stdClass Object ( [id] => 18858 [title] => Shabbat renasce nos exílios [alias] => shabbat-renasce-nos-exilios [introtext] =>Oikonomia / 11 – Esta crise pode ajudar-nos a dar um novo sentido à economia e ao trabalho
Original italiano publicado em Avvenire em 22/03/2020.
«O sétimo dia não é um dia em que é considerado um sacrilégio manusear dinheiro. O sétimo dia é o êxodo da tensão, a libertação do homem da sua própria lama, a sua inserção como soberano do tempo. Isto é shabbat: a verdadeira felicidade do universo».
Abraham J. Heschel, Shabbat
A carestia de espaço do novo exílio que estamos a viver, nos dias da pandemia, pode ser a invenção de um novo tempo, como o foi o sábado hebraico: o templo do tempo.
Chegámos ao fim de Oikonomia. Partimos com a metáfora do cuco e chegámos, domingo passado, aos sacrifícios, passando por Agostinho, Pelágio, o monaquismo, Francisco, as relíquias, as peregrinações, o espírito nórdico protestante do capitalismo e o meridiano e católico. Começámos, em Janeiro, quando ainda esta doença que nos aflige parecia muito distante; hoje, terminamos num mundo e com vidas completamente mudadas pela pandemia. Estamos dentro dum grande combate coletivo, conservando a esperança que este corpo-a-corpo se assemelhe àquele entre Jacob e o Anjo, que também nós nos encontraremos, ao amanhecer, com uma ferida juntamente com uma bênção e com um nome novo. E há sinais que esta esperança não seja vã.
[fulltext] =>Estamos a viver uma quaresma civil que junta todos e, mesmo que ainda não tenhamos dado conta, estamos dentro da maior experiência religiosa coletiva depois da II Guerra Mundial. As filas ordenadas nos supermercados parecem procissões; naquelas filas sente-se uma solenidade que as torna parecidas às filas para receber o pão eucarístico, que lhe tomaram o lugar. Muitos, enquanto esperam o resultado do teste do pai, recordaram-se da única oração, já esquecida, e, depois de décadas, recitaram-na. As grandes crises fazem ressurgir as orações da infância e, finalmente, compreenderam-nas – .
No están viviendo misioneros chinos a evangelizarnos, como auguraba hace más de medio siglo don Lorenzo Milani. Pero cuando vemos llegar médicos y enfermeros chinos y cubanos, sentimos que algo de aquella profecía se está cumpliendo: «El amor al “orden” nos ha cegado… A las puertas del desorden extremo os mandamos esta débil excusa… No hemos odiado a los pobres, como la historia dirá de nosotros. Solo hemos estado dormidos».
Nestas semanas, a economia tornou-se oikonomia: o governo da casa. Saiu do reino técnico dos economistas para se tornar trabalho, desespero e esperança. Nas grandes crises, perante a impotência e nudez dos especialistas, o povo apropria-se das grandes palavras da vida.
Partimos com perguntas sobre a natureza do espírito do capitalismo e, episódio após episódio, compreendemos que, de evangélico, na nossa economia entrou mesmo pouco. Sobretudo, há pouco de cristão na ideia que a riqueza seja bênção da parte de Deus (e que a pobreza seja maldição). Porque a visão dos bens como bênção, embora esteja na Bíblia, é sempre completada, redimensionada e corrigida pela crítica da riqueza que encontramos forte nas suas tradições proféticas e sapienciais. Nenhuma teologia bíblica da riqueza é correta sem o livro de Job e sem os profetas que, como um único coro, repetem que a verdade não coincide com o sucesso em nenhuma das suas formas (riqueza, saúde, fama, vitória).
A visão da riqueza e da pobreza de Jesus de Nazaré é herdada diretamente da linha profético-sapiencial da Bíblia. Nas suas palavras e nas do Novo Testamento, não se encontram referências à riqueza como sinal de bênção do Pai. No entanto, alguém, de vez em quando, toma a parábola dos talentos para afirmar a presença de uma ética capitalista dentro dos Evangelhos. Uma operação verdadeiramente improvável, se se pensar que, na parábola de Mateus (e na gémea das “minas”, de Lucas), o uso da linguagem monetária (talentos) é puramente alegórico, porque a mensagem da parábola é um convite a negociar o Evangelho recebido, dirigido à Igreja que corria o risco de ficar preguiçosa, na espera do regresso do Senhor. Então, tudo está para ser aprofundado, porque não óbvio, como atua o paralelismo entre metáfora e mensagem evangélica: de facto, não é óbvio identificar Pai ou Jesus no “senhor duro” que confia os talentos aos seus três servos. Por outro lado, para quem quer fundamentar, nesta parábola, também a meritocracia, os talentos são entregues pelo senhor, no relato de Mateus (25, 14-30), segundo "as capacidades de cada um”, desmentindo, assim, o primeiro dogma de qualquer meritocracia, isto é, que o talento seja um mérito – porque as “capacidades” são, na máxima parte, um dom, não mérito, como é, em grande parte, dom o empenho pessoal que colocamos para guardar e aumentar as nossas capacidades.
É tão evidente para Jesus de Nazaré que a riqueza não é um sinal de bênção, que na página mais profética de todo o Novo Testamento, chama “bem-aventurados” aos pobres e anuncia “ai de vós” aos ricos. Nada, mais do que os problemas, está mais longe que o ‘ai de vós’, da ideia de bênção; ‘ai de vós’ que são lidos juntamente ao buraco da agulha e à riqueza.
A visão económica de Jesus é semelhante à de Isaías, de Jeremias, de Ezequiel. Para Ezequiel, por exemplo, também o mito do pecado de Adão está ligado à economia: «Tu eras um modelo de perfeição, cheio de sabedoria, de uma beleza admirável. Estavas no Éden, jardim de Deus». Até que «a iniquidade apareceu em ti. Com o aumento do teu comércio, o teu íntimo encheu-se de violências e pecados. Por isso, Eu precipitei-te da montanha de Deus… Pelas muitas faltas e desonestidades no teu comércio, profanaste o teu santuário» (28, 12-18). O “pecado original” é pecado económico. Aqui, não há mulher nem serpente: O logos errado é o da riqueza. Foram os negócios errados a “profanar os santuários”.Somente no exílio de Babilónia, capital da economia de então, Ezequiel podia escrever estas páginas sobre a economia. Como apenas no mesmo exílio, o Segundo Isaías, profeta anónimo, irmão e companheiro de desventura de Ezequiel, podia ouvir e escrever as palavras maravilhosas sobre o homem, contidas em muitos dos seus versos. Os cânticos extremos entoam-se apenas ao longo dos rios de Babilónia, nos decursos das terapias intensivas, quando um outro homem e, por vezes, um outro Deus, se nos revelam: «Diz uma voz: “Proclama!”. Respondo: “Que hei de proclamar?”. “Proclama que toda a gente é como a erva e toda a sua beleza como a flor dos campos! A erva seca e a flor murcha, quando o sopro do Senhor passa sobre elas. Verdadeiramente o povo é semelhante à erva”» (Is 40, 6-7).
Ainda naquele exílio, o povo de Israel compreende de modo diferente o shabbat – o sábado. Não compreendemos nada do humanismo bíblico sem ele. Talvez Israel conhecesse e praticasse o shabbat já antes da primeira deportação; mas, certamente, naquela noite coletiva aprendeu o valor de uma das inovações religiosas e sociais maiores da história. Naquele jejum de espaço, numa terra sem templo e sem culto, os deportados aprenderam um outro tempo – algo de semelhante, mas mais radical e extremo, do que aconteceu, com a invenção do tempo litúrgico, nos mosteiros, que tanto deve ao shabbat bíblico. Encontravam-se sem templo e sem espaço sagrado e nasce o tempo sagrado. Compreenderam o valor infinito do parar, do suspender, do limite, da igualdade e da fraternidade cósmica. Compreenderam também o sentido e o lugar do trabalho, que, sem o parar do shabbat, é apenas escravidão, ontem e hoje.
O capitalismo não é apenas incompatível como o shabat: é o anti shabbat. Não para, não suspende, não deixa de trabalhar, não conhecerá limites. Quando um império não dava trégua, quando obrigava a trabalhar sempre, quando cada dia era idêntico a todos os outros, precisamente ali, naquele tempo monótono e senhor, no meio de um povo antigo e prisioneiro, floriu a necessidade de um dia diferente, que fosse ritmo e profecia de todos os outros dias. Aquele único dia diferente torna diferente todo o tempo. Os hebreus não têm o paraíso porque é o shabbat a sua vida eterna, quando tudo pára e o relógio impiedoso da morte é derrotado. É no exílio que se aprende o shabbat.
Quem sabe se este novo exílio, se esta nova “deportação” dentro da nossa história, nos fará descobrir o sentido bíblico do shabbat. Se o cristianismo quis incluir o Antigo Testamento no seu Livro (e graças a Deus que o fez!), então o shabbat é também parte do seu humanismo. Que economia teríamos se, verdadeiramente, tivéssemos salvado a cultura do shabbat? Pelo contrário, não fomos capazes de parar, trabalhámos e gastamos sempre e talvez mais, e perdemos o ritmo do tempo, da natureza, da vida; ficámos desequilibrados.
Agora, inesperadamente, temos que parar e encontramo-nos num pousio do capitalismo, num longo sábado santo. Não o procurámos nem o quisemos; chegou e basta – como a vida, como a morte. Chegou também para nos ensinar um novo sentido da economia e do trabalho. Nesta deportação, temos que continuar, uns mais, outros menos, a trabalhar; mas a sua bênção não chegará se, agora, não abrandamos os ritmos, se nos esquecemos dos dias de festa e não mais os celebramos com roupa nova (mesmo estando sós em casa) ou se continuamos “on-line” o mesmo trabalho frenético de sempre. Recordava-me, nestes dias, a minha amiga Silvina, rabina em Buenos Aires, que, quando Maria, a irmã de Moisés, adoeceu de lepra, todo o povo parou: «Maria foi excluída para fora do acampamento durante sete dias, e o povo não partiu enquanto Maria não voltou» (Números 12, 15). Também nós nos encontrámos numa carestia de espaço: seria estupendo se, deste espaço estreito, nascesse um novo tempo, se a clausura dos espaços sagrados nos abrisse uma nova sacralidade do tempo! Em Babilonia, foram escritos alguns dos livros mais bonitos e proféticos de toda a Bíblia. Aquele novo tempo, nascido dum espaço limitado, gerou uma beleza infinita. Os sábios hebreus diziam que a Redenção chegaria quando todo o mundo observar o shabbat..
Ainda haveria muito a descobrir nos segredos de Oikonomia. Mas, de acordo com Marco Tarquinio, diretor e querido amigo, pensei terminar esta série para começar, a partir do próximo domingo, o comentário ao Livro dos Salmos. Hoje, a economia retrai-se para dar lugar à Bíblia. As orações que aqueles antigos homens e mulheres ergueram ao céu para continuar a esperar e a viver, poderão tornar-se companheiras preciosas neste nosso novo exílio. A Bíblia é, também, o dom de palavras para poder recomeçar a rezar quando a dor nos faz esquecer todas as outras.
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Abraham J. Heschel, Shabbat
A carestia de espaço do novo exílio que estamos a viver, nos dias da pandemia, pode ser a invenção de um novo tempo, como o foi o sábado hebraico: o templo do tempo.
Chegámos ao fim de Oikonomia. Partimos com a metáfora do cuco e chegámos, domingo passado, aos sacrifícios, passando por Agostinho, Pelágio, o monaquismo, Francisco, as relíquias, as peregrinações, o espírito nórdico protestante do capitalismo e o meridiano e católico. Começámos, em Janeiro, quando ainda esta doença que nos aflige parecia muito distante; hoje, terminamos num mundo e com vidas completamente mudadas pela pandemia. Estamos dentro dum grande combate coletivo, conservando a esperança que este corpo-a-corpo se assemelhe àquele entre Jacob e o Anjo, que também nós nos encontraremos, ao amanhecer, com uma ferida juntamente com uma bênção e com um nome novo. E há sinais que esta esperança não seja vã.
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Original italiano publicado em Avvenire em 14/03/2020
«Um dos motivos da morte do deus é preservá-lo do envelhecimento».
R. Money–Kyrle, The Meaning of Sacrifice.
Hoje, as empresas fazem cada vez mais recurso ao registo do sacrifício que a teologia, pelo contrário, está a abandonar. Palavra complexa, sobretudo, no cristianismo, que muito se presta a riscos de manipulação.
Sacrifício é palavra da religião, da economia, de qualquer crise. Os sacrifícios nasceram ou desenvolveram-se durante as grandes crises coletivas – as guerras, as carestias, as pestes. No mundo antigo, quando a vida se tornava dura e um mal ameaçava a comunidade, os nossos antepassados começaram a pensar que oferecer algo de valor à divindade pudesse ser o instrumento essencial para gerir as catástrofes e as crises. O sacrifício de animais e, em certos casos, crianças e virgens, aos deuses torna-se uma linguagem para ligar o céu e a terra, a esperança coletiva de poder agir sobre inimigos invisíveis. Os sacrifícios alimentam-se de esperança e de medo, de vida e de morte. É uma experiência radicalmente comunitária, que cura, recria e alimenta os laços dentro da comunidade e entre comunidades e os seus deuses.
[fulltext] =>O sacrifício é, simultaneamente, luz e escuridão. As comunidades não nascem, não duram nem crescem sem sacríficos – continuamos a descobri-lo, e nunca suficientemente. Aprendemos a praticar a oferta e a generosidade, em milénios de ofertas sacrificiais. Toda a verdadeira oferta traz, intrínseca, uma dimensão de sacrifício (no sentido mais comum da palavra). As ofertas que não nos custam nada, não valem nada – uma das leis sociais mais antigas –, porque a oferta verdadeira é sempre oferta da vida. Gostamos muitos das ofertas, sobretudo por parte das pessoas mais queridas, porque são sacramentos do seu amor por nós. Para os nossos jovens, os dias da pandemia que estamos a viver, entre o inverno e a primavera deste ano de 2020, podem ser um tempo maravilhoso para aprender a misteriosa e determinante relação entre sacrifício, oferta, vida.
Referindo o seu lado sombrio, o sacrifício tem uma intrínseca relação vertical e assimétrica. Não se oferece nada a alguém do mesmo nível, mas a uma entidade tida como superior. As comunidades sacrificiais são sempre hierárquicas, porque a relação homem-deus torna-se, imediatamente, paradigma das relações políticas e sociais; do poder, portanto. A comunidade que oferece sacrifícios e ofertas aos deuses, também tem de oferecer sacrifícios e ofertas aos poderosos e ao rei – que, em certas religiões, é de natureza divina. A oferta feita ao rei é um regalo (de rex: rei), que se faz porque não se pode não fazer.
Se, depois, olhamos para as próprias palavras que acabámos de usar para descrever a luz do sacrifício (“custam”, “valem”, “queridas”), encontramo-nos, imediatamente, noutra dimensão sombria, ainda mais ligada à economia. O sacrifício não é um ato isolado; é um processo que se desenvolve no tempo. No princípio, há, geralmente, uma expetativa de regresso que, muito facilmente, se torna exigência. A graça desejada, nos sacrifícios, é objeto de comércio. Geralmente, o sacrifício encontra-se antes da graça. Mesmo quando o sacrifício chega depois, quando voltamos ao templo para fazer uma outra oferta sacrificial, estaremos já dentro de uma relação comercial com Deus. É possível que muitas comunidades tenham começado a prática do sacrifício de hoje como reconhecimento por um dom recebido dos deuses, ontem, e que, do segundo sacrifício em diante, prevaleça o registo comercial e o sacrifício se tenha tornado o preço pago antecipadamente para lucrar uma nova graça. O que falta (ou que é fortemente desafiada), nos sacrifícios, é precisamente a gratuidade.
Através da mediação do cristianismo, o sacrifício entrou diretamente na economia medieval e, depois, no capitalismo, tornando-se um dos pilares éticos. Economia e sacrifício, ambos têm a ver com a dimensão material da vida. Nos sacrifícios, não basta oferecer orações e salmos de louvor: é preciso oferecer algo de material, sacrificar coisas ou vidas às coisas assimiladas. Os primeiros bens económicos da história foram animais oferecidos; os primeiros mercados, os realizados com os deuses; os primeiros comércios, os feitos entre céu e terra; os primeiros mercadores, os sacerdotes dos templos.
Hoje, encontramos o sacrifício em muitos lugares do capitalismo. E não apenas nos fenómenos mais evidentes, como os crescentes sacrifícios pedidos pelas grandes empresas aos trabalhadores que, hoje, geralmente, tomam a forma de verdadeiros holocaustos (destruição total da oferta) de toda a vida, porque, frequentemente, inúteis à produção da empresa, mas puros sinais de devoção total e incondicional.
A presença mais interessante do sacrifício, no capitalismo, é, porém, menos evidente. Nas religiões, o sacrifício não quer apenas coisas: quer coisas vivas que morrem enquanto as oferecem. O sacrifício consiste precisamente em transformar o que vive em algo que morre, porque vivo (somente as coisas vivas podem morrer: os objetos não morrem porque não estão vivos). As moedas, por exemplo, encontram-se nos santuários de todo o mundo, mas não são usadas como matéria do sacrifício – servem para comprar animais para oferecer ou deixam-se como acessórios complementares ao sacrifício vivo. Nos sacrifícios, os animais e as libações (vegetais) que, como todas as coisas vivas, seriam, necessária e naturalmente, destinadas à morte, graças ao sacrifício conseguem, paradoxalmente, afugentar a morte e adquirir uma dimensão que as tira ao ritmo natural da vida. Porque, se por um lado, o cordeiro morre prematuramente, porque sacrificado quando ainda está vivo, ao morrer sobre o altar torna-se algo de diferente que vence as leis naturais. Entra numa outra ordem, adquire um outro valor. Não morrendo naturalmente torna-se, de algum modo, imortal.
