embora não exclusivamente) nas primeiras fases do processo de libertação – e retomar o caminho se de novo acontecer o primeiro milagre do monte Horeb, se uma vez mais nos ouvirmos chamar pelo nome. Um milagre que nos pode ser doado pela lealdade de alguém; pelo seu amor ou pelo seu protesto que frequentemente coincidem.
Nas empresas e organizações continuam a coexistir lado a lado ‘inspetores’ e ‘capatazes’. Dirigentes que ‘batem’ em quem está abaixo deles, prontos a tudo para corresponder a qualquer exigência dos patrões, e responsáveis que preferem ‘apanhar’ para não quebrar a lealdade para com os companheiros. Muitos começam como capatazes e transformam-se depois (por desilusão ou por infelicidade, talvez) em inspetores; mas não é raro que se dê também o processo inverso. Todos nós assistimos a isso, todos os dias. Mas não esqueçamos que muitos trabalhadores não morrem sob o peso de uma produção impossível de tijolos porque entre nós há muitos herdeiros dos leais capatazes do Egito: são certamente mais de quantos somos capazes de reconhecer à nossa volta.
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Todos os comentários de Luigino Bruni publicados em Avvenire estão disponíveis no menu Editoriais AvvenireAs parteiras do Egito/5 - A lógica do bastão e a lógica do trabalho lado a lado
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 07/09/2014
“Se, de verdade, sois os enviados do Senhor, então ele será juiz entre nós e o faraó. … Sois vós os responsáveis pelo fedor que por todo o lado exala dos cadáveres dos hebreus, usados como tijolos onde não produziram a quota exigida. Somos como a pobre ovelha que o lobo roubou: o pastor persegue o ladrão, agarra-a e tenta arrancar-lhe das fauces a desgraçada presa que acaba feita em pedaços por ambos”. (L. Ginzberg, Le leggende degli ebrei)
A cultura dos incentivos está a transformar-se em nova ideologia do nosso tempo; surgiu nas grandes empresas capitalistas e está a emigrar para os setores da saúde, da cultura, da escola. O principal limite e perigo desta cultura do trabalho é uma visão empobrecida do ser humano, pensado e descrito como indivíduo que no trabalho é motivado exclusivamente por recompensas extrínsecas e monetárias, de quem se poderá obter praticamente tudo e em todos os âmbitos da vida, desde que adequadamente pago.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 31/08/2014
“Durante a vida toda, devo confessar, fui impelido por duas forças que agiam conjuntamente. Antes de mais, a cólera, a impossibilidade de aceitar o mundo tal como ele é. … A outra força é a luz. Hoje falaria de transparência. Poderia dizer: é a fé”
(Paolo Dall’Oglio, Collera e luce).
Os impérios sempre tentaram usar o trabalho para que na alma dos trabalhadores se apagassem os sonhos de liberdade, de gratuidade, de festa. Precisamente porque é o principal amigo do homem, o trabalho presta-se a ser manipulado e usado contra os trabalhadores, torna-se com facilidade ‘fogo amigo’. Ter trabalho foi e é via de libertação para muitos, e o não poder trabalhar continua a ser uma das principais faltas de liberdade, uma violência de massa do nosso tempo. Mas ao lado do trabalho que liberta e nobilita sempre existiu, e continua a existir, um trabalho que os faraós usam como meio de oprimir os pobres.
[fulltext] =>O trabalho é o pórtico da constituição republicana italiana, mas isso acontecia também com os campos de ‘trabalho’ nazis: para compreender e amar o trabalho é preciso considerar estes dois ‘portões de entrada’. Continuamos hoje a viver do trabalho e continuamos a não florir e a apagar-nos porque falta trabalho; mas não terminou ainda o tempo em que se morre e se é humilhado por excesso de trabalho e por trabalho errado, quando novos faraós obrigam a trabalhar o dia inteiro e todos os dias, não permitindo que se pense, reze e faça festa, reproduzindo assim as fábricas de tijolos do Egito.
Após ter escutado a Voz junto do silvado, Moisés desceu o monte e teve logo um encontro misterioso. Como Jacob que foi atacado por Deus no Jaboc quando regressava com a família à terra dos pais, também Moisés é enfrentado por Deus na viagem para o Egito com a mulher e os filhos. Aquele Deus que acabara de lhe revelar o seu nome (o SENHOR), enfrenta-o e combate-o agora: “Durante a viagem, no lugar onde Moisés e a família passaram a noite, o SENHOR foi ao encontro de Moisés e quis dar-lhe a morte” (4,24). Deus, que confia uma tarefa ao profeta e depois combate com ele, é um tema que atravessa toda a Bíblia, até ao Filho que enviou para realizar a maior das tarefas, que vem a encontrar-se crucificado num madeiro, abandonado por Elohim (Mc. 15,34). A voz que chama e indica o caminho de salvação a percorrer, ela mesma detém e combate aquele a quem falou, ao longo do caminho que abriu. A vocação e a fé-confiança são dom; mas são também luta, combate que se desenrola na fronteira entre a vida e a morte; conhece e ama esse combate apenas quem escutou uma voz e a seguiu de verdade. Diversamente do episódio do Jaboc que o Génesis descreve com abundância de símbolos e pormenores, aqui o texto não se detém na luta entre Moisés e Deus, mas descreve apenas as ações de Séfora, a mulher de Moisés. Durante o ataque, Séfora circuncidou o filho, e ao sangue do filho está misteriosamente ligada a salvação de Moisés (4,25-26). Depois das parteiras do Egito, da sua mãe e da irmã, da filha do faraó, Moisés é de novo salvo pelas mulheres, pela sua especial vocação à vida, humildes mediadoras entre o divino e a nossa carne.
