A bênção das bolotas

A bênção das bolotas

Excessos e desalinhamentos / 3 – Pode-se ir como filho e voltar como pai e mãe

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 16/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 03 rid“A docilidade da madeira era a sua. Já não era árvore que caminhava, como lhe tinha revelado o cego de Betsaida; agora estava plantado na terra e os seus passos terminavam ali, com os pés juntos e os braços abertos como ramos. O Gólgota é um monte pelado, sem vegetação. No alto, agora, desponta um homem árvore, enxertado com sangue”.

Erri De Luca, Indagine su un falegname

No decurso da sua existência, as pessoas desenvolvem muito mais dimensões que as úteis à comunidade em que vivem e crescem. Porque o “encargo” que devemos desempenhar no mundo é sempre excesso em relação à missão institucional da nossa organização ou comunidade, que permanece pequena, por muito larga e extraordinária que seja. Nenhuma instituição é maior que uma simples pessoa porque, enquanto a inteligência coletiva de um grupo ou de uma comunidade consegue resolver problemas cognitivos mais complexos e ricos que os que consegue ver e pensar a inteligência individual, a alma de uma pessoa é sempre mais complexa e rica que a “alma” da comunidade.

As experiências espirituais coletivas podem ser muito mais espetaculares, sensacionais, emocionantes que as individuais, mas só o coração da pessoa individual é suficientemente amplo para conter os abismos mais profundos e os picos mais altos da dor e do amor. Moisés, sozinho, falou com a sarça-ardente; Jeremias está só quando ouve a voz debaixo da amendoeira; e foi na solidão de uma pequena casa, não na assembleia do templo, o lugar da Anunciação. Está aqui também a dignidade infinita da pessoa, que será sempre o templo mais belo e mais divino, tão santo a ponto de não o poder construir, mas simplesmente gerar.

Por este seu mistério profundíssimo e por esta sua dignidade imensa, uma pessoa que recebe uma vocação e se põe a caminhar é chamada a tornar o mundo melhor, não apenas a porção de terra circunscrita aos limites da sua comunidade. Os seus ramos ultrapassam o jardim da casa, espalham esporos e sementes que germinam se permanecerem livres, transportadas pelo vento. Pelo contrário, quando a comunidade, que gera e cuida uma vocação, quer ser a sua única dona e, por isso, corta os ramos que saem das sebes domésticas, as pessoas acabam por ser consumadas pela própria comunidade, em relações objetivamente incestuosas mesmo quando tudo é animado por boas intenções. A poda necessária dos ramos não deve tornar-se amputação do desígnio vocacional.

Um consumo para usos internos que é tanto mais provável quanto mais a pessoa é bonita e cheia de talentos, porque não é fácil compreender que aquela beleza e riqueza só podem viver e crescer se doadas generosamente. Um franciscano vem ao mundo para tornar melhor a família humana e não apenas a família franciscana, e poderá melhorar o franciscanismo se é deixado livre para se ocupar também da outra. O nosso lugar no mundo não coincide com o lugar em que vivemos.

A possibilidade concreta da saída é, portanto, essencial para quem parte, mas também para quem fica, pois os “netos” e o futuro dependem substancialmente desta castidade e generosidade organizativa (pais que gastam os seus filhos nunca se tornam avós). Isto vale para todas as formas de comunidade, mesmo para um convento de clausura, onde a experiência da saída não é menos radical porque, quase sempre, é toda interior.

As formas de saída e de regresso são muitas, tantas quantas são as formas que, em cada pessoa, assume um caminho essencial – portanto, são infinitas. Por vezes, o que aparece, a nós e aos outros, como uma saída (física ou espiritual) é, na realidade, um ficar tranquilos e ao calor, dentro de casa; outras vezes, só muito depois nos damos conta que tínhamos saído e voltado e pensávamos nunca ter movido nem o corpo nem o coração – apenas ficámos porque tínhamos medo de deixar, tínhamos deixado de acreditar na promessa, tínhamo-nos tornado ateus, mesmo continuando a pronunciar as orações de sempre. Porque a vida seria demasiado simples – e muito enjoativa – se as coisas respondessem aos nomes que lhe damos. Surpreendem-nos, fintam-nos, gostam de jogar às escondidas connosco. Quando subimos ao monte, quase nunca sabemos se estamos a chegar ao Tabor ou ao Gólgota, se nos esperam três tendas ou três cruzes. Só quando abraçamos uma cruz – nossa ou dos outros –, descobrimos que aquela madeira exala o mesmo cheiro da carpintaria do nosso pai; e, ali, compreendemos que trabalhámos tantos anos naquela oficina poeirenta apenas para reconhecer, naquele último cheiro, o mesmo perfume de casa, o das vestes de José e de Maria.

A Sabedoria bíblica dá-nos alguns paradigmas de saída e de regresso, que traçam algumas coordenadas antropológicas e espirituais, dentro das quais podemos colocar algumas experiências nossas concretas.

Encontramos um primeiro modelo na história de Jonas. Este profeta recebe, de Deus, um chamamento para desempenhar uma missão: ir profetizar à cidade de Nínive. Mas Jonas, foge em direção diametralmente oposta e entra num barco, em direção a Társis. Pelo relato, não sabemos porque Jonas foge. O que nos interessa é porque volta. Enquanto foge, sabendo que foge da sua vocação, Jonas vive uma experiência determinante, que o faz voltar. Deus desencadeia uma tempestade no mar e o barco está quase a afundar. Jonas não se dá conta da tempestade e dorme; depois, diz aos marinheiros: «Pegai em mim e lançai-me ao mar…, porque eu sei que é por minha causa que vos sobreveio esta grande tempestade» (1, 12). Jonas sente que a causa da desgraça que está a atingir o barco é a sua fuga. Pede para ser lançado ao mar, salva-se (graças à baleia) e volta à sua missão. Um relato duma profundidade humana espantosa e, por isso, frequentemente não compreendida.

