Excessos e desalinhamentos

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Excessos e desalinhamentos / 10 – Movendo os braços para não cair, pode-se aprender a voar

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/11/2018

«Quanto mais rico for o nosso esquema de valores, tanto mais difícil é realizar a harmonia no seu interior. O preço da harmonização parece ser o empobrecimento; o preço da riqueza a desarmonia».

Martha Nussbaum, La fragilità del bene

Compreender que o único património que possuímos verdadeiramente é o presente, é uma experiência absoluta da existência humana. Quando, inesperadamente, nos damos conta que o passado já não existe e o futuro está confiado a uma promessa frágil, porque é toda dom. Mas, na que poderia e deveria ser a hora do desespero, chegámos a uma alegria novíssima, nunca experimentada em todos os paraísos do passado. Nasce da consciência de que, tornados verdadeira e finalmente pobres, estamos a derrubar o último ídolo: o nosso eu. Compreendemos que, no decorrer dos anos, se tinha tornado enorme, porque se tinha alimentado dos escombros de todos os ídolos que tínhamos encontrado e destruído ao longo do caminho. Depois, cada batalha idolátrica tinha-se tornado maior e mais forte, as nossas vitórias aumentavam a sua certeza e satisfação por ter conquistado e defendido a verdadeira fé. Até que, num ápice, compreendemos que para nos libertarmos deste novo e último ídolo, já não temos de combater, mas de pronunciar um dócil “ámen”. Esta alegria diferente é, talvez, a coisa mais parecida à felicidade que nos surpreende quando, num outro dia, um amigo leal nos disser: “acabou”; e, ali, diremos o nosso ámen e sentiremos que acabou apenas uma história, uma história maravilhosa, mas que não acabou a nossa história, porque salvar-se-á um resto vivo.

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A gestão do envelhecimento é delicada e crucial também nas comunidades e nas organizações, especialmente evidente nesta fase histórica de grandes mudanças. Mas com uma particularidade crucial: as realidades coletivas não estão destinadas ao inexorável declínio e à morte que caracteriza a vida humana, porque podem continuar a viver para além da vida das pessoas que a compõem. De facto, é parte da missão moral de quem vive e governa uma comunidade ou uma organização fazer de tudo para que a vida das suas instituições seja mais longa que a própria, para evitar que as duas “mortes” coincidam. As pessoas que, por vocação, se encontram numa comunidade, conseguem derrotar a morte, fazendo com que a sua comunidade continue a viver para além da sua morte individual – as formas das ressurreições verdadeiras são muitas e muitas delas são improváveis e imprevistas. Esta forma original de “imortalidade” é uma das heranças prometidas a quem segue uma voz e parte.

À volta destas mortes e ressurreições, concentram-se desafios importantes. Pensemos, por exemplo, na relação entre idosos e jovens. Uma comunidade que está a envelhecer tem uma necessidade vital de jovens e de pessoas de meia-idade, que a poderia regenerar com a sua energia vital e com a sua providencial ingenuidade, porque a alegria e a promessa de futuro dos jovens pode curar a natural tristeza e saudade do passado dos idosos. Nesta perspetiva, as comunidades ideais e espirituais assemelham-se verdadeiramente às famílias naturais, onde a presença e a proximidade dos netos torna alegre e rico o sentido de envelhecimento dos avós – uma das grandes pobrezas da nossa civilização ocidental é ter tirado aos idosos a alegria da vida quotidiana dos netos (e dos filhos), uma grande indigência da qual ainda não tomámos plena consciência.

Pelo contrário, a realidade histórica mostra-nos uma polarização: as organizações jovens estão cheias de jovens e as antigas cheias de idosos. No entanto, atrair jovens e vocações autênticas é possível também em comunidades envelhecidas, mas é necessário que os jovens vejam nos idosos pessoas interessadas no futuro e, por isso, anti-nostálgicas. Que as vejam mergulhadas no presente para preparar o amanhã, as vejam trabalhar até ao fim, abrir as portas das escolas com a mesma paixão com que, na Igreja, abrem a porta do sacrário, plantar, pelo menos, uma nova árvore que alimentará e dará sombra ao futuro. Não é apenas (nem principalmente, creio) a demasiada idade média dos seus membros que, hoje, afasta os jovens de muitas comunidades, mas sobretudo a ausência de esperança que o presente e o futuro possam ainda ser bonitos, talvez ainda mais bonitos. E, quando os idosos deixam de gerar futuro, também os poucos jovens que permanecem, envelhecem por dentro, vivem os anos da juventude etária como sacrifício não livre e o céu de todos ensombra-se.

Os «vossos filhos e as vossas filhas profetizarão» e os «jovens terão visões» se «os vossos anciãos tiverem sonhos» (Joel 3, 1-2). Existe uma ligação entre os sonhos dos idosos e as profecias dos filhos, porque os jovens podem profetizar num ambiente alegrado pelos sonhos de esperança dos adultos e dos anciãos. Isto é verdadeiro para a vida civil e económica (a falta de grande sonhos geradores de futuro dos adultos e dos idosos é o primeiro obstáculo que os jovens estão a encontrar), e é-o ainda mais para as comunidades e as organizações reunidas à volta de ideais coletivos. Uma comunidade moribunda pode ressurgir se, pelo menos, uma pessoa mais jovem começa a profetizar dentro dum espaço habitado por sonhos de vida dos idosos.

Aqui, junta-se o outro grande tema do património e das obras das comunidades com grande passado e com grande herança (escolas, hospitais, terrenos, casas…), hoje particularmente delicado, quer para os carismas religiosos quer para os laicais. Os fundadores fizeram nascer obras porque, normalmente, esta produtividade institucional é uma componente essencial do carisma. Ao gerá-las, medem-nas com as dimensões carismáticas que a potência de luz da fase de fundação lhe faz vislumbrar. Cada fundação de uma nova comunidade carismática é um eskaton antecipado, onde a prudência (que também é virtude dos fundadores) é dominada pela urgência de realizar, em vida e na terra, o que vêm no céu. As suas obras são construídas no já, mas olhando o ainda não. Depois, quando a fase fundadora termina, quem continua a corrida encontra-se com casas e instituições insustentáveis por natureza e o peso da sua gestão, frequentemente, impede-os de fazer outras “casas”, de repetir e continuar os mesmos milagres dos fundadores, e maiores.

Se os fundadores tivessem feito obras medidas pela realidade presente, teriam sido muito pequenas. Este tipo de obras nunca são “justas”: se, hoje, não são demasiado grandes, ontem, teriam sido demasiado pequenas. Mas, enquanto as obras muito grandes no tempo da fundação tornam difícil a vida concreta e económica de quem vem depois, as demasiado pequenas não são capazes de complicar a vida de ninguém, porque simplesmente acabam com quem as construiu, não se tornam herança para quem vem depois.

As obras demasiado grandes, podemos fechá-las ou vendê-las, mesmo as casas que têm nas paredes os sinais e cheiro dos milagres dos primeiros tempos e, assim, preparar-nos para a nossa morte, das obras e da obra. Mas existem também oportunidades de vida. Uma é a do menino que chega do ventre jovem de Agar, que toma o lugar do nosso ventre já envelhecido (Génesis 16, 4). Agar, hoje, chama-se aliança: pactos entre comunidades antigas e comunidades mais jovens, que podem dar sentido a estruturas que estão a morrer, que tragam crianças para casa e, com elas, a alegria e o futuro. E depois, porventura, num outro dia, enquanto estamos a ficar mais velhos e a sermos menos, enquanto nos repetimos as mesmas antigas palavras, durante anos, se continuamos a ter aberta a porta da nossa tenda a hóspedes de passagem, em novos carvalhos de Mambré, pode-nos surpreender o anúncio do filho da carne murcha (Génesis 18, 1). Mas, antes de Isac, está Ismael, o filho dado por Agar, uma jovem estrangeira, chegada à nossa casa. Hoje, talvez, muitas comunidades envelhecidas não veem chegar Isac porque, antes, não geraram Ismael ou porque não o sentiram filho da mesma promessa.

Os excessos e os desalinhamentos são a condição ordinária e contante das comunidades carismáticas e de muitas Organizações Movidas por um Ideal (OMI). Como todas as realidades complexas, também estas vivem constantemente na fronteira das suas possibilidades. As pessoas que acolhem e que, por sua vez, as enriquecem, estão em contínua evolução. Adormecem tendo atingido um certo equilíbrio nas contradições, alegrias e dores desse dia e, quando se levantam, têm de começar um outro. Desde jovens, querem o paraíso; como adultos encontram-se em muitos purgatórios e nalgum inferno, até que, como idosos compreendem que nunca tinham saído do primeiro paraíso mas, para o compreender, precisaram de toda uma vida e um pouco de tudo. Mas também as comunidades e as organizações criam e desfazem continuamente os seus equilíbrios e, quando o não fazem, começam a morrer. A vida de quem segue uma voz é um jogo que se desenrola entre pessoas excedentes e desalinhadas que vivem e mudam dentro de realidades coletivas que, mudando também elas, as amarfanham diariamente. Portanto, é a capacidade de viver em desequilíbrio a primeira arte que as pessoas e as organizações devem aprender. Aprender a caminhar na corda, como o equilibrista, que não cai enquanto continuar a mover-se. Uma condição incómoda, mas a única vital, porque capaz de gerar novidades verdadeiras. Depois, uma vez chegados à outra ponta da corda, espera-nos uma outra travessia sobre um outro abismo; até ao fim, quando descobriremos que à força de mover os braços, para não cair, aprendemos a voar.

Quando, de noite, alguma coisa ou alguém nos acorda, alguns não abrem os olhos e procuram voltar a adormecer, voltando aos sonhos que estavam a ter e, assim, conseguem retomar o sono e os sonhos. Existem, porém, outras pessoas que, interrompidas no sono, abrem os olhos, acendam a luz, leem um romance, começam a rezar, abrem a janela e, depois, veem a aurora. Nesta série de excedências e de desalinhamentos, intuímos que, quando no meio do primeiro grande sonho da juventude, alguma coisa ou um grito de dor nos acordou, não é preciso ter os olhos fechados para voltar ao primeiro sonho interrompido. Cada acordar é o tempo de uma nova aurora, de um outro sol que nos espera para lá da persiana fechada. É o tempo dos novos sonhos e das novas cores do novo dia, é o tempo para os sonhos diferentes – e não menores – da vida adulta.

Termina, assim, a exploração de algumas excedências e desalinhamentos das comunidades e das suas pessoas. E, também hoje, a última palavra é um obrigado: aos leitores, ao Avvenire e ao seu Diretor, Marco Tarquinio, que são companhia e alegria deste trabalho não fácil e belíssimo. No próximo domingo recomeçarão os comentários Bíblicos, com Ezequiel, o grande profeta dos tempos dos exílios e, por isso, do nosso tempo.

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Excessos e desalinhamentos / 10 – Movendo os braços para não cair, pode-se aprender a voar

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 04/11/2018

«Quanto mais rico for o nosso esquema de valores, tanto mais difícil é realizar a harmonia no seu interior. O preço da harmonização parece ser o empobrecimento; o preço da riqueza a desarmonia».

Martha Nussbaum, La fragilità del bene

Compreender que o único património que possuímos verdadeiramente é o presente, é uma experiência absoluta da existência humana. Quando, inesperadamente, nos damos conta que o passado já não existe e o futuro está confiado a uma promessa frágil, porque é toda dom. Mas, na que poderia e deveria ser a hora do desespero, chegámos a uma alegria novíssima, nunca experimentada em todos os paraísos do passado. Nasce da consciência de que, tornados verdadeira e finalmente pobres, estamos a derrubar o último ídolo: o nosso eu. Compreendemos que, no decorrer dos anos, se tinha tornado enorme, porque se tinha alimentado dos escombros de todos os ídolos que tínhamos encontrado e destruído ao longo do caminho. Depois, cada batalha idolátrica tinha-se tornado maior e mais forte, as nossas vitórias aumentavam a sua certeza e satisfação por ter conquistado e defendido a verdadeira fé. Até que, num ápice, compreendemos que para nos libertarmos deste novo e último ídolo, já não temos de combater, mas de pronunciar um dócil “ámen”. Esta alegria diferente é, talvez, a coisa mais parecida à felicidade que nos surpreende quando, num outro dia, um amigo leal nos disser: “acabou”; e, ali, diremos o nosso ámen e sentiremos que acabou apenas uma história, uma história maravilhosa, mas que não acabou a nossa história, porque salvar-se-á um resto vivo.

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É fecunda a alegria do fim

É fecunda a alegria do fim

Excessos e desalinhamentos / 10 – Movendo os braços para não cair, pode-se aprender a voar por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 04/11/2018 «Quanto mais rico for o nosso esquema de valores, tanto mais difícil é realizar a harmonia no seu interior. O preço da harmonização parece ser o empobre...
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Excessos e desalinhamentos / 9 – Acreditar na ressurreição, não exumar cadáveres

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/10/2018

«Quando Rabbi Bunam estava a morrer, a sua mulher chorava. Ele disse: que choras? Toda a minha vida foi apenas para que aprendesse a morrer».

Martin Buber, Storie e leggende chassidiche

A Bíblia é muitas coisas ao mesmo tempo e todas elas importantes. Cada geração descobre nela novos significados e esquece outros. Ela é também um mapa espiritual para se orientar nas vicissitudes misteriosas de quem segue seriamente uma voz. De facto, não há melhor lugar onde ver e procurar companhia e luz durante estes caminhos. A história e os relatos bíblicos são preciosos e fecundos também para compreender e explicar as experiências coletivas, as promessas, os exílios, as mortes e as ressurreições destas comunidades, movimentos e organizações nascidas à volta de um carisma, religioso ou laico. De modo especial, é um mapa preciosíssimo – e, em muitos aspetos, único – para compreender e clarificar as noites das grandes crises coletivas, embora raramente seja lida e utilizada nesta perspetiva e, por isso, recursos essenciais são desperdiçados. Entre os muitos tesouros, para as comunidades carismáticas, que permanecem ainda, em grande maioria, escondidos e não utilizados, está a alegria profética do resto, que perpassa muitos textos bíblicos. Encontramo-la especialmente desenvolvida e poderosa no livro de Jeremias, inserida num contexto de enormíssimo relevo sapiencial e teológico. Este profeta tinha recebido de YHWH a missão de profetizar o fim de um tempo histórico, mas os chefes e os guias religiosos do seu povo não quiseram escutá-lo e desacreditaram-no.

