stdClass Object ( [id] => 18475 [title] => É a reciprocidade que converte [alias] => e-a-reciprocidade-que-converte [introtext] =>A lógica carismática / 4 – Os cristãos são os do caminho e do encontro, nem sempre feliz, mas determinante.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 12/09/2021
«Não é tão necessário educar as crianças a tornarem-se rapidamente grandes, quanto educar os grandes a saberem tornar-se – de novo - crianças».
Igino Giordani, A república das crianças.
No caminho dos seguidores de Jesus não há dinheiro, mas o essencial. E, essencial, é a Palavra. Nasce disso uma condição de dependência dos outros, porque o anúncio é dom e acolhimento.
Continuamos a analogia entre os primeiros tempos do cristianismo e as nossas comunidades carismáticas ou movimentos espirituais de hoje – duas expressões que utilizo como sinónimos, como realidades coletivas nascidas e alimentadas por um carisma e também por um ou mais fundadores, que são os primeiros portadores e a primeira imagem desse carisma. Portanto, analogia que, como nos ensina a filosofia escolástica, é um paralelismo entre duas realidades, onde as semelhanças convivem com as dissemelhanças e as segundas são, geralmente, maiores do que as primeiras. O método analógico, sobretudo em história, deve ser sempre usaado com muitas precauções, mas, como qualquer método, pode ser uma forma de iniciar um caminho num território a explorar. A analogia é criadora se o termo de comparação for rico e fecundo: a Bíblia e as primeiras comunidades são-no, sem dúvida. A analogia sugere, acena, indica, sempre em voz baixa e com mansidão; é aurora de discurso, sempre frágil e vulnerável. E, assim, conhece as típicas virtudes da vulnerabilidade.
[fulltext] =>Como se desenvolveu a primeira comunidade à volta de Jesus? Marcos no-la descreve assim: «Jesus percorria as aldeias vizinhas a ensinar. Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto; que fossem calçados com sandálias e não levassem duas túnicas. E disse-lhes também: “Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali. E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles”. Eles partiram e pregavam o arrependimento, expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos» (6, 6-13).
Em João, os primeiros discípulos vêm do movimento do Batista; para Marcos e os sinóticos, Jesus chama-os ao longo do mar da Galileia. Uma vez regressado à Judeia, no fim da sua experiência com o Batista, o seu primeiro gesto é um chamamento de discípulos, de companheiros, de amigos, para mostrar-nos que esta história extraordinária é história coletiva, comunitária, social, é a história do “dois ou mais”, é, de imediato, uma história eclesial. Jesus começa imediatamente a sua missão associando o seu nome a outros nomes: Pedro, André, Tiago, João. O primeiro nome dos “cristãos” é nome plural. Elias, muito presente nestas histórias de Marcos, chama Eliseu no fim da sua missão, Jesus fá-lo no início; chama-os aos pares, pares de irmãos. «Ai dos sós», cantava, poucos séculos antes, o sábio Qohélet, e se a fraternidade no espírito não é a do sangue, este início diz-nos que, por vezes, podem encontrar-se. Marcos relata que os primeiros discípulos são chamados por Jesus enquanto estão a trabalhar, na sua atividade de pescadores. Pescadores, portanto, trabalhadores adestrados na ação coletiva – a pesca no mar ou no lago é, necessariamente, trabalho de “dois ou mais”.
No início da comunidade de Jesus está o trabalho. E está em continuidade com uma nota constante da Bíblia que, nisto, se mostra humanismo do trabalho. Na Bíblia, alguns chamamentos determinantes acontecem enquanto as pessoas estão a trabalhar. Amós, Gedeão, Judite, David receberam a sua vocação enquanto trabalhavam. Jesus chama os seus amigos e chama-os para se tornaram “pescadores de homens”. A habilidade técnica que tinham adquirido aprendendo a difícil profissão de pescadores de peixes, agora Jesus pede para a usar numa outra missão, numa outra profissão. Anunciar o Reino é uma vocação, não é uma profissão, mas assemelha-se a uma profissão, porque precisa de uma competência, de uma habilidade, de um compromisso, de uma aprendizagem. Não nos tornamos profissionais da vocação, mas sim competentes; e, sem pessoas que sabem “pescar homens”, pelo menos como sabem pescar os peixes, não nasce nenhum movimento, nenhuma aventura como a cristã.
Os apóstolos serão vistos pelos Evangelhos, de vez em quando, enquanto pescam, mesmo nos anos que vivem ao lado de Jesus (recorde-se a pesca milagrosa); para mostrar que deixar as redes dos peixes para manusear a dos homens não significa necessariamente trocar definitiva e materialmente os primeiros barcos pelo barco da Igreja. Na história da Igreja, alguns apóstolos deixaram, também materialmente, os primeiros barcos e as primeiras redes e nunca mais os retomaram; outros apóstolos deixaram-nos apenas com o espírito e continuaram a manobrar os mesmos barcos de antes e recolheram peixes e homens, muitas vezes com as mesmas redes, quando o trabalho permaneceu o mesmo depois da vocação. Existiram sempre muitas formas de ser apóstolos. Assim como nas nossas comunidades e movimentos: os seus membros não são profissionais do espírito, nem muito menos funcionários de uma empresa; mas são competentes, por vezes também no trabalho, e a competência laica do trabalho nutre e sustém a outra competência apostólica. O risco a esconjurar é que o convite para deixar as redes faça com que se perca a velha competência sem gerar nenhuma nova.
Porque é que Jesus ordena aos seus apóstolos para não levar para a viagem «nem pão, nem alforge, nem dinheiro…»? Jesus está a criar um novo tipo de homem e também de comunidade. Aqui, compreendemos porque é que os cristãos no início eram chamados “os do caminho”, os que caminhavam. A comunidade de Jesus era uma comunidade móvel, um seguimento, um andar atrás, um voltar ao “arameu errante”. Tenda, acampamento, precaridade, não estabilidade. E assim permaneceram, durante décadas, as comunidades cristãs, as décadas que mudaram a história.
