Regenerações/9 -As leis, como as roupas, tornam-se, normalmente, estreitas e gastas
por Luigino Bruni
publicado no Avvenire no dia 27/09/2015
Existem uma justiça do já e uma justiça do ainda-não. A justiça cresce, evolui e desenvolve-se no tempo, de acordo com o senso moral das pessoas, da civilização e das gerações. “Não é justo”, repetido por indivíduos e por comunidades, é o primeiro motor de todo o alargamento dos horizontes da justiça e, portanto, da humanidade.
A maioria das pessoas formula o seu juízo de justiça ou injustiça com base na diferença entre quanto observam, e a justiça já codificada nas leis ou nos costumes de um povo. A aprovação de justiça e a censura da injustiça estão na base da construção da justiça da nossa vida.
Uma primeira reprovação de quem pratica a justiça chega da convivência com pessoas que não têm a justiça e procuram a injustiça – mesmo quando a injustiça nasce do dizer “justo” e “injusto” a coisas erradas. O mercado está cheio destas perseguições, quando empresários honestos e retos têm de sofrer muito, sob muitos pontos de vista, apenas porque atuam em setores onde o sentido de justiça dos outros está totalmente condicionado por razões do lucro. As empresas honestas vivem graças à honestidade dos seus trabalhadores, clientes, fornecedores, concorrentes. A desonestidade e as injustiças dos seus interlocutores inquinam o seu ar e a sua terra, e os frutos não chegam. A virtude mais exigida – ontem, hoje e sempre – a empresários justos é conseguir resistir quando se encontram ao lado de pessoas e instituições injustas. Estas são autênticas perseguições e quem resiste e não cede deve ouvir chamar-lhe “bem-aventurado”.
A experiência da justiça e da injustiça, portanto, além de informar o nosso comportamento, pode levar-nos a agir para reduzir ou eliminar a injustiça à nossa volta. É aqui que se faz a experiência de uma outra forma de perseguição. A história e o presente da humanidade mostram-nos uma multidão de perseguidos por causa da injustiça que veem perpetrada sobre outras pessoas ou sobre o mundo. Tal como acontece com a misericórdia, o que leva a reagir contra as injustiças que observamos, não é propriamente o desejo de altruísmo ou filantropia. É algo muito mais radical, que se move dentro das nossas vísceras e que, no princípio, se assemelha mais ao eros do que ao dom. Depois, apenas depois deste primeiro sentimento, ativam-se a inteligência e a racionalidade, como escravas do coração indignado. No interior das perseguições encontramo-nos seguindo um desígnio, obedecendo a uma lógica diferente da do cálculo custos-benefícios.
A primeira mola que nos faz reagir contra uma injustiça é, portanto, uma verdadeira e profunda forma de dor. Estamos mal, sentimos uma dor – por vezes física – e, por vezes, pomo-nos em movimento. Sem experimentar a dor por um mundo que nos aparece injusto, não nasce nenhum sentimento de justiça. Uma dor que pode nascer mesmo quando o objeto da injustiça não são seres humanos, mas animais, a terra, a água, a natureza, porque a dor pela injustiça é maior que a pura dor humana. Enquanto houver pessoas que cultivam um sentimento moral de justiça e enquanto os humanos tiverem uma vida interior que os torna capazes de sentir este género especial de sofrimento moral, teremos sempre não resignados pelas injustiças, capazes de lutar para as reduzir, perseguidos por quem obtém lucros com comportamentos injustos.
Mas há, também, um terceiro tipo de perseguições (e, certamente, outras mais). As perseguições por causa da justiça do ainda-não.
Há pessoas que têm o dom de ver, sofrer e lutar por uma justiça que ainda não é reconhecida como tal, pela sociedade em que vivemos. Não se limitam a denunciar as violações da justiça reconhecida pelas suas gerações. Também fazem isso, mas receberam o dom de “olhos do coração” diferentes que lhes permitem ver e procurar uma justiça que, leis e consciência, tardam em reconhecer. Mas elas veem-na, sofrem, agem. Sofrem pelas injustiças que não são sentidas injustas pelos outros, porque consideradas normais pela tradição, pela vida, até mesmo pela natureza das coisas. Sentem na sua carne que, no mundo, há uma injustiça escondida por detrás do que a lei não proíbe ou até encoraja e, depois, começam o processo de denúncia, de libertação, e chega, pontual, a perseguição. Estão contra as leis, não só as feitas para defender iníquos interesses baixos, mas também as feitas em nome da justiça. Também as leis, como os sapatos e a roupa, tornam-se, frequentemente, apertadas e puídas e têm de ser mudadas, caso contrário fazem mal e já não nos cobrem.