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Jeremias ouve, vê e diz que os Babilónios chegarão em breve e que o povo será derrotado e, depois, exilado, que começará um exílio em terra estrangeira, que durará setenta anos. Mas, enquanto ele anuncia, com uma tenacidade infinita, o fim, os falsos profetas, assaz abundantes em Jerusalém e por toda a parte e sempre, desmentem-no, acusam-no de derrotismo, atacam-no e convencem os chefes a persegui-lo para o fazer calar.
Jeremias não diz que acabou a história da salvação em que se extinguiu a promessa; diz apenas que acabou uma história, a grande história secular do grande reino, que se apagou uma interpretação da promessa, a que a fazia coincidir com a grandeza e com o sucesso. Mas, enquanto anuncia o fim inexorável daquele primeiro mundo, com a mesma convicção diz que “voltará um resto” e a história continuará. Conseguir compreender, nas comunidades carismáticas e nas Organizações Movidas por um Ideal (OMI), que a primeira história – a história maravilhosa que nos tinha feito sonhar acordados e ver o paraíso – acabou, que acabou de verdade, é um ato ético e espiritualmente extremamente difícil, sobretudo nas comunidades carismaticamente mais ricas e de grande história. É quase impossível compreender e aceitar que, debaixo daquelas ruínas não acabou a nossa história, mas que acabou uma história, que terminou apenas a primeira parte da narração. Como também é difícil compreender que, se queremos que a mesma história continue amanhã, temos de aceitar, hoje, que a sua primeira parte acabou de verdade, que teremos de atravessar o exílio e, depois, escrever uma segunda parte do relato, que ainda ninguém conhece; que a forma e os modos com que tínhamos vivido a promessa coletiva – aqueles reis, aquela grandeza, aquelas liturgias, aquele templo, aquele aparato religioso e aquela administração do culto – não voltarão mais, mas a história continuará porque a veste que a nossa fé tinha usado na primeira parte do percurso não era a única; era apenas a primeira. Um dia, para nos salvarmos, deve-se compreender que a verdade de uma experiência carismática coletiva não está em continuar a crescer e recolher sucessos, como no passado, mas em diminuir, em tornar-se pequenos, derrotados, esquecidos e abandonados, para que aquela destruição gere um resto fiel.

Mas um dos mistérios mais profundos e determinantes das experiências espirituais coletivas está precisamente no não conseguir reconhecer o que se espera desde sempre quando chega de verdade. Porque esperamos um messias que chega a cavalo, numa entrada triunfal, e confundimos o Domingo de Ramos com o Domingo de Páscoa. As comunidades conhecem apenas o presente e o passado e, por isso, é natural que, para compreender os factos novos, usem as categorias e os instrumentos à disposição, que são os conhecidos e aprendidos na linda época que está a terminar. E, assim, enfrentam o inverno com as roupas de verão e arriscam seriamente morrer de frio. Entre as palavras de ontem, estavam também as roupas de inverno, palavras adequadas para enfrentar novos climas. Estavam também a manjedoura, a oficina do carpinteiro, o pequeno rebanho, o grão de mostarda, o não do jovem rico; mas, quando nos tornamos verdadeiramente pequenos e frágeis, estas pequenezas e fragilidades são lidas com o coração a recordar os milagres e a primavera da Galileia e esquecemos as outras palavras da pequenez que, agora, seriam a parte verdadeiramente preciosa da herança. Quase sempre, no património espiritual originário das comunidades, já está presente a bênção da derrota. Nos tempos da abundância e do sucesso, as palavras sobre a força da debilidade, a sabedoria de nos tornarmos melhores enquanto nos tornamos mais pequenos, comoveram-nos, convenceram-nos a ajudaram-nos a superar crises pessoais. Mas, quando as palavras da boa fragilidade se tornam carne coletiva, não são recordadas nem reconhecidas. Compreendemo-las e valorizámo-las, muitas vezes, para ler as nossas vicissitudes individuais, mas, agora, não conseguimos fazê-las tornar-se luz para o presente e futuro de toda a comunidade.

Na realidade, nestes momentos, bastaria ouvir os profetas que, se ainda não foram mortos, fazem, naturalmente, parte da população das comunidades carismáticas nos tempos das crises. São as pessoas que têm, por vocação e missão, a capacidade de nos recordar as palavras apropriadas, de nos dar algumas poucas categorias novas, indispensáveis para compreender e enfrentar a época nova. A primeira categoria nova que nos oferecem é a revelação da inadequação das categorias com que, ontem, líamos o crescimento e o sucesso, porque, hoje, são obsoletas e mudaram. Esta é a boa notícia mais importante, porque é a pré-condição de todas as outras. Depois, dizem-nos que nos espera o tempo do exílio e, por fim, que um resto voltará. Nas estradas que levam a Babilonia e a Emaús, não temos de aprender o sentido das três tendas do Tabor e das palavras do Sinai, mas o da devastação do templo e das três cruzes do Gólgota. Estes novos significados a aprender nas estradas da desilusão são declinações das eternas palavras dos profetas: esta história acabou, mas não acabou a nossa história, porque voltará um resto. Mas, para que o resto fiel continue o seu caminho, temos de aceitar, hoje, a realidade do fim e, sobretudo, não acreditar em quem nos diz que a crise passará e continuaremos como antes. Porque – também e sobretudo, aqui – é sempre poderosa e convincente a ação dos falsos profetas, que procuram persuadir-nos que quem nos está a anunciar o fim não é um profeta a escutar, mas um charlatão e um inimigo do povo porque, diversamente de quanto anuncia, rapidamente haverá o grande milagre que nos salvará a nós e ao nosso “templo”, e tudo voltará como antes. Trazem-nos evidências empíricas de que, no fundo, as coisas não estão assim tão mal, que, aqui e ali, existem sinais de retoma, que a grande crise está a passar, e convidam-nos a olhar em frente com o seu otimismo (que é o oposto da esperança bíblica). As consolações dos falsos profetas produzem sensações agradáveis e não fazem sentir a dor, porque são o ópio das comunidades; as dos profetas são dolorosas e impiedosas, mas saram e fazem viver.

O povo de Israel escutou os falsos profetas. Porém, um resto recolheu as palavras dos profetas verdadeiros e, no regresso do exílio, não conservou os livros dos falsos profetas, mas os de Jeremias e dos outros profetas. Os profetas não são escutados no seu tempo – é esta a sua missão e destino. Mas, se um resto fiel salva as suas palavras, a sua profecia verdadeira poderá continuar. O resto profético não é, portanto, um simples grupo de sobreviventes nem uma elite de iluminados. Muitas comunidades tiveram sobreviventes, mas não tiveram um resto profético. Este é um resto crente, composto pelos poucos que, no tempo das ruinas e do exílio, continuaram a acreditar na mesma promessa que ontem se tinha revestido de sucesso e glória e que, por isso, sabem ler a derrota e o exílio como mistério de bênção. É o exegeta honesto das muitas palavras das comunidades. É o rebento que brota do tronco cortado e faz continuar a vida. É quem acredita, no tempo da desilusão, que não acreditou numa ilusão, porque a ilusão (que é real) não era a promessa, mas pensar que ela coincidisse com o seu primeiro revestimento de grandeza. É quem acredita que aquele fim é também um novo início, que aquele grito está dando à luz o seu futuro, totalmente diferente. É o nome do filho. Chear-Yachub, isto é, “voltará um resto”, é também o nome do filho de Isaías (Is 7, 3). O resto fiel é o corpo ressuscitado com os estigmas da paixão, que permanecem porque eram verdadeiros. Os falsos profetas não acreditam em nenhuma ressurreição, mas procuram apenas exumar o cadáver. São herdeiros dos magos e dos adivinhos egípcios que procuravam replicar artificialmente as pragas, mas as pragas fingidas não preparam nenhuma abertura verdadeira do mar.

Finalmente, a maravilhosa lei do resto é também uma lei fundamental do caminho existencial da pessoa. Partimos, como jovens, acreditando, amando e esperando uma vida pura, mansa, pobre, coroada de todas as virtudes e esperamos todas as belezas da terra e do céu. Nunca partimos sem esta promessa verdadeira e impossível. Se experimentámos permanecer um pouco fiéis àquela primeira voz, como adultos e velhos, descobrimos que só um “resto” daquela promessa permaneceu vivo. Encontramo-nos apenas com um pouco de pobreza, ou um pouco da mansidão ou com uma esperança ainda viva, apesar das ruinas do sonho. E, um dia, compreendemos que fomos salvos precisamente porque aquele pequeno resto está vivo. Porque fizemos bem o nosso trabalho, porque conseguimos amar muito uma única pessoa em vez de amar pouco muitas pessoas ou porque, pelo menos uma vez, tivemos a fé para dizer “vem para fora” e um amigo saiu do seu sepulcro. E, depois, aprendemos que, ali, estava toda a promessa, guardada naquele pequeno resto crente e fiel.

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Excessos e desalinhamentos / 9 – Acreditar na ressurreição, não exumar cadáveres

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 28/10/2018

«Quando Rabbi Bunam estava a morrer, a sua mulher chorava. Ele disse: que choras? Toda a minha vida foi apenas para que aprendesse a morrer».

Martin Buber, Storie e leggende chassidiche

A Bíblia é muitas coisas ao mesmo tempo e todas elas importantes. Cada geração descobre nela novos significados e esquece outros. Ela é também um mapa espiritual para se orientar nas vicissitudes misteriosas de quem segue seriamente uma voz. De facto, não há melhor lugar onde ver e procurar companhia e luz durante estes caminhos. A história e os relatos bíblicos são preciosos e fecundos também para compreender e explicar as experiências coletivas, as promessas, os exílios, as mortes e as ressurreições destas comunidades, movimentos e organizações nascidas à volta de um carisma, religioso ou laico. De modo especial, é um mapa preciosíssimo – e, em muitos aspetos, único – para compreender e clarificar as noites das grandes crises coletivas, embora raramente seja lida e utilizada nesta perspetiva e, por isso, recursos essenciais são desperdiçados. Entre os muitos tesouros, para as comunidades carismáticas, que permanecem ainda, em grande maioria, escondidos e não utilizados, está a alegria profética do resto, que perpassa muitos textos bíblicos. Encontramo-la especialmente desenvolvida e poderosa no livro de Jeremias, inserida num contexto de enormíssimo relevo sapiencial e teológico. Este profeta tinha recebido de YHWH a missão de profetizar o fim de um tempo histórico, mas os chefes e os guias religiosos do seu povo não quiseram escutá-lo e desacreditaram-no.

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A esplêndida lei do resto

A esplêndida lei do resto

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Excessos e desalinhamentos / 8 – É preciosa a primeira semente de toda a vocação humana

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/10/2018

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«O outro, o Homem, é, ab initio, o recíproco. Simultaneamente, não é esquecida a outra face da medalha desta capacidade de me reciprocar. De facto, tal capacidade pressupõe que o outro represente uma “vida humana” exatamente como a minha, e também pressupõe a existência de uma vida sua e não minha, com um seu eu e um seu mundo próprio, exclusivo, que não são os meus, que se encontram fora, além, que transcendem a minha vida”.

José Ortega y Gasset, L'uomo e la gente  [O homem e a gente]

 

A família, o trabalho, a escola, são campos de reciprocidade. O cuidado que damos fica imperfeito se não experimentamos, por vezes, ser assistidos por quem assistimos e nenhuma educação é eficaz se, enquanto dá a sua lição, o professor não aprende e muda juntamente com os seus alunos. Também a relação entre as comunidades ideais e as pessoas que fazem parte delas é uma questão de reciprocidade, que vai de uma grande aproximação unida a uma real distância. Nada, sobre a terra, é mais íntimo que um encontro no espírito entre pessoas chamadas ao mesmo destino pela mesma voz, quando, no outro, vemos os mesmos próprios desejos do nosso coração, as mesmas palavras ditas e não ditas que voltam multiplicadas e sublimadas. Alegra-se pelas mesmas coisas e a alegria aumenta ao ver que o outro está a alegrar-se pelas mesmas razões e do mesmo modo que nós nos alegramos.

Esta mútua inabitação («se eu me fizesse tu como tu te fazes eu»: Dante, Paraíso ) é, porém, experiência plenamente humana e humanizante se convive com o respeito de uma forma de distância, que protege da tentação de possuir o outro, de se aproveitar daquele excesso que se encontra no seu mistério. É principalmente dentro deste espaço livre e salvo, onde vive e se alimenta a comunhão que cresce, porém e faz crescer desde que deixemos o outro e o nosso coração livre entre ambos para velar um “ainda não” que, só em parte, amanhã poderá ser revelado.

Esta dinâmica de aproximação-distância, já difícil entre pessoas, é ainda mais espinhosa nas relações entre indivíduo e a sua comunidade. De facto, aqui, pode acontecer que a comunhão entre a alma pessoal e a comunitária se torne uma experiência de substituição. A pessoa que chega a uma comunidade ideal é fascinada e submersa pela beleza e pela riqueza espiritual que encontra, que é mais brilhante e sedutora que a pequena voz que lhe parece menos interessante e luminosa que o que encontra à sua volta e fora de si. O pequeno dote com que bate à porta da comunidade não brilha e não pode brilhar, porque não é uma pérola nem um diamante: é, simplesmente, uma semente. Mas é precisamente naquela coisa minúscula que está a possibilidade de futuro bom, de inovação verdadeira, de surpresas de reforma, de grandes árvores e de novos frutos, para a pessoa e para a comunidade.

Os responsáveis deveriam, portanto, fazer de tudo para manter viva e fecunda aquela intimidade única e especial, na pessoa, que precede o encontro com o carisma da comunidade. E, assim, dosear muito bem a transmissão da herança espiritual e ideal coletiva, com as necessárias cautelas e castidade para não submergir e sufocar aquela pequena semente primitiva.

O princípio de subsidiariedade, pilar do humanismo cristão e europeu, vale também para a gestão da relação indivíduo-comunidade: o que chega do exterior, do alto e de fora, é bom se ajuda (subsídio) o que é íntimo, próximo, pessoal. Muito da qualidade e propriedade de uma história vocacional depende do diálogo subsidiário entre estas duas intimidades, sobretudo nos primeiros tempos, da capacidade de não substituir a primeira intimidade (pequena, ingénua, simples) pela segunda (grande, madura, espetacular). Porque a primeira intimidade é o fogo onde vive e cresce um pensamento livre, atento, cultivado, crítico, porque alcança as camadas mais profundas que as que alimentam o próprio carisma comum. Tira água diretamente da tradição espiritual que alimenta o próprio carisma comunitário e da civilização humana que fundamenta os dois. É alimentado pela oração de todos, não apenas pelas nossas orações, pelas poesias, pelos romances e pela arte de toda a humanidade, pelo amor e pela dor de cada ser humano e da terra.

Mas é quase impossível que esta substituição entre as duas intimidades não se realize, porque, antes de mais, é procurada e querida pela pessoa individual. Esta sente forte o fascínio das novas palavras grandes que estão a chegar, também porque sente que o que lhe chega de fora já estava dentro de si e que, na comunidade carismática, é potenciado e exaltado. Conhece intimamente quanto lhe é dado de fora porque, enquanto o recebe, o reconhece como algo que já lhe era íntimo. Pelo contrário, quanto tratamos aquela jovem como se chegasse espiritualmente em branco, em matéria franciscana, não fazemos mais que matar nela a primeira intimidade que já continha os cromossomas essenciais para tornar autenticamente franciscana a si mesma e à sua comunidade. Os caminhos espirituais autênticos não começam, mas continuam numa comunidade, porque já tinham começado fora, numa primeira intimidade.