Moisés continua sozinho o caminho para o Egito. O seu povo acredita de imediato nas palavras de Aarão, a ‘boca’ de Moisés (4,27), e todos “inclinaram-se em adoração” (4,30-31). Muito mais complicado e fracassado, pelo contrário, é o diálogo com o faraó: “Moisés e Aarão foram dizer ao faraó: ‘Assim diz o SENHOR, o Deus de Israel: ‘Deixa ir o meu povo ao deserto, para lá fazerem uma festa em minha honra’. O faraó respondeu: ‘Quem é esse SENHOR para que eu seja obrigado a obedecer às suas ordens e a deixar ir os israelitas? Não conheço o SENHOR nem tampouco quero deixar sair os israelitas’” (5,1-3). O faraó mandou chamar imediatamente os inspetores e capatazes dos hebreus e endureceu as suas condições de trabalho: “Não forneçam mais palha para os israelitas fazerem os tijolos, como têm fornecido até agora. Eles que vão procurar a palha. Mas exijam-lhes a mesma quantidade de tijolos que têm feito até aqui. Nem um tijolo a menos!” (5,7-8).
A reação do faraó perante o pedido de Moisés oferece-nos uma poderosa descrição do que acontece ao trabalho nos impérios de ontem e de hoje. A primeira resposta do faraó refere-se diretamente a Deus: “Quem é esse SENHOR?”, como quem diz: ‘Quem é que o conhece’? A opressão dos povos e dos trabalhadores começa com não admitir qualquer outro deus para além do ‘faraó’, com não reconhecer que existe um céu mais alto que o que tocam as suas pirâmides. No Egito o faraó era uma divindade, o único mediador entre o divino e os homens. Reconhecer o SENHOR e atender ao seu pedido, teria significado que o faraó punha em causa a sua natureza divina e admitia que existiam outros mediadores (Moisés e Aarão). Os impérios não são ateus, são sempre idólatras: não negam Deus, simplesmente transformam em deus pessoas e coisas (dinheiro, poder), as ideias; produzem deuses à sua imagem, e dão-se muito bem com eles.
Há neste episódio uma passagem especialmente significativa para o trabalho. Moisés e Aarão não pediram a libertação definitiva do povo. No primeiro encontro com o Faraó pediram-lhe apenas para “ir ao deserto, a uma distância de três dias de caminho” (5,3), para oferecer sacrifícios ao seu Deus, para rezar, para fazer uma festa. O faraó rejeita o pedido sem apelo; se os deixasse sair dos campos de trabalho mesmo por um só dia de festa e de culto estaria a reconhecer a sua natureza de povo e não já de escravos. É possível rezar em todo o lado e as orações dirigidas ao céu dos campos de prisão são as mais belas e verdadeiras. Mas sair dos campos de trabalho para ir rezar e fazer festa juntos não é uma oração, apenas; é um ato político que, algumas vezes, provocou já a queda de impérios maiores. Se o faraó tivesse permitido ao povo que celebrasse no deserto, estaria a reconhecer não apenas uma religião diversa, mas um direito a fazer festa, à gratuidade e ao não trabalho, um direito que só o homem livre tem, não o escravo (é também por causa da recordação desta escravidão do Egito que a Lei de Israel estenderá o shabbat a todos os seres vivos).
Ao dizer não ao pedido do SENHOR, o faraó, então, simplesmente reafirmou que os filhos de Israel não passavam de escravos em trabalhos forçados. O primeiro e mais natural ato com que os imperadores afirmam que se trata apenas de trabalhadores forçados é negando tempo para o não-trabalho, para o culto, para a gratuidade, para a festa. Os povos deram início à sua libertação rezando, cantando, fazendo festa juntos. Os imperadores têm mais receio das festas que das manifestações de protesto porque contêm a força infinita da gratuidade. Quando sentem ‘ar de festa’ o que fazem é endurecer os trabalhos forçados.
Sempre que um empresário faz com que uma mulher pré-assine a declaração ‘voluntária’ de demissão para o caso de existir uma maternidade, ou quando este capitalismo nega o repouso dominical e o tempo para a festa, regressa-se à lógica do antigo faraó e de todos os impérios. Quando a empresa pede que se trabalhe a todas as horas e todos os dias para atringir os objetivos, ou quando impõe as suas festas e nega as festas de todos, essa empresa torna-se muito semelhante à fábrica de tijolos do Egito; e os seus trabalhadores voltam a assemelhar-se demasiado aos antigos escravos, mesmo se assinaram livremente um contrato e são bem pagos.
Em todos os impérios se morre por falta de trabalho, mas morre-se também por demasiado e mau trabalho; o trabalhador-pessoa apaga-se quando é apenas trabalhador. O trabalho sem não-trabalho é trabalho forçado de escravo; a liberdade de estabelecer um limite ao trabalho é que gera a separação antropológica entre nós e o mundo das coisas, entre o Manuel e o engenheiro Sousa, separação essa que é essencial para dar dignidade às coisas que se produzem e para salvar a excedência espiritual da vida nossa e dos outros. É bom não esquecê-lo exatamente no período de grave crise de trabalho em que estamos. Reaprenderemos hoje a trabalhar e a criar trabalho se formos capazes de pedir aos atuais faraós tempo para a gratuidade e para a festa, palavras que eles não apreciam porque demasiado subversivas e inúteis na produção dos seus tijolos.
