A guarda do primeiro nome

A guarda do primeiro nome

Profecia é história / 28 – Hábito antigo (e atual) dos “senhores” é mudar o nome dos súbditos.

Luigino Bruni

Original italiano publicado em Avvenire em 15/12/2019

«Entre a última palavra dita e a primeira nova a dizer, é ali que habitamos».

Pierluigi Cappello, Assetto di volo

A reciprocidade dos pactos é uma coisa muito séria, que também inclui as consequências da reciprocidade rompida. O relato da queda de Jerusalém recorda-no-lo com rara eficácia e beleza.

Não basta ser minoria para ser minoria profética. Não é o fazer parte dum resto de sobreviventes a fazer o resto da Bíblia. Na conquista babilónica, alguns hebreus foram deportados e outros ficaram na pátria. Em cada uma destas duas comunidades – a do exílio e a da pátria – havia quem se autoatribuía o estatuto de “resto” anunciado por Isaías. Ezequiel e Jeremias falam-nos, em páginas lindíssimas, destes “conflitos entre restos”, das polémicas entre os filhos por herança ideal dos pais. As crises, sobretudo as grandes e determinantes, geram muitos “restos”, vários grupos que pretendem ser os verdadeiros guardas do primeiro pacto, os garantes da primeira aliança, os herdeiros do primeiro testamento. Nestes conflitos identitários, é provável que cada grupo possua alguns elementos autênticos do verdadeiro “resto”; mas mal uma minoria começa a reivindicar a primogenitura contra os outros grupos, as sementes boas começam a estragar-se.

Durante e após as crises, é fundamental, portanto, a capacidade de não pretender o monopólio da herança, saber conviver com outros que se baseiam no mesmo património. Porque uma virtude importante de quem se sente, honestamente, parte do “resto” fiel está em saber conviver com outros que dizem coisas diferentes, em nome da mesma herança – inclusive embusteiros e falsos profetas, que acompanham sempre os verdadeiros profetas. Porque, quando é um único grupo a sentir-se o legítimo proprietário da promessa e a ser reconhecido por todos como tal, é quase certo que é esse grupo o errado. O espírito ama o excesso e os desperdícios. A herança espiritual, como a verdade, é sinfónica. Só o tempo e a história sabem separar o trigo do joio e nenhum trigo pode estar seguro, antes do último momento, de não ser joio. Vive-se entre palavras ditas e palavras por dizer, sem ser donos da verdade de umas e de outras. As dúvidas sobre a autenticidade da própria vocação e eleição são, paradoxalmente, o primeiro sinal de autenticidade. Há também esta boa ignorância no repertório humano.

Chegámos ao auge dos Livros dos Reis e da história bíblica. E eis um nome que, sozinho, diz muitas coisas, quase tudo: Nabucodonosor. «No reinado de Joaquim, Nabucodonosor, rei da Babilónia, pôs-se em marcha contra Joaquim, que se tornou seu vassalo durante três anos. Depois, rebelou-se contra ele. YHWH mandou contra Joaquim as tropas dos caldeus, dos sírios, dos moabitas e dos amonitas; enviou-os contra Judá para o destruir, conforme YHWH anunciara pela boca dos profetas, seus servos» (2Rs 24, 1-2). Mandou-o à Judeia para a destruir… Temos, imediatamente, a interpretação do que o texto está a descrever. O cerco a Jerusalém, a destruição do templo, o exílio em Babilónia, o fim do reino de Judá são queridos por Deus porque são a consequência da violação da Aliança. Tinha-o dito por meio dos profetas e, agora, aquela palavra cumpre-se, para nos mostrar a seriedade da palavra, o valor absoluto de uma promessa, a verdade radical da aliança. Se um pacto é verdadeiro, se a palavra que o cria, pronunciando-o, não é fumo e vanitas, então deve ser verdadeiro tudo o que aquela reciprocidade essencial implica. Um pacto é um bem relacional; portanto, é feito de reciprocidade que morre quando a reciprocidade diminui. Então, a destruição do templo e o fim do reino estão inerentes à verdade da aliança com Abraão e Moisés. E isto é uma coisa verdadeiramente importante.