Depois de Saulo encontrar o Senhor, na estrada de Damasco, chegou de Ananias, que o batizou, e daquela comunidade a fé cristã. Mas Paulo sempre recordou e reivindicou que a sua vocação era precedente ao encontro com Ananias, e aquela voz continuou a alimentá-lo juntamente à mesma voz que lhe falava na sua comunidade e que, de vez em quando, lhe dizia palavras que não compreendia: «O Evangelho (…) eu não o recebi nem aprendi de homem algum, mas por uma revelação de Jesus Cristo» (1, 11-12). Nas comunidades, o principal mecanismo de discernimento espiritual parte da intimidade da pessoa e completa-se da intimidade coletiva, que se torna o exegeta final das palavras individuais. Mas é também essencial o processo inverso, quando se torna no diálogo de primeira intimidade para compreender as palavras coletivas que não compreendemos e que, uma vez compreendidas dentro e devolvidas para fora, enriquecem a todos. Quando falta este segundo movimento, os membros da comunidade tendem a tornar-se muito semelhantes entre si, porque o lugar da biodiversidade antropológica e espiritual e, por isso, da riqueza e criatividade dos carismas, não é a segunda intimidade, mas a primeira.

Nos nascimentos naturais, os bebés, nos primeiros dias, assemelham-se muito e parecem totalmente iguais e, somente crescendo, se diferenciam e assumem os seus traços específicos. Nos nascimentos espirituais, pelo contrário, acontece o inverso: no início, somos todos muito diferentes, cada um com cor dos olhos e cabelos únicos; depois, uma vez entrados numa comunidade, tendemos, com o tempo, a tornar-nos cada vez mais semelhantes espiritualmente, porque a segunda intimidade vocacional coletiva cresce à custa da primeira. E a fusão inebriante dos primeiros anos dá lugar a palavras comuns e iguais, que dizem cada vez menos.

As comunidades espirituais e proféticas têm muita dificuldade em reconhecer o valor da primeira intimidade, pela estima e consideração que têm (e devem ter) pela segunda intimidade espiritual coletiva. Frequentemente, vêem-na como a única necessária, que engloba e contém a primeira, que é considerada como os “dentes de leite” das crianças, que devem cair para poder deixar crescer os dentes adultos e definitivos. E, assim, não poucas vezes, determinam, em boa-fé, a atrofia progressiva do primeiro posto vocacional que sustém também o segundo – muitos danos são produzidos em muita boa-fé que, no entanto, não anula as consequências e a muita dor.

Quanto mais uma comunidade tem uma forte dimensão profética e carismática, mais natural e espontâneo lhe é subvalorizar a experiência espiritual anterior à chegada. Assim, esquecendo que toda a organização – mesmo a mais genuinamente carismática – tem uma contínua necessidade de autorregenerar-se, e o primeiro instrumento desta autorregeneração é a profecia das suas pessoas que, porém, deve ser reconhecida e, depois, ter o espaço para ser cultivada. Também o povo de Israel teve necessidade de ser acompanhado, durante séculos, por profetas gigantescos, embora já fosse uma nação santa e profética. Sem os profetas, que continuamente a renovaram (e que o povo continuava a matar), também aquela comunidade diferente se teria transformado num monólito religioso, sem espírito. E em que se teria tornado a Igreja, sem os milhares de profetas e de santos que a voltaram a chamar muitíssimas vezes à sua vocação e à conversão? Acontece assim também para qualquer comunidade, já carismática por vocação: a chegada providencial de profetas, que guardam as duas intimidades, salva-a e a converte, diariamente.

A substituição da primeira intimidade pela segunda é também a raiz de muito mal-estar nas comunidades ideais e espirituais. A repetição e reiteração, durante anos, da mesma intimidade coletiva, já não acompanhada pelo primeiro diálogo íntimo, profundo, geram, nas pessoas, progressivas e radicais doenças de identidade. A grande energia, investida em aprender a arte de responder às perguntas sobre “quem somos nós?”, desgasta, progressivamente, a capacidade de responder à outra pergunta radical: “Mas eu, quem sou?”. Qualquer pessoa que conheça o essencial do universo espiritual, sabe bem que “eu, quem sou?” é uma pergunta que não tem uma resposta satisfatória. Mas há um modo bom e um modo mau de não responder a esta pergunta. O primeiro nasce da consciência que a resposta muda e cresce connosco e que talvez seja o anjo da morte a revelá-la, enquanto nos abraça. Porém, o mau é a não-resposta que nasce do ir dentro do coração e, ali, encontrar apenas tentativas de resposta, compostas com as palavras coletivas conjugadas no nós. O constante e contínuo exercício de conjugação dos verbos da vida no plural consumou a própria possibilidade de um logos no singular; não se responde, não porque a pergunta não tem respostas convincentes mas porque esquecemos as regras gramaticais e sintáticas para compreender a pergunta.

Pelo contrário, quando conseguimos conservar a primeira intimidade (e, graças a Deus, acontece frequentemente), defendê-la com todas as nossas forças, de nós mesmos e da nossa comunidade, encontramo-nos, na vida adulta, com um grande tesouro. Ela torna-se o bem essencial, quando a segunda intimidade da comunidade se retira – e deve retirar-se – e, ao retirar-se, leva consigo as palavras, as imagens os símbolos com que tinham enfeitado a nossa vida espiritual e o nosso mundo. Aí, damo-nos conta que, naquela terra, havia ainda uma árvore. Abraçamo-la, alimentamo-nos dos seus frutos e gozamos a sua sombra. E, depois, comovidos, descobrimos que é a mesma “árvore da vida” que tínhamos visto no Éden do primeiro paraíso, porque germinou da guarda tenaz de uma sua semente verdadeira. Depois, debaixo daquela sombra, começam a reunir-se velhos e novos companheiros e recomeça uma nova história.

No entanto, se no dia do grande retirada das águas da nossa terra não encontrarmos nenhuma árvore, podemos meter-nos à procura desesperada de alguma semente boa e entregá-la àquela terra fecunda. Não será a nossa árvore; será a árvore dos filhos e, talvez, seja ainda mais bonita.

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Excessos e desalinhamentos / 8 – É preciosa a primeira semente de toda a vocação humana

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 21/10/2018

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A árvore dos filhos é mais bonita

A árvore dos filhos é mais bonita

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Excessos e desalinhamentos / 7 – Uma dificuldade implacável que atinge pessoas e comunidades vivas

por Luigino Bruni

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publicado em Avvenire em 14/10/2018

Eccedenze e disallineamenti 07 rid«O ideal da boa-fé é, como o da sinceridade, um ideal de ser em-si. Toda a crença nunca é suficientemente crença, nunca se acredita no que se acredita”.

J.P. Sartre, L'essere e il nulla  [O ser e o nada]

Quem fez da fé o fundamento da própria vida – toda a fé, não apenas a religiosa – quem a fez tornar-se o tema essencial e não um tema entre muitos, vive constantemente no medo de ter fundado a própria vida sobre um engano, de ter construído um edifício admirável sobre nada. Durante muito tempo, este medo permanece latente, sobretudo quando jovens, quando aparece, de vez em quando e, depois, se despede, para nos deixar viver em plenitude, o tempo de encanto, necessário para nos lançarmos em voos loucos. Mas, sob a terra, cresce juntamente com a fé. Até que, numa fase adulta da existência, emerge com uma força invencível. Surpreende-nos, perturba-nos muito, não nos deixa dormir.

Inesperadamente, damo-nos conta que aquele medo era fundado e a possibilidade do nada torna-se experiência real. Tínhamo-nos enganado verdadeiramente. É a experiência da falta de fundamento, do desalinhamento total, da desorientação do exilado. Encontramo-nos numa terra novíssima, habitantes do império que tememos e odiámos durante muitos anos. No princípio, tentamos orientar-nos na nova paisagem, procuramos os mesmos sinais da paisagem do país onde crescemos. Procuramos a torre, o campanário, o relógio nos moldes em que sempre os conhecemos. Não os encontramos e desorientamo-nos. Na realidade, também estão ali, mas não os vemos.

Por outras palavras, damo-nos conta que não tínhamos acreditado em Deus, mas num ídolo. E é aqui que o caminho espiritual se deve tornar experiência de demolição. No dia do chamamento, a voz revela ao profeta Jeremias a sua missão e o seu destino: «Hoje dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 4-10). No princípio é o plantar e o edificar. O abater, quando chega, vem mais.

A verdade mais importante que é destruída durante o caminho vocacional é a ideia de Deus e do ideal. Uma vocação, antes de ser uma destruição do eu é uma destruição de Deus, um abater a imagem que tínhamos feito dele e em que acreditávamos. A Bíblia colocou, como seu primeiro mandamento, a proibição de fazer imagens de Deus porque toda a imagem de Deus é um ídolo. Mas, já a partir do dia seguinte ao da vocação, cada um de nós constrói a sua própria imagem de Deus e, portanto o seu ídolo. Não o sabemos; por isso, estamos inocentes. A destruição é, então, essencial para poder deixar o tempo da idolatria – na Bíblia, a destruição do templo e o exílio permitiram que aquela fé diferente não se tornasse idolatria.

Talvez esteja aqui um dos muitos significados da frase misteriosa (koan) e paradoxal da tradição Zen: “Se encontrares um Buda no caminho, mata-o”. O “Buda” ao longo do troço adulto do caminho não é só o mestre que nos faz descobrir o caminho espiritual. É também a ideia-imagem de Deus que aquele mestre ou aquela comunidade nos tinha dado no início.

Esta demolição ganha várias formas. Por vezes, a primeira imagem desaparece progressivamente, como uma estátua gasta pelo vento e pela chuva (que nós, porém, continuamos a restaurar). Outras vezes, é um terramoto da nossa terra que as faz implodir e não é raro que fiquem debaixo dos escombros. Outras vezes e são as mais interessantes, mas difíceis de compreender e dizer – somos nós que pegamos nas picaretas e começamos a golpear aquela estátua, porque compreendemos que era um ídolo que, como todos os ídolos, nos estava a devorar, dia após dia. Porque intuímos que, se não destruímos a nossa imagem de Deus, será ela a destruir-nos a nós. As fés são autênticos lugares de libertação se se tornam, um dia, experiências de destruição.

Quando este processo acontece dentro de uma comunidade, dum movimento espiritual ou de uma Organização Movida por um Ideal (OMI), a demolição envolve também a comunidade. Se tínhamos aprendido a primeira ideia do ideal da comunidade que lhe tinha dado concretização e palavras, a necessidade de destruir a imagem de Deus torna-se, inevitavelmente, demolição da comunidade que ma tinha dado e ensinado. Juntamente à imagem de Deus, desaparece também a imagem da comunidade que a tinha guardado – as suas práticas, os seus rostos, as suas orações. Demolimo-la porque tem impressos os mesmos sinais idólatras. Esta destruição – que nunca fica totalmente íntima e se exprime em críticas públicas, sarcasmo, em juízos para com tudo e todos – contém, escondidos, também mensagens preciosas para aquela comunidade, porque lhe mostra a necessidade vital que tem de auto-subversão. Mas, toda a comunidade tem o terror de própria destruição, porque lhe é muito difícil compreender que se não destrói o ídolo do ideal que construiu, está condenada à morte – e, assim, guarda, com todas as suas forças, o ídolo confundido com o ideal.

O elemento determinante que, frequentemente, impede o começo dos trabalhos de demolição é a falta absoluta de garantia que uma nova fé tomará o lugar da imagem que deveremos e queremos demolir. É o terror de perder também Deus, para sempre, juntamente à imagem que tínhamos feito, que leva muitas pessoas que tinham recebido um chamamento espiritual autêntico a não destruir o ídolo e a permanecer para sempre no período idólatra da fé (os ídolos agradam-nos muito porque não nos pedem para assumir qualquer risco).

Para muitos, esta fase do Deus do chamamento tornado o ídolo da vida adulta, acontece em perfeita, absoluta e inocente boa-fé. Para outros, pelo contrário, assume a forma que Sartre chama má-fé (uma palavra que ele usa numa aceção diferente da comum) renunciando ao exercício do risco radical da liberdade e, assim, ficam bloqueados numa espécie de limbo moral, onde são, simultaneamente, crentes e idólatras, fiéis e ateus, verdadeiros e falsos. Os que estão em boa-fé estão num teatro a recitar uma comédia-tragédia, mas estão convencidos que o palco é a vida; os segundos, em má-fé, sabem que estão a recitar um guião que não é a vida, mas não querem descer do palco porque, fora, seriam assaltados e destruídos pela angústia. Porém, quem consegue superar a má-fé (ou, pelo menos, reconhecê-la e decidir querer superá-la) e, assim, realiza esta demolição do ídolo de Deus, encontra-se numa das experiências humanas mais altas e extraordinárias. Precipita-se numa condição muito semelhante – se não idêntica – à do ateu. Percebe – vê-o, sente-o – o nada por baixo de todas as coisas, uma vanitas que, com o seu fumo denso, envolve toda a paisagem interior e exterior. Mas, diferentemente de quem não nunca acreditou, quando a experiência deste nada chega, após uma verdadeira vida fiel, o impacto com a paisagem desta terra desolada é, quase sempre, devastadora.

Na realidade, a experiência radical da ausência de Deus é, eticamente, preferível à idolatria, porque o nada, que chega como maturação da fé, é um salto evolutivo espiritual e antropológico, mas a pessoa que se encontra na experiência, não sente qualquer evolução, apenas uma infinita solidão num mundo povoado de deuses. Experimentam, quase sempre, a mesma desorientação, também os que observam e acompanham quem vive estas experiências, que são os primeiros a amedrontarem-se diante dos primeiros golpes da picareta e, por isso, fazem tudo para lhes tirar a picareta das mãos.

Existem, também, alguns desafios típicos, pouco explorados, embora cruciais – não é fácil explorar estes abismos da vida. Quando esta fase demolidora se desenrola dentro de uma comunidade, o exílio interior acrescenta-se ao exterior. Vive-se com compatriotas que atravessam fases diferentes da vida – alguns em boa-fé, outros em má-fé – e sentimo-nos completamente estrangeiros, dentro de casa. Também porque, nas comunidades, são pouquíssimas as pessoas que ficaram, depois da demolição. Muitos dos que interrompem um caminho comunitário, são os que se encontram esgotados, depois da demolição – talvez porque a primeira estátua era muito imponente e robusta – e não encontraram forças para continuar. Para estes demolidores de ídolos, a vida torna-se, de facto, muito dura na comunidade. As conversas à mesa, as liturgias, as muitas atividades que continuam a fazer, não só já não interessam como provocam uma dor nova. Continua-se a desempenhar a própria profissão, como sempre, numa pobreza de respostas e de luz, na qual se permanece durante anos, décadas. É muito provável que, quando escutamos de alguém palavras diferentes e verdadeiras sobre a vida e sobre o espírito, esta pessoa se encontre nesta fase da vida – mas não o diz, não saberia como dizê-lo, porque não se encontram as palavras (viver e contar o que se vive são duas “profissões” diferentes, sobretudo nalguns momentos da vida).