A liberdade de culto, de gratuidade, de festa é a primeira forma de excedência antropológica e de dignidade ética de qualquer civilização porque diz aos faraós e seus herdeiros de hoje: ‘Vocês não são deus para mim, para nós, e não o são para ninguém, nem sequer para vocês mesmos. As vossas festas voltadas para o lucro não nos satisfazem; queremos outros altares para celebrar a nossa liberdade e as nossas libertações’.
Os três dias de caminho para um altar diverso teriam sido os primeiros passos em direção à terra prometida, o fim da escravidão. O faraó não queria nem podia permitir-lhos. Mas chegaram. Os dias de caminho livre para celebrar e fazer festa juntos continuam a acontecer ao longo da história, apesar dos imperadores. Porque as altíssimas pirâmides não chegam para satisfazer o nosso desejo de céu, que é sempre mais alto do que elas.
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Todos os comentários de Luigino Bruni publicados em Avvenire estão disponíveis no menu Editoriais AvvenireAs parteiras do Egito/4 - O céu de Deus e dos homens é sempre mais alto que as pirâmidesi
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 31/08/2014
“Durante a vida toda, devo confessar, fui impelido por duas forças que agiam conjuntamente. Antes de mais, a cólera, a impossibilidade de aceitar o mundo tal como ele é. … A outra força é a luz. Hoje falaria de transparência. Poderia dizer: é a fé”
(Paolo Dall’Oglio, Collera e luce).
Os impérios sempre tentaram usar o trabalho para que na alma dos trabalhadores se apagassem os sonhos de liberdade, de gratuidade, de festa. Precisamente porque é o principal amigo do homem, o trabalho presta-se a ser manipulado e usado contra os trabalhadores, torna-se com facilidade ‘fogo amigo’. Ter trabalho foi e é via de libertação para muitos, e o não poder trabalhar continua a ser uma das principais faltas de liberdade, uma violência de massa do nosso tempo. Mas ao lado do trabalho que liberta e nobilita sempre existiu, e continua a existir, um trabalho que os faraós usam como meio de oprimir os pobres.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/08/2014
Manda de novo profetas, Senhor,
homens fiáveis de Deus,
gente com o coração a arder.
E fala tu dos seus silvados
sobre as ruínas das nossas palavras,
dentro do deserto dos templos: para dizer aos pobres
que tenham ainda esperança.Davide Maria Turoldo
O encontro decisivo da vida de Moisés deu-se durante um dia normal de trabalho: “Um dia em que Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã, levou o gado através do deserto até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (3,1). Moisés era um estrangeiro e precisava de trabalhar para ganhar a vida; como Jacob, que trabalhava para Labão, como muita boa gente do seu tempo e do nosso.
[fulltext] =>Foi durante este trabalho humilde e por conta de outrem que se deu o acontecimento que irá mudar a sua e a nossa história.
Fábricas, escritórios, salas de aula, campos e casas podem ser – e são – lugares de encontro fundamentais da vida, teofanias, até. Deparamos com encontros decisivos em lugares do viver ordinário, enquanto estamos no trabalho, portanto (até por isso trabalhar é importante). Pode-se participar em milhares de cerimónias litúrgicas, centenas de peregrinações e dezenas de retiros espirituais, vivendo experiências esplêndidas; mas os acontecimentos que realmente nos transformam surgem na vida de todos os dias, quando – sem ir à procura dela nem dela estar à espera – uma voz nos chama pelo nome, nos lugares humildes da vida. Lavando os pratos, corrigindo um exame, conduzindo um autocarro. Ou pastoreando um rebanho, perto dos silvados que ardem nas periferias das nossas vidas.
Toda a primeira parte da vida de Moisés tem o traço da normalidade. As vocações bíblicas não são espetaculares nem os chamados são pessoas extraordinárias ou de raro mérito (quem aprecia a ‘meritocracia’ não é na Bíblia que que encontra apoio). Moisés não foi escolhido por ser bom ou melhor que os outros. Como Noé, foi chamado a construir uma arca de salvação: “...o SENHOR... chamou-o do meio da sarça: «Moisés!, Moisés!». E ele respondeu: «Aqui estou». Deus disse-lhe: «Não te aproximes e descalça-te, porque o lugar onde estás é terra sagrada.». E acrescentou: «Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob»” (3,4-6).
Outro grito, desta vez de Deus, que Moisés soube escutar; uma voz em que acreditou, reconhecendo-a sem a conhecer. De facto, Moisés não tinha sido educado com a sua gente. Cresceu com os egípcios (de quem recebeu o nome); depois, tinha vivido com um povo estrangeiro e idólatra. Não tinha escutado as histórias dos patriarcas durante as longas noites, dentro da tenda. Talvez até mesmo os nomes de Abraão, Isaac, Jacob, lhe dissessem pouco, ou nada. De quem era então aquela voz que lhe falava do silvado? Como distingui-la das tantas vozes que enchiam a terra de Madiã?
Diversamente dos patriarcas, Moisés dialoga diretamente com Deus, discute com ele, pergunta-lhe o seu nome (JHWH,o SENHOR), pretende sinais, recalcitra, e por fim parte: “...vai, que eu te envio ao faraó, para tirares do Egito o meu povo, os filhos de Israel.». Moisés disse a Deus: «Quem sou eu, para me apresentar diante do faraó e tirar do Egito os filhos de Israel? »… «eles não vão escutar, nem sequer vão fazer caso do que eu disser” (3,9-11; 4,1). Então Deus dá-lhe sinais (4,2-9), mas Moisés não ficou ainda convencido: “Ó meu SENHOR, eu não tenho facilidade de falar” (4,10). Moisés põe agora em discussão a sua capacidade para realizar a tarefa. Não sabe falar, será talvez um pouco gago (“sempre que tenho que falar trava-se-me a língua na boca”), falta-lhe, pois, o principal instrumento do profeta. Deus convence-o, dizendo-lhe que o primeiro e verdadeiro instrumento do profeta não é a boca, mas a sua pessoa: servir-se-á da voz do seu irmão Aarão: “Fala com ele e explica-lhe o que ele tem que dizer” (4,15). E então, “Moisés voltou a casa de Jetro, seu sogro” (4,18).