Uma forma de regresso é o regresso de Jonas. Se sai, se foge, porque, em certos momentos, não se pode não sair e, a um dado momento, se sente claramente que existe uma misteriosa – mas realíssima – relação entre a nossa saída e a dor do novo povo que se tem em redor. Compreendemos que somos nós a explicação da dor dos outros («eu sei», diz Jonas). Vemos uma ligação entre o sofrimento na nossa empresa, a desgraça daquela família, a doença desta menina e a nossa fuga. Estávamos a dormir num barco errado mas, um dia, alguém ou alguma coisa nos desperta e, ao despertar, sentimos com uma certeza interior infalível que, se não tivéssemos entrado naquele barco errado, aquela dor não existiria. E, por vezes, consegue-se voltar. Outras vezes, porém, não se regressa porque é demasiado tarde ou porque nos deixamos lançar ao mar e a “baleia” não chega para nos salvar. Mas, por vezes, como Jonas, depois daquele regresso, acontecem autênticos milagres, as nossas palavras convertem e salvam cidades inteiras, pessoas e animais. Mas nós não o sabíamos: tínhamos voltado apenas para salvar aquele barco que estava a afundar-se por causa da nossa fuga.

Um segundo paradigma de saída e de regresso está na história de José, no Egipto. A saída de José da sua família está entre as histórias bíblicas mais bonitas e populares. O jovem José era um sonhador e um contador de sonhos. O relato comunitário destes sonhos cria, nos seus irmãos, a inveja para com ele que, um dia, o venderam aos mercadores em viagem para o Egipto. Numa terra estrangeira, José, graças à sua vocação e competência em matéria de sonhos, consegue tornar-se uma personalidade política importante. E, quando os irmãos, anos depois, durante uma grande carestia, se dirigem ao Egipto, à procura de trigo e de vida, ali encontram José, o irmão vendido, que os salvará.

Não é raro que sejam os sonhos maiores, os que excedem os muros da casa, a fazer-nos sair, afugentar, expulsar – a saídas das comunidades quase nunca são verdadeiramente voluntárias, mesmo que nos pareçam isso. Aqueles mesmos sonhos grandes e “carismáticos” trazem-nos a inveja dos nossos irmãos. Querem “matar” o nosso carisma e, por vezes, vendem-nos como maldade por parte dos nossos irmãos mais velhos. Depois, por vezes, chegamos a um grande reino, a uma grande civilização. Os primeiros sonhos que correram mal dentro de casa, fazem-nos crescer e fazer carreira numa terra estranha; até que um dia, sem que ninguém o pudesse saber (nem José nem os seus irmãos), descobrimos que aquela saída dolorosíssima fora, na realidade, a salvação de todos: «porque foi para podermos conservar a vida que Deus me mandou para aqui à vossa frente» (Génesis 45, 5-8). Sai-se para salvarmo-nos a nós mesmos e, por fim, descobrimos que aquela saída fora providencial para nós e também para os que nos tinham obrigado a sair. São estas saídas paradoxais que tornam a vida humana algo de pouco “inferior aos anjos”, e não é raro que o sentido verdadeiro da partitura que estamos a tocar só o compreendemos na última nota, por vezes só durante o aplauso final.

As saídas de José são, sobretudo (mas não unicamente), as saídas da juventude, quando, depois de, sinceramente, ter tentado seguir uma voz, algum tempo depois se encontra fora, corrido de casa, numa experiência que, para muitos, é vivida como engano, traição, maldade, com a raiva de ter desperdiçado os anos mais belos. Mas, acabámos naquela “cisterna” para seguir honestamente uma voz e, se continuamos a segui-la na comunidade invisível do nosso coração, mesmo em terra estrangeira, quase sempre chega o momento da salvação e a pedra abandonada torna-se a pedra angular de toda a casa. Chega muito tempo depois, mas a sua chegada estava inscrita na lógica boa e verdadeira da vida e da lealdade misteriosa a uma voz que continuámos a seguir mesmo se estávamos muito confusos e desiludidos – destas salvações conheci muitas e estão entre as experiências humanas mais sublimes, para cada José e para os seus irmãos.

Por fim, há um elemento comum a muitas formas de regresso depois das saídas. Sai-se de casa como filho da comunidade; regressa-se como pai e como mãe. Nestas parábolas de carne e de sangue, quando o jovem, entretanto tornado adulto, sente e diz “levantar-me-ei e irei ter o meu pai”, quando chega a casa, quem encontra a abraçá-lo, a lançar-lhe os braços ao pescoço, a pôr-lhe o anel no dedo já não é seu pai: é seu filho. Naquela saída-regresso, tornou-se pai do seu pai, mãe da sua mãe. Não o sabia; não podia sabê-lo até ao momento do abraço – e, por vezes, continuará a não sabê-lo até ao fim. Nestas festas de regresso não se mata um vitelo gordo, porque é a festa da bênção das bolotas, único alimento possível e apreciado nos dias do afastamento e da pobreza, tornado alimento de uma nova paternidade.

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