Mas, se conseguimos chegar ao fundo deste abatimento, pode-se começar uma fase esplêndida da vida, a mais bela e verdadeira de todas. Tornamo-nos verdadeiramente irmãos de todos os homens e mulheres, redescobrimos uma mesma solidária condição humana que precede a fé e a não-fé. Tornamo-nos mendicantes de sentido em relação a todos os que encontramos, nos caminhos, nos livros, na poesia. Tornamo-nos crianças e perguntamos a todos: “porquê?”, e nasce uma nova escuta ignorante e encantada. São muitos os que, sem ter a fé que nós tínhamos, conseguem trabalhar, pôr filhos no mundo, morrer sem se desesperar, amar. E torna-se forte a raiva porque nós, pelo contrário, não conseguimos. Chega-se a amaldiçoar a imagem que nos impediu de aprender a profissão do viver, porque nos descobrimos muito menos competentes nesta arte fundamental que as mulheres e os homens “normais”. Mas, se se tem ainda vontade de ler a Bíblia, começa-se, finalmente, a compreender algumas páginas de Job, de Isaías, alguns salmos, que antes permaneciam estranhos e nos causavam aborrecimento. Sem a experiência de destruição, muita parte da Bíblia e da vida permanecem inacessíveis. E começa-se a agradecer por esta nova epifania da vida e da palavra.

Após uma vida gasta num ambiente povoado por Deus, o desvanecer do sagrado liberta a vista para começar a ver, finalmente, o homem. O lugar desocupado pela religião torna-se um humanismo. Escorraçando os cambistas do templo, as pombas e as cabras dos seus altares, libertou-se a terra para acolher um reino diferente. Por vezes, depois da destruição, volta uma nova fé e uma nova comunidade de fé – que, depois, nos deixam de novo, para nos levar para outros exílios e, ali, nos tornaremos ainda mais humanos. Outras vezes, a oração refloresce, gritando pela dor dos homens e das mulheres. Outras vezes, a fé não volta mais. Entra-se na igreja, não para rezar, mas para esperar que volte e nos surpreenda pelas costas, enquanto estamos sentados num banco a olhar um sacrário vazio. Mas não nos arrependemos de ter destruído o feitiço e não voltaremos atrás por nada do mundo. Permanece a profissão do viver. Permanece a mesma espera de Deus.

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Excessos e desalinhamentos / 7 – Uma dificuldade implacável que atinge pessoas e comunidades vivas

por Luigino Bruni

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A demolição do ídolo

A demolição do ídolo

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Excessos e desalinhamentos / 6 – Vê-se Deus graças aos olhos encontrados, de homens e mulheres

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 07/10/2018

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Eccedenze e disallineamenti 06 rid«Com Moisés, acaba o alpinismo da história sagrada, que começou invertido, descendo, com Noé que se encontra atracado, no cimo do monte de Ararat com a sua barca e de lá desce juntamente com os representantes da zoologia salva”.

Erri De Luca, Sottosopra  [Confusão]

A civilização ocidental construiu-se à volta da ideia de riqueza e desenvolvimento, entendidos como acumulação de coisas e como crescimento. Este princípio da quantidade casou-se, depois, com a convicção ancestral que a pureza e a perfeição estão em cima e a imperfeição no fundo, que o impuro esteja relacionado com a terra e com as mãos e o puro com o céu. Por isso, os trabalhos que tocam a terra e usam as mãos são baixos, impuros, ínfimos, enquanto os que usam o intelecto são nobres, altos, espirituais, santos. Esta visão arcaica da vida boa como “crescer para o alto” atravessou, quase incólume, toda a Bíblia, apesar da dura luta que os profetas, os livros sapienciais e Jesus travaram com ela. E, com a ajuda de uma alma da filosofia grega e da gnose, chegámos a uma Idade Média e, depois, à modernidade, muito pouco bíblicos, com tratados de mística que liam a vida espiritual como escalada do “monte das delícias”, como acumulação de bens místicos, combate contra o corpo e a carne. Por isso, entendemos a lei do crescimento para o alto, também na vida espiritual, imaginada como um aumento, um subir e uma libertação do corpo para voar, leves, no céu do espírito.

Mas ler a vida espiritual com as categorias da acumulação e do afastamento da terra, afasta-nos, sobretudo, do coração da mensagem bíblica. E produz um paradoxo importante: num tempo em que, graças à ação e ao pensamento de bons cristãos e de grandes Papas, estamos, com dificuldade, a procurar superar o paradigma do crescimento e a redescobrir o valor teológico da terra e do corpo, no âmbito do espírito, continuamos a raciocinar com as mesmas categorias que queremos superar. Um desalinhamento perigoso e, geralmente, negligenciado. Contudo, Francisco de Assis começou a sua extraordinária aventura humano-espiritual beijando um leproso e, naquele beijo, está, porventura, a mensagem mais revolucionária e preciosa do humanismo bíblico e cristão. A Bíblia é toda um canto ao valor espiritual da criação, que nos convida a encontrar Deus, sobretudo, neste lado, no meio dos homens e dos pobres, a sua morada predileta. Quando o sábio Qohélet, no final da sua busca radical e sem consolações, nos quer dizer onde encontrar “debaixo do sol” algo de não-vão, indicou-nos a atividade humana mais normal e corporal: «Compreendi que é belo e bom comer e beber» (5, 17).

E, no auge da história da salvação, para dizer o impensável e o impossível, o quarto evangelho não encontrou uma expressão mais verdadeira e maravilhosa que esta: «E o Verbo se fez carne e veio habitar no meio de nós». O Logos, a Palavra que já era Deus, torna-se ainda mais Deus fazendo-se menino, “nascido de mulher” como nós, como todos. A dizer-nos que o sonho do homem é tornar-se infinito e omnipotente, como Deus; o sonho de Deus é tornar-se finito e impotente como o homem. O Natal é imenso porque, naquela luz infinita da noite de Belém, está a mesma luz da noite que envolve uma criança que nasce e, nascendo, a ilumina. Porque, se aquela criança na manjedoura era verdadeiro homem (e era-o, com certeza), cada nascimento é um Natal e o ato espiritual mais puro que acontece em cada dia sobre a terra é uma criança que vem à luz, do ventre de uma mulher. Nunca chegaremos a compreender plenamente que, quando os Evangelhos nos relataram que o crucificado ainda estava vivo para além da morte no seu corpo – um corpo diferente, mas ainda corpo – nos deixaram uma herança humana de um valor extraordinário que, em boa parte, delapidámos. Porque, apesar do Natal, da morte e da ressurreição de Jesus, continuamos a pensar a religião com modos e formas ainda centradas nas dicotomias puro/impuro e baixo/alto e na bênção associada ao crescimento.

Um logos, tornado carne e, depois, ressuscitado com o corpo, contem, portanto, uma revolução radical também no modo de entender o caminho espiritual. Quando se “sobem” verdadeiramente os montes Carmelo, no cimo não se vê mais a Deus e melhor o céu, mas vê-se mais os homens e melhor a terra. Com o passar do tempo, diminuem as certezas religiosas, mas aumenta o conhecimento humilde do homem. Mas nós temos saudades dos primeiros dias de luz e vivemos a progressiva ignorância de Deus e o despovoamento da paisagem sagrada como fracasso e saudade. Porém, talvez estejamos a fazer apenas quanto devíamos fazer, estamos a tornar-nos, simplesmente, quanto deveríamos ser. Porque, embora as imagens que muita mística utilizou são, quase sempre, cimos e montanhas, na vida espiritual não se sobre; desce-se. O paraíso está no princípio, nos primeiros dias do encontro e do chamamento, que também podem ser muitos e durar muitos anos. Ali, no princípio, abre-se o céu, vemos os anjos subir e descer na escada do paraíso. Mas, depois, parte-se, e a vida torna-se uma saída daquele primeiro paraíso, porque o sentido daquele céu aberto era fazermos melhorar a terra de todos, não permanecer no alto, a “consumar” aquele esplêndido bem espiritual. Pelo contrário, devemos ficar muito preocupados se aquele primeiro céu nos impede de amar a terra.

Os cimos dos montes, na Bíblia, são, quase sempre, os lugares dos santuários de Baal e da prostituição sagrada, que eram muito mais numerosos que os montes Sinai. O primeiro lugar alto da Bíblia é Babel e a subida ao Tabor foi preparação para a subida/descida aos infernos do Gólgota. Caminhar no espírito é inclinar-se para a terra, não subir ao céu. É um tornar-se mais humanos e não mais divinos, mais homens e não mais anjos. Descobrir-se, com o passar dos anos, cada vez mais apaixonados por tudo o que é vivo, pelas palavras e pelas ações dos homens e das mulheres, apreciar a beleza normal das coisas de todos. Deixamos a nossa gente, separando-nos, por vezes criticando ou desprezando, a vida “normal” de pais, irmãos, companheiros; e, um dia, regressamos, olhamo-los, e nasce dentro o desejo-oração para se assemelhar aos avós, aos pais, até mesmo à boa normalidade das vizinhas velhotas – porque nada falta à vida.

A vida espiritual faz-nos abençoar a vida, percorrer caminhos já conhecidos e sempre admirados, porque estamos imersos em “coisas” e pessoas vivas que nos amam. A estimar a infinita beleza do mundo, amá-la ao ponto de sentir a dor de ter de a deixar um dia. Pelo contrário, é um sinal feio e péssimo louvar o céu e maldizer a terra, defender Deus e condenar os homens, sentir-se rodeado por um mar de mal, onde a única coisa boa somos nós. É a descida para a terra que nos diz que o pedaço de céu que vimos, naquele dia longínquo, não era alucinação nem ficção, mas era apenas o belíssimo dote de casamento. Toda a vocação é uma palavra que se faz carne, um emigrante que troca o céu pela terra. Na Bíblia, muitos profetas começaram a sua missão com um céu aberto e uma voz que os chamava pelo nome. Começaram em paraíso e terminaram a corrida tocando o inferno da dor do mundo. Samuel, Isaías, Ezequiel, Paulo, Jeremias, Moisés, foram chamados dentro duma epifania de luz e de palavras. Depois, deixado o paraíso, desceram e começaram a sua história vocacional à procura do homem. Libertaram escravos e atravessaram o mar. É na base do monte que os profetas anunciaram as suas palavras mais humano-divinas. Dentro das cisternas, no exílio, debaixo de espancamentos e nas perseguições, no grito inarticulado da cruz.

Isaías tinha começado a sua missão com o céu aberto, com anjos, palavras e visões. Mas, quando chega ao auge da maturação da sua vocação (cap. 21), toma consciência do seu ser “sentinela da noite”, que desenvolve a sua missão ouvindo os homens e as mulheres que se aproximam a perguntar “quanto falta para o dia”, sem saber a resposta. Começa-se pensando oferecer respostas às perguntas dos outros sobre Deus e, um dia, compreende-se que somos ignorantes, como todos, mas podemos oferecer e receber uma companhia humana. O caminho espiritual é um passar das muitas tagarelices sobre Deus a pouquíssimas palavras que param no limiar da porta. Mas não o sabemos, não nos disseram e combatemos os desalinhamentos que vemos crescer e as carestias de palavras, porque não nos apercebemos que enquanto se reduzem as palavras sobre Deus, estão a aumentar as boas palavras sobre a vida e sobre os homens. Por vezes, esquecemos como se reza Deus, mas aprendemos a rezar o homem. O principal – e talvez o único – sinal que a vida espiritual está a florir e a dar frutos, é tornar-nos mais capazes de humanidade (na metáfora da árvore, muito bíblica, os frutos nascem da morte das flores e das suas cores). Um especialista de vida espiritual é alguém que sabe falar, sobretudo, da vida das pessoas (dos amores e das dores da condição humana) e que fala pouquíssimo de Deus, porque intuiu o seu mistério ou para tratar as muitas palavras religiosas pronunciadas em cada dia por quem conhece Deus apenas por “ouvir falar dele” e, por isso, nem sequer conhece o homem.

Durante o caminho, reduzem-se os diálogos íntimos com a voz dos primeiros dias até desaparecerem, porque ganham a forma do barro do oleiro, de uma bilha, de um cinto, de um jugo a transportar pelas ruas da cidade. A luz e a visão de Deus, do início, eram essenciais para compreender o seu lugar no mundo e partir. Depois, existem a luz e a visão da terra e não falta nada. O primeiro e o último dom de uma vocação é uma visão diferente e mais humana da terra, da vida, das pessoas. Parte-se sempre para o paraíso. Mas o caminho fica bloqueado se, um dia, não compreendemos que, para rever Deus, depois dos primeiros dias, a única possibilidade que nos é dada são os olhos dos homens e das mulheres, a única verdadeira imagem de Deus disponível na terra. E, assim, justamente quando nos parecia ter fracassado a nossa missão, porque o rosto de Deus, que procurávamos, nos parecia sempre distante, damo-nos conta que, em todos os anos gastos a olhar nos olhos homens e mulheres, tínhamos aprendido a conhecer Deus, mas não o sabíamos.

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Excessos e desalinhamentos / 6 – Vê-se Deus graças aos olhos encontrados, de homens e mulheres

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 07/10/2018

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Aprende-se o céu, descendo

Aprende-se o céu, descendo

Excessos e desalinhamentos / 6 – Vê-se Deus graças aos olhos encontrados, de homens e mulheres por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 07/10/2018
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Excessos e desalinhamentos / 5 – A vocação é bem de experiência e deve ser “consumada”

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 30/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 05 rid“Estou puro, estou puro! Estas palavras, que os mortos do antigo Egipto levavam consigo, como um viático para a última viagem, são palavras talvez adaptadas às múmias das necrópoles, mas nenhum vivo as poderia pronunciar de boa-fé”.

Vladimir Jankélévitch, Il puro e l’impuro

O primeiro e mais precioso dote que traz consigo quem chega a uma comunidade, é a experiência da voz que o chamou. A natureza deste diálogo admirável, feito de poucas palavras e de muito corpo, é a marca digital espiritual da pessoa. Forma-se no “seio materno” e, depois, nunca muda durante toda a vida. No caso de feridas, a pele cresce com as mesmas características únicas e irrepetíveis. E não é raro que, conhecendo uma pessoa, na altura do primeiro encontro vocacional, depois, quando a encontramos, algumas décadas depois, muito mudada, antes de a reconhecer nas mudanças corporais, reconhecemo-la por aquela marca espiritual, que permaneceu apesar das vicissitudes que lhe transformaram o corpo e a alma – podemo-nos tornar muito diferentes, por vezes também muito maus, mas aquela marca está ali, estará connosco até ao fim e mesmo que decidamos apagá-la ou remover com cirurgia, ela permanece firme, a esperar-nos fiel, mais fiel que nós mesmos.

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As vocações verdadeiras nunca são abstratas. “Vai para a terra que eu te indicar”; “Vai e liberta o meu povo, escravo no Egipto”. Não há nada mais concreto que uma vocação – e quando é abstrata, quase nunca é autêntica. Nunca se é chamado genericamente à arte, mas à poesia – é-se artista se se é poeta e não vice-versa. Não se é chamada a tornar-se religiosa, mas a tornar-se salesiana – mesmo se, por vezes, se quer algum tempo para o compreender.

