As muitas cores do cisne

As muitas cores do cisne

Excessos e desalinhamentos / 1 – É infinito o valor que leva além do medo

por Luigino Bruni

publicado em Avvenire em 02/09/2018

Eccedenze e disallineamenti 01 rid“A lógica do cisne negro torna o que não se sabe mais importante que aquilo que se sabe”

Nassim N. Taleb Il cigno nero  [O cisne negro]

O “cisne negro” é aquele acontecimento altamente improvável e com efeitos muito relevantes, cuja chegada não pode ser prevista nem explicada com base nos factos do passado. O cisne negro – a expressão provém da descoberta de cisnes negros na Austrália, que refutou a tese, considerada certa: “todos os cisnes são brancos” – é o grande inimigo também as empresas e das organizações, pelos seus efeitos potencialmente devastadores.

Mas, embora o debate, mais ou menos científico, que se desenvolveu, nestes últimos anos, realce, quase exclusivamente, os efeitos destrutivos, na realidade, os acontecimentos totalmente inesperados e surpreendentes também podem representar a salvação de organizações e comunidades. O inesperado pode ser o maior dom – vemo-lo todos os dias, com os nossos filhos. De facto, se olharmos bem por dentro as dinâmicas das organizações reais, económicas e não económicas, damo-nos conta que a verdadeira grande inimiga, o cisne negro mau, é a tendência, invencível, para a criação de rotinas de gestão rígidas, construídas sobre a observância do passado e que, por isso, impedem a compreensão da chegada das grandes novidades. A gestão que guia o hoje olhando para trás leva a “reconhecer” apenas o que já se sabia; um olhar retroativo que, como no relato bíblico da mulher de Lot (Génesis 19, 26), transforma a vida numa estátua de sal, sem vida. Então, o perigo verdadeiramente grave das organizações não está na existência de cisnes negros, mas na sua gestão, muitas vezes errada.

O erro mais comum nasce do temor da chegada do cisne negro mau, que leva à hostilidade a todo o cisne com uma plumagem ligeiramente diferente do branco. Pelo terror que inspira um cisne negro, permanecem todos na rotina e na monotonia de um mundo monocolor e perde-se a beleza e a biodiversidade. Uma escolha compreensível, porque se o acontecimento inesperado é dos verdadeiramente maus, pode provocar, sozinho, até mesmo a destruição da comunidade.

Mas é precisamente aqui que entramos no coração de um dos principais paradoxos das comunidades (e das pessoas). O cisne de plumagem diferente que se avista no horizonte poderia ser o Satanás e o Anticristo, mas aquele estranha cor poderia ser também a de Isaías, de Francisco e Clara, de Teresa de Calcutá, de Jesus de Nazaré. Não o podemos saber ao primeiro olhar nem ao segundo – frequentemente, só no fim (está aqui o seu tremendo e maravilhoso mistério). Porém, se bloqueamos todas as cores disformes no seu momento nascente, talvez previnamos a chegada do cisne negro devastador (embora não tenhamos qualquer garantia de sucesso), mas, com certeza, impedimos as novidades verdadeiras e boas de chegar, amadurecer e dar os seus frutos e óleos essenciais. Uma das armadilhas relacionais que tornam as organizações muito menos criativas, vitais e inovadores do que poderiam ser, é, de facto, a luta, mais ou menos consciente, entre a chefia e os potenciais cisnes negros, que faz tudo para os fazer entrar nas lógicas rotineiras – as camas de Procústo são os sofás muito presentes nas salas das organizações modernas. A inovação verdadeira de “topo” está ligada a pessoas que, para poder atuar no máximo das suas potencialidades, não podem ser geridos com os típicos instrumentos empresariais. Hoje, estamos, finalmente, a compreender que as organizações vitais e capazes de gerar coisas verdadeiramente novas, devem mesmo renunciar à pretensão de governar e controlar as suas pessoas porque, nas dinâmicas verdadeiramente determinantes, as pessoas são ingovernáveis porque, se fossem governadas, perderiam a componente mais inovadora da sua criatividade. A metáfora do cisne negro é, portanto, um bom expediente retórico para começar um discurso sobre a gestão das novidades verdadeiras nas organizações, nas pessoas, nas regras de governação.