Quando se caminha muito, a escolha do vestuário e do equipamento é determinante. Como também nós sabemos, quando temos de começar uma longa viagem ou uma peregrinação: é bom levar apenas o essencial; e quanto mais longa for a viagem, mais essencial é preciso ser. Para que uma viagem longa seja sustentável é preciso levar apenas o que é verdadeiramente necessário, não o supérfluo, e é portanto fundamental saber identificar o essencial e distingui-lo do supérfluo. A viagem dos apóstolos era algo semelhante: o essencial que levavam era o anúncio de uma Palavra diferente, o advento de um outro Reino. Não partiam, como os comerciantes, para vender e comprar, não eram soldados, não eram trabalhadores sazonais, nem representantes de uma empresa pagos à comissão. O essencial era, portanto, uma única túnica, não a segunda. Não levavam pão porque o Deus bíblico provê o pão quotidiano, como tinha feito no deserto e como continua a fazer com os seus “operários” que têm direito ao seu salário. É forte o imperativo de nem sequer levar dinheiro, que é a base do carisma de S. Francisco que, para imitar esta dimensão do apostolado, proibiu aos seus frades de levar dinheiro na sua mendigação.
Estas exigências do apostolado criam uma condição de dependência dos outros que é, talvez, a mensagem mais importante. Se não tens casa, se não tens contigo nem pão nem dinheiro, então, para viver, tens necessidade de alguém que te acolha e te mate a fome. A mensagem cristã é, portanto, essencialmente, uma experiência de reciprocidade desde o princípio: os apóstolos levam o anúncio do Evangelho, o verdadeiro tesouro, e recebem um catre e um pedaço de pão. Esta reciprocidade de bens materiais é parte da experiência do apóstolo e, se falta, não pode nem deve anunciar o Evangelho. Eis porque, quando falta esta reciprocidade, «ide embora e sacudi o pó dos vossos pés». Porque, se quem deve receber o anúncio do Evangelho, não se coloca imediatamente numa atitude de acolhimento e de dom, não pode compreender o Evangelho anunciado. O Evangelho do amor abre-se a quem já está no amor. E o mandamento novo, o do amor recíproco, vive-se logo a partir do anúncio: o discípulo precisa da reciprocidade de quem escuta, que o ama ainda antes de se converter, simplesmente ouvindo e acolhendo. E, se o não faz, segue-se em frente. Caso contrário, é um tesouro deitado ao lixo.
Tal reciprocidade é quase tão essencial como a mensagem. Quem escuta o Evangelho deve, antes, dar. Quem anuncia o Evangelho sabe que o primeiro dom que pode fazer a quem o escuta é dar-lhe a possibilidade de dar para poder receber e, depois, talvez compreender. Quem anuncia o Evangelho sabe que é um mendicante desta reciprocidade. Na oikonomia do Evangelho, quem doa tem uma necessidade essencial de quem recebe. A grande habilidade de todo o anúncio é colocar as pessoas, às quais se quer dar uma boa notícia, em atitude de doação.
Estas indicações missionárias pertencem às fontes de Marcos, que remontam, provavelmente, ao ensinamento primitivo de Jesus. E dizem-nos uma coisa muito importante para as nossas comunidades. O primeiro Evangelho vivia-se, sobretudo, com os pés. Era um partir, um ser enviados. De facto, o seguimento não deve ser demasiado enfatizado: mal os apóstolos começavam a seguir Jesus, enviava-os “dois a dois” e eles começavam a fazer com outros exatamente o que ele estava a fazer. A primeira comunidade crescia por germinação, plural, bio diversificada; a tal ponto que, logo após a morte de Jesus, ocorrida pouquíssimos anos depois do início da sua vida pública, as várias comunidades já se encontravam diferentes, com características e “teologias” específicas, onde os apóstolos e os discípulos deixavam a marca da sua personalidade. A primeira Igreja não nasce monolítica e compacta porque Jesus mandava os seus discípulos andar , tornava-os nómadas e não sedentários, como ele próprio o era.
A comunidade, esta comunidade, não é uma corte messiânica, não é uma comunidade esotérica, mas uma comunidade missionária e nómada que, de vez em quando, se reunia, mas para voltar a partir imediatamente. É comunidade de anunciadores e são a mensagem e a própria experiência a fundar a comunidade e não a coabitação nem o insistir no mesmo terreno. Não estavam juntos para procurar o calor da casa, preferiam o frio do caminho e não a confort zone da casa. E, naquele caminho nu e pobre, os discípulos, enviados dois a dois, evangelizavam e curavam. Não partiam sonhando voltar a Ítaca; a sua casa era o caminho: eis porque há muito de humanismo cristão no Ulisses de Dante, embora o coloque no Inferno, porque toda a Divina Comédia é paraíso, graças ao olhar de pietas de Dante.
Só assim podia nascer uma Igreja capaz de chegar até aos confins da Terra, porque as suas colunas foram formadas pela arte do caminho. As comunidades espirituais, certamente as mais sãs e autênticas, nascem no caminho. Mas, com o decorrer do tempo, é quase inevitável que o calor da casa vença o frio do caminho e, assim, pouco a pouco, passam de comunidades feitas de anunciadores a comunidades de consumidores de bens espirituais e, por vezes, este consumo interno torna-se tão importante que já não se sente o frio dos que andam ao longo dos caminhos. É, assim, que as comunidades morrem, mas podem ressurgir se, um dia, reaprenderem a disciplina do caminho. Quando a comunidade se torna um labirinto da alma, ou levantamos voo como Ícaro (assumindo todos os riscos do voo) ou então procuramos, no carisma, uma Ariana que deixou um fio de salvação para nós.
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Continuamos a analogia entre os primeiros tempos do cristianismo e as nossas comunidades carismáticas ou movimentos espirituais de hoje – duas expressões que utilizo como sinónimos, como realidades coletivas nascidas e alimentadas por um carisma e também por um ou mais fundadores, que são os primeiros portadores e a primeira imagem desse carisma. Portanto, analogia que, como nos ensina a filosofia escolástica, é um paralelismo entre duas realidades, onde as semelhanças convivem com as dissemelhanças e as segundas são, geralmente, maiores do que as primeiras. O método analógico, sobretudo em história, deve ser sempre usaado com muitas precauções, mas, como qualquer método, pode ser uma forma de iniciar um caminho num território a explorar. A analogia é criadora se o termo de comparação for rico e fecundo: a Bíblia e as primeiras comunidades são-no, sem dúvida. A analogia sugere, acena, indica, sempre em voz baixa e com mansidão; é aurora de discurso, sempre frágil e vulnerável. E, assim, conhece as típicas virtudes da vulnerabilidade.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 05/09/2021
«Há noites
que nunca acontecem
e tu as procuras
movendo os lábios.
Depois, imaginas-te sentado
no lugar dos deuses.
E não sabes dizer
onde está o sacrilégio».Alda Merini, Há noites que nunca acontecem.