Nas vocações, em todas as vocações verdadeiras, está tudo na voz. É um acontecimento auditivo. Faz-se uma experiência real, misteriosa e concretíssima de uma voz que chama, fala, pede. Uma vocação é este diálogo entre vozes: a que chama, a que responde, a da comunidade que acolhe. Quase nunca se tem a certeza de quem chama, apenas há a certeza da presença duma voz. É uma voz plural, que nunca nos chama para sermos uma coisa apenas. Chama na condição ordinária do viver, com todas suas belezas, contradições, feridas. Alguns, que se casam, não estão menos fascinados pela mística e pela espiritualidade que muitas religiosas de clausura. Aqueles a quem a voz pede para permanecerem célibes não têm uma estrutura psicológica diferente dos que se casam. Têm, em média, os mesmos desejos, as mesmas paixões, o mesmo eros de todos. Não foram chamados porque tinham uma predisposição antropológica para a castidade ou para a obediência: foram chamados e basta, sem prévios colóquios motivacionais e de aptidão. E não é verdade que a voz que chama dá também os instrumentos para poder realizar a missão que pede. Seria demasiado simples e, por isso, banal e não verdadeiro – estas coisas acontecem para missões empresariais, mas não para desenvolver a nossa missão no mundo. A inaptidão é a condição normal de toda a vocação e talvez de toda a pessoa honesta.

Entre as pessoas que receberam uma vocação autêntica, encontram-se pessoas equilibradas e nevróticas, sãs e doentes, santas e pecadoras, geralmente não mais sábias nem inteligentes da média da população. Por vezes, a resposta honesta à vocação faz adquirir, com o tempo, algumas virtudes e as pessoas melhoram eticamente; outras vezes, não. Estas pessoas chamadas convivem ao lado e dentro de doenças crónicas, depressões, incidentes, feridas e algumas permanecem pregadas numa cruz numa eterna sexta-feira santa e esperam toda a vida uma ressurreição que nem sempre chega. Nas melhores comunidades encontram-se algumas pessoas levadas pela espiritualidade e outras nem tanto; algumas que gostam das longas orações, outras que não as amam deveras. Outras ainda que começaram com grandes exigências religiosas e, décadas depois, encontram-se com uma vocação que se tornou num compromisso civil ao serviço dos pobres onde, aprendendo a escutar as vozes das vítimas, esqueceram o timbre da primeira voz – para depois, por vezes, descobrir, por fim, que a voz do primeiro encontro se tinha perdido porque se tornou a voz da dor dos outros.

Esta biodiversidade da população das comunidades coloca questões importantes, por vezes determinantes, em relação dos processos de seleção e de discernimento.
O único verdadeiro discernimento que serviria na aurora de um chamamento é apurar a presença da voz que chama, que tende a confundir-se com outras vezes que, quando jovens, se assemelham muito. Mas, os “mestres” capazes destes discernimentos são raríssimos; hoje mais que ontem. E, assim, na incapacidade de encontrar o único verdadeiro indicador da autenticidade de uma vocação, usam-se critérios secundários que captam aspetos secundários e acidentais, mas não a vocação. Este infausto êxito depende totalmente da ideia, hoje radicada, que se devem procurar nas pessoas as pré-condições do chamamento. Procuram-se (no âmbito da vida consagrada, por exemplo) presumíveis predisposições para a castidade, para a vida em comunidade ou até para a obediência. Raciocina-se como se fosse possível identificar uma atitude abstrata para a comunidade antes de viver verdadeiramente numa comunidade concreta, ou para a castidade, esquecendo que a experiência da castidade aos quarenta ou cinquenta anos é radicalmente diferente da imaginada na idade do encanto.

As vocações são sempre “bens de experiência” (experience goods), isto é, bens cujo valor verdadeiro só se pode conhecer depois de serem “consumidos”. Começa-se um caminho com a ideia de vocação e, enquanto não se estiver dentro de uma experiência vocacional não sabemos quase nada da nossa vocação concreta. Eis porque toda experiência vocacional verdadeira é trágica, porque leva inscrita em si a possibilidade do seu fracasso. Entre quem deixa uma comunidade ideal não está apenas quem “errou na vocação”. Estão também muitos que tiveram um chamamento verdadeiro mas, fazendo a experiência, compreenderam que não conseguiam viver na condição concreta em que aquele chamamento os colocava existencialmente – pelas próprias fragilidades ou por nevroses comunitárias e erros de governo. Portanto, o fracasso de uma experiência vocacional concreta não diz muito sobre presença ou ausência de um chamamento verdadeiro no início. Há pessoas que permanecem muitíssimo bem, durante toda a vida, numa experiência vocacional sem ter tido uma vocação e outras que abandonam, apesar de terem tido um chamamento verdadeiro e continuam a tê-lo durante toda a vida. Como existem comunidades salvas por reformadores que tinham mau carácter e graves fragilidades, mas que, simplesmente, tinham sido chamados.

Mas se, por querer prevenir os fracassos (intenção nobre e obrigatória), procuramos identificar as predisposições psicológicas ou de carácter das pessoas chamadas, e descuidamos compreender se, no início, está uma experiência vocacional verdadeira, impedimos que pessoas, com fragilidades mas chamadas, possam ocupar o seu lugar no mundo, mesmo quando este lugar corre seriamente o risco, por aquelas fragilidades, de ser incómodo e doloroso, mesmo tendo de lidar com o risco de um fracasso. Porque ninguém pode saber, nem antes nem depois do acontecimento, o valor espiritual e moral de um ano, dez ou trinta anos, vividos a procurar ser fiéis a um chamamento verdadeiro, mesmo quando aquela experiência é interrompida e, por vezes, por erros e maldades de quem estava em redor e acima de nós. Algo de muito parecido acontece em toda a experiência matrimonial: o amor que tivemos, os filhos que colocámos no mundo, continuam uma bênção mesmo quando não conseguimos viver juntos para sempre, se, no início, houve um chamamento verdadeiro. Enquanto há existências vividas sem traumas nem fracassos, talvez só porque seguimos apenas os incentivos e ganhos, mas, no início não havia nenhuma voz verdadeira. Não é o sucesso o indicador da verdade de uma existência – também nisto, os profetas são mestres eternos e infinitos. É a verdade de quanto estamos a viver e de quanto vivemos que mostra o valor de uma experiência verdadeira e de uma vida.

Não devemos, na avaliação das nossas experiências existenciais, cometer o erro cognitivo dos “efeitos de pequenos-fins”. Cometemos estes erros quando, por exemplo, escutamos uma sinfonia com um velho vinil e, depois de uma hora de escuta maravilhosa de Beethoven, acontece que, perto do fim, o disco está estragado e começa a emitir ruídos irritantes. Geralmente, quando avaliamos aquela experiência, esquecemo-nos a hora de música celeste e estendemos o aborrecimento do último minuto (o fim) a toda a experiência auditiva, exprimindo um parecer negativo sobre todo o acontecimento. Na realidade, tivemos uma hora de música esplêndida e um final difícil. A beleza e a verdade dos anos gastos a seguir generosamente uma voz verdadeira não se medem na base do “minuto” final infeliz, por o disco estragado ou porque o velho gira-discos avariou. Nada pode ou deve estragar-nos a verdade e a beleza de ter percorrido a primeira hora em companhia de Beethoven.

Pelo contrário, quando se vão procurar os sinais vocacionais no carácter e na personalidade, acaba-se por identificar pessoas predispostas que, no entanto, quase nunca são as chamadas por uma voz verdadeira, mas atraídas por aspetos sociológicos da profissão vocacional. Porque, se nas comunidades entram pessoas que amam muito a vida comunitária e/ou que não têm os mesmos desejos afetivos de todos, que têm menos eros e paixões humanas que os outros, encontramo-nos com comunidades empobrecidas de normalidade antropológica, com pouca biodiversidade e vitalismo, com pessoas demasiado semelhantes e com “humanidade reduzida” porque entrados já parecidos e reduzidos – mas a vida é generosa e, embora tenhamos entrado numa comunidade com motivações erradas, podemos sempre receber um chamamento verdadeiro até ao fim do último dia se, no dia anterior, desejamos verdadeiramente ser chamados pelo nome.

Nas comunidades ideais encontramo-nos juntos porque cada um é chamado. Não se entra porque nos agrada o nós mas porque dizemos sim a um tu. Na Galileia, não se criou uma comunidade porque os apóstolos foram atraídos por uma forma qualquer de vida em comum ou por um qualquer estado de vida – não sabemos se era Pedro ou Judas o mais predisposto, sociológica e psicologicamente, para a vida comunitária. Quase sempre, as experiências comunitárias mais vivas e verdadeiras acontecem entre pessoas que não tinham os caracteres ideais para viver junto umas das outras mas, precisamente ali, desabrocha uma autêntica fraternidade, improvável, que converte e gera. Comunidades formadas por pessoas, todas igualmente atraídas pela própria comunidade, tornam-se, quase sempre, comunidades que não atraem ninguém – as comunidades com pouca biodiversidade não superam a segunda geração.

Muitos pintores não conheciam as técnicas pictóricas no dia em que receberam a vocação. Depois, aprenderam as técnicas, mas já eram artistas. Pode-se aprender a vida comunitária, pode-se mesmo aprender a viver a pobreza e a castidade, mas não se pode aprender uma vocação. Apenas a podemos escutar e, depois, começar a caminhar.

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Excessos e desalinhamentos / 5 – A vocação é bem de experiência e deve ser “consumada”

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 30/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 05 rid“Estou puro, estou puro! Estas palavras, que os mortos do antigo Egipto levavam consigo, como um viático para a última viagem, são palavras talvez adaptadas às múmias das necrópoles, mas nenhum vivo as poderia pronunciar de boa-fé”.

Vladimir Jankélévitch, Il puro e l’impuro

O primeiro e mais precioso dote que traz consigo quem chega a uma comunidade, é a experiência da voz que o chamou. A natureza deste diálogo admirável, feito de poucas palavras e de muito corpo, é a marca digital espiritual da pessoa. Forma-se no “seio materno” e, depois, nunca muda durante toda a vida. No caso de feridas, a pele cresce com as mesmas características únicas e irrepetíveis. E não é raro que, conhecendo uma pessoa, na altura do primeiro encontro vocacional, depois, quando a encontramos, algumas décadas depois, muito mudada, antes de a reconhecer nas mudanças corporais, reconhecemo-la por aquela marca espiritual, que permaneceu apesar das vicissitudes que lhe transformaram o corpo e a alma – podemo-nos tornar muito diferentes, por vezes também muito maus, mas aquela marca está ali, estará connosco até ao fim e mesmo que decidamos apagá-la ou remover com cirurgia, ela permanece firme, a esperar-nos fiel, mais fiel que nós mesmos.

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A verdade não está no sucesso

A verdade não está no sucesso

Excessos e desalinhamentos / 5 – A vocação é bem de experiência e deve ser “consumada” por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 30/09/2018 “Estou puro, estou puro! Estas palavras, que os mortos do antigo Egipto levavam consigo, como um viático para a última viagem, são palavras talvez ad...
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Excessos e desalinhamentos / 4 – Seguir a voz nua, dócil à mão nos olhos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 23/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 04 rid“O Mestre disse: «Aos quinze anos, apliquei-me ao estudo. Aos trinta, fiz uma opinião. Aos quarenta, não tive mais dúvidas. Aos cinquenta, conheci o querer do céu. Aos sessenta, o meu ouvido pôs-se em sintonia. Aos setenta, segui todos os desejos do meu coração sem infringir nenhuma regra”.

Os ditos de Confúcio, 2.4

As comunidades ideais e espirituais podem esperar tornar-se lugares de florescimento humano e conseguem caminhar no limite da desagregação. Pelo contrário, quando o medo da possibilidade do próprio fim se torna muito forte e prevalece, a vida dos membros murcha por falta de ar e de céu. Apenas os picos das grandes alturas permitem a visão de panoramas bastantes largos a ponto de (quase) apagar o desejo de infinito que impele as pessoas com “vocação” a doar a própria vida a comunidades a quem confiam pedaços essenciais de liberdade e de interioridade. Mas, mal a caravana perde altitude, à procura de acampamentos seguros onde montar as tendas, os lugares e os horizontes tornam-se imediatamente demasiado estreitos: devemos desmontar imediatamente o campo e retomar a subida. Nos cimos dos montes, arrisca-se e escorregar e precipitar-se, mas só ali se roça o céu. Muitas comunidades extinguiram-se porque, simplesmente, procuraram fazer viver verdadeiramente as suas pessoas (e, por vezes, um botão despontou do tronco caído); outras não morreram porque nunca começaram a viver ousando a vida plena. O cristianismo nasceu do desfasamento da sua primeira comunidade. Jesus salvou os seus porque não os “salvou” num lugar seguro e prudente. Desceu aos infernos e, dali, perante a admiração de todos, começou a ressurreição.

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Nas comunidades ideais, acontece algo de parecido ao que vivemos com os filhos e a filhas. De manhã, olhamo-los, às escondidas, a compor a gravata e a camisa, diante do espelho. Estamos orgulhosos da sua beleza e bondade e, felizes, deixamo-los partir, sem nunca nos deixarmos de admirar quando, cada tarde, os vemos regressar. Porque sabemos que, um dia, não voltarão; mas, se os deixámos partir verdadeiramente, podemos esperar que, um outro dia, voltarão verdadeiramente. As famílias e as comunidades morrem quando o medo do possível não retorno de quem nos está próximo nos tira a alegria de os ver partir de manhã, nos reduz o orgulho da sua beleza, até o perverter em inveja. Para procurar permanecer nas trajetórias altas e luminosas, uma ação determinante é manter a diferença entre a comunidade ideal e o ideal da comunidade. Isto é, seria necessário fazer de tudo para que a pessoa que chega, porque chamada, não identifique os ideais que a atraem e seduzem com a própria comunidade e com as suas praxis. Todavia, é muito comum que comunidade e Organizações Movidas por um Ideal (OMI) se apresentem como a incarnação perfeita dos ideais que as inspiram e as animam. Porque é muito forte a tentação da comunidade de se indicar, perante os seus membros, como o ideal a viver e a seguir. Também porque a identificação ideal-comunidade agrada muito, quer às pessoas quer à comunidade, sobretudo nas primeiras fases – mas é, sobretudo, no início que seria necessário agir em sentido persistente e contrário ao “natural”.