Também a economia vive e cresce transformando coisas destinadas à morte em bens que adquirem valor próprio, nesta transformação. Em cada dia, as empresas tomam coisas vivas (matérias primas, animais, trigo, algodão, as nossas energias…), destinadas, enquanto vivas, à morte e criam valor acrescido fazendo-as “morrer”, transformando-as em mercadoria. O valor que se acrescenta às coisas, ao transformá-las, assemelha-se muito ao valor que os animais e as plantas ganham enquanto oferecidas no altar.
A leitura da morte e ressurreição de Jesus também é lida nesta perspetiva: o seu “sacrifício” derrota a ordem natural da morte e torna-o, com a ressurreição, imortal. Também o martírio ou, mais tarde, a virgindade, foram lidos, no cristianismo, como uma alquimia da morte numa vida diferente e superior.
A relação entre cristianismo e sacrifício, porém, está cheia de equívocos. Apesar de a vida e as palavras de Jesus se movimentarem dentro duma lógica anti sacrificial («Quero a misericórdia, não os sacrifícios»), rapidamente o cristianismo interpretou a paixão e a morte de Jesus como um sacrifício, como o «cordeiro de Deus» que com a sua morte tira, definitivamente o pecado do mundo. Um novo e último sacrifício (Hebreus 10), que substitui os antigos e repetidos sacrifícios no templo. O sacrifício de Jesus, do Filho, teria sido o preço pago a Deus Pai para extinguir a enorme dívida que a humanidade tinha contraído. Jesus, o novo sacerdote que oferece, em sacrifício, não animais mas a si próprio (Hebreus 7).
Esta teologia sacrificial atravessou e marcou toda a Idade Média, reafirmada pela Contra Reforma e, ainda hoje, muito radicada na praxis cristã. A ideia sacrifical informa a nossa liturgia e transmitiu ao cristianismo também uma visão hierárquica típica do sacrifício. Durante toda a Idade Média (e além dela), a cultura do sacrifício exprimiu-se, de facto, em práticas sociais de sacrifício, onde eram os súbditos, os filhos, as mulheres, os servos, os pobres e terem de se sacrificar pelos senhores, pelos chefes, pelos pais e pelos maridos. O sacrificar a Deus torna-se, facilmente, sacrificar-se pelos homens que, como Deus, se encontravam acima e mais altos que os sacrificantes. O contexto teológico sacrifical ofereceu, às relações de poder assimétricas e feudais, uma justificação espiritual, chamando sacrifício ao que era, simplesmente, exploração.
O sacrifício está, finalmente, a sair da teologia mais recente (graças a uma compreensão mais bíblica do mistério da Paixão), mas está a entrar cada vez mais na nova religião capitalista. De facto, o processo criativo das coisas vivas que morrem e, “morrendo”, aumentam o seu valor, tornou-se particularmente forte e central, no capitalismo do séc. XXI, onde, diferentemente do que tinha acontecido no passado, os trabalhadores tornaram-se as primeiras coisas vivas que adquirem valor ao morrer. Marx tinha-nos explicado que só as pessoas são capazes de juntar valor à economia – não são suficientes as máquinas. Até há algumas décadas atrás, o “sacrifício” pelas fábricas não era excessivo, muito menos total: era apenas o enquadrado no contrato de trabalho e protegido pelos sindicatos. O sacrifício da vida era reservado apenas à fé, à família, à pátria. A mutação, se sentido religioso, do capitalismo e o eclipse dos outros sectores “sacrificiais”, fez com que as grandes empresas se tornassem os lugares do sacrifício total. A este capitalismo já não basta nem interessa consumar a nossa força-trabalho. São os trabalhadores que se devem oferecer, espontaneamente, sobre o altar. O seu culto tem necessidade de pessoas inteiras – em qualquer religião, a oferta mais agradável é a inteira, “jovem” e sem mancha – que valem tanto mais quão maior é o seu sacrifício. É crescente e impressionante, por exemplo, o número de administradores solteiros ou sem filhos, nas posições superiores das grandes empresas, um número que aumenta muito nas capitais do capitalismo (de Singapura a Milão). Uma nova forma de celibato e de voto de castidade, essenciais a uma nova religião. E, como na Idade Média, a bonita palavra sacrifício tapa a má palavra exploração. Este capitalismo está a manipular demasiadas palavras.
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Original italiano publicado em Avvenire em 14/03/2020
«Um dos motivos da morte do deus é preservá-lo do envelhecimento».
R. Money–Kyrle, The Meaning of Sacrifice.
Hoje, as empresas fazem cada vez mais recurso ao registo do sacrifício que a teologia, pelo contrário, está a abandonar. Palavra complexa, sobretudo, no cristianismo, que muito se presta a riscos de manipulação.
Sacrifício é palavra da religião, da economia, de qualquer crise. Os sacrifícios nasceram ou desenvolveram-se durante as grandes crises coletivas – as guerras, as carestias, as pestes. No mundo antigo, quando a vida se tornava dura e um mal ameaçava a comunidade, os nossos antepassados começaram a pensar que oferecer algo de valor à divindade pudesse ser o instrumento essencial para gerir as catástrofes e as crises. O sacrifício de animais e, em certos casos, crianças e virgens, aos deuses torna-se uma linguagem para ligar o céu e a terra, a esperança coletiva de poder agir sobre inimigos invisíveis. Os sacrifícios alimentam-se de esperança e de medo, de vida e de morte. É uma experiência radicalmente comunitária, que cura, recria e alimenta os laços dentro da comunidade e entre comunidades e os seus deuses.
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Original italiano publicado em Avvenire em 08/03/2020
«Observo o ícone e digo, dentro de mim: - É Ela mesma – não a sua representação, mas Ela mesma. Como atravesso uma janela, vejo a Mãe de Deus em pessoa e rezo-Lhe, face a face, não à sua representação».
Pavel A. Florenski, Le porte regali: saggio sull’icona
As peregrinações, as relíquias e os ícones são importantes fenómenos económicos da Idade Média. A Reforma protestante favoreceu, sem o querer, a passagem dos “objetos de culto” ao “culto dos objetos” do capitalismo.
As peregrinações medievais são um outro “lugar” onde o cristianismo se encontrou com o espírito económico. Um fenómeno muito antigo que retoma tradições anteriores, acrescentando-lhe alguns elementos típicos do cristianismo. A condição de peregrino era a que eclesiásticos, nobres, pobres, juntamente a devedores insolventes em fuga, tinham em comum. Os caminhos dos peregrinos traçaram as vias comerciais da nova Europa, salpicada de pousadas e albergues, à volta dos quais nasceram novas vilas, cidades e feiras. Nas mesmas Vias Francigena e Lauretana, a viagem do peregrino encontrava-se com a dos mercadores: comerciantes de mercadorias e bens diferentes e iguais, por motivos semelhantes e distantes, uma biodiversidade de coisas e de motivos que gerou a Europa.
[fulltext] =>A Europa nasceu do calçado dos inúmeros peregrinos que a sulcaram, sonharam e marcaram durante mais de um milénio. Antes da criação dos Estados nacionais, os cristãos encontraram-se do longo dos caminhos; aí ouviram línguas diferentes, praticaram a antiga e nova lei da hospitalidade, aprenderam que nenhum homem está tão distante para não ser próximo. Ainda hoje se sente algo de familiar ao passar de Portugal à Puglia, de Espanha à Provença; é o que resta da fé viandante dos nossos antepassados, que foram europeus antes de serem italianos ou franceses. Se os nossos avós emigrantes conseguiram comunicar com alemães, belgas, polacos sem conhecer aquelas línguas nem o inglês, é porque tinham, no ADN da sua alma, os diálogos, silenciosos mas verdadeiros, feitos nos séculos das peregrinações e a sua fé nómada. Foram precisos muitos séculos de viagens, de encontros, de feridas e de bênçãos, para aprender a encontrar o outro a menos de um metro de distância, a distância curta que é um dos patrimónios da humanidade – não o esqueçamos, no tempo das distâncias alongadas, por necessidade.
Nos primeiros séculos do cristianismo, a peregrinação era uma condição essencial, que podia durar muito tempo e, em centros casos, toda a vida. Era também uma alternativa à vida ascética monástica. À stabilitas loci do monaquismo, o peregrino respondia com o homo viator. Viajar tornava-se o labora dos peregrinos – travel, trip e trabalho têm a mesma raiz (-tr).
O peregrino medieval é um atravessador de lugares. Não existia ainda a viagem como atravessamento de espaços. A viagem do peregrino não é muito diferente da viagem de Marco Polo, onde a velocidade e o chegar à meta são menos importantes na viagem que o encontro com o diferente (povos e lugares). Estamos longe do espaço racional dos mapas modernos, onde as identidades específicas dos lugares se perdem num modelo informe, de um espaço “homogéneo e vazio” (W. Benjamin).
A partir do séc. VII, desenvolve-se a peregrinação penitencial, ligada a pecados e/ou crimes, onde a viagem se tornou a pena a pagar. Cresceu, assim, a dimensão económico-comercial da peregrinação, entendida como preço a pagar para saldar uma dívida, uma espécie do género mais amplo das penitências “tarifadas” e do seu mercado sofisticadíssimo. A peregrinação tornou-se sacrifício; e, como em todo o género de sacrifício, há um preço, um dom, uma dívida extinta e, por vezes, também uma festa, uma comunhão.
Estritamente ligados às peregrinações existem outos dois movimentos medievais importantes: o das relíquias e o dos ícones. De facto, a peregrinação cumpria-se com a aquisição de uma relíquia ou, se muito difícil e oneroso, de um objeto, para poder voltar a partir com uma coisa, uma res. O objeto era, como num contrato verdadeiro, condição necessária para a validade daquele ato complexo. Nas peregrinações a Meca, a proibição islâmica de representação da divindade não gerou nem relíquias nem ícones nem comércio nem, muito menos, o espírito do capitalismo.
O comércio das relíquias tornou-se, com o passar dos séculos, um dos fenómenos comerciais mais importante da Europa, inicialmente combatido por muitos Padres da Igreja, depois regulado pelos papas e imperadores, objeto de disputas teológicas sobre a sua natureza e liceidade. A intriga teológica não era simples de resolver. A Igreja partilhava com a Bíblia hebraica a condenação da idolatria, isto é, de não adorar nada além do único e verdadeiro Deus. As relíquias estavam, por sua natureza, expostas ao possível pecado da idolatria, de superstição e de paganismo. Além disso, aqueles objetos especiais e teologicamente perigosos eram também objeto de compra e venda, embora com limitações e vínculos; expostos, portanto, ao pecado da simonia.
A economia é, no entanto, uma dimensão determinante das relíquias. Conhecem-se moedas transformadas em relíquias – uma moeda das trinta de Judas, que se conserva em Olivone de Blénio (Cantão do Ticino, Suíça) e, em Barzanò, junto do Lago de Como (Itália), conservava-se, até ao séc. XVII, uma amostra do terreno comprado com as trinta moedas – sinal que o valor simbólico superava a impureza da riqueza. A relíquia tomava o seu valor do contacto com um corpo especial. Tinham, portanto, uma relação constitutiva com a corporeidade e com a matéria. Eram expressão da visão sacramental da realidade, segundo a qual Deus fala aos homens também através da matéria e das coisas – e nós, com as coisas, falamos a Deus: com uma oferta ou com o trabalho das nossas mãos. Relíquia e eucaristia são muito diferentes, mas ambas matéria transubstanciada, coisas que, permanecendo o que são, tornam-se algo de invisível. O homem medieval era muito mais pobre que nós, mas vivia dum modo mais rico, mais cheio de vida. As coisas falavam-lhe mais e ele, frequentemente, conseguia sintonizar-se com estas vozes plurais e, por vezes, compreendia-as.
As relíquias têm algo em comum com um outro grande “objeto” medieval, especialmente bizantino: os ícones. Os ícones não são apenas arte sacra. O ícone escreve-se, não se pinta, e têm uma relação especial com o rosto – a linguagem do ícone é a das cores, dos olhos, dos movimentos da boca, das mãos e dos corpos. Para a teologia ortodoxa, o autor do ícone é o próprio Deus que se serve da mão do artista (geralmente, um monge). Muito bonita é a definição que dele dá Olivier Clément: «O ícone não pertence à ordem mágica da posse, mas à ordem propriamente cristã da comunhão. Remeta para a categoria da relação, do encontro». E acrescenta: «Olhar para um ícone, é um jejum para os olhos». É jejum dos olhos porque o ícone é exercício espiritual de uso sem posse e, por isso, de castidade. Olhando com gratuidade para aqueles olhos e rostos lindíssimos, os mais belos de todos, dia após dia tornamo-nos um pouco como eles. Talvez não tenhamos “consumido” todas as mulheres e crianças que vimos porque levávamos impressos na alma, séculos destes olhares castos de muitíssimos mulheres e de algum homem. Aprendemos que éramos, verdadeiramente, “imagem e semelhança de Deus”, não lendo o Génesis, mas olhando e beijando aqueles rostos maravilhosos e descobrindo, depois, que se assemelhavam a nós. Daquelas “janelas” vimos o paraíso e compreendemos que também nós éramos um pedaço de céu.
O culto dos ícones foi mais combatido que o das relíquias. Entre os séculos VIII e IX, houve lutas iconoclastas e concílios ecuménicos, correntes na Igreja que, para proteger a pureza do culto e combater o pecado da idolatria (e por outras razões políticas, não por último, a identidade do cristianismo oriental, em contacto com o islão, cultura anti icónica), destruíram milhares de ícones e apagaram frescos das igrejas em toda a Europa. Estes paladinos da pureza da religião – sempre abundantes em todas as épocas – não conseguiram vencer a piedade do povo e a sua fé diferente da dos teólogos. É certo que, nas relíquias, se cruzam fé e magia, verdade e mentira (eram infinitas as falsas relíquias), religião e superstição. Cruzam-se aqui, como se cruzam em qualquer outra dimensão da vida, que é vida porque é promiscua, porque é trigo e joio, simultaneamente. Saímos do “mundo encantado” (Charles Taylor), deixámos de beijar os ícones, de sonhar com anjos e santos e ficámos empobrecidos de presente, de passado e de futuro. Certamente, também sonhávamos com demónios, mas sabíamos que Jesus e Maria eram mais bonitos e mais fortes e os venciam.
Enquanto os mercados estiveram cheios de relíquias e de ícones, juntamente com pão e mercearias, os mercados permaneceram plurais e as mercadorias diferentes. Ao lado da pimenta e da seda, estavam o rosto de Jesus e de Maria, relíquias de santos e mártires. Todos habitantes dos mesmos mercados medievais.
A Reforma protestante reagiu à promiscuidade da fé popular, que apelidou de idólatra. Produziu uma nova luta iconoclasta, sobretudo em ambientes calvinistas. Mais imagens derrubadas de santos, pinturas e frescos apagados, luta às peregrinações, aos ícones e às relíquias, às próprias igrejas. E, assim, no mundo novo, despovoado destes bens diferentes, as mercadorias ficaram as únicas protagonistas dos mercados. O lugar das relíquias e dos ícones foi tomado pelas mercadorias e pelo seu “feiticismo”, o das peregrinações pelas viagens de negócios e pelo turismo com as suas recordações.
O capitalismo é um culto e não há culto sem objetos: «O ponto de partida da cultura é o culto» (Pavel A. Florenskij). O cristianismo, na Idade Média, tornou-se cultura também pelo culto das coisas, das relíquias, dos santos, dos ícones, dos santuários, adorando e comendo um Deus feito pão. Eliminando, do horizonte da paisagem moderna, qualquer bem que não fosse mercadoria, da eliminação dos objetos de culto nasceu o culto dos objetos. Com uma grande diferença: enquanto as relíquias e os ícones não podiam ser possuídos, mas apenas olhados, não podiam ser adorados, mas apenas venerados, as mercadorias são apenas possuídas e adoradas. Um outro paradoxo e uma outra heterogénese dos fins: uma Reforma nascida da luta anti idólatra criou, sem o querer, as condições para o capitalismo, a maior adoração de objetos da história. O mundo, libertado dos (o que pensavam que fossem) “ídolos” não foi habitado pelo culto de único Deus, mas por legiões de mercadorias-feitiço. O vazio, deixado nas pessoas pela morte da imagem-presença de Deus dentro das coisas, foi ocupado de novas coisas e o seu espírito (hau) tornou-se o do capitalismo.
Expulsos do mundo encantado, encontramo-nos entre relíquias e ícones empobrecidos. A modernidade, como todas as revoluções, teve de pagar os seus preços: a substituição do encanto das coisas pelo encanto das mercadorias foi, talvez, o mais alto.
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«Observo o ícone e digo, dentro de mim: - É Ela mesma – não a sua representação, mas Ela mesma. Como atravesso uma janela, vejo a Mãe de Deus em pessoa e rezo-Lhe, face a face, não à sua representação».
Pavel A. Florenski, Le porte regali: saggio sull’icona
As peregrinações, as relíquias e os ícones são importantes fenómenos económicos da Idade Média. A Reforma protestante favoreceu, sem o querer, a passagem dos “objetos de culto” ao “culto dos objetos” do capitalismo.
As peregrinações medievais são um outro “lugar” onde o cristianismo se encontrou com o espírito económico. Um fenómeno muito antigo que retoma tradições anteriores, acrescentando-lhe alguns elementos típicos do cristianismo. A condição de peregrino era a que eclesiásticos, nobres, pobres, juntamente a devedores insolventes em fuga, tinham em comum. Os caminhos dos peregrinos traçaram as vias comerciais da nova Europa, salpicada de pousadas e albergues, à volta dos quais nasceram novas vilas, cidades e feiras. Nas mesmas Vias Francigena e Lauretana, a viagem do peregrino encontrava-se com a dos mercadores: comerciantes de mercadorias e bens diferentes e iguais, por motivos semelhantes e distantes, uma biodiversidade de coisas e de motivos que gerou a Europa.