Até Jesus muda de ideias, como no episódio de Tiro. E a civilização que o Evangelho continua a gerar ensina fidelidade e superação ao longo do caminho que é a história.
Na nossa analogia entre comunidades carismáticas atuais e a primeira comunidade cristã, olhemos, hoje, de perto, um conhecido episódio do Evangelho de Marcos: «Partindo dali, Jesus foi para a região de Tiro e de Sídon. Entrou numa casa e não queria que ninguém o soubesse, mas não pôde passar despercebido, porque logo uma mulher que tinha uma filha possessa de um espírito maligno, ouvindo falar dele, veio lançar-se a seus pés. Era gentia, sirofenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demónio. Ele respondeu: “Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos”. Mas ela replicou: “Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos”. Jesus disse: “Em atenção a essa palavra, vai; o demónio saiu de tua filha”. Ela voltou para casa e encontrou a menina recostada na cama. O demónio tinha-a deixado» (7, 24-30). Marcos diz-nos que Jesus se encontrava numa terra paga (Tiro), não para evangelizar, mas é descoberto por uma mulher sirofenícia que lhe pede a cura da filha. O diálogo entre os dois reflete um problema, muito importante, das primeiras comunidades, isto é, a ligação entre a nova comunidade cristã e os não-hebreus (ou gentios); um tema imenso, que atravessa todo o Novo Testamento, como tensão nunca totalmente resolvida.
[fulltext] =>Também desta vez, como no possesso de Gerasa (Mc 5), um pagão vem ao encontro de Jesus; portanto, não é procurado por Ele. Eis a primeira mensagem: Jesus não se tinha dirigido para aquela região com o objetivo de fazer milagres ou evangelizar. Aconteceu aparecer-lhe aquela mulher e coloca Jesus perante uma escolha. A tradição dá nome a estas duas mulheres: Husta, a mãe, e Berenice, a filha (Pseudo-Clemente, Homilias) – muita tradição cristã deu nome a muitos personagens anónimos dos Evangelhos, continuando assim o amor que Jesus tinha para com eles. A frase que Jesus pronuncia perante o pedido de uma mãe parece, ainda hoje, muito dura. Chamar cães aos não-hebreus (ou “cachorrinhos” que, mesmo assim, não era muito carinhoso), embora fosse a linguagem comum do tempo de Jesus, hoje, perturba-nos, mesmo que a dizê-lo seja Jesus. Naturalmente, estamos perante uma passagem que ressente muito das acaloradas disputas daquele tempo. Mas podemos sempre ler uma mensagem importante nas entrelinhas: nem todas as palavras da Bíblia, nem todas as palavras dos Evangelhos podem ser usadas hoje, por nós, para dizer as nossas palavras melhores. Existem algumas que, filhas do seu tempo, foram, ao longo dos séculos, cristianizadas pela história, banhada também pelo acontecimento cristão, tornando “mais cristãs” as próprias palavras dos Evangelhos. Graças ao desenvolvimento da humanidade e graças ao amadurecimento das palavras de Jesus na Igreja e na história, nós, hoje, já não usaremos “cães” para descrever pessoas de outras fés. Também o Evangelho, também as palavras de Jesus se tornaram melhores pela história fecundada pela revelação, a ponto de esquecer algumas – mesmo que fosse só esta. A Bíblia contém muitas palavras que são melhores do que as nossas palavras. A história, fecundada por aquelas palavras melhores, tornou-nos capazes, com o tempo, de melhorar outras palavras bíblicas que, entretanto, já não estavam à altura da civilização que o Livro tinha gerado.
Um dia, a minha sobrinha Beatriz leu, pela primeira vez, num quadro de casa, a motivação da medalha de ouro, “prémio da bondade” que a sua mãe tinha recebido em criança. Naquele texto, estava a expressão “companheiro de escola deficiente”. Beatriz lançou uma espécie de grito, porque a palavra deficiente era, para ela, uma espécie de palavrão. Uma geração fora suficiente para fazer passar uma palavra, antes boa, para as palavras erradas. Algo de parecido aconteceu também com as palavras bíblicas, que se tornaram mais bonitas pela humanidade melhorada pela linfa espiritual da própria Bíblia. Esta é uma das maravilhosas leis da história. E é muito provável que esta mesma história, dentro de algumas décadas, venha a aumentar o número das palavras dos Evangelhos que o espírito evangélico de amanhã superará. Esta superação representa, para alguns, uma má notícia; na realidade, mostra a misteriosa reciprocidade que existe entre a palavra de Deus e as nossas palavras: são filhas da Palavra, mas, como todos os filhos bons, se não se tornam também pais e mães dos seus pais, acabam por se tornar os seus assassinos ou – e é a mesma coisa – a esquecê-los na indiferença. “O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar»; mas, entre as palavras que não passam existem algumas que nós, graças ao Evangelho, compreendemos que não poderemos usar se não o quisermos trair.
E, se não podemos usar nem todas as palavras da Bíblia nem todas as palavras de Jesus para dizer as nossas coisas boas, então, com mais razão, as comunidades carismáticas não podem nem devem usar todas as palavras dos seus fundadores. A sabedoria de cada geração de membros de uma determinada comunidade está também – e, em certos casos, sobretudo – em saber identificar que palavras usar e quais não usar, embora conservando-as todas na tradição (como fez a Igreja). Mas enquanto que as palavras de Jesus, que o próprio amadurecimento do cristianismo nos ensinou a não usar mais são verdadeiramente pouquíssimas, as palavras dos fundadores que não se devem usar mais pelas gerações seguintes são, pelo contrário, muitas. Aqui, a ordem inverte-se: as palavras “eternas” são poucas e as que esperam ser superadas são muitas. E quando uma comunidade não distingue e considera todas as palavas de ontem dotadas do mesmo valor carismático, esta comunidade acaba, sem o querer, por fazer envelhecer velozmente todas as palavras dos seus primórdios. Além disso, as palavras teóforas são sal na massa de todas as outras palavras. Não existe um critério para identificar quais são estas palavras-sal e, quase sempre, erramos quando experimentamos reconhecê-las, porque deixamos algumas de sal na massa e vice-versa. Mas o erro verdadeiramente mortal é o de não tentar esta operação e combater quem a tenta. Sabendo também que sal e massa juntos fazem bom pão, mas apenas na proporção correta.