Os buscadores da justiça do ainda não continuam, na história, a função profética. Os profetas recebem olhares capazes de ver as injustiças onde os outros veem ainda justiça, de chamar injusto o que os outros chamam justo, de experimentar um sofrimento que a sociedade não compreende, de lutar por coisas que aos outros parecem inúteis e prejudiciais, de reconhecer direitos e deveres antes que apareçam como tal aos outros. As perseguições do já conseguem suscitar a empatia e a compaixão de muitos concidadãos humanos e justos. As perseguições pela justiça do ainda não acontecem, pelo contrário, na solidão, que é uma característica específica desta justiça diferente. Ninguém faz marchas noturnas, nem tochas, nem greves de fome para as primeiras batalhas pelas justiças ainda invisíveis. Os profetas estão sempre sós.
A justiça do ainda não é fundamental para o desenvolvimento moral dos povos, como são fundamentais os profetas. Por detrás de qualquer direito que, hoje, é reconhecido e tutelado, há alguém que, ontem, sofreu pela sua ausência, que se indignou e sofreu por aquela injustiça, ainda não considerada como tal. Daquela dor da alma partiu uma ação coletiva e chegaram as perseguições. Na terra dos justos há alguém que, como os antigos (e os novos) Padres Mercedários, sente um chamamento a fazer o “vazio de redenção” para libertar os escravos da justiça do já, ocupando o seu lugar.
É assim que cresce o sentido moral de todos, que faz avançar os confins da justiça. De vez em quando, devemos recordar aos nossos filhos e a nós mesmos as histórias e a muita dor escondidas por detrás de alguns artigos das nossas leis. É também a memória coletiva a manter vivo e vigilante o nosso sentido moral, e quando esta se desvanece, as comunidades recuam, frustra-se a dor dos mártires pela justiça e ultraja-se o seu sangue derramado. Sempre que a história recua no terreno da justiça – vimo-lo muitas vezes, e continuamos a vê-lo – há, em primeiro lugar, uma eliminação do “desperdício” entre os factos que observamos e o nosso sentido moral. Torna-se normal despedir alguém pela sua “raça”, falsificar os balanços das empresas, construir muros onde os pais deram a vida para os abater (os muros – de cimento, de arame farpado ou de olhares – são todos iguais).
O primeiro ato que tem de realizar quem ama a justiça é, portanto, cultivar e alimentar o sentido moral nas crianças e nos jovens. A partir da escola, onde a redução da história, da literatura, da poesia, em nome das técnicas “úteis” significa diminuir, na futura geração o sentido de justiça e a capacidade de resistência à injustiça – nas escolas e nas universidades “técnicas” devemos aumentar as disciplinas humanistas, se queremos esperar justiça em economia e nas técnicas de construção das “máquinas”.
Mas há mais. As perseguições dos profetas não chegam apenas dos injustos e dos maus. Chegam também dos “justos do já”. Frequentemente, os que procuram a justiça do já tornam-se perseguidores dos “justos do ainda não”. Os escribas e os fariseus, os amigos de Job, o Sinédrio eram, geralmente, pessoas e instituições que acreditavam e defendiam a justiça do seu tempo: “Se a vossa justiça não superar a dos escribas e dos fariseus…”. Justiças diferentes, e a segunda perseguidora da primeira.
A incompreensão por parte das componentes boas e justas da própria comunidade é típica de toda a experiência profética. Criam-se fraturas, por vezes verdadeiras perseguições, no interior do próprio “povo dos justos”, porque a justiça do ainda-não parece ainda injusta, ingénua, imprudente e prejudicial para quem procura a justiça do já. Esta perseguição específica, este “fogo amigo”, está entre os maiores sofrimentos dos que procuram a justiça do ainda-não, mas um sofrimento inevitável no avanço da justiça sobre a terra.
Por vezes, os justos do já, num encontro decisivo com a justiça do ainda-não, conseguem compreender que a sua justiça se deve abrir a um “além de” para não se tornar injusta. É assim que Saulo, perseguidor em nome da justiça, segundo a lei, se torna Paulo perseguido por uma nova justiça. Compreendemos que a nossa justiça deve morrer para ressurgir, deve regenerar-se. Dar a capa, perdoar sete vezes, andar uma milha com um irmão já não chega. Sentimos que não somos justos se não damos também a túnica, se não andamos a segunda milha, se o perdão não se torna infinito, para todos, para sempre. As nossas justiças envelhecem, morrem muitas vezes, e, muitas vezes, devem ressurgir para, depois, reaprender a morrer novamente.
O Evangelho associa a bem-aventurança dos perseguidos pela justiça à dos pobres: é já, de ambos, “o Reino dos céus”. Existe uma amizade, uma fraternidade entre os pobres e os perseguidos por causa da justiça. Ambos são pobres; ambos são perseguidos por causa da justiça. Quem procura a justiça, se não for pobre, torna-se depois pobre, por causa das perseguições. E as pobrezas são também perseguições que nascem da justiça negada, a do já ou a do ainda-não.
Falta-nos de justiça do já, mas falta-nos ainda mais a justiça do ainda-não. São muito poucos os profetas. “Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque dele é o reino dos céus”.
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