Mas a felicidade é demasiado pouco

Mas a felicidade é demasiado pouco

A fidelidade e o resgate / 10 – Existem segundas escolhas, consequentes a uma primeira, que realizamos por ágape. 

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 05/06/2021

«Então, porque aumento a infelicidade de estar nesta margem com a saudade da outra?»
Franz Kafka, Diários, 22 de janeiro de 1922

No encontro noturno entre Rute e Booz, aparecem-nos algumas novas dimensões da fidelidade. E da Lei das mulheres, que tem muito a dizer-nos e que tende a não separar bens e pessoas, riqueza e vida.

Não é fácil compreender onde se encontra a beleza na Bíblia e o que ela realmente é. Eram bonitas, muito bonitas, Rebeca, Raquel, Judite, Betsabé, Ester e Tamar, talvez muitíssimo bonita a Rainha de Sabá. “A mais bela” é a jovem do Cântico dos Cânticos. Bonitos eram José, David; bonito era o menino Moisés, muito bonito era Saul; lindíssimo era Absalão, o príncipe da esplêndida cabeleira: «Não havia em todo o Israel homem tão formoso pela sua beleza como Absalão. Dos pés à cabeça, não havia nele um só defeito» (2 Sm 14, 25). Mas, juntamente a esta beleza, que se assemelha à nossa, também há, na Bíblia, uma outra beleza, que nos revela uma dimensão da vida, talvez determinante. A que nos faz chamar belo (kalos) a um pastor (Jo 10, 11), louvar Maria como “a toda bela”, que nos mostra uma beleza diferente, mesmo num crucificado que não teria «beleza para atrair os nossos olhares» (Is 53, 2).

De Rute, não se diz que era bonita, embora, em todo o seu livro, Rute fosse acompanhada de uma intensa beleza. Ninguém diz que é bonita; no entanto, todos o dizem. Já não era muito nova (era viúva, casada talvez durante 10 anos), todavia, depois de mais de dois milénios imaginamos Rute jovem e lindíssima. Se a única beleza verdadeira sobre a terra fosse a de Betsabé e de Tamar estaríamos condenados a viver num mundo com pouquíssimos bonitos e pouquíssima beleza. E, para alguns, talvez para muitos, é assim que veem o mundo. Mas este olhar não é o único que nos foi dado. Em cada dia, em cada minuto, há pessoas que se apaixonam de outras pessoas porque veem uma outra beleza. E nós podemos tentar ver o mundo através dos milhares de olhos dos enamorados, descobrir um outro mundo, uma outra beleza. Quem ama vê de modo diferente. Vê o amado ou a amada como uma pessoa belíssima. O mundo, visto através dos olhos entreabertos dos amantes, revira-se, povoa-se de pessoas esplêndidas, cada uma mais bonita do que a outra, uma beleza que muda com a idade e com as circunstâncias, mas que permanece beleza; até ao fim, quando aquele último olhar tiver o mesmo brilho dos olhos do primeiro encontro, talvez até mais belo. Deus verá assim o mundo? Vê-nos assim, a ti e a mim? O seu olhar é o “olhar de última instância” para quem não tem nenhum enamorado ou nenhuma mãe ou pai que os veja lindíssimos. Quando a beleza se embacia e desaparece, teremos que experimentar este gesto diferente dos olhos.

«Rute respondeu-lhe: “Farei tudo o que me dizes”. Rute desceu, pois, à eira e fez tudo como a sogra lhe tinha recomendado» (Rute 3, 5-6). Noemi tinha orquestrado o seu plano para assegurar à sua nora um “lugar seguro”. E, assim, perfumada e com o lindo vestido, Rute espera que acabe a festa da debulha e encontra o monte de cevada onde o homem se tinha deitado: «Booz comeu e bebeu, e o seu coração ficou bem-disposto; depois, foi e deitou-se junto de um monte de feixes. Rute aproximou-se de mansinho, afastou a manta que lhe cobria os pés e deitou-se ali» (3, 7). Rute executa perfeitamente as instruções da sogra e deita-se na cama de um homem que não é o seu marido, debaixo da mesma manta, junto dos “pés”. Podemos imaginá-la ali, rígida e medrosa, que não fecha os olhos, à espera que algo aconteça, esperando que não chegue nenhum estranho para estragar o plano. Com mil pensamentos, todos parecidos: que acontecerá quando acordar? E se me mandar embora? Vai humilhar-me, ofender-me? Vai ser violento? E, depois, o que pensará de mim? As mesmas perguntas de sempre, sobretudo quando são mulheres, frágeis, indefesas e débeis, a tomar estas iniciativas.