Naquele episódio evangélico há ainda muito mais. Jesus mudou de ideia graças aos encontros que fez ao longo dos seus caminhos. O caminho, dimensão essencial da sua missão – não é fundo, mas conteúdo da sua paisagem existencial – ensinou-lhe muitas coisas novas. Aqui, encontra uma mulher, que fala da sua filha doente e, graças àquela mulher pagã, com quem entra em diálogo, Jesus descobre uma nova dimensão da sua missão: a universalidade. Muda de ideia. A insistência de uma mulher fá-lo mudar de ideia. Não temos boas razões exegéticas para pensar que este relato seja composto por Marcos e, assim, não remonte à tradição oral antiga. E, então, se também o Filho do homem mudou de ideia dialogando com o seu povo, então o diálogo deve fazer mudar de ideia também a nós e o nunca mudar de ideia não é bom sinal cristão.
A primeira resposta que Jesus dá à mulher é uma afirmação de bom senso, é parte do direito natural de qualquer civilização: não é ético matar a fome aos que estão longe se, antes, não se matou a fome aos que estão perto, ocupar-se dos outros sem ainda ter resolvido os problemas da família. É a prática do bom pai de família, das mães, das comunidades, de quem não mata a fome a quem está fora se não consegue matar a fome a quem está dentro, que não dá dinheiro em esmola se, com aquele dinheiro, tem de comprar o necessário para um filho. No entanto, Jesus, no Evangelho de Lucas, conta a parábola do Bom Samaritano, construída exatamente na tese oposta a esta do bom senso: o próximo não é o vizinho (os vizinhos da vítima eram o sacerdote e o levita) e o dever de amar o próximo não segue a hierarquia da vizinhança afetiva ou natural. Aquela mulher pagã, embora o não soubesse, estava a contar a Jesus a parábola do bom samaritano. E Jesus deixou-se converter pelo seu Evangelho contado por uma mãe.
O Evangelho e, depois, a Igreja estão cheios de pessoas que se convertem às palavras de Jesus: neste relato é Jesus que se converte (muda o olhar) perante as palavras de uma mulher pagã. E continua a fazê-lo ao longo da história, sempre que o seu Evangelho se converteu, através dos séculos, pelas palavras de homens e mulheres que, cristãos e não, explicaram à Igreja o seu próprio Evangelho, com palavras que falam de direitos humanos, de respeito, de igualdade, de fraternidade. E, por vezes, a Igreja aprendeu, converteu-se ao seu Evangelho que se tornou “mais cristão”, graças àquelas palavras em terra “pagã”. A Igreja não teria dito as palavras que hoje diz sobre as mulheres sem o movimento feminista que, às vezes de fora dela, lhe recordou Paulo: “Não há homem nem mulher” e lhas explicou. Muitos economistas cristãos não teriam compreendido o que é hoje a pobreza sem o ministério laico de Amartya Sen e Muhammad Yunus. É a esplêndida reciprocidade terra-céu de que nos fala o humanismo bíblico, onde o homem aprende o céu com Deus e Deus aprende a terra com os homens e com as mulheres.
As comunidades descobrem o próprio carisma encontrando as pessoas ao longo dos caminhos, sobretudo nos caminhos para lá dos limites. Se lermos as suas histórias mais bonitas, damo-nos conta que, quase sempre, os fundadores compreenderam coisas novas, por vezes opostas às que acreditavam no princípio, encontrando pessoas concretas, que lhes recordaram e revelaram o seu próprio ideal. Compreenderam dimensões novas do seu carisma porque alguém lhes contou parábolas do bom samaritano, antes que fossem escritas. E as comunidades continuam a ser igualmente vivas e criativas se continuarem a deixar-se converter pelas pessoas que encontram pelo caminho, se forem capazes de mudar de ideia, mesmo quando estas conversões parecem levá-las para longe das palavras dos primeiros tempos, inclusive as palavras que já foram fruto das conversões dos fundadores. Pelo contrário, as comunidades morrem ou definham porque deixam de encontrar as mães sirofenícias fora dos seus limites ou porque, simplesmente, já não saem de casa. Com medo de escutar as histórias erradas e trair as raízes, não ouvimos ninguém e traímos o futuro. As comunidades teriam apenas necessidade de filhos capazes de amar os ‘pais’, ajudando-os a tornarem-se maiores do que as suas palavras, vivendo com eles aquela reciprocidade entre iguais que, em vida, quase nunca conheceram. Quem sabe quantas mulheres “pagãs” estão a contar-nos, hoje, parábolas evangélicas e nós não o sabemos. E os demónios não deixam dormir as nossas crianças: «Ela voltou para casa e encontrou a menina recostada na cama. O demónio tinha-a deixado».
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 05/09/2021
«Há noites
que nunca acontecem
e tu as procuras
movendo os lábios.
Depois, imaginas-te sentado
no lugar dos deuses.
E não sabes dizer
onde está o sacrilégio».Alda Merini, Há noites que nunca acontecem.
Até Jesus muda de ideias, como no episódio de Tiro. E a civilização que o Evangelho continua a gerar ensina fidelidade e superação ao longo do caminho que é a história.
Na nossa analogia entre comunidades carismáticas atuais e a primeira comunidade cristã, olhemos, hoje, de perto, um conhecido episódio do Evangelho de Marcos: «Partindo dali, Jesus foi para a região de Tiro e de Sídon. Entrou numa casa e não queria que ninguém o soubesse, mas não pôde passar despercebido, porque logo uma mulher que tinha uma filha possessa de um espírito maligno, ouvindo falar dele, veio lançar-se a seus pés. Era gentia, sirofenícia de origem, e pedia-lhe que expulsasse da filha o demónio. Ele respondeu: “Deixa que os filhos comam primeiro, pois não está bem tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos”. Mas ela replicou: “Dizes bem, Senhor; mas até os cachorrinhos comem debaixo da mesa as migalhas dos filhos”. Jesus disse: “Em atenção a essa palavra, vai; o demónio saiu de tua filha”. Ela voltou para casa e encontrou a menina recostada na cama. O demónio tinha-a deixado» (7, 24-30). Marcos diz-nos que Jesus se encontrava numa terra paga (Tiro), não para evangelizar, mas é descoberto por uma mulher sirofenícia que lhe pede a cura da filha. O diálogo entre os dois reflete um problema, muito importante, das primeiras comunidades, isto é, a ligação entre a nova comunidade cristã e os não-hebreus (ou gentios); um tema imenso, que atravessa todo o Novo Testamento, como tensão nunca totalmente resolvida.
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stdClass Object ( [id] => 19030 [title] => À descoberta da essência [alias] => a-descoberta-da-essencia [introtext] =>Lógica carismática / 2 – O valor da primeira e da segunda vocação nas experiências comunitárias.
Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 29/08/2021
«Herodes procurava João e mandou dois servos a Zacarias e perguntar-lhe: onde meteste o teu filho? ... E Herodes ficou furioso e disse: é seu filho que está destinado a reinar em Israel».
Protoevangelho de Tiago, XXIII.A analogia com os primeiros tempos do cristianismo ajuda a captar algumas novas dimensões das comunidades nascidas como saída da original.
A relação entre Jesus e João Batista é essencial para compreender o nascimento do cristianismo. Segundo o Evangelho de João (diferentemente dos outros Evangelhos sinóticos), não só Jesus frequentou o movimento do Batista, mas também alguns dos primeiros apóstolos eram discípulos de João (entre os quais Pedro, André e o anónimo “discípulo que Jesus amava”: Jo 1, 40-42). Num antigo texto etíope, lê-se: «Um discípulo de João disse que o Messias era João e não Jesus» (Pseudo-Clemente, Ritrovamenti I, 60, editado por Silvano Cola). O Apolo de que fala Paulo, em relação a alguns dissidentes de Corinto - «Eu sou de Paulo», ou «Eu sou de Apolo», ou «Eu sou de Cefas», ou «Eu sou de Cristo» (1Cor 1, 12) – era um discípulo do Batista (At 18, 24-25). Sinais de que o diálogo-polémica entre os dois movimentos durou muito para além da morte dos fundadores. Também pelo Evangelho de João, sabemos que Jesus e os seus discípulos batizavam na Judeia (3, 22).
[fulltext] =>A atividade de batizador de Jesus é um dado muito incómodo para a teologia de João, tanto que pouco depois o retifica: «embora não fosse o próprio Jesus a batizar, mas sim os seus discípulos» (4, 2). Retificações que mostram desentendimentos sobre este aspeto (o batizar) no interior das comunidades cristãs, para onde tinham confluído muitos (não todos) discípulos do Batista: «Seguramente, Jesus agiu como batizador a par de João durante algum tempo» (Il battista e Gesù, A. Destro e M. Pesce, p. 165). Não sabemos quanto durou a fase “batista” de Jesus, mas, pelos Evangelhos, podemos deduzir que não foi breve – provavelmente batizou durante toda a vida, dado que os apóstolos continuaram a batizar, também depois. Talvez numa primeira fase Jesus tenha partilhado também a vida selvática de João, como pode sugerir o relato das tentações no deserto. Em Marcos lemos também um pormenor importante: Jesus deixa a comunidade do Batista e volta para a Galileia «depois de João ter sido preso» (Mc 1, 14). Aquela prisão, cuja historicidade é testemunhada pelo historiador judaico-romano Flávio Josefo (A. G., XVIII), representou uma mudança na relação entre Jesus e o Batista. O Evangelho de João dá uma outra explicação para o regresso de Jesus à Galileia, mas também esta está ligada à relação com o Batista: «Quando Jesus soube que chegara aos ouvidos dos fariseus que Ele conseguia mais discípulos e batizava mais do que João … deixou a Judeia e voltou para a Galileia» (4, 1-3).
Até aqui, João e Jesus. Existem comunidades que nascem ex-novo. Outras, pelo contrário, são precedidas por um discipulato, um seguimento que pode durar também muito tempo – é difícil tornar-se bom guia sem, antes, ter aprendido a seguir alguém. Nestes casos, no princípio, a pessoa está sinceramente convencida de que a comunidade onde incardinou a própria vocação seja aquela onde permanecerá para sempre. Não a vive como comunidade transitória porque, no princípio, as vocações autênticas encontram-se num eterno presente, onde não há lugar para nada que não seja “para sempre”. Uma inocência oferecida, crianças espirituais sem passado nem futuro. A pessoa reconhece-se perfeitamente naquele carisma, sente uma consonância espiritual ontológica absoluta. Não se sente hóspede, mas um de casa; por vezes, o dono da casa. Não é nem o mar nem o deserto; é a terra prometida. Ali, começa a sua vida espiritual; ali, aprende o abecedário da vida comunitária; ali, aprende a gramática da “voz”. E, se amanhã aquela vocação gerar uma outra comunidade, na comunidade futura estarão também vestígios da primeira, mesmo quando a pessoa não está totalmente ciente disso ou, se a saída tiver sido difícil, nega-o (ou negam-no os discípulos).
Anjezë entra, ainda moça, no Instituto Beatíssima Virgem Maria (ou Irmãs de Nossa Senhora do Loreto), na Albânia. Ali, tomou o nome de Teresa. Lá permaneceu dezoito anos, até que, a 10 de setembro de 1946, num comboio poeirento «abri os olhos para o sofrimento e compreendi profundamente a essência da minha vocação». Naquele momento, Teresa intui a essência da sua vocação. Penetra mais em profundidade, até tocar o coração do coração. Precisou de dezoito anos. Em 1950, fundou as Missionárias da Caridade. Teresa não muda novamente de nome; o nome permanece o da primeira vocação. Como Silvia Lubich que permanece Chiara, o nome que tinha adotado ao entrar na Ordem Terceira Franciscana, de Trento, quando, alguns anos depois, compreende a essência da sua vocação e dá vida a uma nova comunidade. A essência não quer um terceiro nome, basta-lhe o segundo, às vezes o primeiro. Porque a nova vocação é penetração na essência da primeira, até sentir o seu perfume único. Teresa deixa as Irmãs de Loreto pra fundar algo conforme à sua essência mas, nas Missionárias da Caridade, existem traços das Irmãs de Loreto. Lá tinha conhecido a Índia, tinha-se apaixonado por ela, tinha dito o seu sim aos pobres; lá aprendeu a arte do seguimento. Se, na teofania do batismo de Jesus, há uma recordação de algo histórico (e é provável), é mais fácil que tenha sido a manifestação da primeira vocação de Jesus, não da segunda.