Acontece assim porque, em vez de marcar e manter o excesso dos ideais da comunidade em relação às suas práticas, as OMI realizam o seu “carisma” num conjunto de ações, ritos, liturgias, regras individuais e coletivas. Todos se convencem – todos em muitíssima boa-fé – que as regras, os regulamentos e as práticas sejam a cópia conforme perfeita do ideal, que o modo – o único modo seguro – para tornar concreto, hoje, o encontro com a voz que ontem nos tinha chamado, é seguir aquelas regras e aquelas praxis, sem glosa. Os fundadores e as comunidades fazem esta tradução perfeita porque acreditam que, sem a operacionalização dos ideais, a sua comunidade não terá futuro. Eliminam, gradualmente, os excessos dos ideais sobre a comunidade e, assim, sem querer nem saber, impedem verdadeiramente o carisma de continuar a realizar coisas novas no futuro, porque a novidade apenas floresce das feridas/aberturas dos excessos-rejeições entre os ideais e a sua tradução histórica – os efeitos não intencionais são sempre os determinantes, nas experiências coletivas. Quando este excesso falta, o espírito livre e infinito torna-se uma técnica. O “o que é isto?” – isto é, a exclamação do coração que chega sempre que nos deparamos no deserto com o maná (man hu: o que é isto?) de um acontecimento espiritual de salvação – torna-se: “como funciona?”. “como o concretizo?”, “como o ponho em prática?”. O primeiro encontro que tinha gerado o desejo de conhecer quem e que coisa era aquela voz maravilhosa, transforma-se, progressivamente, num repertório de boas práticas e de regras a realizar para ser “fiel”. Também porque sem uma tradução qualquer do carisma na praxis, as comunidades não nascem, mas esta mesma tradução arrisca silenciar o carisma que as gerou. Uma tensão paradoxal, vital, sempre determinante.

O humanismo bíblico conhece tudo isto muito bem. A Bíblia fez quase o impossível para distinguir IHWH da Lei e da palavra dos profetas que falavam em seu nome (sem o conseguir sempre). Mas, se a Bíblia tivesse perdido este excesso de Deus sobre as suas palavras, teria usado a palavra como um laço para prender Deus, reduzindo-o a ídolo (toda a idolatria, mesmo as “laicas”, é um laço duplo: homens que amarram a divindade e a divindade que, uma vez transformada em ídolo, amarra os seus seguidores-enlaçadores). As palavras da Escritura podem gerar outras palavras verdadeiras porque são sacramento de uma realidade de que não conhece o mistério. O humanismo bíblico conseguiu salvar este excesso graças aos profetas. Os fundadores das comunidades carismáticas, como os profetas, são chamados a ser os primeiros guardas do excesso do carisma sobre as palavras do carisma. Mas quando os ideais começam a coincidir com o conjunto das práticas, nas pessoas individuais reduz-se progressivamente o espaço livre interior. E o primeiro desejo de conhecer qual e quem é o mistério que encontrámos, torna-se, progressivamente, uma profissão.

Tudo isso tem consequências existenciais muito concretas e, por vezes, dramáticas. Muitos membros das OMI entram em crises profundíssimas quando se apercebem que, mesmo estando rodeados por práticas e palavras que dizem só e sempre espiritualidade e idealidade, já não sabem, na realidade, o que seja verdadeiramente a vida interior e a espiritualidade. E não é raro que pessoas saídas quando jovens, com uma grande sede de espiritualidade, se descubram, quando adultas, empobrecidas precisamente no que deveria representar o seu traço distintivo e o ideal da sua vida. Já não conseguem dizer palavras verdadeiras e sábias a ninguém, nem mesmo a elas próprias. Quando alguém as encontra, vê-se diante de uma profissão, de respostas técnicas, sem a competência específica no espírito que só a prática da liberdade pode gerar num coração habitado. Tem-se entre as mãos um ideal tornado ética e práticas. Que já não fala de espiritualidade, de vida ou de Deus. A extinção dos excessos entre o Deus da comunidade e a comunidade, porque apresentada como incarnação perfeita daquele Deus, anulou o espaço interior e secretíssimo onde a vida interior é cultivada e alimentada. E, depois de ter falado de espiritualidade ao longo de muitos anos, encontramo-nos, inesperadamente, numa condição neo-ateia. Sentimos ter usado apenas técnicas, de ter ficado à superfície da vida interior verdadeira, por falta de liberdade e de fôlego. Porque, uma vez extintas as palavras da comunidade, não conseguem mais falar a Deus nem de Deus, nem sequer ao próprio coração – uma descoberta dramática que, frequentemente, produz uma raiva e uma dor infinitas, mas que, por vezes, pode tornar-se uma grande bênção se, naquele inferno, começa uma ressurreição. Outros, ainda, e são os casos mais tristes e muito comuns, continuam a viver até ao fim, identificados com a profissão e sem nunca se darem conta de ter perdido contacto com a espiritualidade que os tinha atraído.

As comunidades vivem e fazem viver bem se ajudam as próprias pessoas a nunca perder o diálogo sobre “quem és?”. Se deixamos livres os seus espaços da alma e da vida para encher (nunca totalmente) com diálogos personalizados que alimentem as perguntas e reduzam as respostas simples e iguais para todos. Porque as vozes verdadeiras que nos chamam, conhecem só o “tu” da segunda pessoa do singular: os nomes coletivos não funcionam para estas coisas demasiado sérias. Só funcionam se libertam das práticas e da Lei para deixar a cada um a liberdade de conhecer e de seguir o espírito que fala a cada um numa língua diferente. As práticas comunitárias só são boas se convivem com as individuais, nascidas de palavras diferentes, sussurradas pelo mesmo ideal-carisma, todos os dias, a todos, na biodiversidade essencial. Mas tudo isto é extremamente perigoso e, por isso, muito raro. Está sempre ali o medo de as pessoas melhores e mais atraídas pelas alturas escorregarem do cume; que se tornam tão livres que não voltem, à noite, para casa, que durmam nos abrigos alpinos para tentar, ao amanhecer, novas escaladas solitárias das montanhas da juventude. E, assim, quase sempre, as comunidades preenchem todos os espaços interiores, enchem o programa e encontram-se com pessoas menos vivas e fecundas, mas mais seguras e formatadas – que estão bem como jovens, mas mal como adultos e anciãos.

Estes processos são, na maior parte, inevitáveis e acontecem em toda a vida comunitária. Inclusive as famílias, onde após os primeiros tempos do enamoramento, dominados pelo “quem és?”, se passa rapidamente ao “como funciona?”. Mas – sabemo-lo bem –, as famílias não funcionam mais se, de vez em quando, não voltam as perguntas “quem és?”, “quem sou?”, “em que coisa nos tornámos?”. Moisés, o homem que falava com YHWH “cara a cara”, nunca viu o rosto de Deus. Conhecia e reconhecia a sua voz, não o seu rosto. Uma vez – apenas uma vez – no auge de um diálogo maravilhoso com a voz, Moisés pede-lhe o impossível: «Mostra-me a tua glória!». YHWH responde-lhe: «cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado. Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista» (Êxodo 33, 21-23). As comunidades devem aprender a ser dóceis sob a mão dos próprios ideais que lhe tapa os olhos. Contentar-se com a voz nua. Saber que, nas raríssimas vezes em que a mão é tirada, vêm apenas as costas. As praxis, as regras, os objetos de “culto” comunitário são apenas cópias das costas do ideal visto nalgum especialíssimo momento de luz. Mas o rosto, a intimidade e a luz dos olhos permanecem e devem permanecer mistério e desejo e, sobretudo, não devem ser confundidos com a coluna vertebral. Quando Maria Madalena, chorosa, encontrou o Ressuscitado, não reconhece o rosto: reconhece uma voz quando a chamava pelo nome.

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Excessos e desalinhamentos / 4 – Seguir a voz nua, dócil à mão nos olhos

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 23/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 04 rid“O Mestre disse: «Aos quinze anos, apliquei-me ao estudo. Aos trinta, fiz uma opinião. Aos quarenta, não tive mais dúvidas. Aos cinquenta, conheci o querer do céu. Aos sessenta, o meu ouvido pôs-se em sintonia. Aos setenta, segui todos os desejos do meu coração sem infringir nenhuma regra”.

Os ditos de Confúcio, 2.4

As comunidades ideais e espirituais podem esperar tornar-se lugares de florescimento humano e conseguem caminhar no limite da desagregação. Pelo contrário, quando o medo da possibilidade do próprio fim se torna muito forte e prevalece, a vida dos membros murcha por falta de ar e de céu. Apenas os picos das grandes alturas permitem a visão de panoramas bastantes largos a ponto de (quase) apagar o desejo de infinito que impele as pessoas com “vocação” a doar a própria vida a comunidades a quem confiam pedaços essenciais de liberdade e de interioridade. Mas, mal a caravana perde altitude, à procura de acampamentos seguros onde montar as tendas, os lugares e os horizontes tornam-se imediatamente demasiado estreitos: devemos desmontar imediatamente o campo e retomar a subida. Nos cimos dos montes, arrisca-se e escorregar e precipitar-se, mas só ali se roça o céu. Muitas comunidades extinguiram-se porque, simplesmente, procuraram fazer viver verdadeiramente as suas pessoas (e, por vezes, um botão despontou do tronco caído); outras não morreram porque nunca começaram a viver ousando a vida plena. O cristianismo nasceu do desfasamento da sua primeira comunidade. Jesus salvou os seus porque não os “salvou” num lugar seguro e prudente. Desceu aos infernos e, dali, perante a admiração de todos, começou a ressurreição.

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O mistério não é uma profissão

O mistério não é uma profissão

Excessos e desalinhamentos / 4 – Seguir a voz nua, dócil à mão nos olhos por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 23/09/2018 “O Mestre disse: «Aos quinze anos, apliquei-me ao estudo. Aos trinta, fiz uma opinião. Aos quarenta, não tive mais dúvidas. Aos cinquenta, conheci o querer do céu....
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Excessos e desalinhamentos / 3 – Pode-se ir como filho e voltar como pai e mãe

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 16/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 03 rid“A docilidade da madeira era a sua. Já não era árvore que caminhava, como lhe tinha revelado o cego de Betsaida; agora estava plantado na terra e os seus passos terminavam ali, com os pés juntos e os braços abertos como ramos. O Gólgota é um monte pelado, sem vegetação. No alto, agora, desponta um homem árvore, enxertado com sangue”.

Erri De Luca, Indagine su un falegname

No decurso da sua existência, as pessoas desenvolvem muito mais dimensões que as úteis à comunidade em que vivem e crescem. Porque o “encargo” que devemos desempenhar no mundo é sempre excesso em relação à missão institucional da nossa organização ou comunidade, que permanece pequena, por muito larga e extraordinária que seja. Nenhuma instituição é maior que uma simples pessoa porque, enquanto a inteligência coletiva de um grupo ou de uma comunidade consegue resolver problemas cognitivos mais complexos e ricos que os que consegue ver e pensar a inteligência individual, a alma de uma pessoa é sempre mais complexa e rica que a “alma” da comunidade.

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As experiências espirituais coletivas podem ser muito mais espetaculares, sensacionais, emocionantes que as individuais, mas só o coração da pessoa individual é suficientemente amplo para conter os abismos mais profundos e os picos mais altos da dor e do amor. Moisés, sozinho, falou com a sarça-ardente; Jeremias está só quando ouve a voz debaixo da amendoeira; e foi na solidão de uma pequena casa, não na assembleia do templo, o lugar da Anunciação. Está aqui também a dignidade infinita da pessoa, que será sempre o templo mais belo e mais divino, tão santo a ponto de não o poder construir, mas simplesmente gerar.

Por este seu mistério profundíssimo e por esta sua dignidade imensa, uma pessoa que recebe uma vocação e se põe a caminhar é chamada a tornar o mundo melhor, não apenas a porção de terra circunscrita aos limites da sua comunidade. Os seus ramos ultrapassam o jardim da casa, espalham esporos e sementes que germinam se permanecerem livres, transportadas pelo vento. Pelo contrário, quando a comunidade, que gera e cuida uma vocação, quer ser a sua única dona e, por isso, corta os ramos que saem das sebes domésticas, as pessoas acabam por ser consumadas pela própria comunidade, em relações objetivamente incestuosas mesmo quando tudo é animado por boas intenções. A poda necessária dos ramos não deve tornar-se amputação do desígnio vocacional.

Um consumo para usos internos que é tanto mais provável quanto mais a pessoa é bonita e cheia de talentos, porque não é fácil compreender que aquela beleza e riqueza só podem viver e crescer se doadas generosamente. Um franciscano vem ao mundo para tornar melhor a família humana e não apenas a família franciscana, e poderá melhorar o franciscanismo se é deixado livre para se ocupar também da outra. O nosso lugar no mundo não coincide com o lugar em que vivemos.

A possibilidade concreta da saída é, portanto, essencial para quem parte, mas também para quem fica, pois os “netos” e o futuro dependem substancialmente desta castidade e generosidade organizativa (pais que gastam os seus filhos nunca se tornam avós). Isto vale para todas as formas de comunidade, mesmo para um convento de clausura, onde a experiência da saída não é menos radical porque, quase sempre, é toda interior.

As formas de saída e de regresso são muitas, tantas quantas são as formas que, em cada pessoa, assume um caminho essencial – portanto, são infinitas. Por vezes, o que aparece, a nós e aos outros, como uma saída (física ou espiritual) é, na realidade, um ficar tranquilos e ao calor, dentro de casa; outras vezes, só muito depois nos damos conta que tínhamos saído e voltado e pensávamos nunca ter movido nem o corpo nem o coração – apenas ficámos porque tínhamos medo de deixar, tínhamos deixado de acreditar na promessa, tínhamo-nos tornado ateus, mesmo continuando a pronunciar as orações de sempre. Porque a vida seria demasiado simples – e muito enjoativa – se as coisas respondessem aos nomes que lhe damos. Surpreendem-nos, fintam-nos, gostam de jogar às escondidas connosco. Quando subimos ao monte, quase nunca sabemos se estamos a chegar ao Tabor ou ao Gólgota, se nos esperam três tendas ou três cruzes. Só quando abraçamos uma cruz – nossa ou dos outros –, descobrimos que aquela madeira exala o mesmo cheiro da carpintaria do nosso pai; e, ali, compreendemos que trabalhámos tantos anos naquela oficina poeirenta apenas para reconhecer, naquele último cheiro, o mesmo perfume de casa, o das vestes de José e de Maria.

A Sabedoria bíblica dá-nos alguns paradigmas de saída e de regresso, que traçam algumas coordenadas antropológicas e espirituais, dentro das quais podemos colocar algumas experiências nossas concretas.

Encontramos um primeiro modelo na história de Jonas. Este profeta recebe, de Deus, um chamamento para desempenhar uma missão: ir profetizar à cidade de Nínive. Mas Jonas, foge em direção diametralmente oposta e entra num barco, em direção a Társis. Pelo relato, não sabemos porque Jonas foge. O que nos interessa é porque volta. Enquanto foge, sabendo que foge da sua vocação, Jonas vive uma experiência determinante, que o faz voltar. Deus desencadeia uma tempestade no mar e o barco está quase a afundar. Jonas não se dá conta da tempestade e dorme; depois, diz aos marinheiros: «Pegai em mim e lançai-me ao mar…, porque eu sei que é por minha causa que vos sobreveio esta grande tempestade» (1, 12). Jonas sente que a causa da desgraça que está a atingir o barco é a sua fuga. Pede para ser lançado ao mar, salva-se (graças à baleia) e volta à sua missão. Um relato duma profundidade humana espantosa e, por isso, frequentemente não compreendida.