E os minutos tornam-se horas, e nunca mais passam: «Perto da meia-noite o homem teve um arrepio de frio, virou-se e viu uma mulher deitada a seus pés. Perguntou: “Quem és tu?”» (3, 8). Na eira, no Médio Oriente, as noites são frias. Talvez o cobertor (ou o manto) se tivesse tornado curto, talvez mexendo-se tenha tocado o corpo de Rute, «e começou a tocar-lhe os cabelos. Disse para si mesmo; os espíritos não têm cabelos; por isso, pergunta-lhe: Quem és? Uma mulher ou um espírito? Respondeu: uma mulher» (Midrash Rabbah, 6.1). O diálogo continua: «Ela respondeu: “Sou Rute, a tua serva. Estende a tua asa sobre a tua serva, porque tens o direito de resgate [goel]”» (3, 9). Rute dá-se a conhecer e apresenta-se como “sua serva” (’amah), que era uma condição que permitia a uma mulher tornar-se também concubina ou esposa – a poligamia era permitida em Israel. E pede-lhe para ser o seu resgatador-goel e desposá-la. As asas, usadas no plural, indicam proteção, normalmente de Deus; mas quando “asa” é usada no singular (kanap) é uma oferta de matrimónio e “estender a asa sobre alguém” significa desposá-la (Ez 16, 8).

Aqui, Rute, com este pedido, vai para além das obrigações de resgate do Goel, previstos pela Lei de Moisés, e chega mesmo à obrigação do Levirato, uma outra instituição que previa a obrigação do cunhado-parente de desposar uma viúva. Portanto, um pedido impróprio, segundo a Lei, até porque a mulher parente de Booz que talvez pudesse exigir a aplicação do levirato era Noemi, não Rute, que até era estrangeira. O certo é que Rute transgride a Lei. E esta transgressão mostra-nos algo de muito importante.

Rute faz algo não previsto pela Lei dos homens, dos varões. Estes tinham separado e distinguido o Goel do Levirato, tinham separado o resgate dos bens económicos do resgate das pessoas, tinham separado a riqueza da vida. E continuamos a fazê-lo. Rute não. Para ela, todos os bens são relacionais. A única verdadeira lei que conta é a que assegura que a vida possa continuar, que os bens não se percam, sim, mas que não se perca a vida. Que cheguem novos filhos, porque os filhos, na Bíblia, são o verdadeiro paraíso e um filho que nasce pode sempre ser o Messias. Os homens separam as coisas das relações humanas; as mulheres, não. Vemo-lo ainda todos os dias: presentes caros que substituem o tempo para falar que nunca existe, dinheiro e “alimentos” (palavra tristíssima) que, segundo a lei dos homens deveria compensar o incompensável. Estas são as palavras dos advogados, a quem se vai quando matámos as palavras que deveríamos dizer um ao outro e não as dissemos. O resgate dos bens, sem o resgate das relações primárias, resgata apenas coisas mortas. As mulheres sabem isso; nós, homens, sabemo-lo um pouco menos. Rute também insere Noemi dentro da sua salvação/redenção – casar com Booz significa dar um herdeiro a Noemi, que não tem. Não consegue conceber uma salvação que seja apenas para si mesma. A felicidade é demasiado pouco. Todos o sabemos; aprendemo-lo todos com o passar dos anos. Mas sabem-no, sobretudo e diversamente, as mulheres. Para que a felicidade possa ser “suficiente” (sem nunca se tornar tudo) deveria, pelo menos, incluir a felicidade daqueles que as mulheres amam que, muitas vezes pesa mais do que a sua, até chegar, por vezes, a pesar demasiado – é também este peso excessivo da felicidade dos outros que gera o típico sofrimento trágico das mulheres sobre a terra, ontem e hoje, talvez sempre. Como teriam sido as Leis e a Lei se tivessem sido escritas pelas mulheres, se tivessem sido escritas pelas mães? E como seria a economia, a ciência da gestão se tivessem sido as Rute a pensá-las e a ensiná-las? Diferentes, com certeza; talvez muito diferentes.