A descoberta da essência da própria vocação assume várias formas, algumas traumáticas. Por vezes, gera um novo ramo da mesma árvore – basta pensar nas centenas de famílias franciscanas ou nos reformadores das comunidades. Por vezes, a saída faz nascer uma nova árvore que cresce ao lado da primeira, frequentemente ligadas pelas raízes. Outras vezes, a árvore cresce fora do bosque e aumenta o oxigénio de todos. A descoberta da essência é, ao mesmo tempo, uma experiência de grande luz e de grande dor. Muitos vivem-na com uma sensação de traição que pode durar anos e, por vezes, torna-se ferida-cicatriz que permanece durante toda a vida. Mas, a um dado momento, chega o dia em que se compreende que chegou a hora e que se deve partir. Um momento determinante, porque se não se parte no momento exato e o processo de coexistência entre vocação e essência da vocação dura muito, a segunda vocação pode estragar-se. Um processo nunca fácil, porque quem fica faz de tudo para segurar quem quer partir, com argumentos do género: “Mas o que é que te falta aqui para fazeres o que queres fazer?”. Palavras muito eficazes porque verdadeiras para muitos, mas quase verdadeiras para quem tem uma segunda vocação. O difícil discernimento consiste em conseguir captar a diferença entre a verdade e a quase verdade, uma diferença impercetível sem uma vocação específica – e sem especialistas e acompanhantes honestos.
A analogia João-Jesus sugere-nos que a saída de cena da pessoa que personificava o primeiro carisma pode tornar-se o ponto de viragem. Encontra-se na condição objetiva de liberdade para poder levantar o próprio voo, sem mais medo de desiludir aquele/aquela que tanto amamos. Se a pessoa tem grandes talentos espirituais (frequentemente é assim) a primeira comunidade tinha, para ela, projetos, espectativas, esperanças, que se tornam laços que podem bloquear o voo para outros projetos e esperanças. Não se trata da conhecida necessidade de o filho matar o pai para poder tornar-se adulto. Nas dinâmicas das comunidades também existem estas coisas, mas não é o caso que estamos a analisar. Aqui, a pessoa que procura a própria essência, depois da saída do fundador, não mata nenhum pai. É a condição objetiva de ausência da pessoa-chave, na primeira comunidade, a criar o espaço para começar uma nova. Como acontece quando uma doença, não desejada nem procurada, nos gera para uma nova maturidade que talvez não conseguíssemos sem aquela doença.
Porém, a morte do Batista pode sugerir-nos ainda algo mais. É um dado de facto que a morte ou a saída de cena do fundador dá origem a um período em que um grande número (se comparado com o anterior) de pessoas deixam a comunidade. E fazem-no por diversas razões, muitas ligadas ao novo espaço criado pela ausência. Entre os que deixam, podem estar também as “Teresas”, que saem para fundar uma nova aventura coletiva fantástica – ainda que fosse “apenas” uma família. E como nos sugere o acontecimento de Jesus, acontece frequentemente que a descoberta da nova vocação leve consigo algumas companheiras e companheiros da primeira comunidade – outra razão para desacordos e tensões.
Daí, uma mensagem. Os fundadores não deveriam esperar a própria morte ou a reforma para criar este espaço de liberdade. Demasiadas comunidades (mas também empresas), nascidas no século passado, têm hoje muita dificuldade porque cresceram como um tronco único, sem ramos e sem gerar outras árvores. Porque, quando viram uma “alma bonita”, foi demasiado forte a tentação de a pôr a render para o desenvolvimento da comunidade. E, assim, os talentos maiores foram orientados para as suas exigências geradoras, toda a sua criatividade dirigida para os objetivos definidos pormenorizadamente pelo fundador. Enquanto esta operação é (quase) inevitável na primeira geração, se continua também na segunda e seguintes, as comunidades tornam-se troncos isolados e despojados, que perdem progressivamente as folhas, as flores e, depois, os frutos. Só um bosque carismático pode, amanhã, salvar a primeira árvore de hoje. Mas o bosque, fora da metáfora, não se forma sem uma “política do pessoal” que permita a Jesus – um homem que não era apenas homem – florir também fora do movimento do Batista. Também porque é raro que os fundadores atuem apenas por três ou quatro anos, como foi para João, e para o próprio Jesus – não é de excluir que a grande produtividade e variedade da Igreja primitiva dependia disto.
O nome desta política é “castidade carismática”, a que permite ver chegar uma pessoa bonita, alimentá-la enquanto estiver connosco e, depois, ajudá-la a compreender quem é verdadeiramente, dentro da primeira comunidade ou fora. Castidade dificílima, porque algumas destas pessoas, deixadas livres para partir, não voltam mais. Mas haverá também os ramos do tronco e as árvores do mesmo bosque que permitirão ao carisma continuar o seu florescimento. Sem desperdiçar, num excesso generoso, uma parte da semente, nenhuma semente do carisma atinge o terreno bom. Um fundador sábio é o que, quando vê chegar uma nova pessoa, deveria definir como primeiro objetivo, identificar qual é o ramo ou a árvore que esta pessoa poderá gerar e não a colocar imediatamente como jardineiro da única grande árvore belíssima da comunidade apresentada como árvore já completa e inalterável, que apenas precisa de manutenção e água – mesmo quando aquela pessoa rega muito bem. Muitas crises, emurchecimentos e saídas não geradoras poder-se-iam evitar se as pessoas tivessem tido perto alguém capaz de ler, no seu desconforto, a dificuldade em chegar à essência da sua vocação. No Reino dos céus os florescimentos são livres, vários, excedentes, coloridos, plurais, sinfónicos.
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 29/08/2021
«Herodes procurava João e mandou dois servos a Zacarias e perguntar-lhe: onde meteste o teu filho? ... E Herodes ficou furioso e disse: é seu filho que está destinado a reinar em Israel».
Protoevangelho de Tiago, XXIII.A analogia com os primeiros tempos do cristianismo ajuda a captar algumas novas dimensões das comunidades nascidas como saída da original.
A relação entre Jesus e João Batista é essencial para compreender o nascimento do cristianismo. Segundo o Evangelho de João (diferentemente dos outros Evangelhos sinóticos), não só Jesus frequentou o movimento do Batista, mas também alguns dos primeiros apóstolos eram discípulos de João (entre os quais Pedro, André e o anónimo “discípulo que Jesus amava”: Jo 1, 40-42). Num antigo texto etíope, lê-se: «Um discípulo de João disse que o Messias era João e não Jesus» (Pseudo-Clemente, Ritrovamenti I, 60, editado por Silvano Cola). O Apolo de que fala Paulo, em relação a alguns dissidentes de Corinto - «Eu sou de Paulo», ou «Eu sou de Apolo», ou «Eu sou de Cefas», ou «Eu sou de Cristo» (1Cor 1, 12) – era um discípulo do Batista (At 18, 24-25). Sinais de que o diálogo-polémica entre os dois movimentos durou muito para além da morte dos fundadores. Também pelo Evangelho de João, sabemos que Jesus e os seus discípulos batizavam na Judeia (3, 22).