Uma forma de regresso é o regresso de Jonas. Se sai, se foge, porque, em certos momentos, não se pode não sair e, a um dado momento, se sente claramente que existe uma misteriosa – mas realíssima – relação entre a nossa saída e a dor do novo povo que se tem em redor. Compreendemos que somos nós a explicação da dor dos outros («eu sei», diz Jonas). Vemos uma ligação entre o sofrimento na nossa empresa, a desgraça daquela família, a doença desta menina e a nossa fuga. Estávamos a dormir num barco errado mas, um dia, alguém ou alguma coisa nos desperta e, ao despertar, sentimos com uma certeza interior infalível que, se não tivéssemos entrado naquele barco errado, aquela dor não existiria. E, por vezes, consegue-se voltar. Outras vezes, porém, não se regressa porque é demasiado tarde ou porque nos deixamos lançar ao mar e a “baleia” não chega para nos salvar. Mas, por vezes, como Jonas, depois daquele regresso, acontecem autênticos milagres, as nossas palavras convertem e salvam cidades inteiras, pessoas e animais. Mas nós não o sabíamos: tínhamos voltado apenas para salvar aquele barco que estava a afundar-se por causa da nossa fuga.

Um segundo paradigma de saída e de regresso está na história de José, no Egipto. A saída de José da sua família está entre as histórias bíblicas mais bonitas e populares. O jovem José era um sonhador e um contador de sonhos. O relato comunitário destes sonhos cria, nos seus irmãos, a inveja para com ele que, um dia, o venderam aos mercadores em viagem para o Egipto. Numa terra estrangeira, José, graças à sua vocação e competência em matéria de sonhos, consegue tornar-se uma personalidade política importante. E, quando os irmãos, anos depois, durante uma grande carestia, se dirigem ao Egipto, à procura de trigo e de vida, ali encontram José, o irmão vendido, que os salvará.

Não é raro que sejam os sonhos maiores, os que excedem os muros da casa, a fazer-nos sair, afugentar, expulsar – a saídas das comunidades quase nunca são verdadeiramente voluntárias, mesmo que nos pareçam isso. Aqueles mesmos sonhos grandes e “carismáticos” trazem-nos a inveja dos nossos irmãos. Querem “matar” o nosso carisma e, por vezes, vendem-nos como maldade por parte dos nossos irmãos mais velhos. Depois, por vezes, chegamos a um grande reino, a uma grande civilização. Os primeiros sonhos que correram mal dentro de casa, fazem-nos crescer e fazer carreira numa terra estranha; até que um dia, sem que ninguém o pudesse saber (nem José nem os seus irmãos), descobrimos que aquela saída dolorosíssima fora, na realidade, a salvação de todos: «porque foi para podermos conservar a vida que Deus me mandou para aqui à vossa frente» (Génesis 45, 5-8). Sai-se para salvarmo-nos a nós mesmos e, por fim, descobrimos que aquela saída fora providencial para nós e também para os que nos tinham obrigado a sair. São estas saídas paradoxais que tornam a vida humana algo de pouco “inferior aos anjos”, e não é raro que o sentido verdadeiro da partitura que estamos a tocar só o compreendemos na última nota, por vezes só durante o aplauso final.

As saídas de José são, sobretudo (mas não unicamente), as saídas da juventude, quando, depois de, sinceramente, ter tentado seguir uma voz, algum tempo depois se encontra fora, corrido de casa, numa experiência que, para muitos, é vivida como engano, traição, maldade, com a raiva de ter desperdiçado os anos mais belos. Mas, acabámos naquela “cisterna” para seguir honestamente uma voz e, se continuamos a segui-la na comunidade invisível do nosso coração, mesmo em terra estrangeira, quase sempre chega o momento da salvação e a pedra abandonada torna-se a pedra angular de toda a casa. Chega muito tempo depois, mas a sua chegada estava inscrita na lógica boa e verdadeira da vida e da lealdade misteriosa a uma voz que continuámos a seguir mesmo se estávamos muito confusos e desiludidos – destas salvações conheci muitas e estão entre as experiências humanas mais sublimes, para cada José e para os seus irmãos.

Por fim, há um elemento comum a muitas formas de regresso depois das saídas. Sai-se de casa como filho da comunidade; regressa-se como pai e como mãe. Nestas parábolas de carne e de sangue, quando o jovem, entretanto tornado adulto, sente e diz “levantar-me-ei e irei ter o meu pai”, quando chega a casa, quem encontra a abraçá-lo, a lançar-lhe os braços ao pescoço, a pôr-lhe o anel no dedo já não é seu pai: é seu filho. Naquela saída-regresso, tornou-se pai do seu pai, mãe da sua mãe. Não o sabia; não podia sabê-lo até ao momento do abraço – e, por vezes, continuará a não sabê-lo até ao fim. Nestas festas de regresso não se mata um vitelo gordo, porque é a festa da bênção das bolotas, único alimento possível e apreciado nos dias do afastamento e da pobreza, tornado alimento de uma nova paternidade.

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Excessos e desalinhamentos / 3 – Pode-se ir como filho e voltar como pai e mãe

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 16/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 03 rid“A docilidade da madeira era a sua. Já não era árvore que caminhava, como lhe tinha revelado o cego de Betsaida; agora estava plantado na terra e os seus passos terminavam ali, com os pés juntos e os braços abertos como ramos. O Gólgota é um monte pelado, sem vegetação. No alto, agora, desponta um homem árvore, enxertado com sangue”.

Erri De Luca, Indagine su un falegname

No decurso da sua existência, as pessoas desenvolvem muito mais dimensões que as úteis à comunidade em que vivem e crescem. Porque o “encargo” que devemos desempenhar no mundo é sempre excesso em relação à missão institucional da nossa organização ou comunidade, que permanece pequena, por muito larga e extraordinária que seja. Nenhuma instituição é maior que uma simples pessoa porque, enquanto a inteligência coletiva de um grupo ou de uma comunidade consegue resolver problemas cognitivos mais complexos e ricos que os que consegue ver e pensar a inteligência individual, a alma de uma pessoa é sempre mais complexa e rica que a “alma” da comunidade.

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A bênção das bolotas

A bênção das bolotas

Excessos e desalinhamentos / 3 – Pode-se ir como filho e voltar como pai e mãe por Luigino Bruni publicado em Avvenire em 16/09/2018 “A docilidade da madeira era a sua. Já não era árvore que caminhava, como lhe tinha revelado o cego de Betsaida; agora estava plantado na terra e os seus pas...
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Excessos e desalinhamentos / 2 – Ir, contagiar-se, renovar a aliança

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 09/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 02 rid“Com as nossas velhas canções que sabes, vozes de coisas pequenas e queridas, nós te adormeceremos, ó velho; e poderás recomeçar.
E quando o mar, na tua tarde, triste na sombra, solta o seu grito, ainda poderás escolher o negro barco da praia.
Verás as terras das tuas recordações, do teu sofrer, doce e remoto”.

Giovanni Pascoli Il ritorno   [O regresso]

No coração de cada pessoa, encontra-se um mistério que se revela – e apenas em parte – no decurso de toda a vida, não raramente na última etapa. Também as pessoas com muitos talentos, mesmo as verdadeiramente geniais, se encontram numa condição de conhecimento parcial e imperfeito do próprio “carisma”, das potencialidades inesperadas, dos autoenganos e das ilusões passadas e presentes. Então, quando uma pessoa encontra uma voz que a chama e a sua vida sofre uma viragem radical, se responde e começa a caminhar, não sabe – nem pode saber – qual será o desenvolvimento daquele encontro, quais os frutos, as dores, as grandes surpresas. Num casamento, numa vocação artística ou religiosa, a parte maravilhosa são as potencialidades desconhecidas e infinitas. Não sabemos o que viremos a ser, o que acontecerá ao outro a quem nos ligamos, o que será a nossa relação. Como Deus se tornará.

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Porque em cada pacto e em cada promessa, o “sim” que mais vale não é o dito ao presente e ao passado – nosso e do outro – mas o pronunciado, agora e reciprocamente, no seu e nosso futuro. Está aqui a sua beleza, aqui a sua tragédia. Vivemos com alguém que, continuamente, se revela diferente da pessoa com quem casámos; crescemos numa comunidade que se afasta sempre mais daquela em que entrámos. E, enquanto procuramos conhecer e reconhecer, todos os dias, a pessoa que temos ao lado, esforçamo-nos também por nos reconciliarmos com a pessoa em que nos estamos a tornar – e que, frequentemente, não nos agrada. A crise de uma relação é um desalinhamento plural e em várias dimensões, onde não sabemos se o que já não nos agrada é a novidade do outro ou a nossa; frequentemente são ambas. Muitas famílias progridem porque os seres humanos têm uma grande resiliência às mudanças, sobretudo às fundamentais do “tu”, do “eu” e do “nós”.

Porém, no campo espiritual e ideal, geralmente nunca estamos suficientemente preparados para a experiência (conhecemos, por vezes, em abstrato, por o ter lido num livro) de também o Deus e/ou o ideal que escolhemos terem mudado – e mudaram muito –, pelo menos tanto como nós e, quase sempre, mais que nós. Também por isto, os modos, as formas, os tempos em que se desenrolam, no tempo, uma resposta a uma vocação são muito diferentes entre si; uma diversidade que cresce.

Todas as organizações têm muita dificuldade em gerir a diversidade entre os seres humanos. Cada trabalhador é único, vive a sua própria fase em relação à que vive a organização, atravessa as muitas idades da vida, sofre traumas e doenças. Porém, a organização não pode afinar-se com os tempos de cada um e o espetáculo deve continuar. Todavia, a teoria e a praxis estão a mostrar várias inovações organizativas para procurar calibrar os contactos de trabalho com as exigências de pessoas individuais, das jovens mães a quem quer tirar um curso enquanto trabalha, até a um trabalhador maduro que quer cultivar interesses e paixões, renunciando a uma parte do salário. As empresas onde as pessoas vivem e crescem bem compreenderam que os trabalhadores têm modos diferentes de se dedicar à organização e que a criação de lugares exteriores à empresa deve cultivar as relações e a afetividade melhora a qualidade geral das mulheres e dos homens que, depois, por seu lado, produzem também um ambiente de trabalho mais criativo e livre. Por outro lado, quando a flexibilidade é baixa ou onde as empresas usam os incentivos não para libertar as pessoas, mas para prender com a sedução do dinheiro e do poder, a qualidade de vida piora, fora e dentro das empresas.

No mundo das Organizações Movidas por um Ideal (OMI), a gestão da peculiaridade antropológica e das idades da vida dos membros individuais é ainda mais complexa, sobretudo pelas pessoas que têm uma relação identitária com a instituição, como acontece (mas não só aqui) nas comunidades religiosas e nos movimentos espirituais. Uma OMI é muito mais (e, noutros sentidos, muito menos) que uma empresa. O tipo de adesão, por exemplo, de um franciscano ou de uma salesiana em relação à sua comunidade é muito diferente de um contrato de trabalho de uma empresa ou do compromisso de um voluntário numa associação. Neste caso, os contratos personalizados não se aplicam, nem funcionam os incentivos para aumentar a sua “produtividade”. Um discurso que vale não só no caso de pessoas totalmente consagradas a uma causa, mas sempre que a adesão a uma comunidade ou movimento é, essencialmente, uma questão de vocação – porque, não o esqueçamos, uma vocação é uma experiência antropológica universal, que abrange uma área mais vasta que o âmbito religioso.

Nestes casos, a pertença a uma OMI tende, quase inevitavelmente, a tornar-se uma pertença exclusiva, querida como exclusiva pelas pessoas e pela instituição. E, aqui, começam os raciocínios mais apaixonantes.

Um beneditino alterna a oração com o trabalho mas, quando acaba de trabalhar não “sai” verdadeiramente do trabalho para voltar “a casa”. A sua entrada na comunidade não é como a de Francisca, mãe de família, que sai do seu escritório para, também ela, voltar a casa. São duas “casas” substancialmente diferentes porque, enquanto Francisca passa de uma esfera (empresa) da sua vida a uma outra (a família), regida por princípios distintos e, por vezes, em tensão entre si, quando o Padre Bernardino termina o seu trabalho na farmácia do mosteiro, na realidade, permanece sempre no mesmo ambiente identificador.

E então, se Francisca vive momentos difíceis no trabalho – momentos que todos conhecemos quando, por variadas razões, o entusiasmo pela missão da empresa está muito baixo, se vai ao trabalho apenas porque não podemos deixar de ir… – voltando a casa, encontra os filhos, os amigos, canta num coro, vive em zonas muito diferentes da do seu trabalho. Nestes lugares muito diferentes, Francisca pode compensar as frustrações do escritório, pode desabafar, recarregar-se, refugiar-se, pode passear em jardins floridos e ares diferentes dos ares empresariais. Isto significa, entre outras coisas, que as empresas “gastam” capitais preciosos que não renumeram (família, amigos, associações…) que fazem com que os seus trabalhadores sejam capazes de trabalhar e, por vezes, também de ser criativos e felizes (está aqui um sentido dos impostos).

Também o Padre Bernardino tem, como Francisca, momentos em que não tem nenhuma vontade de sair para vender chás e licores, conhece também momentos de mau-humor e conflitos com os colegas no negócio. Mas, quando volta para casa, encontra-se a viver com companheiros muito semelhantes (se não os mesmos) aos monges com quem trabalha. Mas – e estes são os casos mais complicados e interessantes – por vezes, o Padre Bernardino não só não tem vontade de descer à farmácia com também não tem vontade de voltar, ao almoço e ao jantar, à comunidade. Também ele teria necessidade de um ambiente onde pudesse compensar não só as tensões no trabalho como as tensões com a sua comunidade e toda a sua vida. Porém, diferentemente de Francisca, Padre Bernardino pode não ter “salas de compensação” onde tratar, natural e sadiamente, os desalinhamentos que sente naquela fase específica da vida.

Por vezes, consegue estar na igreja e procurar um diálogo íntimo com Deus, que continua a ser uma grande sala de compreensão quando se esgotaram – ou nunca existiram – as outras. Mas, sabemo-lo, em dados momentos, talvez os mais determinantes, sente-se a necessidade de ar diferente do único que respiramos na comunidade; até a voz de Deus acaba por ser envolvida por aquele ar desgastado e já não fala. Nas experiências carismáticas fortes, quando se desalinha da comunidade é muito difícil, senão mesmo impossível, não sentir um desalinhamento com Deus. Seriam demasiado simples e, por isso, pouco interessantes, as crises se, juntamente à relação com a comunidade, não entrasse também em crise a relação com Deus que a comunidade nos ensinou a conhecer, amar e reconhecer.

Portanto, as crises mais comuns e graves nascem de um síndrome de cerco, porque cada lugar não é mais que uma variante do mesmo único lugar. E, não raramente, a saída da comunidade aparece como o único caminho para conseguir respirar de novo e não morrer.