Neste diálogo revela-se uma dimensão essencial da autêntica vocação profética (qualquer vocação, se for autêntica, é também profética). Não são os meios verbais nem as técnicas de comunicação que dão conteúdo e força à profecia. Profetas há que salvaram e salvam muita gente sem saber falar ou escrever; falaram e escreveram palavras de vida. A profecia é gratuidade e a sua primeira expressão é reconhecer que a vocação recebida é toda ela dom, não é alguma coisa que nós mesmos fabricámos. É excedência, e aquele que foi chamado não é o dono da voz. A única palavra de que o profeta precisa é Aqui estou.
Falar com eloquência é atibuto frequente de falsos profetas, de sofistas que usam talentos e técnicas para manipular os outros e promessas. Címbalos sonantes. A perceção subjetiva (e por vezes objetiva) da própria incapacidade para realizar a tarefa a que se é chamado é o primeiro sinal de autenticidade de uma vocação. Duvidar da própria voz é essencial para acreditar na verdade da Voz que nos chama. Por isso é conveniente suspeitar de quem espera ser enviado a salvar alguém porque se formou para esse fim, aprendeu o ‘ofício de profeta’ e se sente pronto para o exercer.Moisés reconhece aquela voz difícil como voz boa de salvação. Ao longo de todo o diálogo não põe nunca em discussão a verdade da voz que o chama. Saber reconhecer a voz boa que nos fala em encontros determinantes da vida é capacidade que possuímos, que faz parte do repertório da humanidade. Aquela voz, quando chega, é inconfundível. Podemos não responder, negá-la porque pede coisas incómodas; podemos tapar os ouvidos e a alma, mas sempre a reconhecemos.
Este diálogo diz-nos muito do Deus bíblico, também: não é um soberano que dá ordens aos súbditos. É o Deus da Aliança, que dialoga, convence; que se zanga e argumenta. É um logos. E precisa do ‘sim’ de Moisés para agir na história; como no tempo do dilúvio, precisa da resposta de um homem para salvar o seu povo. Precisa de se tornar amigo e companheiro do homem: sem as grandes vocações bíblicas e sem as vocações que hoje também enchem a terra, Deus seria demasiado longínquo.
A grande vocação de Moisés diz-nos, portanto, que para voltar a ser livres não é suficiente encontrar força e fé para gritar a nossa dor da profundidade das escravidões em que nos encontrarmos. Não basta sequer que esse grito de dor chegue ao Céu (“Tenho visto como sofre o meu povo que está no Egito. Ouvi-os queixarem-se dos seus opressores e sei bem o que eles sofrem”: 3,7). Para sair de escravidões profundas e das coletivas é necessário que alguém responda “sim” a uma vocação de libertação dos outros.
Moisés é imagem, a maior, de alguém chamato a libertar outros da escravidão, sem ser, ele mesmo, um escravo. Moisés não faz trabalhos forçados no Egito; é um trabalhador emigrado e assalariado na terra di Madiã. Mas faz parte do povo oprimido, filho desse povo, irmão dos oprimidos. Está fora da ‘fossa’ em que precipitaram os outros e por isso pode libertá-los. Não é escravo, mas sofre com a condição de escravidão dos ‘seus irmãos’, a ponto de matar um egípcio que agredira um deles.
Não libertaremos ninguém se antes não sentirmos na pele a dor pelo seu sofrimento. Gandhi, Madre Teresa, Don Oreste e milhares de outros ‘libertadores’, foram capazes de responder um dia “Aqui estou” a um chamamento de libertação de outros, porque tinham antes sofrido e sentido a dor pela condição de escravidão do seu ‘povo’. Estavam fora da fossa, mas sofriam por e com quem estava dentro, sentiam-se parte do povo, experimentavam realmente a mesma dor.
Não são os faraós que nos libertam dos trabalhos forçados. A libertação dos oprimidos vem dos oprimidos: do povo, de um filho seu, de um ‘irmão’ natural ou de quem se torna irmão por vocação; é possível tornar-se irmão. Se não se experimentar indignação, dor, mal estar de coração e alma pela sorte dos irmãos oprimidos por uma qualquer forma de ‘escravidão’, se não se viver exilado para fugir dos faraós, se não se correr o risco de ir a tribunal por denúncia dos poderosos (muitas vezes acabando mesmo por lá ir), não se liberta ninguém; às vezes descobre-se até que os ‘libertadores’ eram pagos pelos faraós.
Empresários ou políticos que libertaram e libertam verdadeiramente os pobres de ratoeiras em que se encontram, são os que experimentaram dor espiritual e física encontrando e abraçando moradores de periferias do mundo. Sentiram-se solidários, por vezes tornaram-se seus irmãos, e quando ouviram uma forte voz foram capazes de se transformarem,de responder e partir. Sem estas dores, estes abraços, escutas, fraternidades,poderá talvez fazer-se um pouco de filantropia ou lançar-se uma campanha mediática. Mas verdadeiras libertações nascem de um grito, de uma escuta, de uma dor e de um “Aqui estou”.