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Luigino Bruni
Original italiano publicado em Avvenire em 21/08/2021
A mãe de Jesus e os irmãos diziam-lhe: «João, o Batista, batiza para a remissão dos pecados: vamos para sermos batizados por ele».
O Evangelho dos Hebreus, Evangelhos apócrifos, p. 266
É necessária uma nova pobreza, a de quem renuncia à posse das pessoas. É preciso formar pessoas que não permaneçam hoje com os compromissos assumidos ontem, mas com os sonhos de amanhã.
Comunidade é a palavra central. Invocada nas solidões e na doença, procurada e cobiçada quando as “community” virtuais nos esgotaram e sentimos a necessidade de respirar. Os seus laços, quentes e fortes, chamam-nos e não nos deixam em paz. Porém, a comunidade está a mudar de formas tão rapidamente a ponto de (quase) a não reconhecer mais. A metamorfose está a acontecer por toda a parte, mas é muito evidente no âmbito das religiões e nas Igrejas que, sem comunidade, morrem para se tornarem consumismo psicológico e emotivo estéril. De facto, é no interior das Igrejas e das religiões onde mais se notam a saudade e a doença da comunidade, onde se ouve alto o seu grito de alerta, o seu SOS, o seu berro. Qualquer que seja o futuro da experiência espiritual e religiosa não pode, hoje, deixar de partir de novo de uma profunda reflexão, honesta e radical, sobre a comunidade, com a coragem de a levar até às suas extremas consequências. É o que procuraremos fazer nesta nova série de artigos, nos quais exploraremos a gramática das comunidades, especialmente das que nascem de carismas espirituais. Em anos anteriores já alinhavámos algumas peças desta obra. Continuamos o discurso inspirando-nos também na tradição bíblica, uma mina de ouro inesgotável.
[fulltext] =>Hoje, podemos dizer, quase com certeza, que Jesus começou a sua atividade dentro do movimento de João Batista, onde permaneceu por um período não breve (meses, talvez anos). Jesus não era apenas um dos muitos batizados pelo Batista; era também um batizador (Jo 3, 22-24). E, diferentemente de quanto acontecia na contemporânea comunidade essénia estabelecida em Qumran, junto do Mar Morto (de onde nos chegou a Regra), construída à volta de normas de vida comum muito precisas e apertadas, o movimento de João era uma realidade fluida, nómada, provisória, onde as pessoas iam e vinham sem uma verdadeira vida comum. Quem se aproximava do Batista preparava-se para o batismo e, uma vez batizado, começava uma vida nova no seu ambiente ou noutro lugar. O batismo libertava-o para iniciar o seu próprio voo livremente.
Quando, nos primeiros séculos cristãos, começaram a florescer os mosteiros, estes imitaram Qumran (talvez sem o conhecer), não o movimento do Batista, nem o das primeiras décadas cristãs. Quem entrava num mosteiro tornava-se membro de uma instituição, graças a um vínculo de pertença muito forte. Ficava bem amarrado. Séculos depois, nasceu o movimento franciscano e realizou algo radicalmente diferente do monaquismo: não uma vida comunitária residencial, mas mendicante; não a centralidade da regra, mas da “forma de vida”. Francisco e os seus companheiros assemelhavam-se muitíssimo a Jesus, mas assemelhavam-se também muito ao Batista. Os frades não eram monges mais simples e pobres: eram algo de novo e de diferente. Ninguém, no princípio, confundia as suas comunidades com os mosteiros; era impossível.A segunda metade do século XX conheceu uma nova “idade axial” dos carismas da Igreja, comparável ao século XIII mendicante. Novos movimentos e comunidades trouxeram inovações importantes (por exemplo: protagonismo do laicado, dos jovens e das mulheres) mas, para os membros mais comprometidos (ou “consagrados”) o paradigma de referência permaneceu o dos monges e das outras ordens religiosas (ao longo dos séculos tornaram-se, pouco a pouco, mais parecidos aos monges), a ponto de retomarem também os três votos. Inovaram, mas pouco, nas formas de vida comunitária e na relação indivíduo-comunidade. Não admira, portanto, que os movimentos e as comunidades nascidas e florescidas apenas há poucas décadas, encarem, hoje, a mesma crise das ordens religiosas tradicionais. Têm ainda, com certeza, mais algumas vocações, uma idade média um pouco mais baixa, alguns jovens em redor; porém, a tendência é a mesma, com alguns anos de diferença. Porquê? Por muitas razões, como sabemos.
Mas temos de refletir sobre um elemento específico e pontual. Muitos movimentos espirituais da segunda metade do século XX foram concebidos em forte continuidade com o passado. Os seus fundadores eram filhas e filhos da Igreja e da sociedade do seu tempo e, em perfeita boa-fé, meteram o vinho novo dos seus carismas em odres organizativos e institucionais velhos. E, assim, perante as mudanças epocais destas últimas duas/três décadas, os novos movimentos e comunidades são pouco capazes de responder aos novos desafios e às novas exigências espirituais. As suas inovações sofreram uma obsolescência muito rápida, a tal ponto que para um observador externo, uma comunidade de vida consagrada de Comunhão e Libertação ou de focolarinos, hoje, não parecer substancialmente diferente de uma casa salesiana ou de uma comunidade de religiosas paulinas.
Daí uma primeira mensagem: as velhas e novas comunidades desejosas de futuro deveriam começar a levar muito mais a sério a urgência de uma mudança importante da vida comunitária. E, pelo contrário, fazem-no pouco, acreditando que a renovação necessária consista num regresso ao carisma dos primeiros tempos ou numa nova radicalidade espiritual. E, assim, investem as poucas energias residuais em batalhas secundárias que, depois, se tornam as únicas – quando as forças em campo são poucas, errar na batalha torna-se fatal. São necessárias novas formas de vida comunitária, mais semelhantes ao movimento do Batista do que a Qumran. Mas não é fácil compreendê-lo porque a escassa “procura” de vida comunitária, hoje, provém, muitas vezes, de pessoas frágeis à procura de adesões fortes, atraídas pela recordação das comunidades de ontem. Todavia, no novo ecossistema espiritual do século XXI, sobrevivem apenas realidades mais líquidas e menos estruturadas, descentradas e menos compactas, delta não estuário, que não agregam as pessoas através das regras e dos vínculos jurídicos, mas com a força da mensagem do carisma e da experiência concreta. Mais tenda e menos palácio, mais acampamento e menos instituição, mais espírito e menos lei, mais hóspedes e menos senhores, mais provisórios e menos estáveis, mais promessas e menos votos.Comunidade onde as pessoas são ajudadas a alcançar uma condição subjetiva de liberdade e, portanto, de autonomia da própria comunidade, que não procuram uma identificação total e totalizante com o carisma comunitário. Porque, quando acontece (e aconteceu demasiadas vezes), depressa chega o dia em que a pessoa, à força de dizer “nós”, já não sabe dizer “eu” e, por isso, não sabe responder à pergunta crucial: “mas quem sou eu?”. Ontem, “sou um frade” era uma resposta suficiente. Hoje, já não; não porque diminuiu o carisma de Francisco, mas porque a história, fecundada também pelo cristianismo e pelos seus carismas, aumentou as pessoas e a sua consciência. E, assim, ao “sou um frade” (que permanece) vai acrescentado algo mais, algo de íntimo, que nenhuma comunidade pode oferecer em nosso lugar e, se o faz, cria neuroses e burn-out.