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Original italiano publicado em Avvenire em 01/03/2020.
«Acontece frequentemente que agrade mais a Deus a obra vil de um servo que todos os jejuns e as obras dos padres e dos frades».
Martin Lutero, La cattività babilonese
A gestão do ideal e o comércio das penitências (hoje, os incentivos) são parte importante do espírito do capitalismo e da grande empresa. Assim, também se passou da eclesial “societas perfecta” à “business community”.
Toda a utopia de sociedade perfeita produz uma cidade de homens imperfeitos que vivem a sua imperfeição como culpa que, depois, se torna o primeiro instrumento de controlo e gestão das consciências e das existências individuais e comunitárias. Existe uma relação entre o ideal de perfeição e o espírito do capitalismo. E, também aqui, o monaquismo, primeiro, e a Reforma protestante, depois, desempenharam papeis determinantes. A ideia que a vida cristã fosse um caminho começou a desenvolver-se muito cedo, até se tornar um pilar do monaquismo medieval, embora nem a Bíblia nem a vida e o ensino de Jesus estivessem centrados na ideia de perfeição. De facto, a tradição bíblica tinha posto, como seu fundamento, pessoas não apresentadas como modelos de perfeição moral nem de fé. Recorde-se Jacob-Israel, com os seus enganos e as suas mentiras, David, o rei mais amado que realiza, talvez, o homicídio mais cobarde da Bíblia, ou em Salomão, o rei mais sábio, que se corrompe. A história da salvação é história de imperfeições morais que YHWH consegue orientar, tenazmente, para uma misteriosa salvação.
[fulltext] =>É errado considerar os evangelhos como tratados de moral, muito menos como uma ética das virtudes. As bem-aventuranças não são virtudes. Dos evangelhos e de Paulo brota uma mensagem onde não são as obras nem os jejuns que salvam, nem é a prática da Lei a tornar justos. Fala-se pouquíssimo de perfeição nos evangelhos, porque a mensagem de Jesus não é uma proposta de perfeição ética, mas um caminho de homens e mulheres libertados dos vãos ideais de perfeição que produzem apenas neuroses e infelicidade. Nenhum caminho moral coloca no seu fim um patíbulo e um sepulcro vazio – nem sequer as tradições medievais que representam Jesus que sobe à cruz voluntariamente. A ética do mérito, a outra face da medalha de qualquer ética da perfeição, é o que há de mais distante do anúncio evangélico original. Não somos amados porque perfeitos, e nada mais que uma imperfeição sincera atrai o coração do Deus bíblico e cristão.
No entanto, foi a ética greco-romana da perfeição e ganhar vantagem; e, como aconteceu com a ética económica, também o tema da perfeição ética cristã medieval continuou o ideal moral prevalecente no império romano. Também porque, para os seres humanos, é muito mais atraente construir uma pequena salvação merecida que acolher uma grande como dom imerecido. O ideal da perfeição desenvolveu-se muito no monaquismo. Acabado o tempo dos mártires, a santidade sempre foi entendida como perfeição moral; portanto, luta aos vícios e prática das virtudes. E, como acontece frequentemente, o humanismo da excelência, entendido como perfeição, torna-se uma ética da imperfeição e da gestão das culpas. De facto, sendo a imperfeição o dado empírico da vida, indicar a perfeição como ideal significou produzir infinitos e inevitáveis sentidos de culpa, os verdadeiros senhores de qualquer ética da perfeição. Qualquer ideal de perfeição gera apenas erros e pecados e fá-lo cada vez mais. O fruto de qualquer lei vivida como ideal ético é o pecado. O que tem mais valor nas éticas da perfeição não é o ideal, mas a diferença entre o ideal e o real, um valor infinito porque o ideal é infinito.
A confissão e a penitência tornaram-se, portanto, os instrumentos de gestão de pessoas eternamente imperfeitas que vivem como culpa a diferença entre a sua vida real e o ideal. Partindo dos mosteiros, a ética “cristã” da perfeição moral difunde-se em toda a Europa. Com a ascese, entendida como perfeição, cresceu também o recurso à confissão privada e às consequentes penitências, dentro e fora dos mosteiros. Com o monaquismo, especialmente o irlandês, a confissão começou a tornar-se um assunto privado entre o monge e o padre confessor. Com a privatização e a individualização da confissão (que, nos primeiros séculos, era uma coisa pública e comunitária), começou também a privatização das penitências. Estas tornaram-se cada vez mais pormenorizadas e específicas e, a cada culpa, correspondia a sua pena, como respetiva “tarifa” – daí o nome, revelador, de penitência tarifada. Lemos no “Penitenciário de Columbano”: «Se alguém pecou com o pensamento, isto é, desejou matar, fornicar, roubar, comer às escondidas, embriagar-se, bater em alguém, faça penitência a pão e água durante seis meses… Se alguém cometeu perjúrio, faça penitência sete anos».
Com o passar do tempo, chegaram inovações. Foram introduzidas outras formas de penitência, como as peregrinações, e começou a afirmar-se a dimensão objetiva da penitência, isto é, independente do sujeito pecador. Também porque as penitências, que eram somadas e acumuladas, chegavam muitas vezes a dimensões (por qualidade e quantidade) impossíveis e insustentáveis para uma pessoa individual. Daí a inovação decisiva: a penitência podia ser realizada por qualquer pessoa, não apenas pelo pecador, porque o que contava era a “satisfação” por parte de Deus. O Deus cristão torna-se, assim, sem que lhe tivéssemos pedido autorização, um credor infinito em relação a homens eternamente devedores de valores morais inextinguíveis e continuamente renegociados. A primeira bolsa de valores, global e universal, da Idade Média foi a religião.
Ganhou assim forma a ideia que a pena pudesse ser mudada, negociada, comercializada, um fenómeno que foi muito favorecido pela introdução do sistema monetário. Dada esta sua dimensão objetiva, a penitência torna-se, facilmente, uma mercadoria, vendível a adquirível numa compra-venda. Assim, a penitência desprendeu-se da pessoa individual e nasce o primeiro título derivado na história, porque a penitência podia ser renegociada como um ser autónomo – Caio pecava e Tício fazia a peregrinação. O mercado das penitências foi, posteriormente, facilitado pela extensão da penitência tarifada dos monges para os leigos, invadindo, pouco a pouco, toda a cristandade medieval. A partir do século XII, o binómio perfeição-penitência gerou também “catálogos de comutações” que permitiam que um período breve de duro jejum equivalesse, segundo algoritmos precisos, a um mais leve, mas mais longo. As posteriores invenções da indulgência plenária, associada a peregrinações e ao jubileu (fundamental foi o lançado por Bonifácio VIII, em 1300), a extensão da objetividade e transitividade da penitência também às almas do Purgatório, criaram mercados cada vez mais perfeitos e abstratos. Aumentou, portanto, também a desigualdade entre ricos e pobres, porque quem tinha mais dinheiro podia ser isento de graves penitências.
Chegámos, assim, às portas de Lutero e da Reforma, quando a economia da salvação e a economia do dinheiro já estavam perfeitamente entrelaçadas. Deste ponto de vista, é verdade que o primeiro “espírito do capitalismo” já se tinha desenvolvido no mundo medieval, mas não tinha acontecido tanto nos mercados dos panos e nas bancas das cidades italianas do séc. XIV, mas muitos séculos antes, entre monges penitentes e nos mercados das penitências e dos méritos. Fomos capazes de criar, na Europa, na modernidade, a maior experiência mercantil da história humana porque os cristãos, há séculos, foram habituados a falar de preços, débitos, créditos nas esferas mais íntimas da vida, da morte, de Deus. O “salto de espécie” da religião para a economia foi fácil e veloz. E, também aqui, surge uma necessária pergunta, a mesma que nos pusemos acerca da riqueza, vista pelos calvinistas, como sinal de eleição: onde está o Evangelho? É difícil encontrá-lo. Pelo contrário, temos de dizer que também as penitências tarifadas são um outro efeito não intencional, este totalmente católico, realizado pelo cristianismo na esfera económica, um efeito que pouco ou nada tem a ver com o Evangelho.
Mas há mais. Lutero e os reformadores, juntamente à abolição das ordens religiosas – para que a ascese e a vocação não continuassem um privilégio da elite dos religiosos, mas se tornassem a vida normal de todos, sobretudo no trabalho – aboliram também as confissões e a gestão das penitências, expressão direta da ideia (para eles pelagiana) que a salvação estivesse ligada às obras. Até aqui, a história é bem conhecida. Muito menos conhecido é um outro efeito colateral. O trabalho torna-se o novo lugar bom de qualquer ascese e perfeição “má”, expulsa dos mosteiros e, assim, a economia torna-se o ambiente onde o ideal da perfeição ética mais se desenvolveu no humanismo protestante. De facto, se a visão ascética da vida como vocação não serve para procurar méritos junto de Deus, a ascese, o ideal de perfeição e a vocação têm o seu sentido na economia. E, assim, como da crítica protestante aos méritos na religião, nasce, séculos depois, a meritocracia no capitalismo protestante, da crítica ao ideal de perfeição dos mosteiros nasce, séculos depois, a economia moderna como reino da perfeição.
A Political Economy anglo-saxónica e a grande empresa capitalista têm o culto da perfeição A ciência económica foi toda construída na ideia da perfeição – concorrência perfeita, racionalidade perfeita, informação perfeita – e leu cada desvio da perfeição como fracasso (failure) do mercado e da racionalidade. E hoje, enquanto a teoria económica se está a reconciliar com a categoria do limite, é a grande empresa que continua a cultivar a utopia da organização racional e eficiente – chama-se eficácia à perfeição moral do capitalismo. E assim a societas perfecta da Igreja passou para a business community. A batalha teológica contra uma salvação entendida como perfeição moral gerou o capitalismo como lugar profano da boa perfeição, onde o lugar das penitências tarifadas e livros penitenciais é ocupado pelo job description e os esquemas incentivantes. O “perfeccionismo” (Antonio Rosmini) é, de facto, uma das grandes patologias da grande empresa, que interpreta como fracasso toda a diferença entre o ideal e o real, que produz, nos trabalhadores, os mesmos sentidos de culpa dos penitentes medievais.
De facto, o mecanismo é o mesmo: o limite é vivido como culpa que deve ser expiada com penitências precisas. Os incentivos são estas novas penitências, codificadas e objetivadas em novos manuais para confessores. Embora os incentivos não se apresentem, explicitamente, como penitências mas como prémios, são, na realidade, expressão da mesma antropologia que considera o limite humano como “pecado” e vê a diferença entre o ideal e o real como fracasso e culpa de “perdedores” incapazes de alcançar o standard. Como o monge medieval, que deixado na sua vida natural, era destinado ao fracasso e as penitências permitiam-lhe esperar reduzir a diferença, também o incentivo faz com que as ações naturais e imperfeitas dos trabalhadores se orientem para os objetivos ideais fixados pela administração.
O Evangelho é boa notícia porque é libertação dos nossos ideais abstratos, para se poder encontrar os outros e Deus, na beleza perfeita de uma vida imperfeita. Levámos séculos para o compreender. Hoje, esquecemo-lo e, assim, as empresas procuram pôr a render o nosso desejo de paraíso, procurado, quase sempre, nos lugares errados.
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Original italiano publicado em Avvenire em 23/02/2020
«Chega-se a negar as consequências sociais das disparidades dos pontos de partida individuais. Isto traduz-se na deploração do igualitarismo nivelador e na defesa da meritocracia, exaltadora da individualidade».
Federico Caffè, A solidão do reformador.
O espírito católico do capitalismo é diferente do anglo-saxónico. Até tempos recentes, quando a centralidade do consumo conquistou também o humanismo mediterrânico.
[fulltext] =>Há uma afinidade eletiva entre capitalismo e mundo protestante. Dos cinquenta economistas fundadores da American Economic Association, em 1985, vinte eram pastores protestantes. Adam Smith fora educado na Escócia, em ambiente calvinista. Malthus e Wicksteed, dois importantes economistas na história do pensamento económico, eram pastores protestantes. Alfred Marshall, talvez o economista inglês mais influente nos séculos XIX e XX, tinha sido formado como pastor. E Esther Duffo, Prémio Nobel para economia, em 2019, afirmou: «O protestantismo faz parte da minha família, da minha educação e do meu ser social». No mundo católico, a situação era diferente. Já a partir do abade Antonio Genovesi, no séc. XVIII, os economistas, que se autodefiniam “economistas católicos”, privilegiaram abordagens éticas, filosóficas e históricas, mas não ofereceram contributos que tenham entrado na tradição oficial da ciência económica. Outros fundaram cooperativas, caixas rurais e bancos ou preferiram o compromisso político e nas instituições.
Isto não quer dizer que não exista um espírito “católico” também na ciência económica moderna mas, para o encontrar, é preciso ir para além dos limites visíveis da Igreja e dos economistas “católicos” e procura-lo em economistas de todas as convicções ideológicas e confessionais, expressões diferentes de uma economia meridiana e católica (entendida no sentido cultural, não religioso), com traços comuns, embora variegada nos modos e nas formas. Limitando-nos apenas ao séc. XX e aos economistas italianos, encontramos, por exemplo, Achille Loria e a sua crítica às rendas e às rendas financeiras, interpretada como o inimigo do lucro do empresário e do salário do trabalhador. No pós-guerra, Frederico Caffè e Sylos Labini estudavam a desigualdade e ligavam-na à distribuição dos lucros e à crítica à meritocracia e Giorgio Fuà concentrava-se na crítica ao PIB e sobre as dimensões qualitativas da felicidade e do bem-estar. Um tema cultivado também por Giacomo Becattini, o teórico das zonas industriais e do Made in Italy, que colocou a “vocação dos lugares” no centro da sua investigação científica. Falar dos lugares e não de PIB significa sublinhar as relações humanas, as instituições e os bens relacionais, um outro aspeto específico desta tradição. Tudo argumentos que colocam no centro mais as relações que os indivíduos, o conjunto mais que o particular a felicidade pública mais que a do individuo.
Se lêssemos e estudássemos estes autores, notaríamos imediatamente que existe uma sintonia objetiva entre esta teoria económica e a Doutrina Social da Igreja Católica. De modo especial, partilham uma desconfiança em relação ao princípio fundador do capitalismo de matriz anglo-saxónica: a “mão invisível”, um conceito essencial na Political economy de Adam Smith e, depois dele, de toda a teoria económica anglo-saxónica de matriz protestante. Embora seja, frequentemente, redimensionada pelos próprios herdeiros de Smith, a “mão invisível” exprime, no entanto, uma ideia fundamental, expressão direta da antropologia e do capitalismo nórdico: o bem comum não tem necessidade de ações diretamente direcionadas para isso, porque o único modo bom e eficaz de alcançar o bem comum é criar os incentivos para que cada indivíduo procure o seu interesse privado: «Nunca vi fazer nada de bom a quem pretendia negociar para o bem comum» (A. Smith, 1776). A ordem e a riqueza não precisam nem de intencionalidade orientada para o bem comum, nem da orientada para o bem dos outros com quem se interage numa relação económica (contrato): cada um deve pensar no próprio proveito pessoal (self-interest), para que uma espécie de providência laica (a invisibile hand, portanto) transforme aquela quantia de proveito privado no bem-estar coletivo e do outro. Este expediente teórico é determinante porque fecha o sistema do capitalismo anglo-saxónico e desliga os resultados sociais das intenções individuais. Na sociedade capitalista não há necessidade de nenhuma ação coletiva, nenhum “nós”, nenhuma relação, nenhum encontro.
O humanismo latino nunca adotou esta lógica. Em Genovesi (e, antes dele, em Vico) era claro o mecanismo da “mão invisível” (em Galiani há também a metáfora da “mão”), mas é apenas um mecanismo secundário e subsidiário. Porque o princípio económico fundamental é, pelo contrário, a “mútua assistência”, onde cada um, intencionalmente, quer, para além do seu próprio proveito, o proveito do outro. O bem recíproco é parte das intenções de cada um. Neste humanismo, não há bem comum sem o procurar intencionalmente. Para cá dos Alpes, as intenções sempre contaram muito. A crise ambiental global é também um sinal macroscópico da insuficiência de se fiar na “mão invisível” para transformar os interesses privados em bem comum. As diferenças no plano da teoria económica são, no entanto, expressão de algo muito mais profundo, escondido nas raízes da árvore católica e meridiana. Aqui, o indivíduo é importante, mas a pessoa é-o mais e a comunidade e os corpos intermédios ainda mais. Mas a comunidade, com as suas relações calorosas é, ao mesmo tempo, paraíso e inferno, liberdade e escravidão, amarra e voo, dor e amor. O humanismo da comunidade, diferentemente do do indivíduo, é um caminho acidentado, lento, interrompido, ainda que, em dias particularmente límpidos, alguém, diz-se, conseguiu ver, ao longo daquele caminho acidentado, um pedaço de paraíso.
Um humanismo que não é comparado com o protestante, para ver qual é o melhor. São comparados apenas para compreender o seu destino, o que têm em comum e o que têm de diverso. A crise da Europa do sul é também filha de uma insuficiente reflexão sobre a sua vocação económica, semelhante e diferente da nórdica e protestante. A Europa continua a ser um sonho coletivo maravilhoso enquanto permanecer subsidiária e diversificada, enquanto permanece em diálogo entre espíritos diferentes, incluindo os espíritos económicos. O mundo católico viu nascer e crescer o capitalismo como algo de alheio. Nunca se sentiu à vontade com a ideia que lucros e riqueza fossem bênção. Conheceu uma sensação de inferioridade quando olhava as grandes, racionais e científicas empresas e bancos do norte e as comparava com as suas fabriquetas, com as caixas rurais ou com as suas cooperativas, onde o assalariado e o amigo eram a mesma pessoa, onde a família era também a empresa, onde, de dia, se lutava por um contrato e, à noite, juntos, jogavam as cartas na paróquia ou na Casa do Povo. Havia também uma grande sensação de inadequação, de desprezo, de inferioridade e de vergonha na crise económica e social de muitos Sul do mundo.
