Há também um lucro bom e nunca se chama usura

Há também um lucro bom e nunca se chama usura

O mercado e o templo/3 - O grande debate teológico sobre a natureza dos lucros e um crucial discernimento realizado pelos franciscanos.

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 22/11/2020.

A história não é ficção; a Providência fala também nos acontecimentos concretos; o Espírito sopra também dentro de um contrato.

Houve um tempo na Europa em que os Papas emitiam Bulas para resolver controvérsias sobre bancos e juros. Quando “a economia da salvação” e “a salvação da economia” estavam ambas no centro dos compromissos dos cristãos, da inteligência dos teólogos, da observância da opinião pública. Quando os debates sobre a eucaristia e sobre a legitimidade da usura tinham a mesma dignidade teológica e humana, porque a Igreja e o povo sabiam bem que se vivia e se morria também pela falta de crédito ou por demasiados empréstimos maus.

Debates tão calorosos que foi necessária uma Bula papal para encerrar (sem o conseguir totalmente) a longa controvérsia à volta dos Montepios. A querela dizia respeito, sobretudo, ao juro que praticavam aqueles bancos, que os adversários consideravam usurário. Leão X, embora reconhecendo como possível a razão dos opositores, definiu como legítimo, para aqueles bancos, pedir o pagamento de um juro sobre o empréstimo, «desde que destinado exclusivamente às despesas dos funcionários e de outras coisas relativas à manutenção da organização, desde que não seja tirado qualquer lucro» (Inter Multiplices, 1515). A Bula afirmava, portanto, que não eram instituições usurárias pelo simples facto de pedir um pagamento de um juro (geralmente à volta dos 5% ao ano). A mesma Bula reafirmava a definição de usura: «Porque este é o verdadeiro significado da usura: quando uma coisa produz um ganho apenas pelo uso dessa mesma coisa (“ex usu rei”), sem qualquer trabalho, qualquer despesa ou qualquer risco». Qualquer trabalho … qualquer risco.

O empréstimo com juros dos Montepios é considerado não usurário, portanto, com a condição de o juro não ser a expressão de um objetivo de lucro, mas o legítimo reembolso das despesas de funcionamento do banco. A ponto de, na última secção da Bula, Leão X não deixar de especificar que o ideal permanece o não pagamento de juros (pelo menos parcial) por parte dos pobres, quando os fundos públicos ou filantrópicos pudessem cobrir as despesas de gestão de modo a não fazê-las recair «totalmente sobre os pobres». O centro da polémica era, portanto, o objetivo do juro, o “espírito” da pequena soma acrescentada ao capital. O espírito não devia ser o lucro, mas a cobertura dos custos.

Mas era justamente este “espírito” a ser posto em questão pelos opositores dos Franciscanos Menores. Entre eles, o monge Nicolau Bariani, de Piacenza, que, em 1494, publicou um livrinho que fez muito barulho: De Montis Impietatis. Bariani era agostiniano, formado, portanto, na visão bíblica e patrística sobe o dinheiro e juros. Para ele, toda a soma restituída que excedesse o capital emprestado era usura, logo ilícita, mesmo a dos Montepios. Os franciscanos, pelo contrário, distinguiam. Como? Com base em que “teoria” podiam distinguir um florim usurário dum legítimo?

O certo é que aquele debate entre teólogos sobre economia e usura foi muito apaixonante, controverso, duro, áspero a partir do séc. XIII. Mas, sobretudo, foi genial e ainda nos deixa de boca aberta, à distância de muitos séculos, pela inteligência e pela riqueza. Os franciscanos, mais que teólogos, eram observadores atentos da realidade, sobretudo das novas cidades italianas e europeias; estavam menos interessados nas disputas teológicas abstratas e dedutivas (inclusive as aristotélicas) que na compreensão dos comportamentos efetivos das pessoas. Por isso, observavam as praxis dos mercadores, conheciam as mudanças económicas e civis, num tempo muito dinâmico. E faziam uma operação essencial em cada tentativa de compreensão da realidade complexa: o discernimento. Distinguiam, separavam, ordenavam fenómenos que podiam parecer semelhantes nalgumas coisas mas eram muito diferentes noutras e quais coisas-dimensões eram verdadeiramente determinantes naquele determinado tempo e lugar. Naqueles laboratórios, que eram as cidades mercantis dos séculos XII-XV, compreenderam, por exemplo, que o mercador que, no contrato, incluía no preço do bem um valor acrescido para o compensar pelo risco de negócio muito incerto por mar ou por terra, ou o cambista que, em Génova e Veneza, devia ter em conta as oscilações das moedas e da inflação, faziam coisas diferentes do emprestador profissional de dinheiro com usura, que estava tranquilo e no aconchego do seu banco (como afirmava Alexandre de Alexandria, Tractatus de usuris, princípios do séc. XIV). Os três pagavam ou pediam juros sobre o dinheiro, é verdade, e este elemento comum era suficiente para muitos monges pregadores os condenarem a todos como usurários; mas, diziam os franciscanos, as três situações eram muito diferentes na substância, embora semelhantes na forma. E isto fez surgir, aqui, o grande tema da diferença entre o lucro e rendimento.

