As poderosas sementes da generosidade

Regenerações / 4 – Os seres humanos dão muito se são livres de dar tudo

por Luigino Bruni

publicado em  Avvenire no dia 23/08/2015

Logo rigenerazioni rid

“A verdadeira generosidade é uma troca de consequências imprevisíveis. É um risco, porque mistura as nossas necessidades e os nossos desejos com as necessidades e os desejos dos outros”.

A. Phillips e B. Taylor, Elogio da gentileza

As empresas e todas as organizações serão lugares de vida boa e plena desde que deixem viver virtudes não económicas ao lado das económicas-empresariais. Uma coexistência decisiva, mas nada simples, porque exige que os dirigentes renunciem ao controle total dos comportamentos das pessoas, que aceitem uma componente de imprevisibilidade nas suas ações, estarem dispostos a relativizar até mesmo a eficiência, que se está a tornar o verdadeiro dogma da nova religião do nosso tempo.

A generosidade é uma destas virtudes não económicas, mas também essenciais para todas as empresas e instituições. A raiz da generosidade encontra-se na palavra latina genus, generis, um termo que lembra raça, família, nascimento – é este o primeiro significado da palavra genere. Esta antiga etimologia, hoje perdida, diz-nos coisas importantes sobre a generosidade. Antes de mais, recorda-nos que a nossa generosidade tem muito a ver com a transmissão da vida: com a nossa família, com as pessoas à nossa volta, com o ambiente em que crescemos e aprendemos a viver. Recebemo-la em herança, ao vir ao mundo. É um dote que nos deixam os nossos pais e parentes. A generosidade forma-se dentro de casa. A que temos dentro depende muito da generosidade dos nossos pais, de como e quando se amaram antes de nós nascermos, das escolhas de vida que fizeram e das que fazem quando nós começamos a olhá-los. Da sua fidelidade, da sua hospitalidade, da sua atitude para com os pobres, da sua disponibilidade em “gastar” o tempo para ouvir e ajudar os amigos, do seu amor e do reconhecimento para com os seus pais.

Esta generosidade primária não é uma virtude individual, mas um dom que começa a fazer parte da dotação moral e espiritual, daquilo a que se chama carácter. É um capital com que chegamos à terra, que se formou antes do nosso nascimento e que se alimenta da qualidade das relações, nos primeiríssimos anos de vida. Depende também da generosidade dos nossos avós, dos bisavós, dos vizinhos de casa e de muitos outros que, embora não compondo o meu DNA, estão também presentes, de modo misterioso mas realíssimo, na minha generosidade (e não generosidade). É influenciada pelos poetas que alimentaram o coração da minha família. Pelas orações do meu povo, pelos músicos de que gosto e escuto, pelos contadores de histórias nas festas da aldeia, pelos discursos e pelas ações dos políticos, pelas homilias dos pregadores. Pelos mártires de todas as resistências, pelos que ontem deram a sua vida pela minha liberdade de hoje. Pelas generosidades infinitas das mulheres dos séculos passados (há uma grande afinidade entre mulher e generosidade), que puseram o florescimento da família, a que deram vida, acima da sua – e continuam a fazê-lo. A generosidade gera reconhecimento por quem nos tornou generosos com a sua generosidade.

Viver com pessoas generosas torna-nos generosos – assim como acontece com a oração, com a música, com a beleza… Cultivar a generosidade produz muito mais efeitos que os que conseguimos ver e medir – e o mesmo acontece com a não-generosidade, nossa e dos outros. O depósito de generosidade duma família, de uma comunidade, de um povo, é uma espécie de soma da generosidade de cada um. Cada geração desenvolve o valor deste depósito ou o reduz, como está a acontecer, hoje, na Europa, onde a nossa geração, empobrecida de grandes ideais e paixões, está a delapidar o património de generosidade que herdou. Um País que deixa metade dos seus jovens sem trabalho, não é um país generoso.

A nossa generosidade, portanto, reduz-se ao envelhecer. Quando nos tornamos adultos e, depois, anciãos, encontramos, naturalmente, menos generosidade. O horizonte futuro torna-se, improvisamente, finito e próximo e, assim, o tempo – que é a primeira “moeda” da generosidade – torna-se mais escasso. Nunca nos é suficiente e não há mais para os outros. E, assim, para conservar a generosidade que herdámos e cultivamos desde jovens, é preciso muito trabalho. Aqui, a generosidade torna-se virtude, porque é preciso muito amor e muita dor para se manter generosos quando os anos passam.

Mas é fundamental conservar-se generoso se se quer continuar a gerar vida. Generosidade e gerar são duas palavras irmãs, uma lê-se e explica-se com a outra. Só quem é generoso gera, e a geração da vida reforça e alimenta a generosidade. Um sintoma do declínio da generosidade é, então, a não fecundidade ou esterilidade da vida. Quando nos encontramos, frequentemente dum momento para o outro, sem criatividade e energia vital para esperar voltar a gerar, é preciso desejar ser ainda generoso, em qualquer idade – o tempo doado por uma pessoa novamente generosa tem um valor infinito.