Os Livros dos Reis mostram-nos que o fim já tinha começado no momento em que Salomão importou, para Jerusalém, os deuses estrangeiros. Portanto, é muito sugestiva e forte a cena da devastação do templo: «Foi nesse tempo que os homens de Nabucodonosor, rei da Babilónia, vieram sobre Jerusalém e a sitiaram. Nabucodonosor chegou à cidade, quando as suas tropas a sitiavam. Joiaquin, rei de Judá, saiu ao encontro do rei da Babilónia… O rei da Babilónia prendeu-o. Isto aconteceu no oitavo ano do reinado de Nabucodonosor. E como YHWH tinha anunciado, Nabucodonosor levou dali todos os tesouros do templo de YHWH e do palácio real, e quebrou todos os objetos de ouro que Salomão, rei de Israel, fizera para o santuário de YHWH» (24, 10-13). Como tinha anunciado YHWH: novamente a mesma tese. Com os despojos dos tesouros do templo e do palácio (talvez um dado anacrónico, pois este episódio acontece provavelmente dez anos mais tarde, com a segunda deportação, durante a destruição de Jerusalém e do templo), encerra-se um longuíssimo ciclo, que durou séculos. A corrupção do coração de Salomão e dos muitos reis que, depois, lhe sucederam, atinge, agora, o seu auge, com a leva daquele tesouro e “reduzindo a pedaços” os objetos.

A palavra que leva Nabucodonosor a Jerusalém é a mesma palavra da bênção enganada e irrevogável de Isaac para Jacob, a mesma palavra que criou a luz e Adão. Se é verdadeiro Adão, se são verdadeiras as dez palavras, se é verdadeira Belém, então também deve ser verdadeiro Nabucodonosor. Esta é a verdade tremenda, dramática e maravilhosa da palavra bíblica, uma palavra que é verdadeira porque é fiel até às consequências extremas da palavra: «YHWH não quis perdoar tal maldade» (24, 4). Também isto é palavra bíblica, também aqui está a sua unicidade, isto também é a sua mensagem dirigida às nossas palavras.

Os escribas que compunham estes capítulos queriam dizer-nos, portanto, que aquela destruição continha a mesma verdade da Aliança e do Sinai. Na Bíblia, aliança e os pactos são algo de imenso, de valor infinito, que nós, leitores do século XXI, já não compreendemos. No humanismo bíblico, os pactos humanos têm o seu fundamento num maravilhoso e inconcebível pacto com Deus. Uma religião da aliança pode fundar uma cultura da aliança que, mesmo em sofrimento, continua ainda a sustentar a cultura ocidental. Também foi pelo valor daquele pacto fundador que soubemos dar vida aos casamentos, às empresas, às cooperativas, às cidades e, depois, aos Estados nacionais e à União Europeia. A religião da aliança é a possibilidade que os nossos “para sempre” possam ser verdadeiros quando os pronunciamos na ignorância do futuro; mas esta aliança também é fonte de valor infinito, na reciprocidade dos pactos. Quando, pela última vez, saio da porta de casa, digo-te que o pacto de reciprocidade que fizemos, anos antes, era verdadeiro, que não era fumo e vento. Enquanto me vou embora digo a mim mesmo e a ti a verdade do primeiro pacto e do tempo que passei. Também é verdade que posso perdoar-te e ficar em casa – muitos, muitos o fazem em cada dia e ressuscitam muitos pactos dos seus túmulos –, mas isto não tira verdade àquele ir embora; embora, depois, seja a mesma Bíblia a dizer-nos que aquele ir embora, apesar de verdadeiro, não é a última palavra, porque “um resto voltará”.

A interpretação que aquela comunidade de redatores dá à destruição de Jerusalém é, portanto, algo de extraordinário e de essencial. Perante a tragédia, aqueles escribas poderiam gritar o abandono, lamentar-se junto de YHWH por ter negado a aliança. Em vez disso, escolheram ler aquela terrível realidade na fé, agarrando-se à corda-fides que os mantinha ligados ao céu, ao seu passado, ao futuro possível e ao “resto” que continuaria a história. Aquela leitura foi a única capaz de salvar a sua fé e o seu povo diferente, porque a única alternativa que tinham era afirmar que o seu Deus era apenas um ídolo, uma vanitas como todos os outros. E, pelo contrário, salvaram a palavra e a aliança, salvaram Deus. Como Job.