Não assistimos a libertações suficientes porque não gritamos quanto baste ou porque não conseguimos gritar em vez dos que já não têm força para isso. Mas o mundo sofre sobretudo por falta de pessoas que saibam sofrer pelo povo oprimido, escutar a voz boa, deixar-se converter e, depois, responder. Sofrer pelas injustiças que nos rodeiam é alta forma de amor-ágape, premissa de qualquer libertação.Muitas espinhas ardem nas periferias dos nossos pastos. Há anos, séculos, que estão a arder; e não se consumam nunca. Delas partem vozes que chamam por nós, que aguardam o nosso ‘Aqui estou’.
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Moisés não é perfeito, mas sabe escutar Deus e reconhecer-se irmão
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 24/08/2014
Manda de novo profetas, Senhor,
homens fiáveis de Deus,
gente com o coração a arder.
E fala tu dos seus silvados
sobre as ruínas das nossas palavras,
dentro do deserto dos templos: para dizer aos pobres
que tenham ainda esperança.Davide Maria Turoldo
O encontro decisivo da vida de Moisés deu-se durante um dia normal de trabalho: “Um dia em que Moisés apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã, levou o gado através do deserto até chegar ao Horeb, o monte de Deus” (3,1). Moisés era um estrangeiro e precisava de trabalhar para ganhar a vida; como Jacob, que trabalhava para Labão, como muita boa gente do seu tempo e do nosso.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire 17/08/2014
Acorda, Senhor! Por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que desvias de nós o teu olhar e te esqueces dos nossos sofrimentos e aflições? A nossa alma está caída no pó e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te...! (Salmo 44(43), 24-27)
A primeira oração que aparece na Bíblia é um grito, um bramido ao céu que se ergue de um povo oprimido. Nunca será libertado quem primeiro não tiver experimentado a necessidade de libertação, quem não tiver gritado, acreditando ou esperando que haja alguém, do outro lado ou do alto, a acolher o seu grito. Ou, dito de outro modo, quem não se sente oprimido por qualquer faraó ou quem perdeu a esperança de que alguém escute o seu grito não terá qualquer motivo para gritar e não será libertado.
[fulltext] =>Moisés inicia a sua vida pública matando um homem: “Quando Moisés já era homem, saiu um dia para visitar os seus irmãos hebreus e viu que os seus trabalhos eram muito pesados. Viu também um egípcio a bater num dos hebreus. Olhou para todos os lados e como não viu mais ninguém, espancou o egípcio e enterrou-o na areia” (2,11-12). Moisés, que iria anunciar o preceito da Lei “não matar”, torna-se um assassino. Neste começo da história de Moisés, misterioso, e para nós um pouco desconcertante, reaparece uma das constantes mais profundas da Bíblia. Os patriarcas e profetas bíblicos não são heróis, nem modelos de virtude. Surgem-nos como mulheres e homens integrais, de tal modo humanos que no seu repertório incluem até o gesto homicida de Caim. É a essa humanidade total que se dirigem as suas vocações imensas; nela têm início e fim as suas grandes experiências espirituais e sempre humanas. É indispensável assumir a sua inteira humanidade, para que as suas histórias de salvação, esperanças e libertações possam tornar-se nossas, também.
Depois do homicídio, Moisés teve medo e fugiu do Egito; entrou na terra de Madiã como estrangeiro (2,22). O período de tempo em que Moisés viveu com os madianitas, separado do seu povo, é imagem do eclipse de Deus que Israel vive no Egito. A opressão do povo, as parteiras do Egito, Moisés salvo pelas mulheres, resgatado das águas, desenrolam-se num cenário de silêncio de Deus, numa noite da Aliança. No Egito, Deus mantém o silêncio, como se tivesse esquecido a sua Aliança. A promessa escureceu, o povo da Aliança é oprimido e escravizado em terra estrangeira. Mas o povo oprimido consegue achar força para gritar, e será o seu grito a pôr fim a esta noite: “Os filhos de Israel continuaram a lamentar-se e a queixar-se da sua escravidão. Então Deus escutou os seus lamentos e atendeu às suas queixas, lembrando-se da aliança que tinha feito com Abraão, Isaac e Jacob. Deus viu a escravidão dos israelitas e interessou-se por eles” (2, 24-25).
Até agora, na pré-história e na história de Israel vimos que, como agradecimento, os patriarcas elevavam ao céu estelas, altares e sacrifícios. Para encontrar a primeira oração tivemos que descer ao Egito, e chegar até aos campos de trabalhos forçados. Foi de lá que se elevou ao céu a primeira oração de Israel, o clamor coletivo de todo o povo escravo. Tal como quando Deus ouviu o choro do menino de Agar, no deserto (Gen. 21, 17), também agora escuta o choro-oração dos oprimidos. E responde. O Deus da Bíblia não é o deus dos filósofos: o SENHOR comove-se, esquece, fica indignado, tem ouvidos para escutar o grito do oprimido; recorda-se dele, toma-o a seu cuidado.
No clamor que se eleva e é escutado esconde-se, então, algo de precioso. Se até Deus pode ‘esquecer-se’ do pacto, se os gritos do povo oprimido conseguiram fazê-lo recordar as promessas que tinha feito, é porque gritar é mesmo importante. É importante sempre, mas é essencial quando se eclipsa um pacto, quando quem connosco estabelecera uma aliança a abandona, quando nos deixa alguém com quem fizéramos promessas. Se os gritos de dor dos pobres fizeram terminar o silêncio do céu e, depois, abriram caminho no mar, então também nós podemos e devemos gritar quando quem a nós está ligado por um pacto de reciprocidade se esquece de nós e nos abandona, escravos, no Egito.