Também o mundo meridiano procurou, frequentemente, levar a sério o trabalho; porém, mais forte era a ideia-experiência que o trabalho era, sobretudo, cansaço e dor, canseira; que era, primeiro, um dever natural; depois, talvez, também uma vocação (beruf, berufung). Trabalhar era a profissão da vida, uma vida difícil. A Igreja Católica teve de e quis acolher e valorizar uma multidão de espíritos que já habitavam nos campos e nas cidades muito antes que a religião cristã lhes desse outros nomes. Não combateu os espíritos, não combateu os santos, não os chamou “ídolos”, não condenou os camponeses como idólatras. Mesmo depois da Idade Média, continuou a cultivar uma religião que crescia juntamente ao sentido religioso dos campos e da colheita, onde a teologia foi sempre menos importante que os lutos, as procissões e os nichos nos cruzamentos dos caminhos que levavam aos campos. Uma Igreja que teve de acompanhar, ao longo dos séculos, homens e mulheres mais especialistas em santos que na Trindade, mais devotos de Nossa Senhora que de Deus Pai, amantes de anjos e medrosos de demónios, deu origem, nos séculos, a uma cultura popular que um dia não pode acreditar que o novo-demónio do capitalismo vindo do norte, que associava a bênção ao dinheiro e à riqueza, pudesse ser um espírito bom, porque era um espírito demasiado diferente da antiga disciplina da vida e da terra.
Para o Sul, também a riqueza dos senhores era boa se tornava mais bonitas as igrejas, onde embora fossemos pobres e ignorantes, na missa de domingo estávamos bonitos e rodeados de uma riqueza estupenda. Não sabíamos ler, não compreendíamos o latim, mas os frescos e os quadros falavam-nos, sonhávamos com eles de noite e, assim, embora numa vida difícil, tínhamos sonhos lindíssimos, cheios de anjos e de santos, e quando chegámos ao paraíso, reconhecemo-los imediatamente como gente de casa. Não compreendíamos as músicas diferentes das bandas nos dias de festa, mas percebíamos que eram lindas e, mal amealhávamos dois tostões, mandávamos um neto estudar na filarmónica. Éramos pobres quase sempre, mas nem sempre porque, no dia da festa, nos sentíamos, pelo menos naquele único dia, também nós ricos; naquele dia não nos envergonhávamos da nossa pobreza. Amámos muitas coisas, mas, sobretudo, amámos as festas, as procissões, os santos. Um mundo, certamente, imperfeito, cheio de contradições e de dor, mas onde os pobres não eram considerados malditos. Eram filhos de mesma vida de todos e a sua dor gerou uma inundação imensa de hospitais, escolas, orfanatos, uma lista de santos e de santas e, depois, o nosso Estado social.
No entanto, a riqueza que nascia das fábricas era uma riqueza suspeita. Também por isto, quando os primeiros industriais começaram a construir fábricas quase tão grandes como as dos industriais americanos, os (poucos) capitalistas tinham uma relação com o território e com o povo diferente da dos capitalistas nórdicos e protestantes. Eram ricos, com certeza, mas a sua riqueza não era considerada, nem por eles nem pela comunidade, como uma bênção, mas como um destino, por vezes como um destino cruel. Todo este humanismo, popular e diferente, foi quase totalmente devorado, em poucas décadas, quando nos convencemos que o único espírito bom era o que descia do Norte e chegava do outro lado do oceano; o da riqueza como bênção, deslocada da produção para o consumo. A passagem da fábrica ao centro comercial foi o movimento determinante, unida ao desenvolvimento da finança especulativa que libertou e potenciou a antiga tendência-tentação para a lotaria e jogos de sorte, típica das culturas meridianas. O humanismo meridiano era, por sua natureza, muito sensível à dimensão social e ostentativa da riqueza. Sempre o fizemos, com almoços, roupas, casamentos e até mesmo com funerais. A nossa concorrência foi sempre, sobretudo, uma concorrência de coisas, um caso vistoso, portanto. Nunca competimos no trabalho; era muito pouco visível: para desencadear a competição, tínhamos necessidade de coisas que todos pudessem ver. O capitalismo dos séculos XIX e XX, o fundado na fábrica e no trabalho, não podia ser suficientemente sedutor para nos comprar a alma. Mas o do século XXI, assente no consumo e na finança, seduziu-nos ao ponto de não haver necessidade de nos comprar a alma, porque lha oferecemos.
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Federico Caffè, A solidão do reformador.
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O nascimento da economia capitalista é um grande paradoxo. Como foi possível que a procura da riqueza passasse de vício a bênção? E quais as consequências?
«O que nós sabemos é apenas isto: que uma parte da humanidade será salva e a outra permanecerá condenada».
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Uma Europa anticapitalista que gerou o “espírito” do capitalismo é um dos fenómenos mais misteriosos e complexos da história. A economia europeia de “carril duplo” (laico e religioso) tinha amadurecido, nos mosteiros e nas cidades, uma visão crítica da procura da riqueza material. Embora por razões diferentes, dentro e fora dos mosteiros e dos conventos, a procura de lucros e ganhos não era louvada nem encorajada.
[fulltext] =>Os religiosos e as religiosas faziam voto de pobreza; nas cidades comerciais a avareza era considerada um dos principais vícios capitais. O Inferno de Dante está cheio de avarentos, submetidos à guarda terrível de Pluto, divindade pagã com aspeto de lobo (canto VII). Na Idade Média, a avareza, isto é, transformar a riqueza de meio em fim, era, de facto, vício privado e público, porque conduzia à perdição moral das pessoas individuais e das comunidades. Como todos os vícios capitais, da sua prática nada podia vir de bom – teríamos de esperar pela modernidade para começar a pensar que dos “vícios privados” pudessem derivar “públicas virtudes”. Como é que a ética da avareza-loba pariu, um dia, a ética capitalista? Volta a metáfora do capitalismo-cuco, donde partimos, há cinco domingos atrás.
A dúvida que, de cristão, o espírito do capitalismo tivesse muito pouco, era também a do historiador Amintore Fanfani que, criticando Max Weber, identificava o espírito do capitalismo já nos mercadores italianos dos séculos XIV e XV: «Se o catolicismo combateu, então e sempre, o espírito capitalista, como se manifestou este em idade católica?» (Fanfani, 1934). Para Fanfani, a emergência do capitalismo foi, de facto, uma anomalia, um fenómeno excecional devido a circunstâncias também excecionais (por exemplo, o desenvolvimento de uma classe de mercadores internacionais) que permitiram que a busca e a acumulação do dinheiro, condenada pela ética medieval, pudessem, um dia, tornar-se lícitas e socialmente louvadas. Para Fanfani, os mercadores italianos desenvolveram um “espírito” não diferente do dos empresários e banqueiros holandeses e americanos calvinistas do século XVIII, descritos por Weber.
Na realidade, escapa a Fanfani que o centro do relato de Weber era precisamente a demonstração de como os business calvinistas fossem muito diferentes dos mercadores italianos, uma diferença totalmente contida na palavra espirito do capitalismo: «A sede de lucro, a aspiração a ganhar dinheiro o mais possível, nada tem em comum com o capitalismo. Esta aspiração encontra-se nos camareiros, médicos, artistas, bandidos, em todas as épocas e em todos os países da terra» (Weber, 1905). Portanto, o espírito do capitalismo é, para Weber, algo de inédito na história da humanidade, enquanto filho da ética protestante, especialmente calvinista (e das várias tradições influenciadas pelo calvinismo: pietistas, puritanos, batistas, metodistas e até mesmo quacres).
Portanto, também para Weber, o espírito do capitalismo não seria um parasita do cristianismo (como dirá, anos mais tarde, Walter Benjamin). Mas teria natureza cristã, embora o “filho” legítimo cresça com características diferentes e não queridas pelos seus “pais” (Lutero e Calvino e os outros reformadores). Onde se encontraria, para Weber, a natureza do espírito do capitalismo?
São três os principais elementos da clássica narrativa de Weber. O primeiro, roda à volta da palavra vocação – em alemão, baruf. No mundo protestante, a palavra vocação tinha assumido, rapidamente, também uma explícita conotação laboral, a ponto de baruf significar, simultaneamente, vocação e profissão. No mundo católico, pelo contrário, vocação continuava a ser palavra essencialmente espiritual, usada especialmente pelos monges, monjas e frades. Encontra-se, aqui, a primeira mudança fundamental. Lutero criticou duramente as vocações consagradas na igreja católica («foram ditadas pelo diabo», dizia), uma crítica que levou ao (quase) desaparecimento dos monges e dos frades do mundo protestante. O desaparecimento deste segundo “carril” da vida cristã produz, naturalmente, a deslocação da categoria de vocação da vida religiosa para a vida civil. Expulsa dos mosteiros, a vocação torna-se o hábito civil de todos os cristãos reformados. A “forma de vida” radical que, no catolicismo, era e permaneceu apanágio unicamente da vida consagrada, no mundo protestante torna-se forma de vida universal, civil e laical. O ora et labora do mosteiro emigrou para a cidade, tornando-se a regra ordinária do cristianismo protestante. Toda a vida se torna liturgia e, assim, abraçou todo o tempo de todos os dias. A ética do trabalho torna-se algo de sagrado, expressão de um officium. Não compreendemos o humanismo protestante sem esta ascese mundana. Monges diferentes no meio das cidades: «O cumprimento do próprio dever, nas profissões mundanas, torna-se o mais alto conteúdo que a ética pudesse ter» (Weber, 1905).
O segundo elemento é a doutrina da predestinação. A ideia de predestinação tem, no cristianismo, uma história longa e complicada, começando, pelo menos, por Agostinho. Os salvos foram escolhidos, desde toda a eternidade, por Deus, com critérios por nós desconhecidos e, assim, nenhuma santidade moral e nenhuma obra pode mudar o nosso destino predeterminado. Uma ideia biblicamente incerta, ancorada na Escritura pelo ténue apoio da Epístola aos Efésios: «Escolheu-nos antes da fundação do mundo… predestinou-nos para sermos adotados como seus filhos» (1, 4-5). Uma tese que levava a afirmações radicais: «Deus morreu apenas pelos eleitos» (Calvino).
Da predestinação derivava, portanto, um dado psicológico determinante: os eleitos não podem saber, subjetivamente, que o são porque não são distinguíveis dos não-eleitos. Daí a profunda solidão do homem em relação ao seu destino. O calvinista passa a vida numa incerteza radical que, para Weber, assume a forma de angústia, que nasce de não poder ter a certeza da própria salvação.
E, daqui, deriva o terceiro elemento. Retomando tradições do Antigo Testamento, a teologia calvinista realiza uma operação árdua. Numa condição de incerteza e de angústia, a riqueza torna-se um sinal de eleição, o sinal mais importante. Porque a riqueza diz (ou, pelo menos, aumenta a probabilidade) de fazer parte do número dos eleitos. A riqueza, também na Bíblia, era um sinal de alguma coisa diferente, maior e invisível, e, por isso, querida e cobiçada. No capitalismo calvinista, o invisível torna-se o paraíso.
Vocação, predestinação e riqueza-sinal: eis os três ingredientes do “espírito” do capitalismo, diversíssimo do espírito comercial medieval.
Toda uma nova classe de empresários começou, assim, a ler o sucesso económico como bênção, a viver a sua profissão como vocação e ascese e – fator determinante – à volta dos empresários cresce a aprovação social da riqueza-bênção, já não vista como sinal de pecado, mas de eleição. A procura do lucro tornou-se eticamente aceite e louvada; de vício passou a virtude.
Portanto, a vida vivida como vocação e ascese não é uma vida de conforto nem de luxo. Tudo é compromisso, pontualidade, severidade, não deixar espaço nem tempo para recreação, festa. Só o monge medieval e o capitalista odeiam a preguiça como o maior mal. O empresário calvinista não tem prazer com os seus ganhos, o dinheiro não é procurado para ser consumido mas para ser reinvestido e tronar-se mais dinheiro. É o valor intrínseco da riqueza a fazer o primeiro espirito do capitalismo e a marcar uma importante diferença entre o espírito protestante e católico do capitalismo, onde, pelo contrário, a riqueza não vale nada se não é ostentada e vista pelos outros. O capitalista descrito por Weber é verdadeiramente um monge, um “consagrado” que pratica uma espécie de voto laical de pobreza, embora no meio de muito dinheiro. E, como o monge católico era, individualmente, pobre, mas vivia em mosteiros ricos, o capitalista calvinista é, individualmente pobre, e a sua riqueza acumula-se na fábrica – está também aqui uma improvável analogia entre mosteiro e indústria moderna.
Não é difícil descobrir, na fascinante teoria weberiana, algumas grandes aporias e paradoxos do capitalismo, um sistema nascido da imitação laica da lógica da vocação dos monges que, no entanto, não produz o “nada possuir”, mas o louvor do lucro. Uma primeira aporia. O protestantismo nasce, na linha de Agostinho, de uma crítica feroz à teologia pelagiana, à ideia que a salvação estivesse ligada a obras e não fosse, pelo contrário, só graça. No espírito calvinista regressa, paradoxalmente, uma forma de pelagianismo. A salvação está associada às obras, embora as obras não sejam o meio de salvação mas apenas o meio para «se libertar da ânsia pela salvação» (Weber, 1905). É um pelagianismo de segunda ordem mas, no plano pragmático, estamos muito próximos da ética de Pelágio. E, assim, da crítica a Pelágio, nasce um capitalismo baseado na ideia que a salvação estivesse ligada a obras produtoras do bem menos “celeste” nos Evangelhos: mammona.
Mas há mais. A visão da riqueza como sinal de eleição e de bênção leva consigo, inevitavelmente, a ideia gémea da pobreza interpretada como sinal de condenação. Qualquer teoria da boa riqueza é também uma teoria da má pobreza. E, se a “bondade” dos ricos é legitimada e consagrada por um crisma religioso, a maldição dos pobres torna-se dupla maldição. A pobreza foi sempre, antes de uma falta de dinheiro e de bens, uma carência de bênção, um estigma religioso e, por isso, ao mesmo tempo, uma culpa e uma vergonha.
Mas nunca devemos esquecer que a Bíblia sempre viu com suspeita a equivalência entre riqueza e bênção, porque sabia muito bem que esta equivalência trazia consigo, de imediato, uma outra, tremenda e perigosa: pobreza = condenação. Eis porque ao lado das páginas bíblicas sobre bens como sinal de justiça e predileção (Abraão), a Bíblia coloca muitas outras que mostram o contrário. São as páginas dos profetas, as páginas estupendas de Job. Todas orientadas para desmontar a tese do pobre amaldiçoado e culpável. Está aqui o sentido verdadeiro de “bem-aventurados os pobres”, da agulha e do camelo, de Francisco e de muitos que escolheram a pobreza para libertar da maldição quem não tinha escolhido a pobreza.
A economia que coloca a riqueza no centro da sua estranha religião, será sempre uma economia que, antes de chamar abençoados aos ricos, chama malditos aos pobres. O capitalismo, identificando na riqueza uma bênção e uma promessa, produz, inevitavelmente, uma infinita fila de rejeitados, de malditos e culpáveis porque não trazem na fronte a marca da eleição. E se o selo dos eleitos fosse, pelo contrário, o “selo de Caim”, que continua a matar o frágil e pobre Abel?
O capitalismo do século XXI – vê-lo-emos – deslocou o sinal de bênção do empresário para o consumidor, mas continua a ser um grande mecanismo gerador de salvação (imaginária) e uma grande ideologia para chamar malditos os pobres, esquecê-los nas nossas favelas, tê-los bem escondidos, para nos convencermos de ter, finalmente, derrotado a pobreza.
O capitalismo de hoje não sabe nada de Calvino, da Bíblia e da doutrina de predestinação. Mas continua, na angústia, a procurar, na riqueza, o paraíso e a bênção. E a pobreza continua a ser maldição e os pobres e ser chamados malditos. Quando aprenderemos a ver o sinal de Abel?
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Original italiano publicado em Avvenire em 16/02/2020
O nascimento da economia capitalista é um grande paradoxo. Como foi possível que a procura da riqueza passasse de vício a bênção? E quais as consequências?
«O que nós sabemos é apenas isto: que uma parte da humanidade será salva e a outra permanecerá condenada».
Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo.
Uma Europa anticapitalista que gerou o “espírito” do capitalismo é um dos fenómenos mais misteriosos e complexos da história. A economia europeia de “carril duplo” (laico e religioso) tinha amadurecido, nos mosteiros e nas cidades, uma visão crítica da procura da riqueza material. Embora por razões diferentes, dentro e fora dos mosteiros e dos conventos, a procura de lucros e ganhos não era louvada nem encorajada.
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Original italiano publicado em Avvenire em 09/02/2020
«Neste sétimo tempo que já está próximo, acabaram a abertura dos selos e o esforço de expor os livros do Antigo Testamento e será, verdadeiramente, concedido o repouso sabático ao povo de Deus. Além disso, nesses dias, haverá justiça e abundância de paz».
Gioacchino da Fiore, I sette sigilli
A economia franciscana, que não se tornou a forma da economia medieval, poderia tornar-se a economia da era dos bens comuns.
Também o movimento franciscano tem o seu lugar no nascimento da economia de mercado. Não são poucos os historiadores e os economistas que indicam o pobre (poverello) de Assis como um precursor da economia de mercado e até mesmo do capitalismo. Foi franciscana, e facto, a primeira escola do pensamento económico medieval e, na segunda parte do século XV, os franciscanos fundaram os Montes-Pios, instituição financeira sem fins lucrativos (sine merito), na origem da tradição das finanças populares e sociais italianas e europeias. Um movimento espiritual nascido da escolha da “senhora pobreza” que fez nascer a banca e tratados sobre o dinheiro que sempre gerou surpresa, juntamente a muitas equívocos. De facto, como no caso do monaquismo, também a relação entre franciscanos e economia é muito mais complexa que do modo como é contada – e muito mais interessante.