Quanto acabámos de referir, torna-se verdadeiramente determinante nas OMI, as Organizações Movidas por um Ideal, as realidades coletivas nascidas à volta de algumas pessoas (fundadores) e movidas por ideais diferentes dos proveitos económicos (ideais a que chamámos carismas ou vocações proféticas). As OMI são movimentos espirituais e políticos, comunidades religiosas, não poucas ONG, cooperativas e muitas empresas sociais, civis, de comunhão. Nem sempre são coisas boas e bonitas, mas são-no frequentemente. Nas OMI, o primeiro – e, não raramente o único – capital são as pessoas e os seus ativos relacionais; todas as pessoas, mas sobretudo as que atuam na base de motivações intrínsecas; isto é, os membros – trabalhadores e dirigentes – que não entraram naquela organização primariamente por incentivos económicos e financeiros, mas por um chamamento interior, portanto, por “vocação” (usando, como sempre, esta palavra no sentido mais laico e largo possível). As OMI só continuam depois da fundação se são capazes de atrair e reter um núcleo de pessoas que sabem fazer reviver os primeiros ideais. Isto é, se conseguem atrair, manter, cultivar, fazer florir, pelo menos, um cisne negro bom que, provavelmente, será capaz de fazer ressurgir o património herdado da primeira geração.

É precisamente aqui que começam os raciocínios mais importantes.

Há, no entanto, um primeiro dado: muitas OMI nascem de fenómenos de cisne negro. O primeiro diz respeito ao próprio fundador porque, muitas vezes, não há nada de mais imprevisível, de inesperado e de grande impacto no aparecimento de um novo carisma sobre a terra (incluídos os carismas artísticos). Frequentemente, o fundador de uma nova comunidade é um cisne diferente que voou para longe da comunidade originária que, por erros ou por uma nova vocação, se tornara demasiado estreita para os seus voos mais altos e loucos.

Durante a fase da fundação, a força da novidade do fundador é tão extraordinária que contamina todos os outros membros da OMI que se torna, progressivamente, uma comunidade de cisnes com a mesma plumagem do fundador. A dimensão inovadora, presente em muitos membros da OMI, orienta-se para o fundador e todas as suas energias e talentos ideais são utilizados em sentido mimético, para se treinar para a nova “cor”. Um processo que resulta muito bem, porque os membros daquela comunidade não sentem nada mais íntimo, sincero, verdadeiro e próprio do querer assumir as aparências e os tons dos fundadores.

Acontece que a diversidade originária e a primeira heterodoxia do fundador geram, pouco a pouco, uma nova ortodoxia, e a cor inovadora do fundador torna-se, progressivamente, a cor única de todos. A princípio, esta operação de mimetismo satisfaz plenamente a alma e o corpo. Mas, sem o querer nem o saber, este processo acaba por produzir uma situação estática muito parecida, senão idêntica, à realidade que, no início, o fundador e os seus seguidores queriam mudar. E, assim, a heterodoxia, gerada por um acontecimento de cisne negro, que tinha criticado e forçado o antigo dogma, reproduz, no ciclo vital do fundador, um novo dogma que combate, como todos os dogmas, as inovações. Esta dinâmica, muito conhecida nas ciências sociais e organizativas, é, muito frequentemente, o que marca o fim das experiências inovadoras e proféticas, que esgotam a sua missão ao chegar a uma situação análoga àquela donde partiram.