Se Deus esqueceu o seu pacto e o grito do pobre lho recordou, então também o Marco pode e deve gritar quando a Joana, esquecendo o seu pacto matrimonial, saiu de casa e não voltou. Podemos e devemos gritar quando o Francisco, com quem tínhamos acarinhado e construído o sonho de uma cooperativa com e para os pobres, foi atrás de miragens de grandes lucros e nos deixou. Podemos e devemos gritar quando aqueles que elegemos para o parlamento e para a administração pública esquecem o pacto político para o Bem comum e deixam os pobres morrer sob a opressão dos imperadores do jogo ou das armas.Quando uma aliança se quebra e, sem culpa nossa, acabamos nos trabalhos forçados dos impérios, a primeira coisa que é preciso fazer é gritar, berrar. Estes gritos que sobem a quem se esqueceu da sua aliança conosco são o primeiro passo de uma possível reconciliação, porque dizem – a nós e aos outros – que estamos conscientes de estar injustamente no Egito, que sofremos e queremos sair daquela escravidão. Mas nem sempre é fácil gritar. A primeira condição é acreditar que a nossa dor pode chegar a quem nos abandonou, o nosso pranto pode comovê-lo, recordar-lhe o pacto e fazê-lo querer continuar a aliança. Grita-se quando se crê que o outro pode ainda escutar e pode recomeçar. O povo hebraico gritou porque acreditava ainda na Aliança e na promessa, e acreditava que o céu para onde gritava não estava vazio. Porque, quando se perde a fé-esperança de que é ainda possível recomeçar, o grito morre na garganta, deixa-se de gritar e o não-grito é o primeiro sinal de que está morta em nós a fé-esperança naquele relacionamento.
As pessoas, as comunidades, povos inteiros, aprenderam a rezar gritando. Descobre-se que o céu não está vazio quando o chamamos com força pedindo, implorando, que nos escute. Quando esgotados os olhares para o lado e para a frente, se descobre com surpresa e espanto que ainda se tem uma alternativa: o olhar eleva-se para o céu; olhos e voz, ao mesmo tempo. Começa então o tempo da oração verdadeira.
Muitos são os pactos que morrem e não ressuscitam porque alguém não quer ou não consegue escutar um grito de dor. Grita-se, clama-se em altos brados e não responde ninguém. A terra está cheia de gritos não escutados. Mas outros pactos há que não são restabelecidos por não se conseguir gritar. Não se consegue por falta de fé-confiança no pacto quebrado, por orgulho, ou pela muita dor que corta a respiração. Não havendo grito, ninguém o pode escutar; o libertador não chega por falta de grito de dor. Então não se poderá nunca saber se do outro lado havia alguém que esperava só ouvir um grito para recomeçar e que porventura continua ainda à espera. Não se consegue curar pactos quebrados quando se perde a fé em quem nos abandonou (ou que parece ter-nos abandonado); a fé em que ele pode escutar o nosso grito, comover-se e, talvez, recomeçar. Há também quem grite igualmente, mesmo sabendo que o outro não irá escutar e responder; e por vezes a fé-confiança regressa depois de um grito desesperado. Gritar pode ser um canto de amor, mesmo quando é uma oração-desesperada.
Os pobres continuam a sofrer. Algumas vezes conseguem gritar; de vez em quando alguém recolhe o seu grito e acontecem libertações. No entanto, para se ser libertado e fazer a experiência da libertação é preciso ser pobre, sentir alguma forma de indigência. Ainda que possa parecer paradoxal para quem só conhece o aspeto do consumo e do prazer da vida, a falta de gritos pode ser uma grave forma de pobreza. Os ricos e os poderosos não gritam, e por isso não podem ser libertados: permanecem escravos na sua opulência, e não fazem a experiência da libertação, uma das maiores e mais sublimes que na terra existe. A grande indigência da nossa sociedade é a indigência de libertação: a riqueza fictícia de produtos do mercado está criando a ilusão de que não é preciso ser libertado. Tornamo-nos escravos em outros trabalhos forçados, mas as novas ideologias dos novos faraós, adormecendo-nos, conseguem que não sintamos necessidade de libertação. Não existe escravidão mais grave da de quem não se dá conta da sua condição de escravo. É escravidão pior que a de quem, sentindo-se oprimido, já não grita: crê que ninguém o poderá escutar e libertar (e afeta muita gente, nas nossas cidades mudas). Hoje os ‘povos’ mais pobres são os opulentos que não gritam, não vêem ou não reconhecem Moisés; e não assistem ao milagre de um mar que abre caminho para uma terra onde ‘correm leite e mel’.
Os trabalhos e os não-trabalhos forçados continuam a aumentar no mundo, mas dos campos de trabalho já não se levantam mais gritos para o céu. Para encontrar de novo a força de gritar juntos, para ver chegar novos Moisés e nos metermos a caminho para atravessar o mar, precisamos de voltar a ser indigentes de libertação.
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Todos os comentários de Luigino Bruni publicados em Avvenire estão disponíveis no menu Editoriais AvvenireAs parteiras do Egito/2 - O nosso Deus ouve e "recomeça" a cuidar de nós
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire 17/08/2014
Acorda, Senhor! Por que dormes? Desperta e não nos rejeites para sempre! Por que desvias de nós o teu olhar e te esqueces dos nossos sofrimentos e aflições? A nossa alma está caída no pó e o nosso corpo colado à terra. Levanta-te...! (Salmo 44(43), 24-27)
A primeira oração que aparece na Bíblia é um grito, um bramido ao céu que se ergue de um povo oprimido. Nunca será libertado quem primeiro não tiver experimentado a necessidade de libertação, quem não tiver gritado, acreditando ou esperando que haja alguém, do outro lado ou do alto, a acolher o seu grito. Ou, dito de outro modo, quem não se sente oprimido por qualquer faraó ou quem perdeu a esperança de que alguém escute o seu grito não terá qualquer motivo para gritar e não será libertado.