[fulltext] =>Francisco começou a sua revolução, também económica, também económica, escolhendo como sua forma de vida apenas o Evangelho: apenas; está neste advérbio limitativo a novidade do franciscanismo. Nós já não temos as categorias para compreender o que era a pobreza de Francisco e, depois, de Clara. Diferentemente da dos mosteiros, era uma pobreza individual e uma pobreza comunitária: nem as pessoas nem os conventos deviam possuir qualquer bem. Como Ugo di Digne gostava de dizer, o único direito que os franciscanos têm é o direito a nada ter, a vivere sine proprio. Imediatamente, o debate, também jurídico, ganha forma na distinção entre propriedade dos bens e o seu uso. Os teólogos e juristas franciscanos procuraram convencer a Igreja que era possível viver sem possuir qualquer bem, mesmos os bens necessários para se alimentar: «Como o cavalo tem, de facto, o uso, mas não a propriedade, da aveia que come, assim também o religioso tem o simples uso do pão, do vinho e do vestuário» (Bonagrazia de Bergamo). Por isso, usaram estratégias jurídicas extremas, como a equiparação dos frades aos menores, aos incapazes, aos loucos furiosos ou o alargar a exceção do “estado de necessidade” à sua condição normal de vida.
Enquanto a Idade Média cristã seguia a ética económica moderna, herdada do Império Romano tardio, Francisco e os seus frades e as suas religiosas tentaram algo de impensado que ainda hoje nos deixa sem respiração: voltaram para as ruas, recolheram a herança do primeiro nome dos cristãos, “os do caminho”, de ricos tornaram-se pobres no meio dos pobres. Francisco passou pelo fundo da agulha, não porque alargou o buraco da agulha, mas porque reduziu o “camelo”, até o tornar subtilíssimo. “Bem-aventurados os pobres” torna-se a sua felicidade desejada e cobiçada: «Oh riqueza ignota! Oh bem feraz só verdadeiro! Descalço vai Egídio, descalço vai Silvestre atrás do esposo, se a esposa gosta» (Paraíso XI, 84). Só Dante podia encerrar, num único verso, o paraíso de Francisco.
A grande tentativa franciscana em distinguir propriedade privada dos bens do seu uso teve sucesso. Em 1322, o Papa João XXII, ratificou a tese do seu predecessor Nicolau III, e estabeleceu a impossibilidade do uso dos bens apenas e atribuiu à ordem a propriedade dos bens que usavam. A utopia concreta dos franciscanos não entrou nem no Direito da Igreja Romana nem na herança económico-jurídica do Ocidente. Mas não morreu, porque continua a desafiar as nossas economias e os nossos sistemas jurídicos.
A história de Francisco cruza, em vários pontos, a história teológica da Europa cristã. Enquanto Assis começava a sua oikonomia paradoxal, na Igreja romana estava a chegar a uma primeira síntese do antigo princípio teológico do opus operatum (ou ex opera operato). De que se trata? E porque é relevante para o nosso discurso?
Diz respeito à relação entre a dignidade, a honra e o mérito dos sacerdotes e a validade dos seus atos e das suas palavras. Com o início do segundo milénio, a Igreja decretou que não eram as condições subjetivas dos homens de Igreja a determinar a validade dos seus atos, porque os méritos que lhes davam eficácia não eram os do padre mas os de Cristo. O sacramento tem a sua eficácia intrínseca (é a própria ação a operar), que não se torna ineficaz pelos pecados da pessoa que o administra, nem aumentada pelos seus méritos – um provérbio que repetia a minha avó exprime o que, daquela teologia, tinha entrado no povo: «Olha para o que o padre diz e não para o que ele faz». Um padre indigno permanece padre e as suas liturgias e os seus sacramentos permanecem válidos e eficazes. Uma discussão que, depois, se tornará importante para Lutero e a teologia do opus operatum reafirmada pelo Concílio de Trento, contra as críticas protestantes.
O monaquismo das origens e, depois, o franciscanismo não seguiram o caminho do opus operatum. O ser franciscano é uma forma de vida (a do Evangelho); portanto, a não conformidade à vida afeta a substância do ser frade. Um frade que não vive como Cristo, não é um frade, nem uma irmã é irmã. Os seus atos e as suas palavras não são separáveis da sua vida. É claro que também os frades podem ser indignos, erram, pecam, são incoerentes, mas os seus atos não são protegidos por nenhuma teologia do opus operatum. Também isto é altíssima pobreza.
É verdade, então, que também a vocação religiosa franciscana (e dos outros carismas) tem uma sua misteriosa objetividade que recorda o opus operatum (a vocação não é um assunto moral, mas ontológico); mas nada nem ninguém garante aos frades a eficácia objetiva das suas obras e das suas palavras. A santidade da liturgia é vicária, substitui a da pessoa. Por outro lado, nem ninguém nem nada pode prometer que os atos e as palavras de Frei Mauro são eficazes pelo facto de ocorrerem numa forma de vida, porque nenhuma forma de vida é, de per si, eficaz ex opera operata – está aqui também uma explicação do porquê destes movimentos, monaquismo e franciscanismo, nascidos leigos, se transformaram, a pouco e pouco, em comunidades masculinas compostas quase totalmente por sacerdotes, porque o opus operatum oferece a esperança de alguma base sólida sobre a qual apoiar as próprias frágeis palavas e vida. A forma de vida mostra se são frades, mas não produz objetivamente frutos franciscanos e um franciscano indigno não tem, na liturgia, nenhuma rede de proteção. Os frades não são padres, mesmo quando se tornam isso; também por isso, a vida consagrada feminina, na Igreja Católica, é guardiã da forma da vocação e da sua altíssima pobreza. Está nesta paradoxal força e debilidade o mistério das vocações, a de Francisco e de todas as outras, religiosas ou civis.
Toda a instituição humana procura, desesperadamente, o seu opus operatum, porque, mais que qualquer outra coisa, deseja separar a validade objetiva dos próprios atos das qualidades subjetivas das suas pessoas, porque sabe que esta dependência a torna radicalmente vulnerável. Todos queremos hospitais eficazes, independentemente das qualidades dos médicos e dos enfermeiros, escolas que produzam cultura e educação sem depender do compromisso e da competência de mestres e professoras, parlamentos que criem leis imunes aos vícios dos seus políticos. Os carismas, porém, não podem, por sua natureza, alcançar este paraíso; estão dramaticamente dependentes da qualidade moral da sua gente. São mendicantes da fidelidade e do amor das suas pessoas, de que dependem em cada dia, em cada minuto. Uma missa pode ser válida, mesmo se numa paróquia não ficou nenhum sacerdote digno, mas uma comunidade religiosa morre quando desaparece a última pessoa fiel à sua forma de vida.
A economia moderna encontrou o seu opus operatum quando, com o capitalismo, separou as mercadorias das intenções e das qualidades morais dos seus produtores. Profeticamente, tinha-o intuído Marx, com a sua teoria da “mercadoria feitiço” e da “alienação”. Até à Idade Média, os produtos do trabalho levavam impressa a marca, embora invisível, do seu autor. A mercadoria não era separável de quem a tinha produzido e, do objeto, podia-se ascender ao sujeito. No mundo medieval era, portanto, essencial a convicção que os produtos da ação humana refletissem a qualidade moral de quem os tinha criado, a dimensão subjetiva das coisas era inseparável do objeto.
Com o capitalismo, o preço e o valor da mercadoria prescindem das condições objetivas de quem as produz (ou consuma). O valor torna-se ex opera operato, não depende das condições subjetivas do agente. As características morais da pessoa não têm qualquer efeito sobre o valor dos bens, a ponto de também termos inventado a sociedade anónima, uma ficção para separar a empresa das pessoas que a compõem e a gerem. No valor de troca das mercadorias não há vestígios das pessoas «escondidas sob o involucro das coisas» (O Capital). Esta despersonalização é essencial ao humanismo do capitalismo porque, caso contrário, se tivesse mantido as mercadorias ligadas ao seu autor, não teria nascido a produção em massa nem a reprodução infinita das coisas para o seu consumo.
O opus operatum do capitalismo intensificou-se muito nestes últimos anos. São cada vez mais os procedimentos e os protocolos, não as características das pessoas, a determinar a qualidade dos bens. Processos anónimos e despersonalizados (por exemplo: as certificações), que não dependem da qualidade objetiva dos procedimentos. Também a administração está a tornar-se um conjunto de técnicas e de instrumentos que, para serem perfeitos, devem depender o menos possível das dimensões subjetivas das pessoas – a antiga ideia da magia ou (hoje) da técnica como meio de salvação, uma onda que está a atingir também Igrejas e comunidades ideais.
Mas o próprio capitalismo está a gerar a superação do seu opus operatum e uma aproximação paradoxal à economia da forma de vida. Sobretudo em determinados sectores (a alimentação ou o turismo, por exemplo), não queremos as mercadorias desligadas das pessoas: voltámos a procurar as pessoas escondidas por detrás das coisas. Queremos conhecer a história dos agricultores, dos empresários, dos cozinheiros, as suas intenções, para compreender se são verdadeiramente genuínos e autênticos, como se a linguagem dos produtos já não nos bastasse. E também na administração se fala do carisma de administrador, e os procedimentos anónimos estão a dar lugar ao talento do leader, à personalidade e ao génio das pessoas. Nas grandes crises, morrem os objetos e volta, com força, a saudade do olhar das mulheres e dos homens.
Os primeiros franciscanos (Pietro Olivi), retomando a profecia de Gioacchino da Fiore, acreditavam que, no último tempo, o sétimo, seria o da altíssima pobreza de Francisco que, para eles, era o profeta do tempo último. Com o terceiro milénio, entrámos na era dos bens comuns: se continuamos a sentir-nos proprietários e donos da terra, da atmosfera, dos oceanos, conseguiremos apenas destruí-los. Temos de, rapidamente, aprender a utilizar os bens sem ser seus donos; devemos, velozmente, aprender a arte do uso sem propriedade. A arte de Francisco. E se fosse a economia do sine proprio a da era dos bens comuns? Estará a de Francisco, a oikonomia capaz de salvar-nos a nós e à terra?
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Original italiano publicado em Avvenire em 09/02/2020
«Neste sétimo tempo que já está próximo, acabaram a abertura dos selos e o esforço de expor os livros do Antigo Testamento e será, verdadeiramente, concedido o repouso sabático ao povo de Deus. Além disso, nesses dias, haverá justiça e abundância de paz».
Gioacchino da Fiore, I sette sigilli
A economia franciscana, que não se tornou a forma da economia medieval, poderia tornar-se a economia da era dos bens comuns.
Também o movimento franciscano tem o seu lugar no nascimento da economia de mercado. Não são poucos os historiadores e os economistas que indicam o pobre (poverello) de Assis como um precursor da economia de mercado e até mesmo do capitalismo. Foi franciscana, e facto, a primeira escola do pensamento económico medieval e, na segunda parte do século XV, os franciscanos fundaram os Montes-Pios, instituição financeira sem fins lucrativos (sine merito), na origem da tradição das finanças populares e sociais italianas e europeias. Um movimento espiritual nascido da escolha da “senhora pobreza” que fez nascer a banca e tratados sobre o dinheiro que sempre gerou surpresa, juntamente a muitas equívocos. De facto, como no caso do monaquismo, também a relação entre franciscanos e economia é muito mais complexa que do modo como é contada – e muito mais interessante.
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Original italiano publicado em Avvenire em 02/02/2020
«O monaquismo tinha realizado nos seus mosteiros uma escansão temporal da existência dos monges que talvez não tenha sido igualada em nenhuma instituição da modernidade, nem sequer pela fábrica taylorista».
G. Agamben, Homo sacer.
As empresas modernas gostariam de imitar os antigos mosteiros. Mas, graças a Deus, ainda não o conseguiram.
O monaquismo é uma raiz da economia de mercado. Abdicando da lógica económica ordinária, monges e monjas originaram experiências evangélicas que geraram também economia europeia. O capitalismo não foi gerado apenas pelo monaquismo, mas não teria nascido sem o monaquismo. Muito antes da Reforma protestante (Max Weber), foi o monaquismo o primeiro grande episódio de “heterogéneses dos fins” da economia moderna. Foi um movimento imenso, surpreendente, maravilhoso. Mudou a Europa, tornou-a mais bonita e mais rica, aumentou a sua biodiversidade cultural, espiritual, artística, florestal, enogastronómica e, depois, quase por engano, inventou também uma outra economia. Não é de espantar que já sejam vários (por exemplo: Pierre Musso e Isabel Jonveaux) a afirmar que as grandes empresas modernas são a secularização dos antigos mosteiros. Uma tese ousada que, aqui, se criticará em parte, mas que é um bom ponto de partida. De facto, exceto pouquíssimas (e atrasadas) experiências, como o Arsenal de Veneza, as catedrais e as oficinas dos grandes artistas/artesãos, o mundo burguês medieval não conhecia a cooperação produtiva extensa, estável e racional de comunidades inteiras de homens (ou mulheres). Nalgumas regiões italianas e francesas, havia centenas de mosteiros e, na Idade Média, tiveram uma duração média de cinco séculos.
Alguns veem na figura do abade um paradigma da leadership. Na realidade, a “leadership” – palavra ambígua de que gosto pouco – do abade é mediada, equilibrada e redimensionada pela regra. O verdadeiro leader do mosteiro é a regra. Cada um, no mosteiro, segue a regra, incluindo o abade, que é modelo para os outros, enquanto fidelíssimo à mesma regra de todos. O abade, diferentemente do fundador de comunidade, é, portanto, um seguidor (follower), não um leader. A longevidade, a resiliência e a sustentabilidade dos mosteiros está precisamente na despersona-lização da leadership, como a fragilidade e a curta duração das comunidades (e empresas) carismáticas estão na personalização do fundador que, geralmente, se torna a hipóstase do carisma da comunidade. A imagem do carisma do mosteiro não é o abade, nem mesmo São Bento ou São Basílio, mas a regra. A ponto de muitos mosteiros terem nascido e nascerem à volta da única regra, sem nenhuma personalidade carismática. A leadership da regra está mais distante do que se possa imaginar do governo das grandes empresas de hoje, mesmo das que se dizem inspiradas pela regra de São Bento.
Existem também outros aspetos do monaquismo, menos evidentes mas muito importantes, em relação à economia e às empresas. Antes de mais, o trabalho. Ora et labora é a primeira que vem à memória quando se pensa no monaquismo. O mosteiro apresentava-se, desde as origens, como uma oficina (oficina divinae artis). A própria vida do monge era vista como aprendizagem de uma ars, portanto de um ofício, de uma profissão, e assim era apresentada por alguns antigos fundadores (Cassiano).
No mundo antigo, trabalhavam os escravos – «Todos os artesãos, entretanto, exercem uma profissão vulgar; não há nada de nobreza numa oficina» (Cícero, De Officiis). No monaquismo, também trabalhavam os monges, normalmente cultos e doutores em teologia e noutras ciências. Isto, só por si, bastaria para compreender o que a reunificação das mãos com a cabeça significou para a ética do trabalho. Quando um camponês ou um artesão analfabeto via os monges a trabalhar, fazer as mesmas coisas que eles faziam, compreendia imediatamente que o seu trabalho era importante, não era assunto para servos e escravos. A fé na Incarnação tinha ensinado aos monges que tocar a matéria não é algo de impuro que, por isso, se destina apenas ao escravo. A terra, o pó, o alimento, são sinais e sacramento da própria vida. Só quem usou as mãos para produzir pão e vinho sabe, verdadeiramente, o que é a Eucaristia, porque intui que aqueles bens que, sobre o altar, mudam pela ação eficaz da palavra do sacerdote, são, dum outro ponto de vista verdadeiro, sempre as mesmas coisas boas, nascidas da videira e do trabalho do homem. Sem uma nova ética do trabalho e da matéria, não teríamos a economia de mercado e não teríamos esta nova ética sem os monges.
Não é, no entanto, fácil compreender onde, verdadeiramente, se encontra a inovação que o monaquismo realizou no campo do trabalho. Antes de mais, temos de renunciar a considerar a relação entre oração e trabalho apenas como uma divisão prática do tempo da vida. Os monges tinham de gerir a tensão entre as duas palavras bíblicas: «orai sempre» (Lc 18, 1) e «quem não trabalha, não coma» (2Ts 3, 10). Mas resolveram-na num modo absolutamente original. O verdadeiro golpe de génio, antropológico e espiritual do monaquismo foi entender e realizar a oração e o trabalho como momentos da única liturgia da regra. Nos mosteiros, o tempo do trabalho não é tempo tirado à oração, nem o tempo de oração é tirado ao trabalho. Não se reza menos porque se trabalha nem se trabalha menos porque se reza. Para realizar esta espécie de alquimia, os fundadores do monaquismo fizeram algo de incrível. Embora agindo no interior de uma visão quantitativa das doze horas do tempo, inventaram a pedra filosofal do tempo-qualidade. Enquanto o horologium do officium marcava severamente o dia, um outro relógio alargava esse mesmo tempo até o fazer coincidir com o infinito. A gestão racional do tempo, nos mosteiros, que parece antecipar, em muitos séculos, a “divisão do trabalho” de Smith e a “divisão do conhecimento” de Hayek, para ser compreendida, deve ser lida juntamente à sua visão qualitativa e litúrgica, que a humanizava e descobria os tetos das bibliotecas e das quintas. Num pequeno lugar, rigidamente delimitado e cercado pelos muros da abadia, nesta carestia de espaço, os monges inventaram um outro tempo, aprenderam a não ocupar espaços para ativar processos (ainda vivos). A liturgia da regra acrescenta uma dimensão ao tempo de vida e, assim, a linha do tempo torna-se uma superfície.