Então, a pergunta crucial é esta: é possível criar comunidades compostas por pessoas livres e autónomas, evitando, porém, a dissolução da própria comunidade? A pergunta não é retórica, porque toca o primeiro vulnus das comunidades de ontem que, para sobreviver como comunidades, tinham de reduzir a autonomia dos seus membros. A origem da palavra latina communitas oscila entre duas etimologias diferentes e opostas: cum-munus, isto é, dom comum, e cum-moeni muros comuns. As comunidades (a partir da família patriarcal) edificaram as suas construções coletivas usando mesmo os tijolos da pouca ou inexistente autonomia dos seus membros. Cada um dava livremente a própria liberdade, a qual, uma vez dada, já não existia, como em todos os dons verdadeiros e aqueles dons acabavam por construir muros para “proteger” aqueles dons. As comunidades elevavam, à volta das suas pessoas, barreiras à saída, muito altas. Assim, as pessoas entravam e quase nunca saíam (se não a custos altíssimos, insustentáveis para as mulheres). Muros físicos, espirituais e psicológicos, tanto que daquela vez em que a portinha estava aberta, o passarinho permanecia dentro da gaiola, não tendo força para levantar voo para um mundo demasiado desconhecido e, talvez, por aquela porta entrava o gato.
As comunidades de hoje viverão se baixarem as barreiras até as eliminar, transformando os muros em pontes, porque será sobre aquelas pontes que as novas vocações poderão entrar. Há uma urgente necessidade de uma nova pobreza, que se exprime como renúncia à posse das pessoas, a pobreza mais difícil de viver nas comunidades, porque as pessoas são a sua única riqueza: e, quanto mais se vive a pobreza dos bens, mais cresce a não-pobreza das pessoas. Resistirão as comunidades que souberem viver à beira do seu próprio precipício. Uma boa comunidade carismática, no século XXI, só pode ser comunidade trágica, que vai dormir cada noite, não sabendo se amanhã acordará ainda comunidade e, cada manhã, agradece porque ainda existe. Tornando sua esta regra de ouro: se queres ter pessoas geradoras, criativas e livres, deves gerar uma cultura onde as pessoas são tão livres a ponto de as não poderes controlar nos aspetos mais importantes da sua vida. Deves aprender a viver no meio de um grande vai-e-vem de pessoas, a entrar e a sair; porque gerar pessoas livres significa colocá-las em condições de, um dia, também poderem ir embora. As comunidades, sobretudo as espirituais e ideais, deveriam ter, como seu objetivo, formar pessoas que não permaneçam hoje por causa dos compromissos assumidos ontem, mas pelos sonhos de amanhã. É o futuro, não o passado, o espaço das promessas capazes de libertar verdadeiramente as pessoas. Não se fica recordando um passado que nos aprisionou, mas imaginando um futuro que continua a libertar-nos e a libertar os outros. E os “para sempre” que fazem viver bem são os que olham em frente, porque os que olham para trás apenas sabem criar estátuas de sal.
Um bom fundador de comunidades – mas também um pai, um dirigente ou um professor – deveria alegrar-se quando vê as “suas” melhores pessoas levantarem voo e não as consumir para os seus (importantíssimos) projetos. Um indicador da qualidade ética e espiritual de uma comunidade carismática é a relação entre as pessoas excelentes que por ela passaram e as que permaneceram por muito tempo: quanto mais alto, mais alta é a qualidade; quanto mais próximo se estiver do um, mais estamos dentro de comunidades narcisistas. É sempre muito triste ver leaders rodeados por muito tempo pelos seus melhores discípulos, por vezes até à reforma – e é ainda mais triste ver aqueles melhores discípulos de ontem apagarem-se nos anos por falta de ar livre e horizontes largos. Um dia – dia indefinido –, Jesus de Nazaré deixou o movimento do Batista para seguir a sua própria vocação, para fazer nascer a sua comunidade diferente. A “comunidade” livre de João foi terreno tão fértil que gerou a liberdade infinita de Jesus. O Reino dos céus é o lugar das comunidades in-finitas.
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O Evangelho dos Hebreus, Evangelhos apócrifos, p. 266
É necessária uma nova pobreza, a de quem renuncia à posse das pessoas. É preciso formar pessoas que não permaneçam hoje com os compromissos assumidos ontem, mas com os sonhos de amanhã.
Comunidade é a palavra central. Invocada nas solidões e na doença, procurada e cobiçada quando as “community” virtuais nos esgotaram e sentimos a necessidade de respirar. Os seus laços, quentes e fortes, chamam-nos e não nos deixam em paz. Porém, a comunidade está a mudar de formas tão rapidamente a ponto de (quase) a não reconhecer mais. A metamorfose está a acontecer por toda a parte, mas é muito evidente no âmbito das religiões e nas Igrejas que, sem comunidade, morrem para se tornarem consumismo psicológico e emotivo estéril. De facto, é no interior das Igrejas e das religiões onde mais se notam a saudade e a doença da comunidade, onde se ouve alto o seu grito de alerta, o seu SOS, o seu berro. Qualquer que seja o futuro da experiência espiritual e religiosa não pode, hoje, deixar de partir de novo de uma profunda reflexão, honesta e radical, sobre a comunidade, com a coragem de a levar até às suas extremas consequências. É o que procuraremos fazer nesta nova série de artigos, nos quais exploraremos a gramática das comunidades, especialmente das que nascem de carismas espirituais. Em anos anteriores já alinhavámos algumas peças desta obra. Continuamos o discurso inspirando-nos também na tradição bíblica, uma mina de ouro inesgotável.
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