Eis porque a destruição de Jerusalém é, verdadeiramente, o coração da Bíblia, o centro gravitacional da sua fé e do seu humanismo. Com todas as probabilidades, não teríamos a Bíblia – ou a teríamos totalmente diferente – se aquela comunidade de escribas, sacerdotes e profetas, abatidos pelo exílio, tivesse escolhido salvar-se a si mesma, condenando Deus. O “resto” poderá voltar e continuar a história se mantemos viva a verdade do primeiro pacto, assumindo todas as consequências.

O exílio babilónico produziu uma das maiores revoluções religiosas e éticas da história da humanidade. Ali, em terra estrangeira e idólatra, nasce o culto sem templo, Deus deixou de estar prisioneiro do seu território. E, sobretudo, terminou a era da identificação da verdade com a vitória, porque se compreendeu que YHWH podia permanecer verdadeiro, embora derrotado; que as nossas verdades também podem ser verdadeiras mesmo que não vençam; que uma vida pode ser verdadeira, enquanto morre. Uma inovação antropológica e teológica determinante, possível porque aquela comunidade de escribas-intérpretes escolheu a sua condenação religiosa para salvar a verdade do Deus da aliança e da promessa, para no-la dar em herança.

Juntamente ao ouro do templo e do palácio, nesta primeira deportação (de 598-597), os babilónios levaram também as elites militares, técnicas e intelectuais: «Levou cativa toda a corte de Jerusalém, todos os chefes e todos os notáveis, ao todo dez mil, com todos os ferreiros e artífices; deixou apenas os pobres do país. Deportou Joiaquin de Jerusalém para a Babilónia» (24, 14-15). Apenas ficou o povo pobre… Também neste relato trágico ressurge a polémica dos “restos”. Quem escreveu ou completou este versículo era uma mão que pertencia ao grupo (golà) de deportados em Babilónia que se considerava o verdadeiro resto fiel. Por isso define “povo pobre” os que permaneceram na pátria, que, enquanto pobres, não podiam aspirar ao estatuto de herdeiros da promessa – como se o ser pobres não fosse compatível com o habitar no Reino, com o ser chamados “bem-aventurados”.

Dentro destas páginas trágicas está, por fim, um pormenor que pode passar despercebido: «Em lugar de Joiaquin, o rei da Babilónia nomeou rei seu tio Matanias, cujo nome mudou para Sedecias» (24, 17). O novo soberano muda o nome ao rei por ele nomeado. A mesma operação, fizeram, alguns anos antes, os egípcios, com o pai do rei Joiaquin: «O Faraó Necao colocou Eliaquim, filho de Josias, no trono, em lugar de seu pai Josias, e mudou-lhe o nome para Joaquim» (23, 34). É um antigo e sempre atual hábito dos senhores mudarem o nome aos seus súbditos. Quando um homem ou uma mulher nos muda o nome, aquele novo nome é o selo de propriedade privada. O Deus bíblico não nos muda o nome. Deixa ficar o nosso, ama-o, aí lê a nossa vocação e é com aquele primeiro nome que nos sabe chamar: Samuel, Agar, Maria. E as poucas vezes em que o muda (com Abraão, Sara, Jacob, Simão) é para nos indicar um horizonte ou uma vocação ainda mais livres e largos.

É difícil atravessar o mundo e terminar a viagem com o nome com que aí chegámos. Os encontros e as feridas, enquanto nos deixam o sinal (in-segnano = ensinam) do nome do outro, procuram, até ao fim, não só ferir o nosso nome (coisa necessária e, geralmente, boa), mas mudá-lo, colocar-nos o selo e, de filhos, transformar-nos em escravos. Que possamos guardar o nome do primeiro dia para o ouvir pronunciar no último.

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