Por outro lado, as OMI atraem muito mais potenciais cisnes negros que as outras organizações, porque os motivos ideais, para não falar dos religiosos, selecionam muitas pessoas excelentes nalguns aspetos. As OMI sempre foram povoadas por pessoas ética e espiritualmente extraordinárias e continuam a sê-lo. Por exemplo, uma pessoa que recebeu uma vocação autêntica (e qualquer OMI, para ser e permanecer isso, tem de hospedar uma, pelo menos) é, potencialmente, um cisne negro, porque é única, irrepetível, não programável, nem ela nem ninguém sabe o que virá a ser, ninguém sabe que impacto terá a sua vida na dos outros, é uma mensagem metida numa garrafa lançada ao mar, que só será lida se e quando alguém a recolher (um discurso que vale, porventura, para qualquer pessoa que vem ao mundo). Toda a vocação é um acontecimento de cisne negro – imprevisível, inesperada e de grandes efeitos.

Porém, nas OMI, num modo mais radical que noutros lados (e as razões analisá-las-emos ao longo desta série de artigos), a gestão das pessoas radicalmente inovadoras é particularmente difícil, dolorosa e raramente coroada de êxito. A OMI sabe ou intui que em cada plumagem diferente se pode esconder o cisne assassino, e este medo legítimo devora, frequentemente, o cumprimento da promessa. Porque o preço da esperança de poder gerar um novo e verdadeiro profeta é a possibilidade de poder gerar dez falsos. Consegue-se superar este medo radical se se atribui à promessa um valor muito superior ao medo de ser morto por um falso profeta especialmente mau – um valor infinito. Assim, as hostilidades e as resistências que cada processo de cisne negro encontra em cada organização, nas OMI são amplificadas e radicalizadas. A existência de um carisma/ideal fundador leva, naturalmente, as OMI a estar ancoradas ao passado, a dar mais importância ao início que ao eskaton. Esse olhar para as origens faz parte do próprio DNA carismático das OMI, sobretudo das de carácter espiritual e religioso. O eventual reformador poderia salvá-las precisamente mudando o eixo do passado para o futuro, mas é precisamente isto que as comunidades carismáticas e ideais mais temem e combatem. Estamos dentro de uma tríplice tragédia – mas as tragédias também são as maiores criações do génio humano. As organizações ordinárias, sendo, frequentemente, pragmáticas e concretas, estão mais abertas ao novo que as OMI. As OMI, pelo contrário, desenvolvem, naturalmente, mecanismos poderosos para intercetar e bloquear a chegada dos cisnes negros maus, sistemas que, no entanto – e aqui está o busílis –, bloqueiam também os bons. Poucas realidades coletivas são mais refratárias às grandes inovações que as OMI, porque, nelas, a salvaguarda da herança do passado é elemento coessencial (diferentemente das empresas, não se muda “carisma” nem “fundador” se o mercado já não responde: mas, então, o que mudar?).

Isto significa, no plano das pessoas individuais, que quem se encontra, por destino e chamamento, com uma plumagem diferente dentro da comunidade que gerou – e são muitos – deve tomar consciência que as resistências, as hostilidades, por vezes as perseguições e as calúnias que experimenta, são, em boa parte, inevitáveis, porque inscritas na natureza de uma OMI. Deverá apenas aprender a conviver com o próprio excesso e com os desalinhamentos que qualquer excesso produz, tratando-os com mansidão.

Será à volta destas temáticas que construiremos os episódios desta nova série de artigos, onde faremos muitas perguntas às OMI e às suas pessoas. Entre estas: quais são as notas típicas da gestão destes excessos nas várias fases da vida da pessoa e da organização? Como se gere o excesso, como jovem e como velho? Como salvar a biodiversidade para lhe assegurar vida nova? Como guardar cada vocação multidimensional?

Enfrentaremos estes e outros desafios vitais, embora sabendo que as palavras, escritas ou lidas, não bastam para nos salvar. Só podem ajudar-nos a não deixar de caminhar.

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