Nas empresas, que são simplesmente um pedaço de vida, há frequentemente muita generosidade e, por isso, produtividade. Os empresários são generosos por vocação, sobretudo na primeira fase da sua atividade, quando a empresa não é senão uma caixa de sonhos para realizar, quando todos os dias nascem novas ideias, quando se está de tal modo ocupado a fazer nascer o novo que não sobra tempo para a avareza e a mesquinhez. As boas empresas, mesmo as económicas e industriais, nascem de pessoas generosas, e continuam a nascer assim. Quando uma empresa começa, a generosidade dos empresários, sócios, dirigentes, trabalhadores, não é apenas importante; é essencial para crescer bem. Sem o entusiasmo e o excesso de todos em relação a quanto o contrato de trabalho e os deveres pedem, logo sem generosidade, as empresas não perduram; podem nascer gabinetes para responder às chamadas ou para captar alguma oportunidade especulativa, mas não empresas boas e bonitas.

A alegria, “sacramento” de qualquer vida generosa, acompanha também o início das aventuras dos jovens empresários e das verdadeiras empresas. Mas quando a empresa cresce e se transforma, progressivamente, numa organização complexa, burocrática e orientada racionalmente para os objetivos, a generosidade originária dos empresários reduz-se e a verdadeira generosidade dos trabalhadores não mais é exigida nem encorajada. Em seu lugar é desenvolvida uma subespécie de generosidade: a que existe em função dos objetivos, que se pode gerir e controlar. E, assim, tira-se a sua dimensão de excedente, de abundância, de liberdade. A generosidade não é eficiente, porque tem uma necessidade essencial de esbanjamento e de superabundância. E não é estimulável, porque não responde à lógica do cálculo.

Compreende-se, então, que uma cultura organizativa, construída à volta da ideologia do incentivo, faz murchar, nos seus membros, precisamente a dimensão de generosidade excedente que lhe tinha permitido ser inovadora e fecunda nos melhores tempos. A empresa tornada instituição quer apenas a generosidade que entra nos seus próprios planos industriais, uma generosidade limitada, domesticada, reduzida. Mas se a generosidade perde a abundância e o excedente, desvirtua-se, torna-se outra coisa. Não se pode ser generoso “por objetivos”.

Quem procura normalizar a generosidade enfraquecendo as suas dimensões menos controláveis e mais desestabilizadoras, não faz senão combater e matar a própria generosidade. A generosidade produz os seus bons frutos se é deixada livre para gerar mais frutos do que os necessários. Mas é precisamente a convivência de frutos “úteis” e “inúteis” um dos grandes inimigos das empresas capitalistas e de todas as instituições burocráticas. Conseguimos, com a tecnologia, construir “tangerinas” sem as maçadoras sementes; mas se as técnicas de gestão eliminam da nossa generosidade as “sementes” que não agradam ou não são úteis à empresa, é a própria generosidade a desaparecer. Os seres humanos dão muito apenas se são livres de dar tudo. A qualidade da vida, em muitas das nossas organizações, dependerá sempre da capacidade dos seus dirigentes em deixar amadurecer mais frutos do que os que se colocarão nos mercados, em fazer viver e crescer também as virtudes que não interessam à empresa.

Chegamos, de novo, a uma nova conjugação do principal paradoxo das organizações modernas. O crescimento das dimensões e a aplicação de técnicas e métodos estandardizados de gestão e controlo sacrificam, nos trabalhadores, as características que a fizeram nascer e de que a empresa teria ainda necessidade vital para continuar a produzir. Esta é uma lei que vale para todas as organizações, mas que é crucial quando se tem que lidar com empresas e comunidades que vivem apenas se e quando arriscam ter pessoas generosas colocadas em condições de exercitar a sua generosidade também no trabalho.

Há, enfim, um aspecto especialmente delicado na dinâmica da generosidade. É a que podemos chamar “castidade organizativa”. Generosidade não se refere apenas a gerar; requer também a castidade, uma palavra que apenas na aparência pode parecer a antítese das outras duas. A pessoa generosa não “come”, não consuma as pessoas que vê à sua volta, mas deixa-as completamente livres. Uma empresa-organização generosa não ambiciona a posse total do tempo e da alma dos seus melhores trabalhadores, nem sequer dos especialistas de quem depende quase todo o seu sucesso. Porque sabe – ou intui – que, se o fizer, estas pessoas perderiam as dimensões de beleza que as tinham tornado excelentes ou especiais; que, para permanecerem vivas, precisam de liberdade e de excedente. Se apanho a belíssima flor do vale alpestre para enfeitar a sala de estar, já decretei o seu fim. Mesmo que lhe conserve as raízes e as plante no meu jardim, não voltarei a ver as cores e o perfume que me tinham atraído na montanha, porque eram o fruto espontâneo da generosidade de todo o vale, daquele sol, daqueles minerais, daquele ar. Os melhores jovens das nossas organizações e comunidades permanecem belos e luminosos enquanto não quisermos transplantá-los para o jardim de casa, enquanto os não transformarmos num bem “privado”, enquanto estivermos dispostos a partilhar a sua beleza com todos os habitantes do vale. Há muitos jovens que murcham nas grandes empresas e, por vezes, também nas comunidades religiosas, porque não encontram a generosidade necessária para manter a sua beleza excedente. Para conservar a generosidade das pessoas, são necessárias instituições generosas, pessoas magnânimas, almas maiores que os objetivos da organização.

Estamos habitados por um sopro de infinito. Todos os lugares da vida continuam a florir enquanto o sopro permanecer vivo, livre, inteiro.

baixe o artigo em PDF


Imprimir   Email