E, assim, nesta felicidade parcial, coletiva e diferente, Rute pede para desposar um homem adulto, provavelmente ancião, talvez já casado, mais próximo da idade de Noémi que da sua (também o léxico hebraico que usa o sugere: para o Midrash Rabbah, Booz tem oitenta anos e ficou viúvo há pouco (6.2)). Booz sublinha esta escolha de Rute: «Ele disse: “O Senhor te abençoe, minha filha. Esta tua segunda lealdade [hesed] vale mais do que a primeira, porque não procuraste jovens, pobres ou ricos”» (3, 10).

Rute podia procurar e encontrar homens jovens, talvez até ricos – isto é um reconhecimento indireto também da beleza e do fascínio de Rute. Mas escolhe Booz. E fá-lo por fidelidade à primeira escolha de permanecer “ligada” a Noemi, para seguir uma voz, uma vocação totalmente humana. São escolhas que vemos todos os dias, que às vezes nos parecem estranhas, mas que fazem parte do repertório das mulheres, que têm um raciocínio mais vital e afetivo onde, no cálculo custos-benefícios, entram custos e benefícios diferentes, onde, por vezes, não fazem simplesmente os cálculos. Têm uma outra relação com o tempo, talvez porque levam inscrito no seu corpo o ritmo natural do cosmo e porque sabem que nove meses valem uma vida inteira e que certas dores são para sempre, como o são certos amores. E, assim, por vezes sentem que vale mais amar muito uma só pessoa, mesmo por pouco tempo, do que amar muitas pessoas por muito tempo. E fazem a sua escolha.

«Este teu segundo hesed é ainda melhor que o primeiro» - diz Booz a Rute. Esta segunda escolha, que Rute está, agora, a fazer é uma consequência da sua primeira escolha, a de seguir Noemi «para sempre». Como nas nossas vocações, como na vida, onde as escolhas de hoje são atos necessários para permanecer fiéis a uma liberdade exercitada, radicalmente, ontem. As palavras de Booz dizem-nos que estas segundas escolhas, que nos parecem e que, de algum modo, são verdadeiramente menos livres, prevalecem sobre as primeiras. Porquê? Em que prevalecem? Na juventude deixámos tudo para seguir uma voz. Deixámos “mulher, campos, filhos”, sem ter mulher, nem campos, nem filhos. Depois, parte-se, caminha-se e um dia, adulto, encontra-se uma mulher concreta que poderia tornar-se esposa, e também campos e filhos. Na primeira escolha, tínhamos dito um “para sempre” com uma liberdade absoluta porque, ali, ainda tudo era possível; a segunda escolha de não “parar” é menos livre que a primeira porque já estava potencialmente inscrita nela, porque a primeira tinha já reduzido o nosso conjunto de alternativas possíveis. Mas, agora, a escolha é concreta; a primeira era abstrata.

Poderíamos chamar uma nova liberdade a esta segunda liberdade, mas também a podemos chamar ágape, a palavra gémea do hebraico “hesed”. A segunda escolha prevalece em ágape. Somos maiores do que a nossa felicidade e do que a nossa liberdade e, por isso, podemos decidir colocá-las em segundo plano por algo que vale mais: a verdade do nosso coração. Está aqui a dimensão trágica das verdadeiras vocações que são simultaneamente a liberdade máxima e a máxima não-liberdade.
Os “para sempre”, ditos livremente, permanecem para sempre e agem para sempre. Restam três coisas. A maior de todas é o ágape.

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