Na realidade, estas situações, bastante comuns, são manifestações de algo de muito mais radical e importante. A vida adulta dentro duma comunidade identitária, em que se entrou no tempo da maravilhosa ignorância providencial dos jovens, ganha quase sempre a forma de saída da primeira comunidade, mesmo quando se permanece exatamente no mesmo quarto e na mesma mesa de sempre.

Para compreender esta afirmação, que pode parece paradoxal ou excessiva, é preciso olhar com atenção a natureza da relação entre uma vocação e a comunidade em que a pessoa, necessariamente, nasce, cresce, amadurece. A comunidade – toda a comunidade –, mesmo as mais livres e abertas, desempenham a função de pedagogo (S. Paulo). Por isso, chegará o momento em que, quem recebeu a vocação, sente a urgência de saudar, agradecendo-lhe, o seu pedagogo por conseguir, finalmente, viver como um adulto, isto é, sair da primeira comunidade para se tornar algo de diferente que nem ele nem ninguém ainda conhece. Umas vezes sai-se, ficando; outras vezes sai-se, saindo. Mas deve-se sair sempre se se quer voltar. Pode-se sair para sempre (mesmo permanecendo na mesma casa) e não voltar mais. Mas também se pode voltar: muitos o fazem e salvam-nos todos os dias, voltando às nossas casas, quando talvez já não o esperávamos.

Estas saídas e estes regressos assumem, geralmente, a forma de exílio. O exílio em Babilónia foi uma etapa determinante da história da salvação. A saída forçada da cidade santa de David, a destruição do templo único do Deus verdadeiro foi um tempo em que Israel deu também um salto extraordinário na experiência espiritual. Compreendeu, na carne e sem o ter querido nem procurado, que pode-se rezar a Deus sem o templo, que Deus permanece verdadeiro mesmo quando se torna um Deus derrotado. Que se permanece na comunidade da aliança mesmo quando deixamos a terra prometida. Conheceu uma outra cultura e outros deuses, foi contagiado com outras histórias, algumas belíssimas. Sem o exílio, sem aquele contágio, não teríamos alguns livros bíblicos esplêndidos, não teríamos recebido em herança os versículos sobre o “servo sofredor de YHWH”. A Bíblia diz-nos que se pode voltar dos exílios e que, daquele resto que regressa, pode nascer, um dia, um menino numa manjedoura.

Pode-se viver bem, como adulto, no mesmo lugar da juventude se a vida comunitária se torna experiência de regresso.

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Excessos e desalinhamentos / 2 – Ir, contagiar-se, renovar a aliança

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 09/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 02 rid“Com as nossas velhas canções que sabes, vozes de coisas pequenas e queridas, nós te adormeceremos, ó velho; e poderás recomeçar.
E quando o mar, na tua tarde, triste na sombra, solta o seu grito, ainda poderás escolher o negro barco da praia.
Verás as terras das tuas recordações, do teu sofrer, doce e remoto”.

Giovanni Pascoli Il ritorno   [O regresso]

No coração de cada pessoa, encontra-se um mistério que se revela – e apenas em parte – no decurso de toda a vida, não raramente na última etapa. Também as pessoas com muitos talentos, mesmo as verdadeiramente geniais, se encontram numa condição de conhecimento parcial e imperfeito do próprio “carisma”, das potencialidades inesperadas, dos autoenganos e das ilusões passadas e presentes. Então, quando uma pessoa encontra uma voz que a chama e a sua vida sofre uma viragem radical, se responde e começa a caminhar, não sabe – nem pode saber – qual será o desenvolvimento daquele encontro, quais os frutos, as dores, as grandes surpresas. Num casamento, numa vocação artística ou religiosa, a parte maravilhosa são as potencialidades desconhecidas e infinitas. Não sabemos o que viremos a ser, o que acontecerá ao outro a quem nos ligamos, o que será a nossa relação. Como Deus se tornará.

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E a comunidade tornou-se regresso

E a comunidade tornou-se regresso

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Excessos e desalinhamentos / 1 – É infinito o valor que leva além do medo

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 02/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 01 rid“A lógica do cisne negro torna o que não se sabe mais importante que aquilo que se sabe”

Nassim N. Taleb Il cigno nero  [O cisne negro]

O “cisne negro” é aquele acontecimento altamente improvável e com efeitos muito relevantes, cuja chegada não pode ser prevista nem explicada com base nos factos do passado. O cisne negro – a expressão provém da descoberta de cisnes negros na Austrália, que refutou a tese, considerada certa: “todos os cisnes são brancos” – é o grande inimigo também as empresas e das organizações, pelos seus efeitos potencialmente devastadores.

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Mas, embora o debate, mais ou menos científico, que se desenvolveu, nestes últimos anos, realce, quase exclusivamente, os efeitos destrutivos, na realidade, os acontecimentos totalmente inesperados e surpreendentes também podem representar a salvação de organizações e comunidades. O inesperado pode ser o maior dom – vemo-lo todos os dias, com os nossos filhos. De facto, se olharmos bem por dentro as dinâmicas das organizações reais, económicas e não económicas, damo-nos conta que a verdadeira grande inimiga, o cisne negro mau, é a tendência, invencível, para a criação de rotinas de gestão rígidas, construídas sobre a observância do passado e que, por isso, impedem a compreensão da chegada das grandes novidades. A gestão que guia o hoje olhando para trás leva a “reconhecer” apenas o que já se sabia; um olhar retroativo que, como no relato bíblico da mulher de Lot (Génesis 19, 26), transforma a vida numa estátua de sal, sem vida. Então, o perigo verdadeiramente grave das organizações não está na existência de cisnes negros, mas na sua gestão, muitas vezes errada.

O erro mais comum nasce do temor da chegada do cisne negro mau, que leva à hostilidade a todo o cisne com uma plumagem ligeiramente diferente do branco. Pelo terror que inspira um cisne negro, permanecem todos na rotina e na monotonia de um mundo monocolor e perde-se a beleza e a biodiversidade. Uma escolha compreensível, porque se o acontecimento inesperado é dos verdadeiramente maus, pode provocar, sozinho, até mesmo a destruição da comunidade.

Mas é precisamente aqui que entramos no coração de um dos principais paradoxos das comunidades (e das pessoas). O cisne de plumagem diferente que se avista no horizonte poderia ser o Satanás e o Anticristo, mas aquele estranha cor poderia ser também a de Isaías, de Francisco e Clara, de Teresa de Calcutá, de Jesus de Nazaré. Não o podemos saber ao primeiro olhar nem ao segundo – frequentemente, só no fim (está aqui o seu tremendo e maravilhoso mistério). Porém, se bloqueamos todas as cores disformes no seu momento nascente, talvez previnamos a chegada do cisne negro devastador (embora não tenhamos qualquer garantia de sucesso), mas, com certeza, impedimos as novidades verdadeiras e boas de chegar, amadurecer e dar os seus frutos e óleos essenciais. Uma das armadilhas relacionais que tornam as organizações muito menos criativas, vitais e inovadores do que poderiam ser, é, de facto, a luta, mais ou menos consciente, entre a chefia e os potenciais cisnes negros, que faz tudo para os fazer entrar nas lógicas rotineiras – as camas de Procústo são os sofás muito presentes nas salas das organizações modernas. A inovação verdadeira de “topo” está ligada a pessoas que, para poder atuar no máximo das suas potencialidades, não podem ser geridos com os típicos instrumentos empresariais. Hoje, estamos, finalmente, a compreender que as organizações vitais e capazes de gerar coisas verdadeiramente novas, devem mesmo renunciar à pretensão de governar e controlar as suas pessoas porque, nas dinâmicas verdadeiramente determinantes, as pessoas são ingovernáveis porque, se fossem governadas, perderiam a componente mais inovadora da sua criatividade. A metáfora do cisne negro é, portanto, um bom expediente retórico para começar um discurso sobre a gestão das novidades verdadeiras nas organizações, nas pessoas, nas regras de governação.

Quanto acabámos de referir, torna-se verdadeiramente determinante nas OMI, as Organizações Movidas por um Ideal, as realidades coletivas nascidas à volta de algumas pessoas (fundadores) e movidas por ideais diferentes dos proveitos económicos (ideais a que chamámos carismas ou vocações proféticas). As OMI são movimentos espirituais e políticos, comunidades religiosas, não poucas ONG, cooperativas e muitas empresas sociais, civis, de comunhão. Nem sempre são coisas boas e bonitas, mas são-no frequentemente. Nas OMI, o primeiro – e, não raramente o único – capital são as pessoas e os seus ativos relacionais; todas as pessoas, mas sobretudo as que atuam na base de motivações intrínsecas; isto é, os membros – trabalhadores e dirigentes – que não entraram naquela organização primariamente por incentivos económicos e financeiros, mas por um chamamento interior, portanto, por “vocação” (usando, como sempre, esta palavra no sentido mais laico e largo possível). As OMI só continuam depois da fundação se são capazes de atrair e reter um núcleo de pessoas que sabem fazer reviver os primeiros ideais. Isto é, se conseguem atrair, manter, cultivar, fazer florir, pelo menos, um cisne negro bom que, provavelmente, será capaz de fazer ressurgir o património herdado da primeira geração.

É precisamente aqui que começam os raciocínios mais importantes.

Há, no entanto, um primeiro dado: muitas OMI nascem de fenómenos de cisne negro. O primeiro diz respeito ao próprio fundador porque, muitas vezes, não há nada de mais imprevisível, de inesperado e de grande impacto no aparecimento de um novo carisma sobre a terra (incluídos os carismas artísticos). Frequentemente, o fundador de uma nova comunidade é um cisne diferente que voou para longe da comunidade originária que, por erros ou por uma nova vocação, se tornara demasiado estreita para os seus voos mais altos e loucos.

Durante a fase da fundação, a força da novidade do fundador é tão extraordinária que contamina todos os outros membros da OMI que se torna, progressivamente, uma comunidade de cisnes com a mesma plumagem do fundador. A dimensão inovadora, presente em muitos membros da OMI, orienta-se para o fundador e todas as suas energias e talentos ideais são utilizados em sentido mimético, para se treinar para a nova “cor”. Um processo que resulta muito bem, porque os membros daquela comunidade não sentem nada mais íntimo, sincero, verdadeiro e próprio do querer assumir as aparências e os tons dos fundadores.

Acontece que a diversidade originária e a primeira heterodoxia do fundador geram, pouco a pouco, uma nova ortodoxia, e a cor inovadora do fundador torna-se, progressivamente, a cor única de todos. A princípio, esta operação de mimetismo satisfaz plenamente a alma e o corpo. Mas, sem o querer nem o saber, este processo acaba por produzir uma situação estática muito parecida, senão idêntica, à realidade que, no início, o fundador e os seus seguidores queriam mudar. E, assim, a heterodoxia, gerada por um acontecimento de cisne negro, que tinha criticado e forçado o antigo dogma, reproduz, no ciclo vital do fundador, um novo dogma que combate, como todos os dogmas, as inovações. Esta dinâmica, muito conhecida nas ciências sociais e organizativas, é, muito frequentemente, o que marca o fim das experiências inovadoras e proféticas, que esgotam a sua missão ao chegar a uma situação análoga àquela donde partiram.

Por outro lado, as OMI atraem muito mais potenciais cisnes negros que as outras organizações, porque os motivos ideais, para não falar dos religiosos, selecionam muitas pessoas excelentes nalguns aspetos. As OMI sempre foram povoadas por pessoas ética e espiritualmente extraordinárias e continuam a sê-lo. Por exemplo, uma pessoa que recebeu uma vocação autêntica (e qualquer OMI, para ser e permanecer isso, tem de hospedar uma, pelo menos) é, potencialmente, um cisne negro, porque é única, irrepetível, não programável, nem ela nem ninguém sabe o que virá a ser, ninguém sabe que impacto terá a sua vida na dos outros, é uma mensagem metida numa garrafa lançada ao mar, que só será lida se e quando alguém a recolher (um discurso que vale, porventura, para qualquer pessoa que vem ao mundo). Toda a vocação é um acontecimento de cisne negro – imprevisível, inesperada e de grandes efeitos.

Porém, nas OMI, num modo mais radical que noutros lados (e as razões analisá-las-emos ao longo desta série de artigos), a gestão das pessoas radicalmente inovadoras é particularmente difícil, dolorosa e raramente coroada de êxito. A OMI sabe ou intui que em cada plumagem diferente se pode esconder o cisne assassino, e este medo legítimo devora, frequentemente, o cumprimento da promessa. Porque o preço da esperança de poder gerar um novo e verdadeiro profeta é a possibilidade de poder gerar dez falsos. Consegue-se superar este medo radical se se atribui à promessa um valor muito superior ao medo de ser morto por um falso profeta especialmente mau – um valor infinito. Assim, as hostilidades e as resistências que cada processo de cisne negro encontra em cada organização, nas OMI são amplificadas e radicalizadas. A existência de um carisma/ideal fundador leva, naturalmente, as OMI a estar ancoradas ao passado, a dar mais importância ao início que ao eskaton. Esse olhar para as origens faz parte do próprio DNA carismático das OMI, sobretudo das de carácter espiritual e religioso. O eventual reformador poderia salvá-las precisamente mudando o eixo do passado para o futuro, mas é precisamente isto que as comunidades carismáticas e ideais mais temem e combatem. Estamos dentro de uma tríplice tragédia – mas as tragédias também são as maiores criações do génio humano. As organizações ordinárias, sendo, frequentemente, pragmáticas e concretas, estão mais abertas ao novo que as OMI. As OMI, pelo contrário, desenvolvem, naturalmente, mecanismos poderosos para intercetar e bloquear a chegada dos cisnes negros maus, sistemas que, no entanto – e aqui está o busílis –, bloqueiam também os bons. Poucas realidades coletivas são mais refratárias às grandes inovações que as OMI, porque, nelas, a salvaguarda da herança do passado é elemento coessencial (diferentemente das empresas, não se muda “carisma” nem “fundador” se o mercado já não responde: mas, então, o que mudar?).

Isto significa, no plano das pessoas individuais, que quem se encontra, por destino e chamamento, com uma plumagem diferente dentro da comunidade que gerou – e são muitos – deve tomar consciência que as resistências, as hostilidades, por vezes as perseguições e as calúnias que experimenta, são, em boa parte, inevitáveis, porque inscritas na natureza de uma OMI. Deverá apenas aprender a conviver com o próprio excesso e com os desalinhamentos que qualquer excesso produz, tratando-os com mansidão.

Será à volta destas temáticas que construiremos os episódios desta nova série de artigos, onde faremos muitas perguntas às OMI e às suas pessoas. Entre estas: quais são as notas típicas da gestão destes excessos nas várias fases da vida da pessoa e da organização? Como se gere o excesso, como jovem e como velho? Como salvar a biodiversidade para lhe assegurar vida nova? Como guardar cada vocação multidimensional?

Enfrentaremos estes e outros desafios vitais, embora sabendo que as palavras, escritas ou lidas, não bastam para nos salvar. Só podem ajudar-nos a não deixar de caminhar.

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Excessos e desalinhamentos / 1 – É infinito o valor que leva além do medo

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 02/09/2018

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As muitas cores do cisne

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