Temos, porém de, antes de mais, levar a sério uma estranha amizade medieval: aquela entre franciscanos e mercadores. Francisco começa a sua história, em Assis, separando-se e recusando a economia os deu pai Bernardone, um mercador; os franciscanos, pouco a pouco, encontravam-se aliados aos mercadores, nas cidades italianas e europeias dos séculos XIII e XIV. Outro paradoxo generativo. No entanto, também aqui, há um dado concreto: diferentemente das outras ordens religiosas, os franciscanos tinham desenvolvido mais que as outras famílias religiosas, desde os tempos de Francisco, uma ordem secular: a Terceira Ordem. Tinham leigos na sua comunidade carismática e, entre eles, muitos mercadores. Conheciam-nos; eram seus irmãos. Em vez de os julgarem, eram seus amigos, conheciam-lhes o coração. Não é de excluir que as primeiras palavras boas sobre o mercado e o seu lucro tenham nascido numa refeição de fraternidade, quando algum mercante-irmão se tenha aberto com eles, falando da sua profissão difícil e arriscada. E, tendo visto a alma de um mercador, aqueles teólogos viram uma alma diferente do mercado. Primeiro, amaram e estimaram os mercadores e, depois, os mercados. E, assim, compreenderam-nos, ontem e hoje, porque não há verdadeiro conhecimento sem o amor-ágape. Em tudo isto, há uma grande mensagem de teologia cristã: a história não é fiction; a Providência também fala nos acontecimentos concretos; o Espírito sopra também num contrato de um comerciante e na oficina de um artesão.

E, assim, olhando e amando o mundo, deram-se conta que aqueles mercadores não eram usurários, mesmo quando tinham de pedir ou pagar juros. Eis o tema do espírito daquele lucro, do espírito daquele capitalismo. E, daí, se convenceram que era a própria ideia de condenação formal e abstrata do juro que estava a ser repensada, porque nem todos os juros eram iguais. Havia um tipo de juros que era apenas a justa compensação por alguns aspetos inerentes à própria atividade económica e comercial. Compreenderam que, se os mercadores não incluíssem a remuneração do risco nos seus contratos, essa atividade não se podia desenvolver e teria sido um dano grave para as cidades – os franciscanos tinham bem clara a função do Bem comum dos mercadores honestos (os “bons” mercadores). Pagar um prémio segurador para as empresas marítimas (foedus nauticus) ou a quem emprestava os capitais para uma longa missão comercial no Oriente, era muito diferente de apanhar dinheiro com usura por um banco. O que era usurário era o espírito, não a soma material de dinheiro em si, paga por juros porque, por vezes, aquele dinheiro era uma componente colateral, necessária e boa, de algumas operações empresariais.

Se, depois, aquele mercador se encontrava em condições de poder emprestar dinheiro a outros mercadores – mercadores e banqueiros, no início, eram atividades muito interligadas – eis então que faz a sua aparição uma outra boa razão para pedir um pagamento de juros: o lucro cessante. Isto é, se o mercador Lapo empresta 1.000 florins ao colega Duccio e, assim, renuncia ele próprio a usar aquele dinheiro, é lícito que Duccio recompense Lapo pelo ganho que o seu colega não pode obter por causa do empréstimo – o equivalente ao moderno “custo de oportunidade”. Este juro é, portanto, bom desde que quem emprestava o dinheiro fosse um mercador e que o uso alternativo hipotético fosse um uso produtivo, não empréstimo estéril. O que parecia ser usura, no caso de bons mercadores era, pelo contrário, apenas a recompensa pela incerteza, pela inflação, a variação dos mercados. A ponto de, em muitas cidades, os mercadores serem contados entre os pauperes, embora não indigentes, porque dependentes radicalmente da incerteza.

Eis, então, a distinção determinante: a distinção entre lucro e rendimento, hoje totalmente esquecida. Para aqueles franciscanos teólogos e economistas, se os juros tinham a natureza de lucro do mercador bom, é lícito; pelo contrário, se aquela mesma soma de dinheiro tem a natureza de rendimento, é usura. O lucro é a remuneração pela atividade lícita e arriscada do mercador, um ganho que consegue como prémio do seu trabalho, risco, pela perícia, pela inovação da sua preciosa profissão. Pelo contrário, o rendimento é um ganho que se consegue apenas pelo facto de exercer uma posição de poder sobre o dinheiro, sem trabalho e sem correr qualquer risco de negócio. Eis porque Ângelo de Chivasso, discutindo sobre as penalidades pecuniárias que podiam ser acrescentadas a uma hipoteca para se proteger do atraso da restituição, afirma que se trata de uma pretensão legítima, a menos que a adiantar tal riqueza seja uma pessoa que «habitualmente empresta dinheiro com usura».

Mas como se faz para distinguir o tipo de mercador que empresta o dinheiro? É aqui que os canonistas e teólogos franciscanos deram o seu melhor, escrevendo longas dissertações sobre as exceções da usura e as muitas casuísticas concretas. Um papel essencial desempenhava-o sempre a fama, um juízo coletivo expresso por uma comunidade especialista, composta por mercadores honestos. Não compreendemos a ética económica medieval e da primeira modernidade sem esta dimensão coletiva do mercado e dos mercadores. O corpo social, com a sua inteligência difusa sabia distinguir um usurário de um mercador. Na economia, e em todo o âmbito complexo da vida, a atividade económica que mata e a que faz viver cruzam-se todos os dias, em todos os lugares. Apenas quem sabe entrar, por amor do seu povo, nas medulas vivas deste cruzamento consegue servir a economia e a vida. O resto é – ontem e hoje – moralismo abstrato que acaba, quase sempre em prejuízo das pessoas honestas. Tudo isto a Economia de Francisco o sabia, a Economia de Francisco sabe-o.

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