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por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/08/2014
Sempre houve impérios e ainda hoje os há. Mas agora estamos a deixar-nos adormecer por eles e cada vez mais se torna difícil reconhecê-los. E não os reconhecendo, não se lhes dá o seu nome verdadeiro, não se sente a opressão, não se inicia qualquer caminho de libertação. Fica-se apenas com a ‘soberania’ dos consumidores, cada vez mais infelizes e sós nos próprios sofás. A leitura e a meditação do livro do Êxodo é um grande exercício espiritual e ético, porventura o maior, para quem deseja tomar consciência dos ‘faraós’ opressores, sentir de novo dentro de si o desejo de liberdade, ouvir o grito de opressão dos pobres, tentar libertar pelo menos alguns deles. E para quem deseja imitar as parteiras do Egito, que amam todas as crianças.
[fulltext] =>Há uma continuidade direta entre o Génesis e o Êxodo: “José e os seus irmãos e todos os daquela geração morreram, mas os israelitas tiveram filhos e cresceram muito, tendo-se tornado tão numerosos e fortes que enchiam todo o Egito. Subiu então ao trono do Egito um novo rei que não sabia nada a respeito de José” (1,5-7). O crescimento demográfico dos hebreus (1,10) e o receio de que pudesse nascer alguém que o destronasse (1,22), provocam no Faraó um sentimento de grave ameaça. Endurece então a condição dos hebreus, isto é uma mescla heterogénea de povos nómadas estrangeiros que no Egito trabalhavam como escravos, entre os quais vieram a encontrar-se também as tribos de Israel. E então “os egípcios começaram a ter horror dos israelitas e escravizaram-nos cruelmente, tornando-lhes a vida muito amargurada com trabalhos pesados, no barro e nos tijolos e em toda a espécie de trabalhos de campo.” (1,14). Mas o faraó não se limitou a impor trabalhos forçados aos homens. Tentou a solução mais drástica; com ela se abre uma das páginas mais bonitas da escritura: “o rei chamou as parteiras hebreias, cujos nomes eram Chifra e Pua, e disse-lhes: «Quando ajudarem as hebreias a dar à luz, prestem atenção. Se for menino, matem-no; se for menina, deixem-na viver»” (1,15-16).
A profissão de parteira era muito estimada e desenvolvida no Egito. Havia em Sais uma escola famosa em toda a Antiguidade; Neferica-Ra e mais tarde Peseshet foram duas parteiras recordadas como as primeiras mulheres médicas da história. As parteiras foram sempre consideradas pelo povo um ‘bem comum’, mulheres que com a sua atividade se associavam ao trabalho de parto das mães, lutando sempre do lado da vida; toda a comunidade, que das suas boas e experientes mãos recebe os filhos, ama-as (a “Senhora Germana”, a última parteira da terra em que nasci, permanece ainda uma estrela luminosa). Na Antiguidade era uma atividade exclusivamente feminina; geria o final da gestação, o momento sacro em que as mulheres nos geram e regeneram o mundo. A cultura bíblica atribui ao parto lugar central. Raquel, uma das mais belas e importantes figuras do Génesis, morre ao dar à luz. É então, no relato do último parto de Raquel, que pela primeira vez surge na Bíblia a palavra parteira: “A parteira disse-lhe: «Não tenhas medo! Tens aqui outro rapaz!»(Gen 35,17).
Aquela primeira parteira segredou palavras de bondade e esperança (às mães no momento do parto não se fala: acariciam-se, fala-se-lhes com as mãos, quando muito, sussurra-se). Mesmo assim, ela não conseguiu evitar a morte de Raquel, depois de Benomi-Benjamim nascer. Volta a surgir a parteira para o parto de Tamar, quando põe uma ‘fita vermelha’ no pulso do primeiro dos gémeos (38,28). E, por fim, as parteiras do Egito: será a última vez que aparecem já que depois das palavras infinitas de Chifra e Pua, nada mais havia a dizer.
Aquele povo nómada – que vivia em tendas itinerantes onde os partos não eram nada fáceis – na origem da sua grande história de libertação quis colocar duas parteiras do Egito. Pouco sabemos de Chifra (‘a bela’) e de Pua (‘esplendor’, ‘luz’). É quase certo tratar-se de egípcias, provavelmente responsáveis das parteiras dos hebreus ou mesmo de todo o Egito. Conhecemos os seus nomes e, o que é mais importante, sabemos que foram as primeiras objetoras de consciência: “As parteiras obedientes a Deus não cumpriram as ordens do rei do Egito, e deixaram viver os meninos” (1,17). A primeira arte da terra é a destas parteiras: ‘deixar viver os meninos’, os próprios e os dos outros: todos os meninos. Quando esta primeira arte se eclipsa, a vida deixa de ter o primeiro lugar e as civilizações ficam confusas, adoecem, entram em decadência. Neste ‘não’ ao faraó e ‘sim’ à vida, está guardada também, portanto, uma grande palavra válida para qualquer tipo de trabalho: a lei mais profunda e verdadeira de uma profissão ou ofício não é a que emana de um qualquer dos muitos faraós, dominado por ambição de poder e omnipotência, antigas ou novas. As suas leis devem ser respeitadas apenas e só quando servem a lei da vida. Quando alguém se esquece que a ‘lei dos faraós’ é sempre lei segunda – nunca a primeira – fica transformado em súbdito de impérios; e então não iniciará nenhuma libertação, sua e dos outros. Chifra e Pua dizem-nos que ‘não se matam meninos’; não se matam os meninos dos egípcios nem os dos hebreus. Não se matam meninos no Egito nem em qualquer outro lugar. Ontem, hoje, sempre. Se é que pretendemos permanecer humanos. E sempre que assim não fizermos, não ‘obedecemos a Deus’, não obedecemos à vida e renegamos a herança das parteiras do Egito.