Graças à visão litúrgica do tempo e da vida, uma parte quantitativa do tempo de um dia pode tornar-se, qualitativamente, a eternidade. De facto, é típica da liturgia a capacidade de criar um outro tempo: furar o tempo-quantidade e tocar o infinito, fazer-nos passear, todos os dias, nos jardins do Éden. Uma grande inovação do monaquismo foi a invenção deste outro tempo. Uma experiência que todos podemos repetir, vivendo, por alguns dias, num mosteiro: o tempo abranda, torna-se mais denso, entra-se num outro ritmo de vida. Embora os anos de vida dos monges não fossem, em média, muitos mais daqueles que viviam fora do cenóbio, na realidade, nos mosteiros, viva-se e vive-se um tempo mais longo e profundo. É esta espécie de “vida eterna” terrena que sempre fascinou e atraiu muitos aos mosteiros. Uma experiência tão inebriante que se torna a grande tentação do monaquismo, porque, por vezes, fez cultivar o desejo de ser imortais, como Deus (a promessa da serpente). Se a regra coincide com a vida e a vida com a regra, pode-se chegar a ser tão absorvidos pela liturgia a ponto de não sentir mais a vida e vice-versa.
É nesta visão litúrgica, consentida pela regra, que o trabalho e a oração podem ter a mesma dignidade e não estar em conflito entre eles. Aqui, o trabalho não precisa de ser espiritualizado, rezando salmos e terços enquanto se trabalha. Não é necessário, nem pedido: o trabalho é atividade do mesmo valor que a oração porque é parte da mesma liturgia e, por isso, da mesma vida; estão dentro da mesma regra. Significa isto então que o trabalho vale enquanto trabalho, tem um valor intrínseco embora seja instrumental para a vida. Esta é a paradoxal laicidade dos monges. O monaquismo conheceu e conhece as suas crises quando as mãos que recolhem o trigo e o vinho foram consideradas menos dignas e espirituais que as de quem dizia a Missa, ou quando alguém (em Cluny) pensou que as horas passadas a dizer missa pudessem substituir as passadas na vinha. Mas conhece e conheceu outras crises quando quis espiritualizar o trabalho, recomendado aos monges salmodiar enquanto trabalhavam, meditar na Bíblia enquanto vindimavam. Estes reducionismos encolhem a profecia do monaquismo, encurtam o tempo, cortam os seus horizontes, recolocam o dia dentro das suas 24 horas. Porque, se rezo enquanto trabalho na forma de oração, estou a subtrair tempo ao meu dia. A profecia do monaquismo era – e é – trabalhar e basta, no tempo e na forma do trabalho, e rezar e basta, no tempo e na forma da oração; assim, cada momento é útil e regenera o outro e, juntos, são um grande canto à laicidade da vida, onde o sagrado não come o profano, porque também o profano é liturgia e a liturgia não é mais que a vida. Nos mosteiros, derrota-se a morte quando, com os pés enterrados na lama dos campos, se toca o céu com um dedo sujo do trabalho.
É esta dimensão qualitativa do tempo que falta nas modernas empresas dos módulos, das cronometragens, dos bónus, que querem controlar o tempo com relógios cada vez mais sofisticados, mas que não conhecem a outra dimensão do tempo que, quando existe, liberta o trabalhador dos incentivos e dos controlos. Uma dimensão qualitativa que falta porque poria em crise toda a estrutura das empresas, que se mantem enquanto o tempo pode ser medido e usado para incentivar e medir os méritos.
Mas há mais. Se, por um lado, as grandes empresas modernas se estão a afastar do humanismo dos mosteiros, por outro lado, sem o saber, estão a aproximar-se muito dele. Diferentemente das fábricas tayloristas do século XVIII, em que as nossas mãos eram suficientes, as empresas do século XXI, sonham, cada vez mais, trabalhadores-monges. O management quer trabalhadores com vocação, que não sejam guiados pelo incentivo externo (muito débil) mas por um impulso interior, que adiram à missão da empresa, que não conheçam a distinção entre tempo e trabalho, onde o trabalho coincida com a vida. Essencialmente, gostariam de monges, que não trabalham pelo salário nem pelo lucro, mas por uma fidelidade íntima que, numa visão litúrgica da vida, não deixam de trabalhar mesmo quando dormem, porque até o sono é officium. Gostariam deles como os monges descritos por Agostinho: «Ninguém trabalhe em nada para si mesmo, mas que todos os seus trabalhos se realizem para o bem da comunidade, com maior cuidado e prontidão de ânimo como se cada um o fizesse para si mesmo» (Regra 31). A promessa das empresas, diversamente da dos mosteiros, é muito pequena. Para ter trabalhadores-monges, querer-se-ia o paraíso, um outro tempo, outros incentivos. As empresas não os têm, mas estão a fazer de tudo para nos convencer do contrário. Conhecer e meditar a grande tradição monástica poderia tornar-se o único verdadeiro antídoto para as falsas e sedutoras promessas de paraíso.
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Original italiano publicado em Avvenire em 02/02/2020
«O monaquismo tinha realizado nos seus mosteiros uma escansão temporal da existência dos monges que talvez não tenha sido igualada em nenhuma instituição da modernidade, nem sequer pela fábrica taylorista».
G. Agamben, Homo sacer.
As empresas modernas gostariam de imitar os antigos mosteiros. Mas, graças a Deus, ainda não o conseguiram.
O monaquismo é uma raiz da economia de mercado. Abdicando da lógica económica ordinária, monges e monjas originaram experiências evangélicas que geraram também economia europeia. O capitalismo não foi gerado apenas pelo monaquismo, mas não teria nascido sem o monaquismo. Muito antes da Reforma protestante (Max Weber), foi o monaquismo o primeiro grande episódio de “heterogéneses dos fins” da economia moderna. Foi um movimento imenso, surpreendente, maravilhoso. Mudou a Europa, tornou-a mais bonita e mais rica, aumentou a sua biodiversidade cultural, espiritual, artística, florestal, enogastronómica e, depois, quase por engano, inventou também uma outra economia. Não é de espantar que já sejam vários (por exemplo: Pierre Musso e Isabel Jonveaux) a afirmar que as grandes empresas modernas são a secularização dos antigos mosteiros. Uma tese ousada que, aqui, se criticará em parte, mas que é um bom ponto de partida. De facto, exceto pouquíssimas (e atrasadas) experiências, como o Arsenal de Veneza, as catedrais e as oficinas dos grandes artistas/artesãos, o mundo burguês medieval não conhecia a cooperação produtiva extensa, estável e racional de comunidades inteiras de homens (ou mulheres). Nalgumas regiões italianas e francesas, havia centenas de mosteiros e, na Idade Média, tiveram uma duração média de cinco séculos.
Alguns veem na figura do abade um paradigma da leadership. Na realidade, a “leadership” – palavra ambígua de que gosto pouco – do abade é mediada, equilibrada e redimensionada pela regra. O verdadeiro leader do mosteiro é a regra. Cada um, no mosteiro, segue a regra, incluindo o abade, que é modelo para os outros, enquanto fidelíssimo à mesma regra de todos. O abade, diferentemente do fundador de comunidade, é, portanto, um seguidor (follower), não um leader. A longevidade, a resiliência e a sustentabilidade dos mosteiros está precisamente na despersona-lização da leadership, como a fragilidade e a curta duração das comunidades (e empresas) carismáticas estão na personalização do fundador que, geralmente, se torna a hipóstase do carisma da comunidade. A imagem do carisma do mosteiro não é o abade, nem mesmo São Bento ou São Basílio, mas a regra. A ponto de muitos mosteiros terem nascido e nascerem à volta da única regra, sem nenhuma personalidade carismática. A leadership da regra está mais distante do que se possa imaginar do governo das grandes empresas de hoje, mesmo das que se dizem inspiradas pela regra de São Bento.
Existem também outros aspetos do monaquismo, menos evidentes mas muito importantes, em relação à economia e às empresas. Antes de mais, o trabalho. Ora et labora é a primeira que vem à memória quando se pensa no monaquismo. O mosteiro apresentava-se, desde as origens, como uma oficina (oficina divinae artis). A própria vida do monge era vista como aprendizagem de uma ars, portanto de um ofício, de uma profissão, e assim era apresentada por alguns antigos fundadores (Cassiano).
No mundo antigo, trabalhavam os escravos – «Todos os artesãos, entretanto, exercem uma profissão vulgar; não há nada de nobreza numa oficina» (Cícero, De Officiis). No monaquismo, também trabalhavam os monges, normalmente cultos e doutores em teologia e noutras ciências. Isto, só por si, bastaria para compreender o que a reunificação das mãos com a cabeça significou para a ética do trabalho. Quando um camponês ou um artesão analfabeto via os monges a trabalhar, fazer as mesmas coisas que eles faziam, compreendia imediatamente que o seu trabalho era importante, não era assunto para servos e escravos. A fé na Incarnação tinha ensinado aos monges que tocar a matéria não é algo de impuro que, por isso, se destina apenas ao escravo. A terra, o pó, o alimento, são sinais e sacramento da própria vida. Só quem usou as mãos para produzir pão e vinho sabe, verdadeiramente, o que é a Eucaristia, porque intui que aqueles bens que, sobre o altar, mudam pela ação eficaz da palavra do sacerdote, são, dum outro ponto de vista verdadeiro, sempre as mesmas coisas boas, nascidas da videira e do trabalho do homem. Sem uma nova ética do trabalho e da matéria, não teríamos a economia de mercado e não teríamos esta nova ética sem os monges.
Não é, no entanto, fácil compreender onde, verdadeiramente, se encontra a inovação que o monaquismo realizou no campo do trabalho. Antes de mais, temos de renunciar a considerar a relação entre oração e trabalho apenas como uma divisão prática do tempo da vida. Os monges tinham de gerir a tensão entre as duas palavras bíblicas: «orai sempre» (Lc 18, 1) e «quem não trabalha, não coma» (2Ts 3, 10). Mas resolveram-na num modo absolutamente original. O verdadeiro golpe de génio, antropológico e espiritual do monaquismo foi entender e realizar a oração e o trabalho como momentos da única liturgia da regra. Nos mosteiros, o tempo do trabalho não é tempo tirado à oração, nem o tempo de oração é tirado ao trabalho. Não se reza menos porque se trabalha nem se trabalha menos porque se reza. Para realizar esta espécie de alquimia, os fundadores do monaquismo fizeram algo de incrível. Embora agindo no interior de uma visão quantitativa das doze horas do tempo, inventaram a pedra filosofal do tempo-qualidade. Enquanto o horologium do officium marcava severamente o dia, um outro relógio alargava esse mesmo tempo até o fazer coincidir com o infinito. A gestão racional do tempo, nos mosteiros, que parece antecipar, em muitos séculos, a “divisão do trabalho” de Smith e a “divisão do conhecimento” de Hayek, para ser compreendida, deve ser lida juntamente à sua visão qualitativa e litúrgica, que a humanizava e descobria os tetos das bibliotecas e das quintas. Num pequeno lugar, rigidamente delimitado e cercado pelos muros da abadia, nesta carestia de espaço, os monges inventaram um outro tempo, aprenderam a não ocupar espaços para ativar processos (ainda vivos). A liturgia da regra acrescenta uma dimensão ao tempo de vida e, assim, a linha do tempo torna-se uma superfície.
Graças à visão litúrgica do tempo e da vida, uma parte quantitativa do tempo de um dia pode tornar-se, qualitativamente, a eternidade. De facto, é típica da liturgia a capacidade de criar um outro tempo: furar o tempo-quantidade e tocar o infinito, fazer-nos passear, todos os dias, nos jardins do Éden. Uma grande inovação do monaquismo foi a invenção deste outro tempo. Uma experiência que todos podemos repetir, vivendo, por alguns dias, num mosteiro: o tempo abranda, torna-se mais denso, entra-se num outro ritmo de vida. Embora os anos de vida dos monges não fossem, em média, muitos mais daqueles que viviam fora do cenóbio, na realidade, nos mosteiros, viva-se e vive-se um tempo mais longo e profundo. É esta espécie de “vida eterna” terrena que sempre fascinou e atraiu muitos aos mosteiros. Uma experiência tão inebriante que se torna a grande tentação do monaquismo, porque, por vezes, fez cultivar o desejo de ser imortais, como Deus (a promessa da serpente). Se a regra coincide com a vida e a vida com a regra, pode-se chegar a ser tão absorvidos pela liturgia a ponto de não sentir mais a vida e vice-versa.
É nesta visão litúrgica, consentida pela regra, que o trabalho e a oração podem ter a mesma dignidade e não estar em conflito entre eles. Aqui, o trabalho não precisa de ser espiritualizado, rezando salmos e terços enquanto se trabalha. Não é necessário, nem pedido: o trabalho é atividade do mesmo valor que a oração porque é parte da mesma liturgia e, por isso, da mesma vida; estão dentro da mesma regra. Significa isto então que o trabalho vale enquanto trabalho, tem um valor intrínseco embora seja instrumental para a vida. Esta é a paradoxal laicidade dos monges. O monaquismo conheceu e conhece as suas crises quando as mãos que recolhem o trigo e o vinho foram consideradas menos dignas e espirituais que as de quem dizia a Missa, ou quando alguém (em Cluny) pensou que as horas passadas a dizer missa pudessem substituir as passadas na vinha. Mas conhece e conheceu outras crises quando quis espiritualizar o trabalho, recomendado aos monges salmodiar enquanto trabalhavam, meditar na Bíblia enquanto vindimavam. Estes reducionismos encolhem a profecia do monaquismo, encurtam o tempo, cortam os seus horizontes, recolocam o dia dentro das suas 24 horas. Porque, se rezo enquanto trabalho na forma de oração, estou a subtrair tempo ao meu dia. A profecia do monaquismo era – e é – trabalhar e basta, no tempo e na forma do trabalho, e rezar e basta, no tempo e na forma da oração; assim, cada momento é útil e regenera o outro e, juntos, são um grande canto à laicidade da vida, onde o sagrado não come o profano, porque também o profano é liturgia e a liturgia não é mais que a vida. Nos mosteiros, derrota-se a morte quando, com os pés enterrados na lama dos campos, se toca o céu com um dedo sujo do trabalho.
É esta dimensão qualitativa do tempo que falta nas modernas empresas dos módulos, das cronometragens, dos bónus, que querem controlar o tempo com relógios cada vez mais sofisticados, mas que não conhecem a outra dimensão do tempo que, quando existe, liberta o trabalhador dos incentivos e dos controlos. Uma dimensão qualitativa que falta porque poria em crise toda a estrutura das empresas, que se mantem enquanto o tempo pode ser medido e usado para incentivar e medir os méritos.
Mas há mais. Se, por um lado, as grandes empresas modernas se estão a afastar do humanismo dos mosteiros, por outro lado, sem o saber, estão a aproximar-se muito dele. Diferentemente das fábricas tayloristas do século XVIII, em que as nossas mãos eram suficientes, as empresas do século XXI, sonham, cada vez mais, trabalhadores-monges. O management quer trabalhadores com vocação, que não sejam guiados pelo incentivo externo (muito débil) mas por um impulso interior, que adiram à missão da empresa, que não conheçam a distinção entre tempo e trabalho, onde o trabalho coincida com a vida. Essencialmente, gostariam de monges, que não trabalham pelo salário nem pelo lucro, mas por uma fidelidade íntima que, numa visão litúrgica da vida, não deixam de trabalhar mesmo quando dormem, porque até o sono é officium. Gostariam deles como os monges descritos por Agostinho: «Ninguém trabalhe em nada para si mesmo, mas que todos os seus trabalhos se realizem para o bem da comunidade, com maior cuidado e prontidão de ânimo como se cada um o fizesse para si mesmo» (Regra 31). A promessa das empresas, diversamente da dos mosteiros, é muito pequena. Para ter trabalhadores-monges, querer-se-ia o paraíso, um outro tempo, outros incentivos. As empresas não os têm, mas estão a fazer de tudo para nos convencer do contrário. Conhecer e meditar a grande tradição monástica poderia tornar-se o único verdadeiro antídoto para as falsas e sedutoras promessas de paraíso.
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stdClass Object ( [id] => 17301 [title] => O buraco da agulha tornou-se grande [alias] => o-buraco-da-agulha-tornou-se-grande [introtext] =>Oikonomia / 3 – Ricos e pobres: assim, o cristianismo adotou a possível ética romana
Original italiano publicado em Avvenire em 26/01/2020
«Acreditam possuir enquanto são possuídos, não donos do dinheiro mas vendidos a ele»
Cipriano, De lapsis
Quanto entrou dos evangelhos na ética económica europeia? Não muito. E Santo Agostinho desempenhou um papel determinante.
O capitalismo está a fazer com o cristianismo algo de parecido ao que o cristianismo tinha feito com o império romano quando, a partir do século IV, se substituiu à sua cultura e à sua religião, alimentando-se delas. Portanto, se dizemos – seguindo, de bom gosto, Walter Benjamin – que o capitalismo cresceu, como «parasita» do cristianismo, temos de dizer que, muitos séculos antes, fora o cristianismo a crescer, no sentido que veremos, como parasita do mundo romano, colocando o seu ovo num outro ninho.