Em Chifra e Pua, mulheres, trabalhadoras, seres humanos que se colocam do lado da vida, ecoa o mito grego de Antígona (que desobedece ao rei para obedecer à lei mais profunda da vida, dando sepultura a seu irmão morto em batalha). Nelas revivem as mulheres do Génesis, as outras mulheres da Bíblia. Nelas é anunciada Maria; e todas as mulheres que até hoje continuam a dar-nos a vida. Nelas revivem os carismas e o ‘perfil mariano’ da humanidade.
O início do livro do Êxodo desenrola-se todo sob o signo de mulheres que salvam a vida. A mãe de Moisés desobedeceu à nova ordem do faraó – “deitem ao Nilo todos os meninos hebreus recém-nascidos” (1,22) – e salvou o menino. “...escondeu-o durante três meses. Mas não conseguindo escondê-lo por mais tempo”, construiu un cesto de junco betumado com pez, colocou o menino dentro e foi pô-lo nas águas do Nilo (2,2-3). Outra mulher, a filha do faraó, encontrou o cesto no rio; quando, abrindo o cesto, viu lá dentro “um dos meninos dos hebreus” “teve pena dele” (2,5-7).
Toda a cena do achamento do cesto na margem do grande rio passa-se à vista da irmã de Moisés: “a irmã do menino ficou a certa distância para ver o que lhe acontecia” (2,4). É estupendo este olhar de mulher-menina que acompanha, da margem, a cesta que se desloca no rio; um olhar bom de amor inocente como terá sido o de Eloim seguindo a arca-cesto de Noé, o justo; não é por acaso que a palavra hebraica tevà é usada tanto para o cesto de Moisés como para a arca de Noé. A irmã de Moisés falou com a filha do faraó, oferecendo-se para achar uma ama hebreia. A filha do faraó concordou e disse à mulher que era, afinal, a mãe de Moisés: “Leva este menino e amamenta-o por mim, que eu te pagarei um salário” (2,9).Uma vez mais o trabalho de mulher que salva, o trabalho mais íntimo (o leite permutado entre mulheres para a vida), associado a outra palavra chave: salário. Num tempo atormentado tanto para o trabalho como para o salário, quando as leis de faraó não querem que nasçam meninos, ou pretendem transformá-los em produto de mercado, este início do livro do Êxodo deverá falar-nos e interpelar-nos fortemente. O Faraó queria utilizar o trabalho para eliminar os filhos de Israel: o trabalho forçado nos tijolos e o trabalho das parteiras. Mas nem um nem outro se tornou aliado da morte. As parteiras, por vocação, escolheram a vida; mas nem sequer os trabalhos forçados levaram a melhor, porque “quanto mais os egípcios os oprimiam, mais os israelitas se multiplicavam e mais se expandiam” (1,12). Apesar do faraó, o trabalho continua a ser aliado da vida e não se deixa usar facilmente para fins de morte. Os faraós são sempre tentados a manipular o nosso trabalho, mas até nos piores trabalhos nós podemos salvar-nos. Trabalhar é parte da condição humana. Temos, pois, a capacidade de o tornar amigo, apesar de poderosos e impérios, e podemos converter o ‘trabalho-lobo’ em ‘irmão trabalho’. Mais difícil, hoje em dia, é salvar-se do ‘não-trabalho forçado’.
O início do livro do Êxodo mostra-nos uma maravilhosa aliança entre mulheres, de várias categorias sociais, cooperando para a vida; maridos e pais são opressores e oprimidos. Estas alianças cruzadas entre mulheres salvaram muitas vidas durante guerras e ditaduras de homens, construindo com as próprias mãos ‘cestas’ de salvação. Alianças que continuam a ver-se nas nossas cidades e que permitem aos nossos filhos viver e tonar-se grandes. É preciso salvar os meninos: é a lei das parteiras, das mulheres; a primeira lei da terra.
“Deus recompensou as parteiras … . E como as parteiras obedeceram a Deus, ele concedeu-lhes famílias numerosas” (1,20-21). São as ‘numerosas famílias’ das parteiras do mundo, pessoas que amam e protegem a vida, mães das meninas e meninos de todos.
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As parteiras do Egito/1 - É um olhar de mulher que nos salva dos impérios
por Luigino Bruni
publicado em Avvenire em 10/08/2014
Sempre houve impérios e ainda hoje os há. Mas agora estamos a deixar-nos adormecer por eles e cada vez mais se torna difícil reconhecê-los. E não os reconhecendo, não se lhes dá o seu nome verdadeiro, não se sente a opressão, não se inicia qualquer caminho de libertação. Fica-se apenas com a ‘soberania’ dos consumidores, cada vez mais infelizes e sós nos próprios sofás. A leitura e a meditação do livro do Êxodo é um grande exercício espiritual e ético, porventura o maior, para quem deseja tomar consciência dos ‘faraós’ opressores, sentir de novo dentro de si o desejo de liberdade, ouvir o grito de opressão dos pobres, tentar libertar pelo menos alguns deles. E para quem deseja imitar as parteiras do Egito, que amam todas as crianças.
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