[fulltext] =>Partamos duma pergunta: o que é que, da visão económica dos Evangelhos e do Novo Testamento, entrou na christianitas medieval e, assim, na ethos do Ocidente? A ética económica, no Novo Testamento, não é simples. Porque nunca foi fácil juntar a parábola dos talentos com a do trabalhador da última hora, a ética do «bom samaritano» com a do «administrador desonesto», onde – a única vez nos Evangelhos – aparece a palavra oikonomia. Jesus chamava «felizes» aos pobres, mas ele não era “tecnicamente” um pobre e não excluía os ricos do seu grupo (Mateus, Zaqueu, José de Arimateia…). Algumas palavras sobre bens e riquezas ocuparam, imediatamente, um lugar especial. A primeira é o relato do «homem rico» (conhecido como «jovem rico») onde Jesus, para responder à sua pergunta para «obter a vida eterna», indica-lhe a «única coisa» ainda em falta: «Vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres; depois, vem e segue-me». Depois, perante a sua recusa, formula uma das suas frases “económicas” mais célebres – a do rico, o camelo e o buraco da agulha (Marcos 10, 18-22). Uma visão crítica da riqueza, que se liga à grande tradição profética bíblica (Amós, Isaías), a Job e a Qohélet. Ao mesmo tempo, devemos ter presente que a crítica da riqueza contrasta com a outra alma muito presente na Bíblia, a que lê os bens como bênção de Deus e como sinal de justiça das pessoas (por exemplo, Abraão e os patriarcas).
O outro grande lugar “económico” do Novo Testamento é o capítulo quarto dos Atos dos Apóstolos, onde se descreve a comunhão de bens dos cristãos de Jerusalém: «A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma. Ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas entre eles tudo era comum» (4, 32). Aqui, com a comunhão, encontramos a distinção entre uso e propriedade dos bens que, séculos depois, se tornará central, no movimento franciscano. Deve-se porém referir uma diferença importante entre a visão da pobreza/riqueza que brota do episódio do jovem rico, dos Evangelhos e a apresentada nos Atos. Ali, o convertido à boa nova dava os seus bens aos pobres e entrava na comunidade cristã como pobre (por escolha). Na comunidade de Jerusalém, pelo contrário, «não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um conforme a necessidade que tivesse» (4, 34-35). Aqui, os bens não eram dados aos pobres; o destaque é colocado na redistribuição interna na comunidade. Mais que a pobreza em si, é a comunhão intracomunitária a ser colocada no coração da Igreja, porque o ideal era: “ninguém necessitado” entre os fiéis.
Por fim, as cartas de Paulo. Aqui, é atribuído um espaço importante à “coleta” para ajudar os «santos» (expressão belíssima) da Igreja de Jerusalém. O seu pensamento está centrado no conceito de igualdade: «Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade. No momento presente, o que vos sobra a vós supera a indigência dos outros… Assim haverá igualdade» (2 Coríntios 8, 13-14). Estamos na mesma linha dos Atos: o centro não é a pobreza, mas a comunhão de bens. Portanto, no Novo Testamento, se se excetua a (fundamental) página das Bem-aventuranças, interessa a atitude em relação à riqueza, não tanto a pobreza. Se, depois, olharmos também para a literatura dos Padres da Igreja, encontramos frequentemente este duplo ensinamento nas relações com a riqueza: libertar-se dos bens é pré-condição pessoal para começar uma nova vida onde os verdadeiros bens são outros (é preciso esvaziar os celeiros para acolher o trigo novo), mas a mesma riqueza também é necessária para poder reduzir a pobreza na comunidade. Escrevia Clemente de Alexandria: «O Senhor aprova o uso das riquezas, a ponto de ordenar a comunhão dos bens» (Quis dives salvetur).
Depois, com o fim da época primitiva e carismática da Igreja, a difusão do cristianismo determinou, naturalmente, a chegada crescente de pessoas abastadas às comunidades. Foi significativo um episódio, acontecido em Roma, entre os anos 304 e 305 (Vita Melaniae). Dois jovens esposos cristãos, Valério Piniano e Melania a Jovem, tinham um grande património. Atraídos pela vida eremítica, começaram a desfazer-se da sua enorme riqueza para viverem uma vida de pobreza, na Sicília, e depois em Jerusalém, para imitar a vida pobre dos primeiros cristãos. Os esposos libertaram 8.000 escravos e venderam as propriedades. Os escravos contudo protestaram e revoltaram-se com esta decisão, pois se encontravam sem qualquer proteção e muitas terras foram abandonadas. Um episódio que contribuiu para o debate sobe pobreza e riqueza, que envolveu muitos teólogos entre os séculos IV e V. Estamos depois do Édito de Milão, e o cristianismo estava a ocupar, pouco a pouco, no povo, o lugar da religião romana. Era preciso algo de novo. Foi Agostinho a oferecê-lo.
Regressado a África, Agostinho estava muito interessado na unidade do povo cristão e, assim, foi obrigado a uma «certa reticência na relação com os ricos» (Peter Brown), certamente maior que a de Paulino de Nola, Jerónimo e Ambrósio. Com Agostinho, acentuou-se a leitura moral das parábolas e dos episódios “económicos” de Jesus, já presente nos primeiros Padres e as riquezas de que é preciso desfazer-se tornam-se as paixões más. A riqueza, em si, é boa, mas está sujeita, como todos os bens, à corrupção. A Agostinho interessa, sobretudo, a concórdia, a filantropia, a esmola, a ordem e o amor civicus romano. E, assim, retoma quase completamente a ética romana clássica, inclusive a ideia que os ricos eram necessários para a gestão do poder e do bom governo. A complicar tudo isto esteve também o papel de Pelágio, um “herético” contra quem Agostinho travou uma duríssima batalha teológica. Apesar de o centro daquela grande polémica ser o tema da graça e da riqueza, Pelágio e os seus seguidores desenvolveram, também por influência da filosofia estoica, uma visão negativa radical em relação à riqueza que se enraíza particularmente nas elites romanas. Como consequência da teologia pelagiana da salvação ligada às obras, os ricos, para se salvarem, deveriam renunciar a todos os seus haveres (como Piniano e Melania) e, assim, procurar passar no buraco da agulha: «Um rico que permaneça na posse das suas riquezas, não pode entrar no Reino» (De divitiis). É a renúncia voluntária à riqueza a obra que nos salva. E, depois, acrescenta, claramente em polémica com Agostinho: «E não pode ajudá-lo em nada, na garantia da salvação, usar as suas riquezas para a esmola». Os pelagianos tentaram também uma análise da morfologia e da origem da riqueza, chegando a conclusões muito fortes: «A riqueza dificilmente pode ser adquirida sem qualquer injustiça» (De divitiis).
A batalha teológica foi vencida por Agostinho e, juntamente com a teologia de Pelágio, foi derrotada também a sua visão da riqueza: «Se os ricos forem virtuosos, não se preocupem: quando chegar o último dia, estarão na Arca» (Agostinho, Sermo Dolbeau). E, assim, o lugar do princípio pelagiano - «Acaba com os ricos e deixará de haver pobres» - foi ocupado pelo de Agostinho: «Acaba com a soberba e a riqueza não te trará prejuízo» (Disc. sobre VT, sermo 39, 4). O camelo consegue passar porque o buraco da agulha foi muito alargado. A vitória de Agostinho orientou verdadeiramente a moral económica da Europa e, assim, a história do Ocidente.
Neste momento, temos de voltar ao “pessimismo” donde partimos. O que nós chamamos visão cristã da riqueza e da pobreza foi, em grande parte, uma herança recolhida do mundo romano. Acerca do uso da riqueza, o cristianismo medieval deixou as formas da civilização romana (quase) imutáveis. A falta, nos Evangelhos, de uma verdadeira doutrina popular sobre a riqueza (a que havia foi considerada demasiado exigente para se tornar universal) fez com que os Padres e os teólogos adotassem a ética cívica romana pré-existente que se prestava bem para se tornar ética possível para todos, ricos e pobres. Enquanto para outras dimensões da vida e da religião, o cristianismo trouxe, para a Europa, uma grande novidade, a ética económica cristã nasce de um enxerto na árvore romana (e grega) e sobre a sua ética privada e pública. De algum modo, foram mais influentes Cícero e Séneca que o “jovem rico” e a “comunhão de bens”. A assistência aos pobres, o aprovisionamento anual, a doação e a magnanimidade dos ricos, sobre os quais se constrói a cultura da riqueza e da pobreza, na Idade Média, eram, de facto, já pré-existentes e ativos no império romano tardio; os cristãos retomaram-no, mudando apenas em aspetos marginais e não os determinantes (por exemplo, a recompensa pela beneficência já não era a estátua no foro, mas o paraíso). Para poder tornar-se possível a todos, a ética económica cristã foi obrigada a pagar o preço de se tornar mais romana, a «crescer parasitariamente» sobre a ética do império romano, que se estava a desintegrar.
Por fim, há um outro aspeto relevante, ao qual voltaremos. Paralelamente à afirmação de uma ética da riqueza, possível, conciliante e moderada, naqueles mesmos séculos, começava o grande movimento do monaquismo. Naquele tempo, começou a afirmar-se a ideia que a radicalidade pedida pelos Evangelhos e pelos Atos dos Apóstolos em relação à renúncia das riquezas e da comunhão de bens pudesse, finalmente, tornar-se praxis concreta para os monges e para os mosteiros. Aos leigos, propõe-se uma ética possível para todos; nos mosteiros, porém, podiam-se rever as comunidades carismáticas dos primeiros tempos, a antiga comunhão com os pobres, a “única coisa” que falta. E sempre que, graças a um carisma, se quer voltar à radicalidade dos primeiros tempos do cristianismo, percorrem-se estas mesmas dinâmicas e reaparece a “solução” do duplo carril.
Não compreendemos a economia ocidental medieval, a reforma e, depois, a economia capitalista moderna, sem este “duplo carril” seguido pela ética económica que, se por um lado, origina o imenso movimento monacal e aos seus enormes frutos de civilização (e de economia), por outro lado faz com que a ética económica – pública e privada – da Europa cristã fosse muito, demasiado semelhante à que precedeu o cristianismo.
Quanto há de ética romana e de ética cristã no espírito moderno do capitalismo? Que Europa nasceria se a afirmar-se não estivesse a ética romana, mas a da comunhão de bens? Em que se tornaria a economia ocidental se o camelo não tivesse passado por aquele buraco tão largo?
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Original italiano publicado em Avvenire em 26/01/2020
«Acreditam possuir enquanto são possuídos, não donos do dinheiro mas vendidos a ele»
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Quanto entrou dos evangelhos na ética económica europeia? Não muito. E Santo Agostinho desempenhou um papel determinante.
O capitalismo está a fazer com o cristianismo algo de parecido ao que o cristianismo tinha feito com o império romano quando, a partir do século IV, se substituiu à sua cultura e à sua religião, alimentando-se delas. Portanto, se dizemos – seguindo, de bom gosto, Walter Benjamin – que o capitalismo cresceu, como «parasita» do cristianismo, temos de dizer que, muitos séculos antes, fora o cristianismo a crescer, no sentido que veremos, como parasita do mundo romano, colocando o seu ovo num outro ninho.
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Original italiano publicado em Avvenire em 19/01/2020
«O capitalismo não é, em primeiro lugar, um sistema económico de distribuição de posses, mas um sistema geral de cultura e de vida»
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O pensamento económico de Karl Marx é, ainda, uma passagem obrigatória para quem queira investigar a natureza do nosso capitalismo.
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As suas perguntas – não as suas respostas – ainda são capazes de abrir rasgos profundos na economia do nosso tempo, de nos fazer ver altos horizontes ainda muito pouco explorados, sobretudo quando, como há trinta anos atrás, com o desmoronar do comunismo real, se pensou fazer também desmoronar Marx, como se um autor não excedesse a tradução histórica do seu próprio pensamento. Quer Walter Benjamin, quer Marx, na sua análise da religião capitalista, atribuem um papel central aos produtos: às mercadorias. Marx, n' “O Capital”, coloca, no início do seu raciocínio, o tema do carácter feiticista das mercadorias, um dos pilares metodológicos da sua crítica. Carácter feiticista, isto é, a mercadoria como feitiço.O feitiço é um elemento do mundo sagrado, típico dos estados originários e primitivos da religiosidade humana. É um objeto inanimado, a que as comunidades e as pessoas individuais atribuem propriedades mágicas ou sobrenaturais. A palavra portuguesa (feitiço) foi usada pelos navegadores modernos para indicar amuletos e totem que encontravam nos povos africanos e, mais tarde, foi parcialmente alargada também a objetos religiosos de tipo sacral, a imagens de forças sobrenaturais. Quando Marx recorre a esta expressão, para caracterizar as mercadorias no capitalismo, a sua referência à religião era muito explícita e intencional. Escrevia, efetivamente: «Para encontrar uma analogia, temos de nos envolver na região nublosa do mundo religioso. Lá, os produtos do cérebro humano aparecem independentes, dotadas de vida própria, que estão relacionados entre si e em relação com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, fazem os produtos da mão humana. A isto, eu chamo feiticismo, que se cola aos produtos do trabalho, logo que são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção das mercadorias» (O Capital, livro 1). Como dirá, numa nota, citando o economista italiano, Ferdinando Galiani, «o valor é uma relação entre pessoas, escondido na concha de uma relação entre mercadorias».
Para Marx, as mercadorias são feitiços porque são realidades inanimadas que remetem para algo vivo: as relações entre pessoas. Nos sistemas de produção antigos, era imediato ligar a mercadoria ao seu produtor; no sistema capitalista, atribuímos às mercadorias uma existência autónoma, quase mágica ou misteriosa. Eis, então, a definição que Marx nos dá: «À primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial, óbvia. Da sua análise, resulta que é uma coisa muito enganadora, cheia de subtileza metafísica e de caprichos teológicos. … Mal se apresenta como mercadoria, a mesa transforma-se numa coisa sensivelmente suprassensível. Não só está com os pés na terra, mas, frente a todas as outras mercadorias, coloca-se de cabeça para baixo e da sua cabeça de madeira saem caprichos mais fantásticos do que se ela começasse a dançar». As mercadorias adquirem, portanto, uma existência própria em relação aos homens e às mulheres que as produziram (e às máquinas e aos robots): está aqui aquilo a que Marx chama o arcano. Além disso, para Marx, é evidente que este poder religioso entra em ação apenas no capitalismo: «Mal nos refugiamos noutras formas de produção, desaparece imediatamente todo o misticismo do mundo das mercadorias, todo o encantamento e a magia que circundam de névoa os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias». Misticismo, encantamento, magia.
Na realidade, se levarmos a sério a imagem forte da mercadoria como feitiço, damo-nos conta, imediatamente, que o nome mais apto para o capitalismo seria idolatria, sendo os feitiços os habitantes do típico ambiente sagrado dos cultos idólatras, não das religiões, muito menos da hebraico-cristã. Mas, o que é a idolatria? E porque é que a Bíblia a combateu tanto e os profetas, de modo especial, fizeram dela o seu principal inimigo (juntamente aos falsos profetas)? Porque, por detrás da sua batalha teológica, está uma antropologia que lhe é adicionada: sempre que um homem começa a adorar um objeto, torna-se menos homem; porque quando alguém representa Deus, em objetos ou imagens, nunca conseguirá igualar a única imagem verdadeira e lícita de Deus na terra: o homem e a mulher, criados “à sua imagem”. Todas as outras imagens da divindade são rabiscos teológicos e antropológicos. Por detrás da luta anti idolátrica está, portanto, um grande humanismo.
Esta mesma batalha levou a Bíblia a criticar radicalmente também todas as presenças “naturais” de Deus no mundo, chegando a apagar, dos seus relatos, também os vestígios de ritos religiosos agrícolas, como o cântico de luto pela última paveia ou pelo último cacho de uvas, onde os agricultores, chorando, pediam-lhes perdão por ter de os “matar” e lhes suplicavam para “ressurgir” novamente na nova estação. Nalgumas culturas, enterrava-se a última paveia, recitava-se o credo e esperava-se que “ressurgisse”. Não devemos esquecer que as primeiras intuições que uma vida pudesse continuar para lá da morte natural, os seres humanos aprenderam-na do ciclo da morte-ressurreição os campos. E não é por acaso que os Padres da Igreja e muitos bispos continuaram a recitar estas orações naturais e agrícolas, entrelaçando-as com as cristãs. Como num Pater noster do centro-norte da Alemanha, do séc. XIII, citado por Ernesto de Martino, onde se lê que Cristo foi «semeado pelo Criador, nasceu, amadureceu, foi ceifado, ligado em paveias, transportado para o pátio, debulhado, peneirado, moído, fechado no forno e, por fim, depois de três dias, tirado fora e comido como pão». Não será perfeita teologia, mas é um Pai-nosso esplendido e verdadeiro, como a nossa gente pobre do campo.
Recordo ainda, de criança, os meus bisavôs a recitar improváveis orações mestiças de latim-dialeto-italiano, durante os tempos da ceifa ou nos lutos. Não conheciam os dogmas trinitários, tinham ideias muito vagas sobre a diferença ontológica entre Jesus e Nossa Senhora. Quando comungavam, não sabiam nada da “substância” e dos “acidentes”. Mas sabiam que aquele pão era pão e, por isso, já sagrado, porque disso dependia a vida e a morte; e compreendiam que aquele pão da Missa era um pão diferente e, por isso, abeirar-se da comunhão tinha, para eles, uma solenidade e uma densidade teológica que eu rezo sempre para reencontrar, um dia, mesmo que fosse também o último. É certo que encontraremos sempre teólogos e escribas capazes de raciocínios subtis, com as mãos apoiadas em documentos do magistério, para condenar os cânticos de luto da paveia e as orações dos meus avós, para se separar daquele mundo de ignorância e de feitiços. Mas se há um paraíso – e tem de haver e os pobres devem habitá-lo –, juntamente aos salmos dos anjos, aí encontraremos os cânticos da vindima e da ceifa, porque amassado com carne e sangue e, por isso, mais verdadeiros que muitos cânticos polifónicos, cantados sem pobres e sem dor.
Eis porque a própria Bíblia, enquanto combate duramente os ritos e os símbolos da fertilidade, juntamente aos astrais, nas suas páginas poéticas e sapienciais, dá-nos palavras maravilhosas sobre a lua, as estrelas, sobre os céus “que narram a glória de Deus”, sobre a beleza dos animais (Job), sobre o eros e sobre a vida (Cântico dos Cânticos). O homem bíblico vê Deus (sem O ver), sente-O no templo, escuta-O nos profetas, vê-O e sente-O no homem e na mulher, mas vê-O e sente-O também nas “nuvens”, na “coluna de fogo”, no fogo de Elias, “na suave da brisa do silêncio”. Para afirmar a sua verdadeira diversidade, num mundo dominado por uma religião natural, a Bíblia teve de absolutizar a sua crítica à dimensão religiosa das coisas, da natureza, das árvores, da criação. Mas nunca a apagou, porque era verdadeira. Creio que um profeta bíblico teria, pelo menos, compreendido a frase que Ismael diz, ao falar do seu companheiro idólatra, Queequeg, em Mobiy Dick, a obra-prima (também teológica) de Melville: «Então, como podia unir-me a este selvagem idólatra, na adoração do seu pedaço de madeira? Mas o que é adorar? Acreditas verdadeiramente, Ismael, que o magnânimo Deus do céu e da terra – pagãos e todos os outros incluídos – possa ter ciúmes de um insignificante pedaço de madeira? Impossível! Então, o que é adorar?». Não seria possível qualquer diálogo verdadeiro com o mundo das religiões animistas, nem com o hinduísmo, se não pensássemos algo de semelhante ao que diz Ismael.
Não é por acaso nem por engano que o catolicismo tenha desenvolvido e cultivado uma visão sacramental da realidade, onde as “coisas” podem conter sinais e mensagens que mostrem alguma coisa de Deus, sem ser Deus. A incarnação deu substância espiritual à história e, portanto, às suas coisas, ao trabalho humano, aos seus artefactos. A jovem árvore do bosque de Jerusalém, transformada por um carpinteiro em patíbulo, não podia sabê-lo, mas entrou, com os cravos, no seio da Trindade, para sempre. Faria só sorrir, se não fosse dramático, ver grandes defensores da fé autêntica que hoje arremetem contra a idolatria (ver Sínodo da Amazónia) por causa do sincretismo que os pobres sempre fizeram e fazem, enquanto não são em nada perturbados pela idolatria do capitalismo que, geralmente, aplaudem. Na realidade, a idolatria do capitalismo está muito mais próxima, no espírito, à combatida pela Bíblia. Porque, diferentemente dos ritos do campo dos nossos antepassados, que sentiam nas coisas a presença verdadeira do próprio Deus, sob as mercadorias do nosso consumismo está o mesmo hevel (nada) dos espantalhos-ídolos criticados por Jeremias.
No mundo da pobreza, nas coisas – no pão, no trigo no vinho, nas plantas, nos poucos objetos… – consegue-se sentir o sagrado bom porque, através daquelas pouquíssimas coisas, fluía a vida e a morte. O nosso capitalismo multiplica, ao infinito, as coisas, mas não as multiplica em valor. Se possuo apenas um vestido bom, uma única caneta boa, uma única bicicleta, um só jogo e estes, de um tornam-se dois, três, dez, o valor do primeiro vestido e da primeira caneta não aumenta, mas diminuem, reduzem-se cada vez mais até desaparecer se o número (denominador) se torna infinito. O vestido bom tem um valor infinito justamente porque é único. E, por isso, reparo-o, salvo-o, cuido dele, e não o “uso e deito fora”. Na pobreza, as coisas têm um grande valor e a primeira pobreza da abundância é o desaparecimento do valor dos bens que temos, todos tornados mercadorias. Quando a vida nos ocupa todas as energias vitais para sobreviver e fazer viver os filhos, geralmente também sabemos rezar. E, quando rezamos, usamos apenas as pouquíssimas orações que recordamos e que amamos, porque nos ensinaram um pai ou uma avó, que certificaram a verdade daquelas palavras, não com a teologia, mas com a sua carne doada. Nas pobrezas, também as orações são poucas. Nenhuma oração cristã supera o único urro inarticulado na altíssima pobreza do Gólgota.
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Original italiano publicado em Avvenire em 12/01/2020
«Se quiséssemos definir a civilização humana com uma expressão densa, poderíamos dizer que ela é o poder formal de transmitir “valor” ao que, na natureza, corre para a morte»
Ernesto de Martino, Morte e pianto rituale nel mondo antico
Inicia-se uma nova série de artigos sobre a relação entre capitalismo e religião, entre cristianismo e oikonomia. Quanto e que coisa dos valores cristãos entrou no atual capitalismo? E o cristianismo é só o seu ninho?
O século XIX deixou-nos, em herança, uma rica e dura discussão sobre o capitalismo. Foi algo maior e diferente de um debate intelectual ou académico. Foi sangue e carne, vida e morte, paraíso e inferno. Os críticos do capitalismo sempre foram muitos. Mas o capitalismo mostrou uma surpreendente capacidade de adaptação ao mudar as condições de contexto. Soube mudar de forma absorvendo as exigências dos seus críticos e, como todos os grandes impérios, tornou-se maior e mais forte com os inimigos englobados nas suas fileiras e na sua cultura. Mudou ao ponto de hoje, a própria palavra “capitalismo” ter perdido força – continuou a usá-la por falta de palavras melhores. Porém, nestes ultimíssimos anos, algumas mudanças globais, dramáticas e repentinas, complicaram os cenários, mas também reduziram fortemente e simplificaram as discussões sobre a valorização ética deste capitalismo. Porque é muito evidente que, no que diz respeito a algumas variáveis fundamentais da vida individual e social, o capitalismo não manteve as suas promessas de progresso e bem-estar. O estado de saúde dos bens comuns, dos bens relacionais e da Terra mostram já, clara e concordantemente, que existe uma incompatibilidade radical entre a sua salvaguarda e a lógica capitalista. Destas perspetivas, cada vez mais determinantes, não está a aumentar nem a riqueza das nações nem a felicidade pública. Acerca disto, não há mais nada de sério a discutir. Devemos, simplesmente, mudar a lógica, precisamos de novos paradigmas e, sobretudo, temos de agir rapidamente: o tempo acabou, ou estamos em plena “zona Cesarini” do planeta e das comunidades humanas.
[fulltext] =>O capitalismo conheceu valorações muito diferentes, também no interior das Igrejas cristãs e do catolicismo. Um tema constante dizia (e diz) respeito à pretensa natureza cristã do espírito do capitalismo. Que capitalismo seja, de algum modo, “cristão” é tautológico, sendo algo nascido e crescido na Europa e dizer Europa significa dizer, até há poucas décadas, essencialmente cristão. Nesta perspetiva, “cristãos” eram a modernidade e o iluminismo, mas também o fascismo e o comunismo. Mas, ao dizer isto, não dizemos nada. Por isso, não ajuda muito, parafraseando o célebre incipit de “Teologia política” de Carl Schmitt (1922), afirmar que todos os conceitos mais significativos da economia moderna são conceitos teológicos secularizados. As coisas mais interessantes começam quando experimentamos colocar, a nós mesmos, perguntas “segundas”: do cristianismo, o que é que, entrou no capitalismo? O que ficou de fora? Como entrou? A nova série de artigos que hoje começamos é uma tentativa de resposta a estas (e outras) perguntas. Antes, porém, temos de tomar consciência que a história da relação entre cristianismo e economia é verdadeiramente complexa, provavelmente mais complexa que aquela que nos relatou, quem escreveu, até agora, sobre este tema. Antes de mais, porque as categorias teológicas (cristã e bíblicas) que a modernidade transformou, secularizando-as, em categorias políticas, foram, por seu lado, influenciadas por categorias económicas. A teologia que inspirou a economia fora, antes, inspirada pela economia. Trabalhando, nestes anos, sobre economia, Bíblia e teologia, descobrimos entrelaçamentos improváveis e imprevistos entre estes âmbitos da vida e, no princípio, com notável admiração, afirmámos várias vezes que o primeiro homo oeconomicus foi o homo religiosus. O do ut des, antes de ser a regra de ouro do comércio, foi a lei férrea dos sacrifícios oferecidos aos deuses: “Eis a minha manteiga; onde estão os Teus dons?”, encontramos no ritual bramânico das ofertas no templo. Muitas das categorias, sobre as quais, na modernidade, se fundou, progressivamente, a ciência económica – como preços, trocas, valores, débitos, crédito, mérito, ordem, dom, tributo, prémio, a própria oikonomia – foram herdadas da religião e do humanismo medieval hebraico-cristão; mas se aprofundarmos mais, damo-nos conta que essas categorias teológico-religiosas, por seu lado, se tinham formado numa troca constante com a vida económica das comunidades. Nas raízes das sociedades antigas, encontramos moedas nos sarcófagos, para acompanhar os mortos para pagar o preço da entrada do além, ou a linguagem económica aplicada às culpas, às dívidas, às penitências. A própria Bíblia hebraica e, depois, os Evangelhos e Paulo, fazem uso abundante de imagens e linguagem económicas para falar da fé. Estamos dentro duma contaminação recíproca, onde não é fácil compreender quem influenciou quem, ou qual seja a direção do nexo causal.
A tese mais provável é que, com a revolução agrícola, os comércios e as religiões se desenvolveram juntas e que o matrimónio entre a economia e o sagrado tenha acontecido naturalmente, na aurora das grandes civilizações. O nascimento e o desenvolvimento das moedas são acontecimentos à volta dos templos, foram usadas para medir sacrifícios, culpas e méritos e, a partir daí, o seu uso, progressivamente, foi-se alargando ao âmbito económico profano. O latim pecus (rebanho), donde deriva pecúnia, indicava, inicialmente, as cabeças de animais oferecidos nos sacríficos, contados e contabilizados nas relações comerciais com a divindade. Era o sagrado a oferecer o contexto necessário de confiança-fé para que as moedas pudessem ter o seu curso. O primeiro lugar de valoração de “coisas” – animais e plantas – destinadas, por natureza, à morte, foi o altar: apresentá-las, em oferta ritual, exonerava-as da sorte ordinária dos mortais. Chegando, depois, à relação entre cristianismo e capitalismo, devemos ter muito presente que a ética económica que informou a christianitas medieval, era mais semelhante à cultura económica do Império Romano tardio que aos princípios evangélicos. Veremos que a operação que, hoje, o capitalismo está a fazer com o cristianismo (ocupar o seu lugar), já o cristianismo o tinha feito, a partir dos séculos IV-V, com a religião e a ética dos romanos - apenas com a diferença que, na segunda substituição, não houve séculos de perseguições e martírio: o Constantino do capitalismo foi Nero ou Herodes, porque acolhido com entusiasmo desde o seu primeiro aparecimento. Então, as perguntas complicam-se: que ética económica cristã teria entrado, então (supondo que entrou), no capitalismo moderno? Entrou mais Cícero ou mais o Evangelho, mais a ética estoica das virtudes ou a das bem-aventuranças?
Na nossa investigação não partiremos nem de Max Weber nem de Amintore Fanfani ou Giuseppe Toniolo, mas de um filósofo alemão, Walter Benjamin, muitas vezes encontrado e discutido nestes anos de exploração. Num brevíssimo e profético texto, “O capitalismo como religião” (1921), diferentemente de Schmitt, Benjamin não fala, para o capitalismo, de “secularização” das categorias teológicas, mas de uma nova religião: «No Ocidente, o capitalismo desenvolveu-se parasitariamente sobre o cristianismo… O cristianismo, na época da Reforma, não facilitou a ascensão do capitalismo, mas virou-se capitalismo». Aqui, encontramos dois conceitos-imagens em tensão. Porque, por um lado, Benjamin afirma que o capitalismo é um parasita do cristianismo; por outro lado, diz que o cristianismo se tornou, como numa metamorfose, capitalismo. Ambas imagens fortes que, embora tomadas apenas como primeira aproximação, nos obrigam a exercícios que poderão revelar-se frutuosos. Frutuosos e parciais, frutuosos porque parciais. De facto, poder-se-ia dizer outras coisas interessantes, partindo da tese de Weber ou de outros autores mais “clássicos”. O parasita e a metamorfose são imagens extremas e, por isso, muito discutíveis. Mas, como frequentemente (nem sempre) acontece, se bem usadas, as metáforas extremas podem mostrar aspetos da realidade mais produtivos do que as metáforas moderadas.
Levamos, por isso, muito a sério a tese de Benjamin, preferindo, no entanto, a metáfora do parasita à da metamorfose. Pela biologia, sabemos que a metamorfose consiste na transformação que o próprio inseto (ou organismo) sofre, passando a fase larval à fase adulta. A lagarta torna-se borboleta, porque o processo está inscrito no ciclo de vida do inseto. O parasitismo, pelo contrário, é um fenómeno profundamente diferente, que assume, por seu lado, muitas formas. A palavra nasce na Grécia, para descrever alguns comportamentos sociais, como o gozar de benefícios sem ter custos, como os aproveitadores que se infiltravam nos banquetes públicos. O parasitismo é muito diferente do mutualismo da simbiose. A simbiose é um “jogo a custo positivo”, enquanto o parasitismo é um “jogo a custo zero”, uma relação desarmónica, porque o parasita alimenta-se à custa do hóspede, sem reciprocidade nem benefícios. Portanto, o parasita não só usa o hóspede para se alimentar, mas utiliza-o como seu “nicho ecológico”, ao qual confia uma tarefa reguladora das suas relações com o exterior (o vírus não tem o aparelho para a sua reprodução). Em certos casos (chamados parasitoides), a assimetria é radical e a relação termina com a morte do hóspede. Porque, aos parasitas, falta a inteligência para compreender que matar o corpo que o hospeda vai contra o sue próprio interesse; mas, no decorrer da sua evolução, alguns alargaram o seu ciclo de vida no hóspede – matam-no mais lentamente: nenhuma sanguessuga inteligente quer a morte dos organizadores dos banquetes.
A relação entre capitalismo e cristianismo contém elementos de todas estas formas de parasitismo, inclusive a alargamento da vida do seu hóspede a fim de continuar a nutrir-se dele; como contém outros elementos não tomados da metáfora do parasita – existem aspetos de mutualismo e até mesmo de filiação. A metáfora do parasita não nos mostra tudo, mas permite-nos descobrir algo de novo. Entre as muitas formas possíveis de parasitismo, o parasitismo do cuco é muito útil como instrumento para investigar o nexo cristianismo-capitalismo. O cuco pratica o parasitismo de incubação: põe o seu ovo no ninho de outros pássaros (a toutinegra, ou o rouxinol, por exemplo) e o pássaro hóspede, sem o saber, choca-o por causa da semelhança entre aquele ovo estranho e os seus próprios ovos. Na eclosão, o pequeno cuco livra-se dos outros ovos presentes no ninho, tornando-se o único ocupante. O pássaro mãe alimenta o pequeno cuco como se fosse a sua própria cria. Um dos muitos erros de que se serve a lei da vida. O capitalismo-cuco depôs o seu ovo em muitos ninhos cristãos (católicos, luteranos, calvinistas, anabatistas...). Não o depositou em ninhos de outras religiões porque teriam sido rejeitados imediatamente. O cristianismo criou o ovo capitalista porque se assemelhava muito e esta grande semelhança das cascas enganou as mães. Criaram-no e protegeram-no durante séculos, no longo tempo em que os ovos pareciam todos iguais. Até que, apenas recentemente no tempo da eclosão, aquele pássaro diferente e maior, está a começar a mandar fora do ninho os outros passarinhos meios-irmãos. Mas, como na natureza, esta mãe, encontrando-se apenas com este único filho, alimenta-o, ignorante da substituição e do engano. Porque a vida é maior e transforma em valor o que deveria morrer. Não é o filho da toutinegra, mas é filho do mesmo bosque.
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Oikonomia / 1 – Evidências e perguntas sobre o espírito do capitalismo e suas relações parasitárias
Original italiano publicado em Avvenire em 12/01/2020
«Se quiséssemos definir a civilização humana com uma expressão densa, poderíamos dizer que ela é o poder formal de transmitir “valor” ao que, na natureza, corre para a morte»
Ernesto de Martino, Morte e pianto rituale nel mondo antico
Inicia-se uma nova série de artigos sobre a relação entre capitalismo e religião, entre cristianismo e oikonomia. Quanto e que coisa dos valores cristãos entrou no atual capitalismo? E o cristianismo é só o seu ninho?
O século XIX deixou-nos, em herança, uma rica e dura discussão sobre o capitalismo. Foi algo maior e diferente de um debate intelectual ou académico. Foi sangue e carne, vida e morte, paraíso e inferno. Os críticos do capitalismo sempre foram muitos. Mas o capitalismo mostrou uma surpreendente capacidade de adaptação ao mudar as condições de contexto. Soube mudar de forma absorvendo as exigências dos seus críticos e, como todos os grandes impérios, tornou-se maior e mais forte com os inimigos englobados nas suas fileiras e na sua cultura. Mudou ao ponto de hoje, a própria palavra “capitalismo” ter perdido força – continuou a usá-la por falta de palavras melhores. Porém, nestes ultimíssimos anos, algumas mudanças globais, dramáticas e repentinas, complicaram os cenários, mas também reduziram fortemente e simplificaram as discussões sobre a valorização ética deste capitalismo. Porque é muito evidente que, no que diz respeito a algumas variáveis fundamentais da vida individual e social, o capitalismo não manteve as suas promessas de progresso e bem-estar. O estado de saúde dos bens comuns, dos bens relacionais e da Terra mostram já, clara e concordantemente, que existe uma incompatibilidade radical entre a sua salvaguarda e a lógica capitalista. Destas perspetivas, cada vez mais determinantes, não está a aumentar nem a riqueza das nações nem a felicidade pública. Acerca disto, não há mais nada de sério a discutir. Devemos, simplesmente, mudar a lógica, precisamos de novos paradigmas e, sobretudo, temos de agir rapidamente: o tempo acabou, ou estamos em plena “zona Cesarini” do planeta e das comunidades humanas.
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